Filosofia como exercício de escuta em Edmund Husserl

Apresentado originalmente para a disciplina de Teoria Estética ministrada pelo Prof. José Luiz Furtado no programa de Mestrado em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto

 

Juliano Aparecido Pinto

Filosofia
como exercício de escuta em Edmund Husserl

Introdução

“Fui
compreendido? Todo filósofo escreve para ser e não ser compreendido ao mesmo
tempo.” Nietzsche

Desde os tempos imemoriais, a Filosofia buscou ser
Ciência de rigor[1],
sistemática em busca da verdadeira verdade. Tal projeto ora mais intenso, ora
menos intenso, mas jamais abandonado. A Filosofia nasce como religião do logos,
fundamentada neste a reflexão filosófica enveredaria desde o seu erigir nos
caminhos da rígida coordenação da racionalidade. Esta insurgiria ou
determinaria a partir da idéia de clareza, precisão e identidade o que deveria
ser tomado como discurso verdadeiro e o que deveria ser combatido por não se
fiar nos caminhos da reta razão[2].

Não basta, entretanto, identificar o
fundamento, é preciso expressá-lo nos moldes linguísticos. Nossa Hipótese é a
de que há uma cumplicidade entre a razão e o discurso. Como pretensa Ciência
expressada no horizonte fundacional, a Filosofia acabaria por impor limites à
sua própria atividade investigadora[3].
Ora, o que seria o fundamento pré-posto, senão uma pré-determinação de como a
realidade deveria ser experimentada ou interpretada? Cumpre dizer, o conceito
não diz a realidade, mas a determina. Afinal, sem pormenores, o real seria
somente aquilo que o conceito diz ser? Se a resposta, se é que existe, a esta
provocadora questão for não, então a Filosofia estará pautada no dinamismo das
constantes insinuações, o espanto frente ao real-plural da vida será o
impulsionador da investigação que se pretenda filosófica.

Por outro lado, se a resposta for sim, então a
Filosofia já nascera fracassada, pois nenhum contato com a realidade da vida
teria. Ora, a existência se revela, para nós, como constante experiência do
espanto, ou do taumos dirá Aristóteles[4].
Tal experiência, para longe de ser algo negativo, seria, antes, Estímulos para
que o vivente exerça sua capacidade de interpretar, tornando-se cada vez mais
em posse de si e da realidade que o circunda. Somente a termos metodológicos
estamos aqui pautados na expressão de que há um sujeito e um objeto. Em resumo,
o que se procurou apontar foi o seguinte: “A razão é apenas um modo de se
expressar na vida, e não um dispositivo ‘manufatureiro’ de relações vitais. O
horizonte da vida evade-se constantemente, é, antes de tudo, não predicativo[5].”

O presente ensaio filosófico buscará apontar, não de
modo exaustivo, no pensamento de Husserl a possibilidade de um pensar
filosófico originário, isto é, busca-se no pensamento de tal pensador aludido
aquela experiência filosófica não determinada pelos conceitos. Dito em miúdos,
pensamos que a Filosofia tem seu início não no rigor dos conceitos dialéticos,
matemáticos, mas no estranhamento possibilitado pela experiência diante do
pré-conceitual, originário, antepredicativo da vida. De acordo com nossa
hipótese de interpretação do Filósofo em questão, o “Ser” objeto da indagação
filosófica se dá, ou melhor, se doa a nós de modo fenomênico. Isto implica
dizer, que a rigidez de um sistema de pensamento não nos possibilitará
experimentar a manifestação originária das coisas em sua realidade própria. Afirma
Luiz Furtado: “Por esta via a verdade, pensada fenomenologicamente, repousa,
acima de tudo, sobre a possibilidade da manifestação originária das coisas em
sua realidade própria. O ser do ente é sua manifestação na condição de fenômeno
para nós[6].”

DELIMITAÇÃO

Tendo
delineado as coordenadas do presente ensaio, vale dizer, apontar em uma
perspectiva husserliana o estranhamento como escuta do Ser. Se bem entendido,
chega-se à conclusão de que o buscado é uma possível proposta para uma eminente
experiência filosófica. Não queremos pensar o sistema filosófico de Husserl,
aqui está o limite de nossa pesquisa. Nosso intuito será procurar argumentos
que validem a nossa hipótese, a saber, “Filosofar é estranhar o mundo”. Esta
experiência será uma necessidade para se estabelecer uma investigação de cunho
filosófico. O Ser se dá como fenômeno, em sua pura originalidade, anteposto a
qualquer conceito. Ora, se o objeto da Filosofia é elucidar o Ser, então nossa
pesquisa será de fundamental pertinência.

O Ser se dá no cotidiano, aqui o lema é
“voltar às coisas mesmas[7]”.
As implicações desta proposta serão sugeridas no avançar de nossa investigação.
Afirma, de modo a sintetizar o que queremos dizer, Luiz Furtado:

A dimensão principal do pensamento de Husserl
consistiu, pois, em afirmar a existência de uma dimensão de origem absoluta de
todo ser ou fenômeno, pré-conceitual e pré-predicativa (pré-ontológica, dirá
Heidegger), do próprio Ser, encoberto pela alienação da vida cotidiana no
mundo, de que a Ciência seria também tributária[8].

Poder-se-á
nos questionar: qual seria o método, se assim se pode dizer, para que se
efetive aquele voltar às coisas mesmas, ou ainda, ouvir as coisas mesmas? Ora,
esta questão será o trampolim para o próximo tópico.

O
MÉTODO DE HUSSERL: UM CAMINHO?

Não
obstante as críticas endereçadas à Modernidade por parte do Filósofo,
ressalta-se que o pensamento de Husserl está no âmago da Modernidade. Ora, se
de um lado a moderna sociedade com o seu ideal de lançar luzes sobre as sombras
em que se encontram o pensamento Antigo e Medieval, se vê na necessidade de uma
absoluta ruptura. Por outro viés, ela precisa “se autofundamentar”, ou melhor,
se autojustificar. Deste modo, o pensamento de Husserl, sem dúvida, encontrará
sua expressão paradigmática.

Para
sustentar a ideia de que o pensamento de Husserl está na esteira do pensamento
Moderno, embora crítico do naturalismo, ou do positivismo histórico[9], no
qual Husserl percebe um esvaziamento da ideia de verdade. Cita-se a seguinte
passagem:

É verdade que o ethos dominante da Filosofia Moderna
consiste justamente na sua vontade de se constituir como Ciência de rigor, por
meio de reflexões críticas, em investigações sempre mais penetrantes do método,
em vez de se abandonar irrefletidamente ao impulso filosófico[10].

Por
este texto, fica evidente, que o Filósofo conhece a estrutura do pensamento
Moderno e ao mesmo tempo a sua necessidade de fundamentação. Na busca de auto –
fundamentação, vale dizer, Husserl apontará a Filosofia como sendo aquela que
poderia salvar o pensamento fundamentando-o, Ressalta Christian Delacampagne:
“(…) ele não vê melhor modo de fundar as ciências do que subordiná-las a uma
Filosofia julgada mais ‘científica’ do que as ciências, cumprindo assim, a seu
modo, o programa diretor do idealismo Europeu[11].”

Diante
do esboçado, como articular a necessidade rigorosa de um fundamento com a
experiência originária? Ora, será na esteira de tal experiência que Husserl
acredita poder fornecer um fundamento, consequentemente veracidade a todo
discurso científico. Assim, a tentativa husserliana consiste em resolver a
crise da racionalidade científica[12].
Para tanto, Husserl propõe o método fenomenológico. Restituindo, assim, a
possibilidade de se pensar, ou experiênciar a verdade absoluta, o ser, a
essência. Adverte-se, entretanto, que Husserl não está restaurando o pensamento
Antigo ou Medieval, há diferenças consideráveis, sobre as quais não será
possível explorar neste ensaio. Uma das razões é que isto escapa ao nosso objetivo.

Em
que consiste o método fenomenológico? Aqui citaremos na íntegra o professor
Luiz Furtado:

(…) a fenomenologia apresenta-se como verdadeira
reforma da Filosofia, retomando a idéia originária de ciência rigorosa, ou
seja, investigação metódica tendo em vista a elaboração de um conhecimento
teórico, desinteressado e puro, necessário e universalmente válido, relativo à
possibilidade de todo pensamento racional ou ciência em geral.[13]

Vê-se
claramente que a pretensão da Fenomenologia não é pouca. Se será possível a
efetivação de tal proposta, ou projeto, não é o nosso problema. Para uma
compreensão, ainda que sumária, poder-se-ia apresentar as seguintes palavras
chaves, a saber, redução fenomenológica, redução transcendental, epoké, intencionalidade,
redução eidética, evidência, nóesis, hylé, noema.

Diante
de tais chaves de leitura, interessa-nos, sobretudo, a epoké ou a
redução fenomenológica. No avançar de nossa investigação, tendo o objetivo
delineado, acreditamos que a epoké, parte constituinte da Fenomenologia
de Husserl como um todo, nos conduzirá ao ponto central de nosso ensaio. Ou
seja, justificar a atividade filosófica como um exercício de escuta.
Entretanto, antes de adentrarmos no enfrentamento com o termo em questão,
pensamos ser válido citar mais um argumento, ou descrição do que seja a
Fenomenologia:

O método fenomenológico consiste essencialmente num
esforço de esclarecimento da experiência, esforço não à luz de princípios
metafísicos ou transcendentais (como fizeram todos os filósofos anteriores),
mas no âmbito da própria experiência, em plena disponibilidade para acolher
toda a mensagem que a experiência transmite e comunica.[14]

A
Fenomenologia, em uma primeira aproximação, verte sobre a problemática da
teoria do conhecimento. Dito de outro modo, a possibilidade do conhecimento é a
temática em pauta[15].
Não entende-se o conhecimento como relação de um possível sujeito com um
possível objeto, mas o modo como a coisa se dá para a consciência intencional.
Ora, o ser dos objetos dados em sua essência à consciência intencional, vale
dizer, dados como fenômenos, só existem em detrimento da consciência. Em outros
termos, todo ser é ser para a consciência, revelado em sua essência como
fenômeno. Afirma Luiz Furtado: “Ser para a consciência é o modo absoluto de ser
do ente, porque é sua forma de manifestar-se.[16]

Por
outro lado, a consciência será sempre consciência intencional de algo, ou
seja, “consciência de”. Neste sentido, a consciência já nasce transportada para
algo que ela própria não é. Salienta Luiz Furtado: “E sendo intencional a
consciência nasce já transportada para um ser transcendente, por ela visado, e
que ela própria não é[17].”
Portanto, não há em Husserl a separação clássica entre sujeito e objeto. Aqui,
toda consciência é de algo e todo objeto é para a “consciência de.” Ora, não
pode haver consciência intencional do não ser. Afirma de modo à sintetizar
nossa exposição no que refere à problemática, “sujeito e objeto”, Luiz Furtado:
“O ser para a consciência do ente não pode ser pensado como inexistente pois,
neste caso, o pensamento – na medida em que toda consciência é consciência de
alguma coisa – seria sem objeto e, portanto, não ser[18].”

Tendo
esboçado, ainda que de forma sumária, o método criado por Husserl, cumpre
salientar: o método fenomenológico é um caminho. Para onde? Para as coisas
mesmas, dadas em carne e osso. Deste modo, pode-se afirmar que a Fenomenologia
deve se pautar na evidência, pois esta é uma forma de doação da própria coisa.
Garante-nos Luiz Furtado: “Por último a fenomenologia deve pautar-se pela
evidência, definida por Husserl como apresentação ou doação da própria coisa.
(…) Trata-se pois de viver a presença da coisa visada na plenitude e
claridade da sua essência[19].”

EPOKÉ:
RUPTURA E PROPOSTA

No
presente tópico, trata-se de adentrarmos nos méritos e confrontos exigidos
pela epoké. Como sugerido no tópico anterior, um enfrentamento do termo
em questão se faz necessário. Pensa-se que tendo esclarecido alguns problemas,
agora é possível pensar os desdobramentos ou implicações surgidos a partir da
redução fenomenológica. Primeiramente, trata-se de responder a seguinte
questão: o que significa, para a Fenomenologia husserliana, a epoké, ou
a redução fenomenológica? Significa, na melhor das hipóteses, a suspensão de todos
os juízos adquiridos e impostos a nós pela tradição filosófica sobre o que seja
o mundo real ou ideal. Em outros termos, implica em renunciar todos os juízos
pré-concebidos. Ora, aqui está a possibilidade de uma experiência puramente
filosófica, a saber, uma reação ao óbvio habitual. É inegável o fato de que a
especulação filosófica surge a partir de um estranhamento do “mundo” [20].

Não
se trata, pois, de um estranhamento idêntico ao taumos aristotélico,
pois este valendo-se da potência do conceito busca tudo identificar para que a
dúvida, ou o estranhamento seja sanado[21].
Para longe desta perspectiva, partimos da hipótese de que para Husserl o
imperativo é ‘voltar às coisas mesmas’, frequentá-las, ouvi-las. Assim, nenhum
conceito poderá ser tomado em sentido absoluto, pois a própria coisa nunca se
dá de forma acabada, de modo que haverá sempre algo mais a ser dito, visado.
Adverte-se que estamos problematizando, ou pensando nosso ensaio a partir
somente da epoké. Portanto, não estamos dando margem para nenhum tipo de
reducionismo. Não estamos, pois, reduzindo ou afirmando que Husserl seja um
cético ou racionalista, ou ainda, empirista. O fato é que ao não fazer uso dos
pré-conceitos, pensa-se que as coisas se manifestarão com são, ou seja, em
carne e osso[22].

No
que refere à epoké afirma Luiz Furtado: “Epoké: suspensão dos juízos
ingênuos sobre a existência e realidade do mundo em si. Aceitação do mundo tal
qual vivido, isto é, redução do mundo ao fenômeno do mundo, ou à forma do seu
aparecer como horizonte temporal e espacial[23]”.
Nosso objetivo, assim como o do Husserl em estudo, não é silenciar todo
discurso, mas apontar aquilo que é anterior ao sistema filosófico, por isso a
real necessidade de se suspender os juízos. Afirma Merleau – Ponty, “Husserl
quer compreender aquilo que é não filosófico, o que antecede a ciência e a
Filosofia.” Ele quer “Descobrir uma passividade originária, em oposição à
passividade secundária do hábito[24].”

Tendo
delimitado o que se entende por epoké, agora trata-se de apontar alguns
de seus desdobramentos. Em uma primeira aproximação, a suspensão de juízo nos
remete a dois acontecimentos, a saber, a uma ruptura com o positivismo
histórico e a um retorno às coisas mesmas. Salienta Luis Furtado: “A rejeição
de pressupostos assume em Husserl a dupla face da recusa da História da
Filosofia e do imperativo de frequentar as coisas mesmas[25].”
Diante do imperativo de frequentar as próprias coisas, ou ouvi-las, a História
da Filosofia se torna desnecessária. Isto implica dizer que a experiência da
consciência com o fenômeno evidente, dado em sua originalidade, tem primazia
ontológica sobre o passado e sobre o futuro. Expressa Husserl, quanto à
História da Filosofia: “Literatura filosófica crescente até o infinito,
compreendendo pseudo opiniões e pseudo críticas (…) mera aparência de
filosofar[26].”

Se
por um lado a epoké nos confronta à rejeição da História da Filosofia,
por outro surge uma proposta de voltar às coisas mesmas. Em que implica tal
proposta? Ora, segundo nossa hipótese, significa uma afirmação do cotidiano,
este não no sentido de hábito, mas no sentido de experiência. Ao que podemos
afirmar, toda experiência de um fenômeno no seu doar-se a uma consciência
intencional, de modo evidente, sem pressupostos, no momento presente em que se
efetiva é uma experiência absoluta. Portanto, a investigação filosófica deve
partir não de dogmas, conceitos ou sistemas, ou ainda, de filosofias, mas deve
partir das coisas e dos problemas[27].

EPOKÉ:
LIBERDADE EXPRESSIVA DO SER

Uma
vez que a epoké ou redução fenomenológica nos “proíbem” a utilização da
História da Filosofia como referência ao Ser, resta-nos afirmar a dissolução da
própria Metafísica. Assim, nos instalamos em outro registro de pensamento, isto
é, no plano da liberdade ontológica. O presente tópico partirá da seguinte
hipótese: a liberdade é a possibilidade do Ser se dá como fenômeno. Como
esboçado na delimitação de nosso ensaio, o fenômeno é o modo absoluto de
manifestação do Ser. Advertimos, porém, que não estamos propondo uma reflexão do
Ser sistematizada nos moldes metafísicos, mas do Ser enquanto manifestação
originária das próprias coisas, logo a liberdade é o modo pelo qual o Ser se dá
e não a dialética, ou qualquer sistema de pensamento pré-posto.

No
âmbito da pesquisa, no qual nos encontramos, pergunta-se: o que se entende por
liberdade ontológica? De forma sumária, diríamos que a liberdade é a não
necessidade de se utilizar a História para compreender o Ser. Dito de outro
modo, a liberdade é o pensamento que se assume isentando-se de pré-conceito, ou
melhor, a liberdade equivale a “deixar Ser”. Ora, isto só será possível quando
nos voltarmos para a realidade vivida, frequentando as coisas mesmas, sem nos
valermos de nenhum pressuposto. Ontologia porque estamos no plano do Ser enquanto
Ser[28],
logo a liberdade ontológica será deixar o Ser Ser.

Aqui
o Ser, as coisas próprias se doam à consciência intencional. Para longe de
qualquer projeto de caráter dialético, o qual a nosso ver obriga algo aparecer
e chama-o de Ser, cita-se, por exemplo, os princípios lógicos, a saber, o
princípio de identidade, de não contradição, de razão suficiente, do terceiro
excluído e a impossibilidade do progresso ou do regresso ao infinito[29]. Tais
princípios estabelecem o modo como o Ser deve manifestar-se. Ora, como vimos, o
Ser se manifesta no horizonte originário, pré-conceitual da experiência vivida,
logo os princípios aludidos não passam de pré-conceitos.

Ao
contrário dos princípios lógicos, partindo da epoké husserliana, o
Ser das coisas se doa a nós. O Ser, deste modo, se oculta e se desoculta ao
mesmo ‘tempo’, noema e nóesis. Se de um ponto o que se vê é apenas um
dos lados da mesa, afirma-se, porém, a partir de uma idealidade imaginária, ver
a mesa como um todo. No entanto, o que se doa à consciência intencional é
apenas uma das faces da coisa, deixando múltiplas facetas escondidas. Afirma
Luiz Furtado: “Assim o objeto é dado. Ele se apresenta sempre sob um aspecto ou
perspectiva, deixando indeterminados suas infinitas faces não imediatamente
intuídas[30].”
Isto nos possibilitará uma experiência sempre originária das coisas. Nesta
vertente o conceito não é de modo absoluto, capaz de aprisionar o ser das
coisas. Fica, portanto, patente que o Ser se manifesta fenomenicamente anterior
a qualquer conceito. Assim, a liberdade é a casa do Ser.

ESCUTA
COMO ACOLHIMENTO DO SER

Se
bem compreendido o percurso da reflexão até aqui, sem dúvida, se perceberá que
a escuta é a melhor postura do filósofo. Não se trata, porém, de uma atitude
passiva, inerte diante do real, mas de uma escuta no sentido de acolhimento.
Não se pode perder de vista o nosso ponto de referência, a saber, a epoké
husserliana. Pois é nesta dimensão da fenomenologia que se buscou traçar as
linhas mestras do presente ensaio. Adentrar em outros pontos da reflexão de
Husserl foi inevitável, mas não nos perdemos do principal, isto é, apontar a
partir da redução fenomenológica a atividade filosófica como exercício de
escuta.

Para
tal exercício, porém, não é reservado a passividade, ou a indiferença. A postura
da escuta exigirá uma verdadeira saída da inércia produzida pelas respostas
prontas e acabadas. Assim, o registro no qual o pensamento filosófico se
efetivará se dará no plano do “voltar às coisas mesmas”. Isto requerirá, como
já exposto, um abandonar os pré-conceitos, para que a coisa se dê para a
consciência intencional em sua absoluta liberdade. Cumpre dizer, a consciência
intencional é voltada para a coisa, uma vez que toda consciência é de algo,
pois não há consciência do não ser. Do mesmo modo, toda coisa é para a
consciência intencional. Portanto, as duas experiências nascem e morrem juntas.
Ressalta Luiz Furtado:

A consciência é tão essencial ao objeto como seu
objeto é para ela. A consciência e o objeto por ela visado formam uma
correlação ou estrutura fenomenológica indispensável e única. O objeto (noema)
e a consciência nascem, por assim dizer, juntamente. O objeto tende a ser
consciência plena (como uma percepção capaz de captar ao mesmo tempo os seis
lados de um cubo), e a consciência tende a ser objetiva (como uma consciência
sem perspectivas ou pontos de vista).[31]

Não
se trata aqui de estabelecer uma crítica a toda pretensa conceituação
sistematizada. Interessa-nos, porém, a deslegitimação[32] de
todo tipo de ratio sistematizadora, fazendo emergir no plano da pura
evidência do fenômeno, o Ser das próprias coisas em carne e osso. Isto
implicará em um verdadeiro deixar ser. De modo que podemos afirmar, “A
linguagem é, pois, a morte das coisas.[33]
Ora, qual deve ser a postura de quem acolhe? A isto citamos o próprio Husserl:
“tudo o que se oferece a nós na intuição de modo originário (em sua realidade
corporal por assim dizer) deve ser simplesmente recebido por aquele ao qual ela
se doa[34].”

Deste
modo, nossa hipótese é a de que diante da evidência fenomênica, não há
necessidade de argumentos, ou uma linguagem academicamente sistematizada em
defesa do que se dá como fenômeno. Afirma Husserl: “Importa permanecer fiel ao
princípio dos princípios, a saber, que a claridade perfeita é a medida de toda
verdade e que os enunciados que conferem aos seus dados uma expressão fiel não
precisam se preocupar com argumentos, por mais refinados que sejam[35].”

 

 

CONSIDERAÇÕES
FINAIS

Diante
do exposto ao longo da reflexão, vale uma pequena advertência. Nosso
objetivo consistiu em justificar, a partir da epoké husserliana, a
Filosofia como exercício de escuta. Tal exercício, se bem compreendido, nos
levará ao entendimento de que a atitude da escuta é anterior a conceituação, ou
até mesmo à Filosofia considerada em sua pretensa rigorosidade. A experiência
da escuta é desafiadora, pois nos coloca o tempo todo diante do não conhecido,
diante do diferente, extravagante. Assim, pensamos ser possível, perante tal
exercício, uma experiência eminentemente filosófica. Isto justificaria a
Filosofia como estranhamento do mundo.

A
atividade filosófica encontra seu impulso, por assim dizer, na não Filosofia.
Dito de outro modo, A Filosofia se efetiva a partir da desconsideração de todo
pré-conceito, isto é, diante de um voltar às coisas mesmas. Cumpre dizer, o
fenômeno não é uma fachada de uma possível essência, mas o modo pelo qual a
coisa se doa à consciência intencional. Aqui está a diferença do fenômeno da
compreensão kantiana, pois nos moldes de Husserl o fenômeno aponta para outro
fenômeno. Pensamos que a sedução do pensamento de Husserl, de acordo com nossa
interpretação, está no fato de ele nos possibilitar o assombro e encanto ao
mesmo tempo. Há deste modo, uma confluência entre estranhamento e escuta.
Filosofar é estranhar o mundo na medida em que se voltar às coisas mesmas, sem
se valer de pré-conceitos. A isto chamamos “exercício de escuta”

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:

HUSSERL,
E. A Filosofia como Ciência de rigor. Tradução de Albin Beau. Editora: Coimbra:
Edições 70, 1960.

HUSSERL,
E. A ideia da Fenomenologia. Tradução de Artur Morão. Rio de Janeiro.
Edições 70.

FURTADO,
José Luiz. Introdução à Fenomenologia de Husserl. Ouro Preto, 2006.
Disponível no site: www.scribd.com.br. Acessado
em 10 de Junho de 2012.

•_________________.
Notas de aula sobre Fenomenologia.
Disponível no site: www.scribd.com.br. Acessado
em 10 de junho de 2012.

BUZZI,
Arcângelo R. BOFF, Leonardo. Introdução ao pensar: o Ser, o conhecer, a
linguagem. 3. Ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

MOLINARO,
Aniceto. Metafísica: Curso sistemático. Tradução de NETTO, João Paixão;
FRANGIOTTI, Roque. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

OLIVEIRA,
Ibraim Vitor de. PAIVA, Márcio Antônio de. (org). Violência e discurso sobre
Deus: Da desconstrução à abertura ética. São Paulo: Paulinas, Puc Minas,
2010.

MONDIN,
Battista. Curso de Filosofia: os filósofos do Ocidente. Tradução de
LEMOS, Benôni.3. ed. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção: Filosofia – 3).

DELACAMPAGNE,
Christian. História da Filosofia no Século XX. Tradução de MAGALHÃES, Lucy. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1] Cf. Husserl, E. A
Filosofia como Ciência de rigor
. p.1-3. Todas as referências estarão de
modo completo na bibliografia.

[2] Cf. Ibraim Vitor de
OLIVEIRA, Violência do “saber”: metafísica e discurso sobre Deus. p.
31-64.

[3] Cf. Márcio Antônio
de PAIVA, Da ética ao discurso sobre Deus. p. 121.

[4] Aristóteles apud
Ibraim Vitor de OLIVEIRA, Violência do “saber”: metafísica e discurso sobre
Deus
. p.121.

[5] Márcio Antônio de
PAIVA, Da ética ao discurso sobre Deus. p. 122.

[6] José Luiz FURTADO, Introdução
à fenomenologia de Husserl
. p.6. No corpo do texto, toda referência feita a
respeito deste autor, será assim: Luiz Furtado.

[7] Cf. Husserl E, A
ideia da Fenomenologia
. p. 26. Onde se encontra o seguinte: “Entretanto, o
genuíno sentido do princípio é a exortação constante a permanecer junto das
coisas (bei den Sachen) (…)”.

[8] José Luiz FURTADO, Introdução
à fenomenologia
de Husserl. p. 3.

[9] Sobre o positivismo
histórico e sobre o naturalismo, para maiores esclarecimentos, ver: Christian
DELACAMPAGNE, História da filosofia no Século XX. p. 27-33.

[10] Husserl, A
Filosofia como Ciência de rigor
. p.1.

[11] Christian
DELACAMPAGNE, História da filosofia no Século XX. p.32.

[12] Cf. José Luiz
FURTADO, Introdução à fenomenologia de Husserl. p.2.

[13] José Luiz FURTADO, Introdução
à fenomenologia de Husserl
. p.14.

[14] Battista MONDIN, Curso
de filosofia
. p. 182.

[15] Cita-se o próprio
Husserl: “O método da crítica do conhecimento é o fenomenológico: a
fenomenologia é a doutrina universal das essências, em que se integra a ciência
da essência do conhecimento”. Husserl E, A ideia da Fenomenologia. p.
22. Para maiores esclarecimentos; ver o tópico “A ideia da Fenomenologia:
(Cinco lições)
.” p.18 a 35 da mesma obra citada.

[16] José Luiz FURTADO, Notas
de aula sobre fenomenologia
. p. 2.

[17] José Luiz FURTADO, Notas
de aula sobre fenomenologia
. p. 2.

[18] José Luiz FURTADO,
Notas de aula sobre fenomenologia
. p. 2.

[19] José Luiz FURTADO, Notas
de aula sobre fenomenologia.
p. 16.

[20] Cf.
Batista MONDIN, Curso de filosofia. p. 184

[21] Cf.
Ibraim Vitor de OLIVEIRA, Violência do “saber”: metafísica e discurso sobre
Deus
. p. 31.

[22] Cf. Battista MONDIN, Curso
de filosofia
. p. 184.

[23] José Luiz FURTADO,
Notas de aula sobre fenomenologia
. p. 7.

[24] Merleau – PONTY apud
José Luiz FURTADO, Notas de aula sobre fenomenologia. p. 7.

[25] José Luiz FURTADO, Introdução
à fenomenologia de Husserl
. p.14.

[26] HUSSERL apud José
Luiz FURTADO, Introdução à fenomenologia de Husserl. p.14.

[27] Cf. José Luiz
FURTADO, Introdução à fenomenologia de Husserl. p.15.

[28] Para maiores
esclarecimentos sobre a Ontologia como estudo do Ser enquanto Ser. Cf. BUZZI,
Arcângelo R. BOFF, Leonardo. Introdução ao pensar: o Ser, o conhecer, a
linguagem. p. 21-38.

[29] Não nos seria
possível descer a sutis nuanças de tais princípios, norteadores da Lógica,
portanto para maiores esclarecimentos. Cf. MOLINARO, Aniceto. Metafísica:
Curso sistemático. p. 93-105.

[30] José Luiz FURTADO,
Notas de aula sobre fenomenologia
. p. 3.

[31] José Luiz FURTADO,
Notas de aula sobre fenomenologia
. p. 3.

[32] Partimos da hipótese
de que “crítica” e “deslegitimação” não se articulam no mesmo patamar.

[33] José Luiz FURTADO, Introdução
à fenomenologia de Husserl
. p.18.

[34] HUSSERL apud José
Luiz FURTADO, Introdução à fenomenologia de Husserl. p.16.

[35] HUSSERL apud José
Luiz FURTADO, Introdução à fenomenologia de Husserl. p.15.

 

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