Continued from: O Estoicismo

Daí a solidariedade necessária das três partes da filosofia: lógica, física
e ética, nas quais, como os platônicos, distribuem os estóicos os problemas
filosóficos. Longe deles está que cada uma destas três partes pode guardar,
graças à diversidade de seu objeto, uma certa autonomia (apesar de que a moral,
por exemplo, em Aristóteles, pode degenerar em uma espécie de descrição de
caracteres, independente do resto da filosofia.) Ao contrário, tais partes
estão indissoluvelmente unidas, posto que é somente uma e a mesma razão que,
na dialética, encadeia as proposições consequentes nas antecendentes; na natureza,
une todas as causas; e na conduta estabelece entre os atos acordo perfeito.
É impossível que o homem de bem não seja o físico e o dialético; é impossível
realizar a racionalidade nestes três domínios e captar, por exemplo, inteiramente
a razão da marcha dos acontecimentos do universo, sem realizar, ao mesmo tempo,
a razão de sua própria conduta. Esta espécie de filosofia-bloco, que impõem
ao homem de bem uma determinada concepção da natureza e do conhecimento sem
possibilidade de progresso nem de melhora, é uma das coisas mais novas que
se apresentam na Grécia e que lembram as crenças maciças das regiões orientais.

Daí também vem a dificuldade de começar e a indecisão quanto a disposição
das partes, cuja hierarquia não é fácil descobrir; já que não são captadas
ao mesmo tempo; se se começa pela lógica, a física terá o segundo lugar, porque
contém a concepção da natureza de onde deriva a moral, ou o terceiro, porque
tem como coroamento uma teologia que, segundo um texto formal de Crisipo,
é o mistério que deve iniciar-nos na filosofia [12] .
Se vê, pois, o estoicismo fundamentar-se algumas vezes na prática moral, outras
no conhecimento de Deus, hesitação cujo alcance e sentido veremos mais adiante.

V
– Lógica do Antigo Estoicismo

A teoria do conhecimento consiste precisamente em fazer entrar no sensível
o domínio da certeza e da ciência que havia sido cuidadosamente afastado por
Platão. A verdade e a certeza estão entre as percepções mais comuns e não
exigem nenhuma qualidade que não supere às que pertencem a todo homem, mesmo
os mais ignorantes; a ciência – é verdade – não pertence senão ao sábio, mas
não é por isso que sai do sensível, pois continua ligada a estas percepções
comuns cuja sistematização constitui a sua essência.

O conhecimento parte, com efeito, da representação ou imagem (phantasia)
que é a impressão que um objeto real faz na alma, impressão análoga, para
Zenão, à de um selo sobre a cera ou, para Crisipo, à alteração que produz
no ar uma cor ou um som. Esta representação é também, se quisermos, como um
primeiro juízo sobre as coisas (isto é, branco ou negro) que se propõem à
alma e à qual a alma pode dar ou negar seu assentimento voluntariamente (sigkatathesis).
Se se equivoca, ela cai num erro e tem uma falsa opinião; se acerta, tem então
a compreesão da percepção (catalepsis) do objeto correspondente à representação;
e há que se notar que, neste caso, a alma não se contenta em ter a imagem
do objeto, mas em captar imediatamente e com perfeita convicção, pois capta
não as imagens, mas as coisas. Tal é, no sentido próprio da palavra, a sensação,
ato do espírito muito diferente da imagem.

Mas, para que o assentimento não seja errôneo e conduza à percepção, é preciso
que a própria imagem seja fiel; esta imagem fiel, que constitui desde logo,
o critério ou um dos critérios da verdade, é a famosa representação compreensiva
(phantasia kataleptike), compreensiva é dizer, incapaz por si mesma
de compreender ou perceber (o que não teria nenhum sentido, já que a representação
é pura passividade, e não atuação); mas capaz de produzir o assentimento verdadeiro
e a percepção. A palavra compreensiva indica, portanto, a função e
não a natureza desta imagem; e quando Zenão a define "uma representação
impressa na alma, procedente de um objeto real, condizente com este objeto,
e tal que não existiria se não viesse de um objeto real", não faz mais
do que precisar seu papel sem dizer o que é. A representação compreensiva
é aquela que permite a percepção verdadeira e ainda a que produz, com a mesma
necessidade, com que um peso faz baixar o prato de uma balança. Mas que é
o que a distingue de uma imagem não compreensiva? Aqui está uma questão que,
segundo os acadêmicos, jamais responderam os estóicos e, efetivamente, é difícil
encontrar uma resposta para ela. Sem dúvida há que dizer que, posto que a
representação compreensiva nos permite não confundir um objeto com outro,
é aquela pode onde passa a qualidade intrínseca e de algum modo pessoal que,
segundo os estóicos, distingue sempre um objeto de todos os demais. Segundo
Sexto Empírico, possui um caráter próprio (idioma) que a distingue
de qualquer outra, ou, segundo Cícero, a que manifesta uma maneira particular
das coisas que representa.

A representação compreensiva, comum ao sábio e ao ignorante, nos oferece assim
um primeiro grau de certeza. A ciência, própria do sábio, não é mais do que
acréscimo desta certeza, que não muda de domínio, mas é completamente sólida.
A ciência é a "percepção sólida, estável, inabalável pela razão" [13] . Parece que a solidez da ciência
é devida a que, no sábio, as preocupações se confirmam e se apóiam entre si
de maneira que pode ver-se nelas o acordo racional. A arte, intermediária
entre a percepção comum e a ciência é, para os estóicos, um "sistema
de percepções reunidas pela experiência, que tencionam a um fim particular
útil à vida". Se vê assim a razão agrupar e reforçar umas com as outras
as certezas isoladas e momentâneas da percepção. A ciência é a percepção segura,
porque é total, o que equivale a dizer que é sistemática e racional.

Zenão resumia de uma maneira pitoresca toda esta teoria da certeza. Mostrava
sua mão aberta com os dedos estendidos e dizia: "Tal é a representação";
depois, dobrando ligeiramente os dedos: "Eis o assentimento"; a
seguir, cerrava o punho e dizia que era a percepção, e, finalmente, cobrindo
com sua mão esquerda o punho direito dizia: "E aqui a ciência, exclusiva
do sábio" [14] . Isto é, a representação, compreensiva
ou não – lendo bem esta passagem de Cícero -, não capta nada, que o assentimento
prepara a percepção e, finalmente, que só a percepção capta o objeto, o que
faz ainda melhor a ciência.

Se vê em que sentido fortemente restrito os estóicos podem ser chamados de
sensualistas; eles não admitem mais conhecimento que o da realidade sensível,
isto é certo, mas este conhecimento está, desde o seu começo, penetrado de
razão e totalmente disposto a se atenuar diante do trabalho sistemático da
razão. As noções comuns ou inatas, tais como as do bem, do justo, dos deuses,
noções formadas em todos os homens com a idade de quatorze anos, não são de
maneira alguma derivadas, apesar da aparência, de uma fonte de conhecimento
distinta dos sentidos; todas estas noções derivam de raciocínios espontâneos,
precedentes da percepção das coisas; a noção de bem, por exemplo, procede
de uma comparação, feita pela razão, das coisas percebidas imediatamente como
boas [15]
. A noção dos deuses precede, por conseguinte, do espetáculo da
beleza das coisas; somente estes raciocínios são espontâneos e comuns a todos
os homens.

Disto resulta que os diversos estóicos podiam, sem contradizer-se, escolher
critérios de verdade fortemente diferentes: a representação compreensiva,
como Crisipo, a inteligência, a sensação e a ciência, como Boeto, ou ainda
como Crisipo, a sensação e a pré-noção ou noção comum; todos estes critérios,
no fundo, se correspondem, se encadeiam, ou se equivalem, já que necessariamente
se trata ou da imagem que necessariamente resulta na percepção, ou da percepção
e de sua ligação com outras. A atividade intelectual não pode consentir mais
que no ato de captar o objeto sensível; não se pode senão abstrair, ajuntar,
compor, transpor sem jamais sair dos dados sensíveis [16]
.

Ao lado das coisas sensíveis, existe o que pode ser dito, o que pode se expressar
pela linguagem, em uma palavra, o exprímivel (lektón); a representação
de uma coisa é produzida na alma pela coisa mesma, mas o que dela se pode
dizer é que a alma se representa naquele momento de tal coisa, e não mais
que a coisa de produz na alma. [17]
Há aqui uma distinção de importância capital para compreender
o alcance da dialética entre os estóicos. Porque a dialética se aplica não
sobre as coisas, mas sobre os enunciados verdadeiros ou falsos relativos às
coisas. Os mais simples destes juízos verdadeiros ou falsos, ou juízos (axiómata),
são compostos de um sujeito, expressado por seu substantivo ou um prenome
e um atributo, expressado por um verbo. O atributo (kategórema) é,
por si só, uma expressão incompleta (por exemplo, se passeia), que
demanda um sujeito. O conjunto de sujeito e atributo: Sócrates passeia
forma uma expressão completa (autoteles), ou juízo simples [18] .

O tipo de proposição empregada pelos estóicos não tem nada em comum com a
da lógica platônico-aristotélica; não expressa a relação entre conceitos;
seu sujeito é sempre singular, seja definido (este), indefinido (algum)
ou semi-definido (Sócrates). Seu atributo é sempre um verbo, ou seja,
alguma coisa que sucede o sujeito. A lógica estóica escapa, assim, a todas
as dificuldades que apresentavam sofistas e socráticos sobre a possibilidade
de afirmar uma coisa de outra, e ignora, com a compreensão e extensão dos
conceitos, a convertibilidade de proposições, ele deixa tombar o mecanismo
complicado da silogística aristotélica. O objeto da dialética são os fatos
enunciados dos sujeitos singulares.

Isto não quer dizer que não guardem, eles também, o silogismo. Mas a razão
da conclusão não é mais uma relação de inclusão de conceitos expressa por
um juízo categórico, mas uma relação entre fatos, cada um dos quais expresso
por uma proposição simples (amanheceu, é dia), cuja relação se expresa
por um juízo composto (ouk aplà axiómata), tal como, se amanheceu,
é dia.
Os estóicos conheciam cinco classes de juízos compostos: o hipotético
(synemménon), que expressa uma relação entre um antecedente e um consequente,
tal como o que acabamos de citar; o conjuntivo, que une os fatos: já
amanheceu, já é de dia; o disjuntivo, que os separa de tal forma que
um ou outro é verdadeiro: ou é de dia ou é de noite; o causal, que
une os fatos pela conjunção porque: porque amanheceu, é de dia; o aumentativo
ou diminutivo, como: é mais de dia (ou menos) do que de noite.

A premissa maior de um silogismo é sempre proposição composta deste gênero,
por exemplo: se é de dia, amanheceu, na qual a menor enuncia a verdade do
consequente: é de dia, e a conclusão tira dele a verdade do antecedente: logo
amanheceu; está aqui ao menos o primeiro dos cinco modos ou figuras de silogismo
irredutíveis ou indemonstráveis, que reconhecia Crisipo, segundo Diócles [19] . O segundo tem como premissa
maior uma hipotética: se é de dia, amanheceu; como premissa menor, o contrário
do consequente: ora, é de noite, e como conclusão, a negação do antecedente:
logo, não é de dia. O terceiro tem por premissa maior a negação de um juízo
conjuntivo: não é verdade que Platão morreu e vive. Como premissa menor, a
verdade de um dos fatos: E Platão morreu; e como conclusão, a negação do outro:
logo, Platão não vive. O quarto tem como premissa maior um disjuntivo: ou
é de dia ou é de noite; por premissa menor, a afirmação de um dos membros:
é de dia; e, por conclusão, o contrário de outro: logo, não é de noite. Inversamente,
o quinto – que parte também de um disjuntivo – nega um dos membros da premissa
menor: não é de noite; e conclue o outro: logo é de dia. A estes modos indemonstráveis
se juntam modos compostos ou temas (thémata), que derivam deles. Assim,
o raciocínio composto: se A é, B é; se B é, C é; e resulta que C é, logo A
é.

Facilmente se vê o arbitrário destas duas classificações de juízo e de silogismos,
fundados ambas ma linguagem. Assim, Crinis, aluno de Crisipo, admite seus
espécies de juízos compostos no lugar de cinco; enquanto Diócles noz diz que
Crisipo reconhecia cinco silogismos indemonstráveis, Galeno não lhe atribuia
senão três.

Realmente, o interesse desta dialética não está neste mecanismo. Está na natureza
da premissa maior, que expressa sempre uma ligaçã de fatos, por exemplo, união
entre um antecedente e um consequente. Mas em que condições um juízo hipotético
é válido ou são (yglés)? Assinalamos que um juízo semelhante jamais
é a conclusão de uma demonstração – já que a conclusão é sempre um juízo simples
-, ou seja, que não pode ser demonstrada. Por outro lado, o aspecto exterior
de semelhantes proposições: se tal fato é, tal outro é, lhes dá certa semelhança
com essas proposições que os médicos ou astrólogos, profundos observadores
de sintomas ou de sinais, estabeleciam mediante a experiência para diagnosticar
as enfermidades ou predizer o destino. É uma linguagem de lógicos indutivos
que nos conduz à visão de um mundo construído por fatos encadeados entre si,
muito diferentes do mundo de Aristóteles. Os estóicos mesmo não viram na demonstração
senão uma espécie de signo.

Portanto, da forma exterior da proposição, há que separar a maneira mediante
a qual seu valor é estabelecido, em cujo caso não encontraremos nada nesta
lógica que, de perte ou de longe, se pareça a uma prova por indução. Com efeito,
se considermos o conteúdos dos juízos que apresentam como exemplo, veremos
que não são necessários, já que o consequente está sempre unido por um laço
lógico ao antecedente. A única justificativa apresentável de um juízo hipotético:
se é de dia, amanheceu, acontece porque o contrário do consequente,
ou seja, não amanheceu, contradiz ao antecedente. E no próprio signo,
ou seja, num juízo como se tem uma cicatriz, é porque foi ferido, os
estóicos pretendem encontrar de novo uma união da mesma espécie, já que o
signo une não uma realidade presente com uma realidade passada, mas dois enunciados
que estão, ambos, presentes, e presentes somente na inteligência (noetá)
e que, no fundo, são logicamente idênticos. [20]

Em resumo, se a ligação lógica se expressa sempre por uma ligação entre os
fatos constatados pelo sentido e enunciados pela linguagem, esta ligação não
tem valor senão graças à razão lógica que os une, e o juízo hipotético tem,
portanto, mais valor porque se aproxima mais a aquele pelo qual se passa de
um idêntico a outro: "Si lucet, lucet" (se amanhece, amanhece). [21]

A dialética dos estóicos tem, portanto, o mesmo ideal que a teoria do conhecimento:
a penetração completa do fato pela razão. E veremos logo como a proposição
hipotética, que nela é orgão, tem especial aptidão para expressar sua visão
das coisas, ainda que a lógica não seja, para eles, como era para Aristóteles,
um simples orgão, mas uma parte ou espécie de filosofia.

VI
– Física do Antigo Estoicismo

A física estóica tem a preocupação de nos fazer representar, pela imaginação,
um mundo totalmente dominado pela razão, sem nenhum resíduo irracional; nada
depende do azar ou da desordem, como em Aristóteles ou em Platão, tudo está
incluído na ordem universal. O movimento, a mudança, o tempo, não são o índice
da imperfeição e do ser inacabado, como para o geômetra Platão ou o biólogo
Aristóteles; o mundo sempre em mudança e movimento tem, a cada instante, a
plenitude de sua perfeição. "O movimento é, em cada um de seus instantes,
um ato, e não uma passagem ao ato" [22] ,
e o tempo é, como o espaço, um incorpóreo sem substância nem realidade, já
que um ser muda ou permanece somente porque, graças à sua força interna, é
agente ou paciente. Não há, consequentemente, tendência alguma – como em Aristóteles
e nos sucessores de Platão – a proclamar eterno o mundo para salvar sua perfeição.
O mundo estóico é um mundo que nasce e se dissolve sem que sua perfeição seja
atingida. A racionalidade do mundo já não consiste na imagem de uma ordem
imutável que se reflita nele tanto quanto a matéria permite, mas na atividade
de uma razão que tudo submete a seu poder.

Atividade da razão que deve ao mesmo tempo ser imaginada
como uma atividade física e corporal. Com efeito, para o estóico, como para
os filhos da terra que Platão condenava no Sofista, só existem os corpos
existentes, porque só o que existe é o que é capaz de agir ou reagir, e somente
os corpos tem essa capacidade. Os "incorpóreos", que são chamados
também inteligíveis são ou meio totalmente inativos e impassíveis, como o
lugar, o espaço, o vazio, ou bem estes exprimíveis enunciado por um verbo,
que são os acontecimentos ou aspectos exteriores da atividade de um ser, ou,
em uma palavra, tudo o que se passa com respeito às coisas, mas não são as
coisas.

A razão, posto que age, é um corpo; e a coisa que sofre sua ação, ou que padece,
é também um corpo e se chama matéria [23] . Um agente, razão
ou Deus, um paciente, matéria sem qualidade que se presta com completa docilidade
à ação divina; ou seja, um corpo ativo que age sempre sem ser jamais passivo,
e uma matéria que sempre padece sem atuar jamais, tais são os princípios admitidos
pela física. O uno é causa, a única causa a qual todas as outras se referem,
atuante pela sua mobilidade, a outra é o que recebe sem resistência a ação
desta causa.

Esta dinâmica que, por um de seus princípios (o de uma ação que se exerce
sem reação) continua aristotélica, mas que, por outro (o de um primeiro motor
móvel e de uma matéria-coisa feita de um corpo concreto) é completamente contrária
a de Aristóteles, não pode ter pleno sentido senão graças a um dogma dos mais
estranhos e indispensáveis do estoicismo: o da mistura total, dois corpos
podem se unir e mesclar por justaposição, como se pode misturar sementes de
espécies diferentes, ou confundirem-se em um, como em uma liga de metal; mas
eles podem também se misturar numa mistura total, ou seja, estendendo-se um
através do outro, sem perder nada de sua substância e propriedades, de tal
forma que encontremos ao mesmo tempo estes dois corpos, em qualquer porção
de seu espaço comum. E assim que o incenso se expande através do ar, o vinho
através da massa de agua com a qual se mistura, ainda que fosse do mar inteiro. [24] É também desta maneira que o
corpo agente se estende através do paciente, a razão através da matéria e
a alma através do corpo. A ação física não pode conceber-se senão graças à
negação formal da impenetrabilidade, é a ação de um corpo que por si só penetra
em outro e se encontra em todas as partes dele. Isto é o que dá ao materialismo
estóico este caráter tão particular que lhe aproxima do espiritualismo. O
sopro material (pneuma), que atravessa a matéria para animá-la, está
disposto a converter-se em espírito puro.

A cosmologia grega sempre esteve dominada pela imagem de um período ou grande
ano em cujo término as coisas voltam ao seu ponto de partida, e recomeçam
seu novo ciclo até o infinito. Pois isto é válido em particular para os estóicos.
A história do mundo é feita de períodos alternados, em um dos quais Zeus,
o deus supremo, identificado a um fogo ou força ativa, absorveu e reduziu
a si mesmo todas as coisas, enquanto que, no outro, anima e governa um mundo
ordenado (diakósmesis). O mundo, tal como conhecemos, terminará em
uma conflagração que o fará reentrar na substância divina; para depois recomeçar,
exatamente idêntico ao que era, com os mesmos personagens e os mesmos acontecimentos;
eterno retorno rigoroso, que não deixa lugar a invenção alguma [25] .

A física ou cosmologia não é senão detalhe desta história. Do fogo primitivo
(que deve ser imaginado não como o fogo destruidor que utilizamos na Terra,
mas como o brilho luminoso do céu) nasceu, por uma espécie de transmutação
nos quatro elementos: uma parte do fogo se transforma em ar, uma parte do
ar em água, uma parte da água em terra; e depois, nasce o mundo ao penetrar
no úmido, o pneuma divino. De maneira que os textos não explicam bem, procedem
desta ação todos os seres individuais unidos em um só mundo, cada um com sua
qualidade própria (idios póion), com uma individualidade irredutível que dura
tanto quanto ele. Parece que estas individualidades não são senão fragmentos
do pneuma primitivo, já que a geração de novos seres, pela terra ou pela água,
depende, seja da quantidade de pneuma guardado quando as coisas se formaram,
seja, quem sabe no caso do homem, de uma fagulha vinda do céu a formar sua
alma.

Pela ação concordante destes indivíduos se forma o sistema do mundo que nós
vemos, limitado pela esfera dos fixos, com os planetas que circulam com movimento
voluntário e livre no espaço, com o ar povoado de seres invisíveis ou demônios
e a terra fixa no centro. Mas este sistema geocêntrico não é semelhante mais
que na aparência aos que já conhecemos. Para começar, as razões da unidade
do mundo não são mais as mesmas: "Platão, diz Proclo, estabelece a unidade
do mundo sobre a unidade de seu modelo; Aristóteles sobre a unidade da matéria
e a determinação dos lugares naturais; os estóicos, sobre a existência de
uma força unificadora da substância corpórea [26] .
Se o mundo é uno, é porque o sopro ou a alma que o penetra retém as partes,
porque possui uma tensão (tónos), análoga a que possui, em menor escala,
todo o ser vivo e mesmo todo ser independente, para impedir a dispersão de
suas partes. Esta tensão ou movimento de vai-vem do centro à periferia e da
periferia ao centro é o que faz o ser existir. Daí a inutilidade do exemplo
platônico e do lugar natural de Aristóteles. Pela força que tem em si mesmo,
que é ao mesmo tempo pensamento e razão, Deus contém o mundo. Resulta disto
que o mundo pode existir no seio de um vazio infinito sem o temor de dissipar-se
e que, em troca, não tem em si vazio algum, porque não há lugar mais natural
que aquele em que a força se escolhe. Ademais, "se o mundo está contido
por uma alma única, é necessário que haja simpatia entre suas partes componentes,
pois cada animal tem, efetivamente, tal simpatia consigo que pode conhecer
claramente a disposição de algumas de suas partes pela disposição de outras.
Sendo assim, os movimentos podem transmitir sua ação apesar das distâncias,
já que há uma direção, dos agentes aos pacientes" [27] . Esta simpatia universal de
um mundo em que "tudo atua com o mesmo fim" distingue radicalmente
o mundo hierarquizado de Aristóteles dos estóicos; há nele como um círculo
universal. A Terra e seus habitantes recebem as influências celestes, não
limitadas por efeitos das estações, mas estendendo-se até o destino individual
de cada um, segundo a astrologia, cuja difusão, a partir do século IIIº é
enorme, e os estóicos a aceitam por completo. Além disso, pela transmutação
inversa a que produziu os elementos, as emanações secas procedentes da terra
e as úmidas procedentes dos rios e mares, produzem os diversos meteoros, e
servem de alimentos aos astros. A astronomia dos estóicos ganha assim uma
marca particular: completamente indiferente à astronomia matemática, deixam
tombar as esferas ou epiciclos, imaginados para não ter que admitir no céu
senão movimentos circulares uniformes; daqui para diante cada planeta, feito
de um fogo condensado, segue seu curso, livre e independente sob a direção
de sua própria alma, e descreve no céu movimentos não-uniformes, seu movimento
circular e variado é a prova mesma de sua animação [28] . Por outro lado, a posição da
Terra no centro se reduz por razões dinâmicas: A Terra está pressionada por
todos os lados pelo ar, como um grão de milho colocado em uma bexiga, que
permanece invisível no centro quando esta se infla, porque a massa da Terra,
por pequena que seja, equivale ao resto do mundo e o equilibra [29] .

Assim é esse geocentrismo, tão diferente do de Platão, totalmente disposto
a se admitir apenas como uma hipótese matemática, ao passo que o dos estóicos
é um dogma, ligado solidamente às suas crenças. Cleanto não pensava que os
gregos devessem julgar Aristarco de Samos, acusado de crime de impiedade,
que admitira o movimento da Terra [30] ? Em uma palavra, o mundo é um
sistema divino no qual todas as partes são distribuídas divinamente. "É
um corpo perfeito, mas suas partes não são perfeitas, porque elas tem uma
certa relação com o todo e não existem por elas mesmas" [31] . Tudo, no mundo, é produto do
mundo.

Esta ordem das coisas não é eterna: contra os peripatéticos que sustentavam
a eternidade do mundo, Zenão faz valer as observações geológicas que mostram
o solo se nivelando constantemente e o mar se retirando. Se o mundo fosse
eterno, a Terra deveria ser totalmente plana e o mar teria desaperecido. Além
disso, nós vemos as partes do universo se corrompendo, sem excetuar o fogo
celeste, que tem necessidade de se repor alimentando. Como seu conjunto não
seria destruído? Vemos, enfim, que a raça humana não pode ser muito antiga,
já que muitas das ares que lhe são indispensáveis, e que não podiam nascer
senão ao mesmo tempo que ela, estão ainda em seu início [32] .

Nós vimos como foi o nascimento do mundo, seu fim, ao cabo do grando ano,
determinado pelo retorno do planeta à sua posição inicial, consiste na conflagração
inicial ou a reabsorção de todas as coisas pelo fogo. Zenão e Crisipo chamam
a essa conflagração de purificação do mundo, deixando assim a entender que,
à maneira dos dilúvios ou das tempestades de fogo, que trazem os velhos mitos
semíticos, se trata aqui de uma restituição ao estado perfeito. Crisipo de
preocupa de mostrar que esta conflagração não é a morte do mundo, porque a
morte é a separação do corpo e da alma, e aqui a "alma do mundo não se
separa de seu corpo, mas aumenta continuamente a custa dele, até que tenha
absorvido toda a sua matéria". É uma troca conforme a natureza, e não
uma revolução violenta.

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