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Césare Cantu – História Universal
CAPÍTULO XXIII
A França. — Os Valois
Luís XI tinha, durante toda a sua vida, posto em ação a habilidade e a perfídia para tirar à nobreza seus privilégios e franquias, a fim de fortalecer outro tanto o poder real. Por sua morte, os Estados reunidos em Tours (1484) fizeram ouvir altamente queixas que o terror tinha abafado até ali. O clero reclamou as liberdades galicanas, aniquiladas pela aprovação da pragmática; a nobreza quis que se lhe restituíssem as jurisdições abolidas, a guarda das fortalezas e da fronteira, a caça nos bosques reais. O terceiro Estado fêz ouvir também a sua débil voz para pedir que a venalidade dos cargos fosse suprimida e o cumul (1) abolido, que os juízes fossem inamovíveis, e que nenhum imposto (Luís XI tinha-os triplicado) fosse lançado sem o consenso dos Estados.
(1) Um acidente do mesmo gênero aconteceu em 1681 a Maria Luísa de Orléans, mulher de Carlos II. Ela caiu do cavalo, e tendo-se-lhe prendido o pé no estribo, era arrastada pelo pátio e em perigo de vida, sem que pessoa alguma ousasse pôr a mão no corpo sagrado de uma rainha. Felizmente dois gentis-homens preferiram a sua salvação à etiqueta; correram a parar o cavalo, e livraram-na. Porém apressaram-se a fugir para escapar à pena capital, que não deixaria por isso de os alcançar se a rainha não tivesse implorado o seu perdão.
A regente Ana de Beaujeu soube, com uma habilidade hereditária, entretê-los com palavras. Carlos VIII adquiriu depois, por seu casamento, o importante feudo da Bretanha; porém restituiu a Fernando, o Católico, o Roussillon e a Sardenha e a Maximiliano o Artois e o Franco-Condado, para se empenhar livremente na deplorável guerra da Itália; ora, como toda a vida de Carlos VIII se resume nesta expedição, nada nos resta a acrescentar depois do que temos dito a esse respeito.
Luís XII, seu sucessor (1498), foi um excelente rei, depois de ter sido assaz triste príncipe. Como o excitassem a vingar-se de la Tremoille, que se tinha mostrado seu adversário, respondeu êle: O rei de França não vinga as injúrias do duque de Orléans. Êle tinha marcado com uma cruz o nome dos conselheiros de Carlos VIII que lhe tinham sido opostos, o que nestes incutiu grande susto; porém, quando lhes vieram implorar a sua clemência, respondeu-lhes: Tranqüilizai-vos; acrescentando a vossos nomes o sinal da Redenção, quis indicar que estáveis perdoados,
(1) Direito que consiste em juntar os móveis e bens adquiridos com os de propriedade e dar os dois terços de tudo aos herdeiros de sangue.
Êle tinha casado havia vinte anos com Joana de França, que, apesar da sua bondade, lhe era odiosa por sua fealdade. Em conseqüência disto, êle estabeleceu, por meio de um processo escandaloso, que este casamento tinha sido concluído contra sua vontade, e que, além disso, nunca se tinha consumado. O rei consequiu assim romper seus laços, e esposou (1514) Ana de Bretanha, viúva de seu predecessor. Este casamento foi feito tanto por política como por inclinação, porque ela lhe trouxe em dote a Bretanha, com a condição todavia de que esta província ficaria separada da França. Ana, possuída de amor pelo seu país, prevenida a favor da Áustria e dedicada a Roma, não deixou de inquietar algumas vezes seu esposo.
Colocando junto de si meninas de boa família, que depois casava, ela fundou esse império da beleza que exerceu tanta influência na França. As damas da nobreza começaram então a freqüentar a corte, e as atenções de Luís XII, que tinha para com elas extrema cortesia, serviram de exemplo aos maridos, ao mesmo tempo que o império da rainha sobre seu esposo ensinava às mulheres de que preço são as eminentes qualidades do espírito, a virtude e a instrução. Elas procuraram portanto adquirir o saber sem deixar de ser virtuosas, converter em sólidas afeições os desejos que nascem e morrem em um instante, associar os prazeres do espírito e da imaginação aos dos sentidos.
Os dezessete anos do reinado de Luís XII estão cheios de ações ilustres. Nós já contamos a guerra que êle fêz na Itália primeiro como aliado, deoois como inimigo de Fernando, o Católico, com o qual se reconciliou pelo tratado de Blois (1500), prometendo Cláudia de França,, sua filha, ao (ovem príncipe quefoi depois Carlos V. Este casamento, no caso provável de Luís XII não ter filhos varões, teria transportado para a Áustria uma parte considerável da França, em conseqüência do que os Estados-gerais e o legado pontifical declararam o tratado nulo, visto que o rei não podia alienar à sua vontade as províncias do seu reino; e Cláudia casou com Francisco de Angoulême, herdeiro presuntivo da coroa. O ódio da Áustria subiu de ponto em razão disto, e as guerras da Itália, em que Luís XII se obstinou cegamente, lhe forneceram a ocasião de se manifestar.
Este rei vendeu os ofícios das finanças para pagar a seus soldados, que não eram menos rapinantes do que os outros. "Vi, diz São Gelais, quando os homens de armas chegavam a uma povoação, os habitantes fugiam depositando o que tinham de melhor e mais excelente nas iqrejas e nos lugares fortificados, como se tivessem vindo ingleses, o que não se podia ver sem dó. A paróquia que tinha de alojar o exército um dia e uma noite somente sofria maior dano do que com a capitação durante um ano". O próprio Luís XII deplorava esta úlcera em um ato público. Logo que expirou a capitulação com os suíços, êle procurou abster-se dessas tropas mercenárias e formar tropas nacionais; resolveu oor conseguinte vários senhores, de cujo número era Bayard, o cavaleiro destemido e irrepreensível, a aceitarem o posto de capitão de mil homens a pé, o que tornou respeitado o exército francês. Acrescenta-se que Luis XII disciplinou seus soldados a tal ponto "que nenhum deles tiraria um ôvo a um aldeão sem lho pagar".
Êle pôs à testa do seu conselho Jorge d’Amboise, arcebispo de Ruão, para com quem a sua amizade nunca diminuiu. Eles se ocuparam de acordo em tornar menos pesados os ônus dos súditos e de desarraigar os abusos, o que lhes ganhou o nome de Amigos do Povo: título glorioso que fazia perdoar a Jorge d’Amboise de ter amontoado onze milhões, e embaraçado a política pessoal, a fim de obter o capelo de cardeal e mesmo a tiara. A justiça, essa primeira necessidade dos povos, foi reformada; os tribunais especiais não tiveram de estatuir mais sobre qualquer delito, e os magistrados tiveram ordem de não executar os decretos contrários às leis. Os quatro bailios que recebiam as apelações das jurisdições senhoriais eram escolhidos dos grandes da corte, em número que subia na proporção dos feudos reunidos à coroa; mas não tinham sessões quando queriam ir ao tribunal, e confiavam a expedição dos negócios a lugar-tenentes graduados. Tendo Luís XII decidido que as multas não lhes pertenceriam senão depois de terem recebido o doutorado, e que no caso contrário caberia um quarto a seu lugar-tenente, eles quiseram antes resignar-se a essa diminuição do que a estudar, coisa que assentava mal, na sua opinião, a um gentil-homem. O saber prevaleceu assim sobre o nascimento; os tribunais ficaram livres da barbárie, e a espada separada da toga.
Pelo que diz Cláudio de Seyssel, a França era uma monarquia moderada; mas os Estados-gerais, que representavam as três ordens, eram raras vezes convocados; e como não tinham poder senão quando o rei era fraco, eles aprovavam o imposto e apresentavam as suas queixas. Os parlamentos compunham-se de magistrados inamovíveis, que podiam fazer representações sobre os editos antes de lhes darem seguimento. Estas duas oposições às vontades do rei não perturbavam o sossego público, por isso que lhes faltava a iniciativa: "Se o rei cometer um ato tirânico, todo e qualquer prelado ou outro religioso que viva bem eestimado pode lançar-lho publicamente em rosto; e o rei não ousaria causar-lhe dano para não provocar aindignação do povo",
O rei era assistido, para os negócios de Estado, de um conselho de dez ou doze pessoas. Um conselho privado se ocupava dos mais delicados; a casa dos contos revia as despesas ordinárias e extraordinárias, com direito de rejeitar as que eram abusivas.
O clero era rico, mas acessível a todos, e como seus costumes não eram depravados, êle escapava ao ódio e à inveja. A nobreza, isenta de impostos, era obrigada, em compensação, a servir gratuitamente o Estado no exército e nos empregos públicos; a alta burguesia ocupava os ofícios de judicatória e de fazenda, que os gentis-homens, dados ao mister das armas, consideravam como inferiores a eles; serviços assinalados podiam dar entrada na nobreza, o que diminuiu as antipatias; os mercadores e os homens de lei formavam a burguesia mediana.
Esta admiração paternal dispôs os ânimos para a submissão e a confiança que daí resultou, aumentou a autoridade real. A qualquer lugar que Luís chegasse, era um verdadeiro triunfo, e êle se ouvia saudar com os nomes de amigo, de benfeitor, de pai do povo. Às vezes aparecia montado em uma mula, sem séquito algum, a caminho do palácio da justiça, para assistir às audiências.
Se vagava um lugar, nomeava para êle o mais digno, consultando as listas que tinha diante de si; e evitava assim as solicitações. Êle aboliu os asilos das igrejas’, não condenou jamais pessoa alguma à morte, e enviou aos valdenses o seu confessor Lourenço Bureau para suspender as perseguições: Um bom pastor, dizia êle, nunca [az demasiado para engordar o seu rebanho. —- Quero antes ver chorar um cortesão pela minha parcimônia, do que o povo pelas minhas profusões. Eis aqui porque lhe chamavam o rei plebeu.
Tendo enviuvado, esposou Maria (1,9 de janei:<o de 1515), irmã de Henrique VIII, e abreviou seus dias por comprazer com ela.
A magnificência do duque de Angoulême tinha dado nas vistas antes de êle cingir a coroa com o nome de Francisco I. De vinte anos de idade, belo, corajoso, eloqüente, amável, completamente francês em suas qualidades como em seus defeitos, êle foi amado por estes não menos do que por aquelas. Se o seu predecessor tinha sido o rei do povo, êle foi o rei dos gentis-homens, que, afetos à corte por hábito e esperando tudo do amo, se limitaram a intrigar, para obter um lugar em que pudessem servir o rei, em vez de conjurarem em associações políticas, como acontecia no tempo de seus predecessores.
Uma corte sem damas, dizia Francisco I, é um ano sem primavera, e uma primavera sem rosas. Por isso a gravidade que distinguiu a corte da rainha Ana foi banido da sua, e houve em tudo intrigas e amores. Pode dizer-se que antes dele não tinha havido corte verdadeira e permanente com seus usos, espírito e clientela, porém sim reuniões passageiras de senhores em derredor do príncipe.
As damas corriam de boa vontade às festas reais como a outras tantas ocasiões de glória e de triunfos; os barões, deixando solitários os seus castelos, vinham para a capital, onde se arruinavam, e a autoridade real ganhava força com isso, porque o feudalismo se convertia em corte. Francisco I afastou dos cortesãos a idéia do serviço público, para lhes não deixar senão a da domesticidade, da obediência geral e de uma hierarquia de servidão. Os senhores correram em chusma a gozar dos ócios voluptuosos do palácio: houve títulos sem objeto, grandes ofícios, uma etiqueta; a corte foi separada da nação, a sedução introduziu-se nela, e os talentos, tornados obsequiosos pela cobiça ou pela necessidade, entraram a lisonjear e a corromper. Francisco I ostentava orgulhosamente a pompa soberana em meio da servil turba que o rodeava; e começou-se desde então a falar-lhe na terceira pessoa. Pode dizer-se em uma palavra, que êle excedeu Luís XIV em seu fausto e em seus defeitos.
Êle recebeu magnificamente Carlos V em Águas Mortas. Teve também com Henrique VIII, entre Guines e Andres, uma conferência no campo de Pano de Ouro, assim chamado porque as barracas eram cobertas de tecidos de ouro, e porque todos ostentavam grande luxo de vestuário, de sorte que "muitos traziam sobre si seus matos, seus prados e seus moinhos". No princípio seguiu-se todo o rigor do cerimonial; porém uma manhã, Francisco I foi ter com Henrique VIII à sua barraca, e como êle ainda dormia, acordou-o: Irmão, disse-lhe o monarca inglês, [azeis-me o maior rasgo que é possível. De hoje em diante, sou vosso prisioneiro. E deu-lhe o seu colar, em retribuição do qual Francisco lhe ofereceu um bracelete de maior preço ainda.
Um dia, depois do torneio, conta o marquês de Fleuranges, alguns ingleses lutaram com franceses em presença das duas cortes, e os primeiros ficaram vencedores. Tendo-se os dois reis retirado e bebido juntos, Henrique VIII agarrou o príncipe francês, dizendo-lhe: Meu irmão, quero também lutar convoscoe procurou muitas vezes fazê-lo cair. Porém Francisco I, mais destro, agarrou-o pela cintura e deitou-o por terra.
O rei, dado a uma libertinagem sem delicadeza, passava de amor a amor; êle chamava as suas amantes no palácio, dava-lhes títulos, pensões, e a sua câmara convertia-se em centro dos negócios, em fonte das graças. Porém a vingança do marido da bela Ferroniére Custou-lhe a vida (1).
Francisco I procurou formar legiões de seis mil aldeões à maneira romana; mas em breve se voltou aos bandos, substituindo o serviço a qúe todos os proprietários eram obrigados, pela taxa de cinqüenta mil peões. Êle concluiu (1516) em Fribürgo com os suíços uma paz perpétua, que foi o fundamento das outras que se lhe seguiram, e cedeu-lhes os bailiados italianos em garantia dos trezentos mil escudos que ele devia pelos negócios da Itália, independentemente de quatrocentos mil pagos por outros danos. Aliando-se depois com a Porta, êle ensinou a seus sucessores, assim como aos homens políticos, de não fazer caso das antipatias religiosas, mas unicamente do interesse.
A fim de apaziguar o papa, descontente da pragmática de Carlos VII, êle concluiu com Leão X uma concordata, nos termos da qual a nomeação dos bispos, abades, priores, era tirada aos capítulos e aos conventos; o rei devia nas seis semanas da vagatura, propor ao papa um candidato, e se êle não era julgado capaz de substituir-lhe outro dentro de três meses; o benefício era conferido ao eleito, com as anatas, pelo papa, que nomeava também, para os benefícios vagoS desde nove meses, ou cujo titular morria em Roma: as graças expectativas e as reservas gerais ficavam abolidas. Assim, por uma troca singular, o temporal era conferido pelo papa, enquanto que a parte espiritual, isto é, a eleição, era reservada ao rei. Os benefícios ordinários eram conferidos pelos patronos, porém cada pontífice podia dispor uma vez, por mandato apostólico, de um ou de dois benefícios por cinqüenta de colação privada, sem ter direito contudo a conferir dois na mesma igreja. Quanto à jurisdição, todas as causas, à exceção das maiores, deviam ser da alçada dos juízes ordinários.
(1) Êle foi a uma má casa encher-se de uma moléstia que não nublam então curar, comunicou-a a sua mulher, que infeccionou o rei, cuja morte não tardou a seguir a sua.
A pragmática foi abolida no Concílio de Trento (1516), como uma peste pública, como abusiva e ímpia; mas os patriotas diziam altamente que o papa e o rei tinham querido repartir entre si os despojos da igreja. O parlamento opôs-se com força à concordata; e, não obstante Francisco I insultar a sua firmeza dizendo: Em França há um rei; e não quero que aqui se forme um senado como em Veneza, este corpo sofreu sem ceder as injúrias e os castigos; a universidade proibiu (18 de março de 1518) de imprimir a concordata, e ordenou procissões e ladainhas como por uma calamidade pública. Ela decretou também que o arcebispo de Lião, primaz das Gálias, convocasse um concílio geral. Porém o rei mandou arrancar seus editos e reduziu os opositores ao silêncio com multas e empregando a força.
O chanceler Duprat, odiado do povo sem ser amado de Francisco I, a quem sempre excitava ao despotismo, tinha aconselhado estas medidas, persuadido de que a prerrogativa real aumentaria quando todas as famílias tivessem de afagar o monarca para obter o estabelecimento de seus filhos segundos. Efetivamente, os benefícios foram muitas vezes conferidos seculares, que neles empregavam à sua custa vigários chamados custodinos. Pelo que diz o embaixador veneziano Correr, traficava-se em França com os bispados e abadias, como em Veneza com pimenta e canela. No entanto, o país teve, desde esta época prelados ilustres.
Francisco I foi arrojado, pelo seu caráter cavalheiresco e pelas adulações, à carreira das conquistas; os direitos que êle pretendia ter sobre o Milanês, e a necessidade de lavar a vergonha dos últimos desastres sofridos por predecessores, o justificavam a seus olhos. No decurso da sua longa rivalidade com Carlos V, a vaidade nacional achou-se lisonjeada com o estrondo dessas expedições, que todavia arruinavam o reino; e a compaixão excitada pelo seu infortúnio lhe fêz perdoar até a sua deslealdade. É que efetivamente a reconciliação entre Francisco leo frio tirano espanhol refletiu sobre o monarca francês um esplendor imerecido, que o constituiu o derradeiro representante dos séculos heróicos, em luta com os do cálculo.
Este príncipe supria o que lhe faltava de educação por um espírito claro e por sua prontidão em se apropriar dos conhecimentos alheios. Êle tinha em cada país agentes para o informarem de tudo quanto sucedia do mérito e das disposições de cada um, para poder, quando precisasse, afeiçoar a si as pessoas, tomar nota das queixas, e fazer bem, o que lhe servia para obstar ao aumento das facções, e ao engrandecimento dos homens perigosos. Êle ordenou que as sentenças dos tribunais supremos fossem redigidas, não em latim, mas em francês, e que se fizesse registros de batismos em cada paróquia, porque dantes não se fazia constar senão o nascimento dos grandes.
Desejoso de submeter a Europa, senão ao seu domínio, pelo menos à sua influência, êle protegeu as artes e as letras. Chamou para junto de si João Lascaris, a quem encarregou, conjuntamente com Guilherme Budé, apelidado por Erasmo, o Prodígio da França, de formar a Biblioteca dè Fontainebleau, para a qual êle fez reunir manuscritos em toda parte, ao mesmo tempo que atraía a seus Estados mancebos gregos, que, educados com os franceses, deviam inspirar-lhes o amor dos clássicos. Confiou a Roberto Etienne a direção da Imprensa Real. Fundou cadeiras da língua hebraica, de literatura grega, de eloqüência latina e de matemática, na universidade, à qual consignou uma soma de cem mil escudos de ouro, em substituição da retribuição que os estudantes pagavam. Sua irmã, Margarida de Berry, deu brilho à escola de direito de Bourges, onde Miguel de 1’Hopital chamou Francisco Duareu e Tiago Cujacio, que foram em França os restauradores da jurisprudência.
Leonardo da Vinci, o Primatice, Rosso, Benvenuto Cellini e mais outros artistas foram chamados à França por Francisco I: a emulação que eles excitaram fêz ali nascer artistas, tais como João Goujou; e o monumento fúnebre de Luís XII assinalou uma nova época para a escultura. Êle fêz construir os castelos de Fontainebleau, de São Germain, de Cham-bord, de Follembray, de Villers Cotterets, e o de Madri no bosque de Bolonha. Pensava além disso na construção do Louvre e de um colégio real, onde seriam reunidos professores de todas as ciências, com seiscentos discípulos gratuitos e cinqüenta mil escudos de rendimento. Êle admitia à sua mesa, em seus passeios, em suas viagens, os homens de letras e os artistas; mas as novas doutrinas religiosas que se espalhavam então o determinaram a instituir uma censura rigorosa.
Tão consideráveis despesas, as prodigalidades de nua mulher, de sua mãe, de sua irmã, a insaciabilidade de Duprat, esgotavam o tesouro a ponto que êle não podia satisfazer às necessidades da guerra. Como já não avia domínios para alienar, supriram-se com medidas desastrosas. Pediram-se primeiramente aos contratadores adiantamentos sobre os rendimentos futuros, depois criaram-se fundos públicos sobre a casa da cunara, a prémio de doze por cento, dando por garantia o direito sobre o vinho consumido em Paris, o que abriu caminho para os fundos públicos sobre o Estado e para a nova canalha dos agiotas, unicamente ocupados em observar o governo, para lançar mão de todas as ocasiões de realizar um lucro em detrimento daqueles que não estão tão bem informados. A introdução das loterias, esse meio de explorar a ignorância e a superstição, data também desta época.
Já no tempo de São Luís se tinham vendido cargos de jurisdição inferior; e desde então esse expediente financeiro foi ora permitido, ora proibido, até que o chanceler Duprat propôs a criação de uma nova câmara de vinte conselheiros, cujos ofícios seriam vendidos em proveito do rei; esta medida foi adotada, apesar dos protestos do parlamento. Fazia-se jurar aos compradores que eles não tinham pago o seu ofício, mentira impudente a que Henrique IV pôs termo sem fazer cessar a causa, por isso que até tornou os cargos hereditários, mediante uma soma. Pessoas que não I inham por merecimento senão a riqueza chegaram assim aos empregos judiciários, o que não impediu este patriciado independente de resistir ao rei, por quem êle não tinha a temer de ser deposto. A venalidade deu poi tanto em resultado preservar da necessidade da intriga e da condescendência.
Francisco I não convocou os Estados-gerais, mas somente as assembléias dos notáveis, dos quais não obtinha menos, sem se expor a perigo algum. Tendo o parlamento tentado restaurar-se na sua ausênci.i. êle o reduziu só à administração da justiça, deixando lhe todavia o direito inofensivo de fazer represen tacões. Reuniu inteiramente (1534) a Bretanha à coroa, apesar da reserva estipulada pela rainha Ana; e gabava-se de ter posto os reis de França fora da página, isto é, habilitados para fazerem todas as suas vontades. Triste glória! Exaltado pela leitura dos romances, imaginou uma cavalaria extravagante quando a verdadeira cavalaria tinha perecido. Perseguiu os reformados com maior rigor do que Carlos V. A sua desgraça rendeu-lhe algumas simpatias; mas a França não pôde considerá-lo senão como um mau rei.
Os franceses, aborrecidos durante o seu reinado pelas guerras e pelas intrigas da corte, não tomaram parte nas grandes descobertas que assinalaram esta época. Eles viram surgir a América com uma completa negligência. Se, pelo contrário, a moeda tivesse falado, e esta nação viva e aventurosa se tivesse lançado no novo mundo com a sua ordinária impetuosidade, talvez houvesse desviado dela os males que a esperavam. Porque aqui começa uma nova época para a França, não mais embelezada pela cavalaria e protetora das letras, mas arrogante, altercadora, trágica, submetida a um governo baseado essencialmente sobre o artifício e a trapaça, sem que produza, neste intervalo, nenhum dos grandes talentos que reformaram a filosofia, a física, a marinha ou as crenças,
Por sua morte, aos cinqüenta e dois anos (1547) (1) Francisco I recomendou ao Delfim de abater os Culses, de não elevar demasiado os Montmorency e de desconfiar dos calvinistas. Efetivamente, o aumento do poderio monárquico tinha pisado muitos interesses para que eles não atraíssem uma resistência temível, logo que tivessem um centro de reunião. Ora a reforma religiosa forneceu esse centro, e os aristocratas reouveram então da realeza, sob a aparência da democracia, tudo quanto ela gastara longos anos a adquirir.
Henrique II, surdo aos conselhos de seu pai, chamou de novo à corte o duque de Montmorency, que tinha caído em desvalimento; viu subirem às primeiras dignidades os príncipes de Lorena, duques de Guise, e deixou-se governar tanto por eles como por sua mulher Carina de Médicis. Esta artista italiana, sobrinha de Clemente VII, herdeira do espírito astucioso da sua família, absteve-se, para o dirigir com mais segurança, de intrigas políticas e galantes; ela fechou mesmo os olhos aos seus amores com Diana de Poitiers, dama de trinta e dois anos, que tinha subjugado Henrique II quando êle apenas contava treze, e da qual êle usava as cores nos torneios, as divisas em seus vestidos, chegando a mandá-las esculpir até nas fachadas de seus palácios. Os Guises, casando o Delfim com Maria Stuart, rainha da Escócia, sua sobrinha, excitaram Hcn rique contra a Inglaterra, à qual esta tirou Bolonha; a ocupação de Parma pô-lo em hostilidade com o papa, e êle fêz declarar em Trento que jamais consideraria o concílio senão como uma facção, à qual não obedeceria. Êle favoreceu os reformados alemães, assim como Maurício de Saxe; e nós o vimos invadir arrogantemente a Alemanha, para vingar sobre Carlos V as desgraças paternas, perturbando este príncipe em seus sonhos de monarquia universal. Porém a batalha de São Quintino, que desacreditou mais a França do que lhe causou de prejuízo real, iludiu as esperanças que êle mesmo tinha concebido; êle se restabeleceu logo; e Guise, que acudira da Itália, tomou a inexpugnável Calais. Finalmente Henrique II renunciou, pela paz de Chateau-Cambrésis (1559), às brilhantes mas desastrosas conquistas da Itália, esperando tirar mais vantagens e forças do que êle meditava na Alemanha.
(1) Pedro Chatelain, bispo de Macon, disse na oração fúnebre de Francisco I estar persuadido de que, depois de uma vida tão santa, a alma do rei, saindo do corpo, foi transportada ao Paraíso sem passar pelo Purgatório. O que hoje passaria por uma vil lisonja, pareceu uma heresia à Sorbona, como se este prelado não acredi-tasse no Purgatório; e sobre isto ela formou uma acusação, que dirigido à corte. Porém João Mendose recebeu alegremente os depu-tados, e disse-lhes ao despedi-los: "Picai tranqüilos. Se tivésseis conhecido de perto o defunto rei, teríeis compreendido o sentido das palavras do bispo. Francisco não podia parar em parte alguma; e se deu uma volta pelo Purgatório, não terão de modo algum podido determiná-lo a demorar-se aí um momento". Tomaram o expediente de rir, e o riso é onipotente em França,
Diz-se que, por um artigo secreto, êle se obrigou para com Filipe II a extirpar as heresias (1560). Elas tinham penetrado cedo em França; mas a Sor-bona as condenou imediatamente (1521); e os reis franceses não tinham interesse em despedaçar o poderio romano, suficientemente encadeado neste país, ao passo que a aliança dos papas servia seus projetos sobre a Itália. No entanto, os reformados afoitaram-se quando viram Francisco I favorecer Henrique VIII contra o papa, os protestantes alemães contra Carlos V, e gostar dos mordazes golpes satíricos de Erasmo; depois a assembléia do clero francês em Tours declarar que o rei pode fazer a guerra ao papa e executar os decretos do Concílio de Basiléia; finalmente, a universidade condenar o livro em que Tomás de Vio sustentava que o papa é o monarca absoluto da igreja. Prancisco I deixou mesmo escapar, em um momento le cólera, a ameaça de pregar uma peça ao papa, I parando-se a igreja; porém o núncio replicou-lhe: Bife: mais perdereis vós com isso do que o papa; porque uma nova religião traz consigo um novo príncipe.
O rei assim o acreditou, e, apesar do favor que los calvinistas mostrava sua irmã Margarida, que unha adotado as suas doutrinas, êle se decidiu a per-legui-los, por conselho do parlamento e da Sorbona, principalmente desde que eles manifestaram sentimentos republicanos. Nós já deploramos os primeiros mártires desta causa, imolados em Paris e nos Alpes.
Luísa de Sabóia, regente durante o cativeiro do rei, mostrou maior severidade, excitada como era pelo chanceler Duprat. As igrejas que já se tinham estabelecido em Meaux, em Montbeliar, em Lião, sucumbiram às decisões da Sorbona e aos processos criminais do parlamento.
Henrique II, impelido por seu próprio zelo, pelo cardeal de Lorena e por Diana de Poitiers, aumentou os rigores do reinado precedente, deixando estabelecer uma Inquisição e câmaras ardentes que puseram de lado toda a legalidade. Os magistrados corrigiam tanto quanto estava a seu alcance semelhantes excessos, absolvendo muitos condenados, não obstante Henrique II se apresentar muitas vezes armado nas audiências. O resultado foi que a reforma, combatida ao mesmo tempo pela verdade, pela incredulidade e pela libertinagem, não teve em país algum maior número de mártires do que em França; ela foi obrigada a andar errante por lugares desertos e a recrutar em silêncio adeptos na.s províncias, antes de se aventurar na capital.
O número dos dissidentes aumentava com as perseguições. Estimulados pelos calvinistas de Genebra, eles se reuniam para cantar os salmos traduzidos em francês por Marot; e fundaram em breve, em Paris e depois em outras cidades (1551), igrejas pelo modelo de Genebra. Os príncipes de Bourbon os favoreciam, e os da Alemanha desviavam deles as perseguições; porém, tendo o povo assaltado a sua igreja de Paris, os que não puderam abrir caminho de ferro em punho foram presos, e alguns executados.
Neste entretanto, Henrique II foi morto (1556) justando em um torneio; e, fraco ludíbrio das mulheres e dos partidos, deixou a Francisco II, não menos fraco do que êle, finanças exaustas e um reino cheio de desordens. As facções religiosas avultaram então, associando-se aos interesses e às paixões diversas. Uma delas tinha à sua frente os seis irmãos Guises (1), poderosos pelo apoio da Espanha e pelo casamento de Maria Stuart, sua sobrinha, com o rei. Eles granjeavam, além disso, a afeição do povo distribuindo pensões, condecorações, e pessoalmente o duque Francisco era muito popular, por ter tirado Calais aos ingleses em oito dias.
A facção dos príncipes de sangue tinha à sua frente Antônio de Bourbon, rei de Navarra, seu irmão Luís, príncipe de Conde, Francisco de Coligny, coronel de infantaria, e principalmente seu irmão o almirante Gaspar de Coligny, cunhado de Guilherme de Orange, inimigo mortal dos Guises por interesses, por ambição, pela religião, profundo político, democrata, obstinado cm meio da arrogancia aristocrática: Site, dizia êle, fazei a guerra ao rei de Espanha, ou nós a faremos.
(1) O primeiro duque de Guise foi Cláudio de Lorena, 1550. Deixou seis filhos: Francisco, duque de Aumale, depois de Guise; Carlos, cardeal-bispo de Metz, depois arcebispo de Reims; Cláudio, duque de Aumale, depois de 1550; Luis, bispo de Troyes, depois cardeal-bispo de Metz; Francisco, grão-prior da Ordem de Malta e almirante de França, e Renato, tronco da casa de Elboeuf,
Catarina de Médicis, sobre quem pesa todo o ódio dos franceses, que nela vêem encarnadas toda a astúcia e toda a altivez italianas, tinha deixado a sua longa humildade. Bela, majestosa, no vigor da idade, amada de seus filhos, apesar de exercer sobre eles um império absoluto, sem igual na arte de fascinar os espíritos, ela cuidava, não no bem de um reino a que era estranha, nem na conservação de uma fé que não possuía no íntimo do coração, mas na manutenção da sua autoridade. Ela conseguiu assim salvar a França, que podia, em tempos tão desastrosos, cair debaixo de uma tirania igual à que a Espanha sofria. Não obstante odiar os Guises, ela entendeu-se com eles para suplantar Diana de Poitiers e o condestável Anneo de Montmorency, que a protegia. Efetivamente, a antiga favorita foi banida, o condestável reconciliou-se com os Bourbons, o rei de Navarra foi acolhido com uma frieza extrema, que a sua fraqueza justificava, e OS Guises, elevados aos mais altos empregos, fulminaram os religionarios, cujas assembléias foram proibidas sob pena de morte.
A oposição aumentou o fanatismo dos reformados, que, do nome dos confederados suíços (Eidgnossen), Se intitularam huguenotes. Autorizados, pela decisão de jurisconsultos e de teólogos, a tomar as armas, rles puseram à sua frente o príncipe de Conde (1560), a quem Jorge de Barry, senhor de la Renaudie, foi dado por tenente: eles se propuseram por objeto abater OS estrangeiros, isto é, Catarina de Médicis e os príncipes lorenos, pedir ao rei a liberdade do culto, e, nocaso de êle se recusar a isso, tomar Blois, prender os Guises, e obrigar Francisco II a escolher o príncipe de Conde para lugar-tenente do reino.
Debalde os Guises, avisados por cartas do exterior, levaram o rei para Amboise, e fizeram publicar uma anistia em favor dos reformados, à exceção dos predicantes, declarando toda a perseguição suspensa até o primeiro concílio geral: os conjurados atacaram Amboise, porém foram mal sucedidos, e os que foram apanhados morreram em número de mil e duzentos, ou enforcados, ou afogados no Loire. O príncipe de Conde, colocado por sua jerarquia acima dos processos ordinários, protestou a sua inocência, e lançou a sua luva, em sinal de desafio, a todo aquele que a negasse. Foi portanto absolvido, e retirou-se com a vingança no coração. Os outros confessaram que tinham conspirado, mas unicamente contra a administração perversa dos Guises. Condenados à morte, eles mergulharam suas mãos no sangue dos que tinham sido imolados, e proferiram terríveis imprecações sobre Catarina, sobre seus filhos, sobre Maria Stuart, sobre as damas da sua corte, que todas assistiam ao seu suplício como a um agradável espetáculo. Ao mesmo tempo os calvinistas foram perseguidos pelo furor do povo, apenas o parlamento de Paris disse: Correi sobre os hereges. Os outros parlamentos fizeram um eco; e em toda a parte rebentou a guerra civil, tanto mais horrível porque foi ordenada pela religião. Um procurador do rei obrigou seus colegas a condenarem à morte seu próprio filho e fê-lo enforcar à sua vista, como o Bruto da antiguidade.
Miguel de 1’Hopital, homem reto e eloqüente, que preferia a pátria e a verdade ao reconhecimento, é o tipo desses grandes caracteres que sustentaram mesmo debaixo do despotismo, a honra da magistratura francesa. Elevado por Catarina ao cargo de chanceler, foi autor de excelentes editos que, mesmo cm tempos tão miseráveis, preparam o bem futuro. Porém este hábil piloto, chamado a dirigir o leme em meio de uma tormenta medonha, provou que a prudência é importante contra as paixões desencadeadas. Como os Guises queriam fortalecer a Inquisição, êle deu a idéia de um decreto nos termos do qual os bispos eram encarregados de autuar os hereges, e os parlamentos obrigados a executar as sentenças. Esta inovação excedia as atribuições do conselho; mas êle não linha procurado senão evitar um projeto homicida. Efetivamente, católicos e protestantes clamaram contra esse edito; o parlamento recusou inscrevê-lo em seus registros, a não o obrigarem a isso; e o descontentamento geral caiu sobre l’Hôpital, que, não temendo expor-se às maldições, dizia: O edito não se sustentará; mas depois de estabelecida a Inquisição, quando cessará êle?
Tendo os notáveis sido convocados por seu conselho em Fontainebleau ( 2 de agosto ), o almirante de Coligny declarou-se chefe dos calvinistas, e apresentou em seu nome uma súplica, na qual, protestando a sua fidelidade, eles reclamavam do rei a liberdade do culto e a cessação dos processos. Como o duque de Guise fizesse notar que a petição não trazia assinatura alguma : Num momento, respondeu o almirante, estará coberta por dez mil nomes. Pois bem! replicou o duque, eu apresentarei outra em contrário, e cem mil pessoas a assinarão com seu sangue. Tendo o requerimento sido apoiado por vários bispos, os Estados-gerais foram convocados para Orléans, e, no entanto, suspenderam-se as execuções. L’Hôpital, que tinha aconselhado de reunir os Estados, esperava que eles se mostrassem moderados, porém os Guises serviram-se deles como de um laço para apanhar seus inimigos.
Apenas eles chegaram com um salvo-conduto, o rei de Navarra foi guardado à vista e Conde preso, posto a tratos e condenado à morte. Êle devia ser executado no dia de Natal, pela abertura dos Estados: ali, os Guises, tendo em suas mãos os chefes dos huguenotes, os teriam violentado a assinar uma profissão de fé, que teria sido obrigatória para todo o reino; eles teriam assim extirpado de um só golpe, como diziam, a rebelião e a heresia.
Felizmente para os calvinistas, o fraco Francisco II morreu (1560) na idade de dezessete anos. Tendo Catarina de Médicis tomado a regência em nome de Carlos IX, seu segundo filho, que apenas contava dez anos de idade, pôs em liberdade o príncipe de Conde, que foi declarado inocente. Ela prometeu ao rei de Navarra o título de lugar-tenente-geral do reino; conservando contudo os Guises, chamou de novo o condestável, zeloso católico, e recebeu os conselhos do almirante, protestante declarado.
Foi sob estes auspícios que se abriram os Estados-gerais. L’Hôpital apresentou-lhes um corpo de legislação sobre toda a administração pública, obra imensa que foi discutida e votada em menos de dois meses, e cuja parte relativa ao comércio foi adotada por todas as nações dadas ao negócio. Custa a crer que um homem só tenha podido fazer uma tal obra em tempos tão agitados, e isto tudo cultivando as letras, chegando mesmo a adquirir nome entre os melhores poetas latinos da sua época.
Êle aconselhou todos a não pensarem senão no bem do governo, sem distinção de pessoas. De parte, dizia êle (13 de dezembro ), essas designações diabólicas, esses nomes de partido e de sedição, de luteranos, de huguenotes, de papistas: não mudemos o nome de crstãos. As finanças estavam numa desordem extre-Bia, e a dívida subia a quarenta e três milhões, a prêmio de doze por cento. Porém, como os Estados queriam que se desse conta das somas despendidas iImante os reinados precedentes, os Guises fizeram dissolver a assembléia. Quando ela depois se reuniu tia Pontoise (1.* de agosto), provou-se que a igreja possuía bens de raiz, sem contar os edifícios, quatro milhões de rendimento, que hoje valeriam quatro vezes mais; propôs-se por conseguinte de os vender, para empregar quarenta e oito milhões, dos cento e vinte que se supunha eles produzirem, na sustentação do clero e aplicar o resto às necessidades do Estado. O clero, assustado, ofereceu de abonar, para a extinção das dívidas públicas, quatro décimas partes de seus rendimentos, e as outras ordens concederam à coroa um novo direito sobre as bebidas, que produziu um milhão e duzentas mil libras.
Tinham-se levantado algumas vozes contra os calvinistas: porém Catarina, não julgando então oportunos os rigores, concedeu-lhes perdão quanto ao passado; todavia, deviam sair do reino, sob pena capital, se não se convertessem. Neste entretanto, condido, o marechal de Santo André, o condestável de Montmorency e o duque de Guise organizaram a Liga por sugestão de Filipe II: então os partidos tomaram novo e forte ardor, e os moderados não foram escutados.
Catarina tinha escrito a Pio IV (1561) para lhe pedir de fazer algumas concessões aos protestantes cujo número ia sempre em aumento: por exemplo, de suprimir no culto as imagens e no batismo o exorcismo e a saliva; de permitir aos seculares de comungaremcom o cálice, de simplificar a missa, de empregar a língua francesa na liturgia. Propôs-se depois uma conferência em Poissy, para tentar um acordo entre os partidos. Pedro Mártir Verminiglio e Teodoro de Bèze foram encarregados pelo rei de Navarra de sustentar a discussão contra o cardeal de Lorena e Cláudio Des-pense, doutor na Sorbona. Os príncipes de sangue assistiram ao colóquio: mas a discussão não produziu, como as outras, resultado algum. Os dois partidos cantaram vitória e nem um, nem outro estiveram dispostos a fazer concessões, provando assim a verdade deste dito do príncipe de Conde em sua prisão: Não há outra composição senão a ponta da lança.
No entanto os calvinistas tomaram ousadia: eles tiveram assembléias públicas, e já contavam duas mil e quinhentas igrejas; porém os Guises conseguiram despertar a ambição adormecida do rei de Navarra, prometendo de lhe fazer recuperar o reino que tinha perdido: êle se reuniu portanto ao triunvirato de seus inimigos, que, envolvendo a corte em suas maquinações, tirava toda a influência à rainha. Catarina, resolvida a dominar, consagrou-se então com o príncipe de Conde, e por conselho de 1’Hopital concedeu aos protestantes a faculdade de exercerem o seu culto ( janeiro de 1562 ), mas fora das cidades e sem perturbarem o culto católico.
Estas meias medidas e hesitações produziram em França o mesmo efeito que na Alemanha. Antônio de Bourbon, tão ambicioso como fraco, descontente de ver seu irmão, o príncipe de Conde, no primeiro lugar entre os calvinistas, quando êle se achava desprezado dos seus e de seus inimigos, fêz-se um furioso adversário da nova religião: os Guises tornaram-se por isso mais ousados, e chamaram o duque em seu auxilio; mas, tendo seus sargentos insultado, na estrada, que ele seguia, os calvinistas reunidos em um oratório ao pé de Vassy, na Champanha, vieram às mãos (1.* de março de 1562); e o primeiro sangue derramado connverteu as oscilações de quarenta anos em uma guerra que durou trinta, e causou à França maiores males do que a qualquer outro país.
Catarina não pôde suster o equilíbrio entre os dois ambiciosos menos dedicados aos interesses religiosos do que ávidos de se apropriarem da autoridade de umrei de menor idade, e fugiu. Porém o duque de Guise, tendo entrado triunfante em Paris, dirigiu-se com os triúnviros sobre Fontainebleau, onde raptou o rei e sua mãe, para tomar uma aparência de legitimidade. Condé apossou-se de Orléans, considerada como a primeira cidade do reino depois da capital. Os calvinistas de que ela estava cheia formaram uma associação, sob pretexto de libertar o filho e a mãe, pela qual se diziam chamados. Eles tomaram diferentes cidades, os tesouros roubados das igrejas, ao passo que os católicos, pela sua parte, não deixavam de fortificar, nem mesmo de tomar a ofensiva (1). O rei, ou anteso triunvirato, declarou os protestantes rebeldes, tomo suíços a seu soldo, e procurou alianças na Alemanha, na Espanha, na Sabóia e na Itália: por outro lado chegaram socorros ao príncipe de Conde, especialmente de Elisabete de Inglaterra, a quem o Havre de Grace foi dado de penhor, mas os socorros que ela forneceu e os que forneceu Filipe foram fracos, como podem sê-lo da parte de potências que não desgostam de ver seus vizinhos degolarem-se para seu proveito.
(1) Montluc, mandado governar a Guyenna, nos conta com uma "ilmirável ingenuidade a condição do pais e as execuções que êle ali ordenava: "Os ministros pregavam publicamente que, se os católicos entrassem para a sua religião, eles não teriam de pagar coisa alguma nos gentis-homens, nem ao rei capitação alguma, senão o que por eles lhe fosse ordenado; outros pregavam que a nobreza não era mais do que eles; e de fato, quando os procuradores dos gentis-homens pediam as rendas a seus rendeiros, eles lhes respondiam que lhes mostrassem na Biblia se deviam pagar ou não, e que se seus prede-i (..sores tinham sido bestas ou tolos, eles não queriam sê-lo. Alguns da nobreza começavam a ceder, de tal modo que entravam em com-posição com eles, rogando-lhes de os deixarem viver em segurança cm suas casas com suas lavouras; e quanto às rendas e feudos, eles lhes não pediam coisa alguma. Ir à caça, não havia homem tão atrevido que ousasse lá ir, porque eles vinham matar os galgos e os mes ao meio do campo; e não se ousava dizer palavra, com pena da vida, etc."
A guerra já estava travada. O rei de Navarra morreu sob os muros de Ruão (1562); Conde foi feito prisioneiro pelo intrépido duque de Guise, que o fêz participar da sua cama; os reformados tomaram por chefe o almirante de Coligny; mas, neste entretanto, o duque de Guise foi assassinado por um_protestante sob os muros de Orléans. Catarina, tendo reavido o poder por sua morte, negociou a paz (1563). Ela permitiu aos reformados, pelo Edito de Amboise, o livre exercício da sua religião, concedendo-lhe anistia para o passado; e vendeu, para pagar as despesas da guerra, cerca de três milhões dos bens do clero, coisa inaudita até ali em França.
Não obstante a dívida pública ter subido com um só ano de guerra intestina de cinqüenta e três a sessenta milhões, quando o rendimento apenas chegava a nove, dos quais não se cobrava mais de um terço nos anos de desordens, Catarina tinha a corte mais esplêndida da Europa. Quando lhe não era possível ostentar a magnificência, supria-lhe com a graça e o gosto. Ela prodigalizava as comidas e as festas aqueles que mais aborrecia: tentou reunir à corte, pelas conivências e pela corrupção, os grandes, que aí secorromperam sem se afeiçoarem à rainha. As suas damas de honor, cujo número ela elevou a cento e cin-quenta, eram escolhidas nas primeiras famílias de França; mas havia outras que unicamente se recomen-davam por sua beleza e jovialidade. Umas vezes ela as levava consigo a brilhantes cavalgadas, a caçadas, a justas em que se corria a argolinha; outras vezes fazia-se executar bailetes, que ela mesma compunha sobre sssuntos tirados do Orlando Furioso, ou do Amadis. Protegendo os artistas e os sábios, ela confiou a Amyot a educação de seu filho; conheceu o gênio de Mon-taigne antes de êle ter feito a sua primeira publicação; admirava Ronsard, o Sol poético da época, e interes-sou-se particularmente por Brantôme. Jodelle, Baif e Dorat levaram o zelo a ponto de querer desculpar seus erros. Ela fêz construir o palácio das Tulherias, e ocupou o cinzel de João Goujon, apelidado o Fídias frances. Isto não a impedia de, no caso de necessidade, montar a cavalo como uma bela Marfisa, para ir sitiar o Havre e afrontar os canhões de Ruão.
Montluc viu-se portanto obrigado, contra o seu gênio, a usar não só rigor mas crueldade; e mereceu assim o titulo de Conservador de Guyenna. Tendo os protestantes assassinado o senhor de Fumei, Montluc mandou prender os criminosos, dos quais trinta ou quarenta foram enforcados, ou rodados num dia. Informado de que havia na Gironda cerca de oitenta huguenotes, mandou prender e enforcar setenta nos pilares da praça, sem mais cerimônia, o que, acrescentou ele, causou grande susto no país, por isso que em um ano em que Sommerive governou Provença, êle fêz morrer no cadafalso setecentos e setenta homens, quatrocentas e sessenta e três mulheres e vinte e quatro crianças.
Durante este tempo, tudo parecia fazer-se italiano e tomar um aspecto de paganismo. Ronsard e seus amigos sacrificaram um bode a Baco; os escritos estavam cheios de alusões mitológicas, ao passo que os dos reformados se mostravam inteiramente bíblicos. Logo que Amyot publicou a sua tradução de Plutarco, todos quiseram imitar os homens ilustres; o duque de Guise tomou por modelo Cipião; o marechal de
Brissac, Fábio; o condestável, Catão, o Censor; Châ-tillon, Catão de Útica; só Carlos IX ficou alheio mesmo ao que havia de generoso nesta mania de heroísmo. Henrique Etienne e alguns outros conservadores do bom gosto fustigavam esta mistura bastarda de francês italianizado; e os poetas, italianos e cortesãos, eram envolvidos pelo povo no ódio comum.
Um grande número de pessoas tinha tomado posição entre os calvinistas e os católicos: eram na realidade grandes epicuristas sob o aspecto cristão, cuidando de gozar a vida sem se ocuparem do que se seguiria, e fazendo consistir a sua honra em não depender de pessoa alguma. Chamavam-lhe políticos; e como os filósofos do século passado, que admitiam a razão por único Deus, a religião, a seus olhos, só prestava para prender o povo. Ao mesmo tempo, com o ateísmo aumentavam as superstições e a crença nas bruxarias. Os cortesãos divertiam-se com isso: mas as pessoas circunspectas, assim como o povo, escandalizavam-se e ofendiam-se de tal. Os jesuítas fulminaram de cima do púlpito contra esses ímpios. Garasse fêz-se o órgão faceto da reação moral, ao passo que Teófilo de Viau se constituía campeão da libertinagem, o que lhe rendeu ser queimado em efígie.
O rei que 1‘Hopital tinha aconselhado de fazer-se declarar maior para o subtrair à dominação do príncipe de Conde, confiou a sua mãe a direção dos negócios (1). Catarina, flutuando entre os reformados e os católicos, e abandonando-se à esperança de os arruinar empregando uns contra os outros, descon-tentou os dois partidos. Afinal, lançou-se no partido dos católicos para não elevar demasiado o príncipe de Conde, uniu-se mais estreitamente com a Espa-nlia: foi então que ela encetou (1565) no congresso de Bayonna, onde se davam torneios e festas, conferencias com o duque d’Alba sobre os meios de exterminar os dissidentes.
Os reformados, que conceberam suspeitas, prepararam-se para a resistência. Eles ocuparam diferentes praças e procuraram esfaimar Paris. Deu-se uma batalha em São Diniz ( 1567 ), na qual morreu Anneo de Montmorency contando setenta anos de idade, o que foi causa de que o marechal de Veilleville dissesse ao rei Carlos IX: Não [oi Vossa Majestade quem ganhou a vitória, tampouco [oi o príncipe de Conde, porém sim o rei da Espanha. Os calvinistas, derrotados, ausentaram-se, mas em breve voltaram à carga. O príncipe de Conde chamou os lansquenetes alemães, cujo soldo foi fornecido pelos seus, que para isso deram anéis, cadeias e tudo quanto tinham de precioso. Finalmente, ajustou-se a paz em Longjumeau ( 1568 ). Porém isto era um expediente de que Catarina se servia para preservar Paris de um cerco. Por isso, apenas as tropas foram despedidas, e os chefes protestantes passaram de novo a ser simples particulares, o povo, excitado contra os huguenotes, foi impelido a exterminá-los em toda a parte onde eles se achavam em pequeno número; ao mesmo tempo, afastavam-se, para empregar com segurança os meios violentos, os homens políticos que aconselhavam a prudência, tais como o chanceler de 1‘Hopital, que sempre tinha procedido com uma prudente reserva e de conformidade com as leis.
(1) Entre as mui numerosas cartas de Catarina de Médicis a seu filho, há uma muito extensa, na qual ela lhe dá conselhos sobre a maneira de ter a sua corte pouco antes da matança de São Bartolomeu. Ela se felicita com êle de ter regulado tudo para a paz que Deus lhe tem dado, sem perder um instante para repor as coisas no estado de ordem e da razão, sobretudo as que dizem respeito à igreja e à religião. i:lc deve, para a conservar, para viver bem e servir de exemplo, es-Jorçar-se por lhe sujeitar tudo, conservar os bons e purgar o reino dos maus…
"Desejaria que tomásseis uma hora fixa para vos levantardes da i uma, e que para contentar a nobreza fizésseis como o defunto vosso Ml, que mandava entrar, quando vestia sua camisa e seus vestidos, Lodos os príncipes, senhores, capitães, cavaleiros da ordem, gentis-homens da câmara, mordomos, gentis-homens de serviço, e conversava com todos, o que lhe causava grande gosto".
Ela lhe recomenda de não deixar dar dez horas sem ter ido à missa, de almoçar às onze; determina o tempo para aplicar nos negócios, à caça, aos prazeres; diz-lhe que dê baile duas vezes por .semana, "porque ouvi dizer ao rei vosso avô que, para viver tranqüilo Com os franceses, e para se fazer amar deles, é preciso tê-los alegres, e ocupados em algum exercício".
Ela acrescenta diversas particularidades sobre a boa administração da casa de Francisco I: "Os guarda-portões nunca deixavam entrar ninguém no pátio do castelo, a não ser os filhos do rei, seus irmãos, suas irmãs, em carruagem, a cavalo, ou em cadeirinha… assim como ütmbém à noite, depois de o rei se ter retirado, eles fechavam as portas, e êle metia a chave debaixo do seu travesseiro… Quando vierem empregados das províncias, tende o cuidado de conversar com eles… coisa que eu vi fazer aos reis vosso pai e vosso avô, a ponto de se informarem, quando não sabiam de que lhes falar, do que se passava em casa deles, só para dizerem alguma coisa… Deste modo, us Imposturas inventadas para vos depreciarem aos olhos de vossos súditos serão conhecidos de todos… Esquecia um outro ponto importantíssimo, e muito fácil de pôr em prática, se o achardes conveniente, d que tenhais em todas as principais cidades do reino três ou quatro dos principais negociantes considerados por seus concidadãos, aos quais favoreçais muito, sem que os outros o percebam e possam dizer que enganais os seus privilegiados; de tal sorte que não se faça nem se diga coisa alguma, no corpo da cidade ou nas casas particulares, de que não sejais informado".
Seu testamento oferece um fiel quadro dos acontecimentos sucedidos depois de Francisco I. "Cedi, diz êle, às armas que eram mais fortes, retirei-me aos campos com minha mulher, minha filha e meus netos, rogando ao rei e à rainha uma única mercê, já que tinham decidido fazer a guerra àqueles com quem ainda há pouco tinham pactuado, e me despediam da corte porque desaprovava seus projetos, roguei-lhes pois que depois de se terem fartado algum tempo do sangue de seus súditos, quiseram lançar mão da primeira ocasião de paz que se oferecesse, antes que as foisas chegassem à extremidade; porque, fosse qual fosse o resultado desta guerra, ela não podia deixar de ser funesta ao rei e ao mesmo reino".
Porém os conselhos da prudência não são escutados em meio da exasperação dos partidos. Não lendo já coisa alguma que a embaraçasse, Catarina tentou surpreender o príncipe de Conde e o almirante de Coligny, únicos que ela temia. Eles escaparam aos elaços e refugiaram-se na Rochelle, de que os hugue-notes, que retomaram as armas, fizeram sua praça principal, e recomeçaram os morticínios. Briquemont trazia um colar feito de orelhas de frades. Os refor-mados não dissimulavam em suas diatribes a intenção de matar a rainha, e os outros chefes do partido inimigo; os católicos não se portavam melhor. Pio V, em seu cego zelo, dissuadiu o rei de qualquer composição, e quis que os inimigos de Deus fossem exterminados, de qualquer forma. Começou-se de novo a combater; e o príncipe de Conde, homem de um valor extremo, de uma atividade infatigável, eloqüente e liberal ao mesmo tempo, foi morto na batalha de Jarnac, com trinta e nove anos de idade.
Então Joana de Albret, rainha de Navarra, conduzindo pela mão seu filho ainda criança, que foi depois Henrique IV, e o jovem príncipe de Conde, reuniu o exército calvinista, na intenção de partilhar com êle as fadigas da guerra e os restos de sua fortuna. Ela foi acolhida em meio dos aplausos, e o Bearnês (é assim que se chamava Henrique de Navarra) exclamou: furo defender a religião e perseverar na causa comum até à morte, ou até que tenhamos obtido a liberdade desejada. Coligny conduziu os seus de vitória em vitória; os alemães, que êle tinha chamado, devastaram a França; êle evitou os assédios, ruína dos exércitos, e remediou as derrotas com a prudência junta à perseverança. Finalmente, Catarina concluiu (1570) um novo tratado de paz em São Germain-en-Laye, com o pensamento secreto de adormecer os protestantes, de aproveitar um momento de repouso para esmaga aqueles de que não poderá dar cabo pela guerra. Ela fez também com Elisabete da Inglaterra um tratado, segundo os termos do qual Coligny devia ser posto * (esta do exército destinado a fazer guerra a Filipe II nos Países-Baixos, como toda a França o desejava. A reconciliação entre as duas religiões foi celebrada por casamentos, entre outros pelo de Margarida, irmã do rei, com o Bearnês, feito então rei de Navarra.
Em meio deste numeroso concurso de senhores huguenotes, em meio dos sinais de confiança, das honras, dos regozijos que não deixavam aparecer vestígio algum dos antigos ódios, assoldadava-se um assassino para matar Coligny (1572). O almirante apenas foi ferido, mas os protestantes, clamando traição, quiseram obter vingança do rei, ou vingarem-se eles mesmos. Catarina, que temia ver-se descoberta, revelou seus projetos a seu filho, declarando-lhe que era preciso inevitavelmente ou recomeçar a guerra civil, ou lançar-se nos braços dos protestantes, por isso que os católicos tinham formado uma liga que elegeria outro chefe. O duque de Guise, autor principal do primeiro atentado, e que por ambição se tinha feito órgão dos sentimentos populares, reuniu-se a ela para assustar o rei, e o medo determinou Carlos IX a consentir na matança de todos os huguenotes. A horrível atrocidade foi imediatamente resolvida por uma mulher astuciosa, por um rei de vinte e dois anos tremendo de medo, e pelo duque de Anju, seu irmão, ainda menor.
Na noite de São Bartolomeu, ao toque de sino convencionado, começou a matança, sob a direção do duque de Guise. Coligny foi degolado e sua cabeça, embalsamada, foi mandada para Roma. A carnagem chegou a tôda parte, até ao palácio do rei, aos apo-lentos da rainha Margarida: certo número de católicos foram mortos para satisfazer vinganças privadas, I o ilustre Pedro Ramus, entre o número das vítimas, loi morto por instigação de um professor do mesmo colégio. Um miserável gabava-se de ter resgatado irinta huguenotes, para os torturar a seu gosto.
Carlos IX, cujo caráter a educação tinha tornado sombrio e que a pusilanimidade tornava feroz, contemplava o que fazia: contudo tentou salvar o almirante; porém era muito tarde, e só conseguiu preservar Ambrósio Paré, seu médico. Êle mandou trazer à sua presença o rei de Navarra e o príncipe de Conde, a quem deu a missa ou a morte, e ambos abjuraram. L’Hôpital, que, ainda que sincero católico, não era menos culpado, aos olhos dos fanáticos, por se ter oposto às medidas de rigor contra os protestantes, era já assaltado em sua casa, quando alguns cavaleiros enviados pelo rei, vieram arrancá-lo ao perigo. Carlos IX, a cuja presença êle foi trazido, lhe disse que lhe perdoava: Não sabia, respondeu o virtuoso magistrado, ter merecido nem a morte, nem o perdão. Êle morreu alguns dias depois, angustiado por tantas calamidades que não tinha podido impedir, exclamando: Excidat Ma dies oevo!
Chegada a manhã Carlos IX mandou severamente que cessassem as mortes e a pilhagem, ao mesmo tempo que as enviava às províncias a ordem de se absterem de qualquer excesso. Porém Catarina fazia-lhe temer que o duque de Guise fosse proclamado rei; e as paixões populares, uma vez soltas, não se sustem à vontade. Já o terrível exemplo tinha sido seguido em toda a parte, e o ódio e a vingança tinham-se acobertado, para se satisfazerem, com o manto da legalidade. Henrique de Sabóia, conde de Tenda, governador da Provença, recusou obedecer ao decreto homicida. O visconde de Orthez, governador de Bayonna, escreveu ao rei: Senhor, aqui só tenho achado bons cidadãos e bravos soldados, e nenhum algoz. Santo Heran, governador de Auvergne, dirigiu-lhe esta resposta: Recebi uma ordem com selo de Vossa Majestade, determinando-me de mandar matar todos os protestantes. O respeito que tenho a Vossa Majestade quer que eu a julgue falsa; porque a ser verdadeira, o respeito me mandaria de lhe não obedecer. O carrasco de Lião recusou o seu ministério, dizendo: Não mato senão os criminosos e não executo senão as sentenças legítimas. O bispo de Lisieux recolheu os reformados em seu palácio, e essa conduta determinou muitos a se converterem.
A matança de São Bartolomeu foi premeditada ou acidental? Os católicos, proclamando a justiça e a santidade da medida, comprazem-se de a fazer passar como resultado de uma resolução maduramente assentada, ao passo que os protestantes acusam de infâmia os católicos e os italianos. No entanto, o raciocínio não permite de crer semelhante coisa. A corte devia temer os Guises não menos que os hugue-notes e tinha sempre procurado mantê-los em equilíbrio. Se se tivesse projetado a matança geral, para que se daria alarma dois dias antes com uma tentativa de assassinato sobre a pessoa de Coligny? Por que não se havia de tomar precauções para lançar mão repentinamente da Rochelle e das outras praças doscalvinistas? Por que não se mandaria simultaneamente Ordem a todos os pontos do reino, quando é certo que as primeiras só foram dadas a 28 de agosto? Se é possível lançar alguma luz em meio desta obscuridade infernal, nós seríamos inclinados a supor que houve primeiro a intenção de se desembaraçar do terrível Coligny, e que a execução do crime foi confiada ao duque de Guise, no intuito de o meter depois em processo e perdê-lo; porém que, tendo falhado o golpe, o duque vendo o perigo, excitou os seus, atemorizou a rainha e arrancou, no intervalo de algumas horas, a ordem do terrível morticínio.
Pensamos ter dado suficientes garantias para não lemermos que nos suponham sem horror para semelhante atrocidade. Ora, a verdade nos leva a dizer que a cólera de que o povo se mostrou animado, então, era dirigida principalmente contra a nobreza, que desde tanto tempo punha o país em desordem. Entre os nobres, Coligny era o mais ambicioso e o menos dócil; (!e tinha muitas vezes atentado contra a nacionalidade; acusavam-no de ter entregado o Havre aos ingleses em 1 562, e feito assassinar o duque de Guise no cerco de Orléans. Em todo o caso, é incontestável que os primeiros morticínios vieram dos protestantes.
O número das pessoas mortas é elevado a cem mil por uns, a dois mil somente por outros; porém, sejam quais forem as circunstâncias do horrível aten-tado, êle não deixa de ser menos verdadeiro, tampouco como a alegria que manifestaram por isso as cortes i atólicas. O cardeal de Lorena, embaixador da França cm Roma, fêz presente de cem peças de ouro ao correio que lhe levou essa notícia; o papa Gregório XIII cele-brou-a com festas, como um triunfo para a religião; e cm Madri causou tanta alegria como se fora uma outra vitória de Lepante; Veneza dirigiu ao rei felicitações oficiais por essa graça de Deus.
Carlos IX, que, constantemente agitado pelo medo e por êle impelido à crueldade, salvava algumas pessoas e mandava matar outras, não foi talvez mais do que o ludíbrio passivo do fanatismo universal; porque, ao mesmo tempo que confessava a Ambrósio Paré os remorsos que o laceravam, quis justificar-se perante o parlamento, acusando Coligny de ter meditado uma revolução. Ora, o parlamento fêz sumários, mandou enforcar os cúmplices do almirante e encarregou o presidente de Thou, homem da maior inteireza, de agradecer ao rei a sua prudência, em memória da qual instituiu uma procissão anual. Porém as almas virtuosas estremeceram de horror, e os homens circunspectos previam quanto sangue correria ainda em conseqüência de um tão grande atentado, que juntava à sua atrocidade o mais grave dano em política, o de ser inútil.
Efetivamente, os ódios ainda se exacerbaram mais: os que tinham escapado ao ferro homicida andaram propagando o horror contra seus assassinos; os outros, percebendo que o rei se punha em cautela, na convicção de não ter lucrado vantagem alguma desta sanguinolenta execução, fortificaram-se nas praças fortes, e começou a quarta guerra civil. A Rochelle sustentou nove assaltos, durante os quais as mulheres rivalizaram em coragem com os homens; mas o duque de Anju, que fazia o cerco desta praça, foi eleito rei da Polônia, e chegou-se então a uma composição que concedia a liberdade ao culto.
O mau êxito dos remédios violentos reanimou o partido dos políticos. À testa deles estavam os quatro Montmorency, filhos do condestável; porém, quandoo rei de Navarra e o príncipe de Conde se reuniram à sua causa, eles acabaram em oposição à corte e apesar da diferença de religião, por se juntarem aos hugue-notes. Então tomaram por chefe o duque de Alençon, terceiro irmão do rei, jovem principe ambicioso e falto de espírito, cujo mérito consistia em ser odiado por Catarina,
Imediatamente rebentou uma nova guerra; mas o sangue derramado continuou a causar a Carlos IX remorsos pungentes, e, em conseqüência de uma moléstia singular, seu sangue saía-lhe por todos os poros. Perturbado por horríveis aparições (1574), que o lançavam em uma espécie de frenesi, êle morreu na idade de vinte e quatro anos, satisfeito de não deixar a filho aigum essa funesta herança.
O duque de Anju, seu irmão e seu cúmplice no atentado de São Bartolomeu, era objeto de predileção de Catarina. Ela lhe tinha dito, quando êle partiu para a Polônia: Não estarás muito tempo entre os estrangeiros. Ilustrado em sua primeira mocidade pelas vitórias de Jarnac e de Montecontour, chamado a juntar uma coroa hereditária a uma coroa eletiva, êle teria podido tirar grande partido desta posição: porque os polacos achariam cômodo ter um rei remoto, inofensivo a seus privilégios; e os franceses veriam com prazer o esplendor e a força que o trono com isso teria ganho. Porém êle só tinha mostrado enfado em meio de um povo cuja escolha êle deveria ter-se esforçado por justificar com suas virtudes. Manchan-do-se, pelo contrário com vícios aviltantes, encerrou-se em seu palácio, considerando como exílio a sua residência neste reino, de que fugiu furtivamente logo que a esperança por muito tempo alimentada, da morte de Carlos IX, chegou a realizar-se.
Henrique atravessou a Alemanha, onde Maximiliano, que tinha cessado de o temer e de o estimar, lhe prodigalizou grandes honras: êle não viu em Veneza senão as mascaradas, de que gostou muito, prodigalizou por toda a parte os presentes, e quando lhe não restava mais coisa alguma, deu Turim, Pignerol e Savigliano. Chegado a Paris, rodeou-se de prediletos, que juntavam à depravação dos cortesãos a bazofia dos espadachins. Êle passava os dias a frisar seus cabelos, a arranjar colares para a rainha, a brincar com cãezinhos e a jogar o pião no meio das ruas. Despendeu 1.200.000 francos com o casamento de Joyeuse, seu favorito, e não tinha meios para mandar um mensageiro ao duque de Guise para negócios urgentes. Satisfeito contanto que o deixassem viver com seus prediletos, êle lhes dava terras, altos empregos, dignidades de par, o que aumentava a sua insolência. Arrancava-se às vezes a seus hábitos voluptuosos para rezar o rosário, para fazer ostentação de penitências, para acompanhar a pé o jubileu; depois não tardava em enterrar-se novamente na lama. Êle instituiu uma confraria devota, com o nome de ordem cavalheiresca do Espírito Santo. Desprezado dos católicos por seus vícios, dos protestantes por sua hipocrisia, de todos por suas oscilações, êle teve por amigos da sua religião os inimigos da sua autoridade, e reciprocamente.
Enquanto que êle se deixava conduzir por aqueles que o lisonjeavam e o corrompiam (1575), a quinta guerra civil rebentou de repente. Os calvinistas, confederados em Nimes, constituíram um verdadeiro Estado, com suas magistraturas, suas leis, seu exército, seu tesouro; e dirigiram ao rei não súplicas, porém proposições. Eles pediram a liberdade do culto, metade dos lugares no parlamento e nos tribunais, a punição dos assassinos de São Bartolomeu, a convocação dos Estados-gerais, finalmente que os impostos fossem minorados e se esquecesse o passado. Eles tinham tonsigo os políticos, chamados então os descontentes; e se é possível discernir um fim comum em meio de tintas ambições e interesses particulares, a sua intenção teria sido fraccionar a França, em diferentes Repúbli cas, para formar uma aristocracia federativa.
Já não era, portanto, uma simples contenda de ulitjião, e a guerra tornou-se por isso mais encarniçada. O duque de Alençon, odiado de sua mãe, me-tido a ridículo pelos prediletos do rei, pôs-se à testa ilos políticos, sob pretexto de restabelecer a ordem. O rei de Navarra, que dissimulava na corte e aí se entregava aos prazeres, levantou a máscara e fugiu; ele retratou a sua abjuração, como arrancada pela força, e tornou-se o chefe mais hábil do partido hostil à corte.
Catarina dirigiu-se em pessoa a Beaulieu, ao campo inimigo, com a rainha de Navarra, escoltada de damas que, como elas, sabiam tirar partido da sua beleza, e a que se chamava o seu esquadrão volante. Ela resolveu seu jovem filho a consentir na paz (1576), conferindo-lhe o título de duque de Anju. Promessas e honras foram prodigalizadas aos outros; uma anistia foi concedida a todos, com restituição de seus privilégios, o livre exercício no reino da religião pretendida reformada, à exceção de Paris e de duas léguas em redor, a partilha igual dos empregos entre os católicos e os huguenotes, aos quais foram garantidas seis praças de segurança: finalmente, a convocação dos Estados-gerais foi prometida no prazo de seis meses.
Estas concessões pareceram excessivas aos católicos; e Henrique, duque de Guise, então chefe desta poderosa casa, formou, à imitação dos protestantes, uma Santa Liga, sob pretexto de contrabalançar a influência dos políticos e dos reformados. Os membros desta associação juraram voltar-se à defesa comum, obedecer ao rei, proteger a independência e a integridade do país, ameaçadas ambas, fazer cessar as discórdias civis, e tolerar os pretendidos reformados. Sem dúvida a ambição tinha grande parte nesta combinação; porque o papa foi convidado a examinar se os Capetos não tinham perdido seus direitos por terem introduzido na França as liberdades galicanas e contribuído para a elevação dos hereges, o que Henrique de Guise, sucessor legítimo de Carlos Magno, não deixaria subsistir. Porém, a justiça aparente dos motivos alegados fêz com que muitas pessoas entrassem de boa-fé em uma liga que era a expressão solene da opinião dominante; o próprio Henrique III se alistou debaixo da sua bandeira, considerando-a como a do partido mais nacional, e isto com o pensamento de a dirigir, quando, na realidade, ela tinha sido formada contra êle.
Henrique III compareceu nos Estados de Blois, onde se decidiu que não se tolerasse senão uma só religião. A guerra civil ainda uma vez seguiu (1579), e depois nova reconciliação. Porém em breve ela rebentou de novo (1580); essa foi chamada guerra dos namorados, porque era resultado de intrigas amorosas. Henrique de Navarra, feito chefe dos calvinistas, ostentou um valor que não se esperava dele: ligando relações estreitas com os soberanos protestantes, apesar do obstáculo que encontrava no ódio que os luteranos tinham aos calvinistas não menos, que aos católicos, êle formava projeto de um concílio geral dos reformados, no qual todos se entenderiam e reuniriam contra a religião romana; mas não pôde levá-lo a efeito. Os huguenotes tiraram deploráveis vinganças da matança de seus irmãos, e finalmente a paz de Flechas os trouxe tranqüilos por espaço de quatro anos. O duque de Alençon, nomeado para o comando do exército confederado, desonrou-se na Flandres, onde era convidado a dominar, e foi iludido por Elisabete, que o lisonjeava com a esperança de lhe dar a sua mão. Finalmente, a sua morte veio aumentar as esperanças ambiciosas do duque de Guise.
O príncipe loreno, achando-se desde então no primeiro degrau do trono, reconciliou-se com a Espanha, que mandava cinqüenta mil escudos de subvenção anual à liga. E como, em meio destes odientos debates, se assustassem com a idéia de um rei protestante tal como o Navarrês, convencionou-se com ela no caso da morte de Henrique III, que os príncipes hereges ficariam excluídos do trono e que a coroa passava ao cardeal Carlos de Bourbon. Este prelado incapaz, que os realistas chamavam o asno de ouro, devia servir de véu aos projetos do duque, ao mesmo tempo que Filipe se lisonjeava de lhe substituir algum príncipe de sua casa: eles se enganavam assim mutuamente, não obstante procederem de combinação. Neste entretanto o duque de Guise sublevou Paris, alegando a necessidade de defender o rei, a religião, os direitos do parlamento, o bem público (1), palavrões com que o vulgo se deixa sempre seduzir.
Henrique III, em vez de reprimir os da liga por meio da força, dirigiu-lhes uma apologia, e Catarina negociou a vergonhosa paz de Nemours, pela qual eles obtiveram tudo quanto pediam (1585)/ e, além disso, a proibição de professar qualquer outra religião sob pena de morte.
Sixto V, não obstante declarar a liga pernicios para o rei, para o Estado e para a religião, excomun gou o príncipe de Conde e o rei de Navarra como hereges, dispensando de lhes obedecer. A força dos da liga e o seu crédito aumentaram além disso a junção de uma outra associação que se tinha formado no convento dos Jacobinos. Ela se compunha de fanáticos exaltados por pregações contra o governo e contra o rei, que foram chamados os Dezesseis, porque eles tinham elegido dezesseis chefes, um por cada bairro de Paris, a fim de exercitarem o zelo de seus habitantes.
(1) O manifesto do cardeal de Bourbon, publicado depois da formação da liga, termina asim: Por estas justas causas e considerações, nós, Carlos de Bourbon, primeiro príncipe de sangue, cardeal da Santa Igreja católica, apostólica e romana, tendo mais interesse que todos os outros em receber debaixo da nossa salvaguarda e proteção a reli-gião católica no reino e em persistir na conservação dos bons e fiéis súditos de sua majestade, com auxilio de um grande número de pessoas, príncipes de sangue, cardeais e outros príncipes, pares, prelados e oficiais da coroa, governadores de províncias, cidades, senhores ilustres e gentis-homens, de comunidades e de grande número de bons e fiéis súditos que constituem a melhor parte e a mais sã deste reino; tendo maduramente pesado os motivos de uma semelhante empresa, consultado verdadeiros amigos muito zelosos da tranqüilidade e da vantagem da França, pessoas ilustradas e tementes a Deus; declaramos que todos têm prometido e jurado solenemente pegar em armas, para que a Santa Igreja de Deus seja restabelecida em seu antigo lustre e na profissão da religião católica, única verdadeira; que a nobreza goze plenamente dos privilégios que lhe são devidos; que o povo seja aliviado, os impostos criados depois do rei Carlos IX (que Deus salve!) abolidos; os parlamentos reintegrados na soberania de seus julgamentos, sem que a sua consciência seja violentada; que todos os súditos do reino sejam mantidos em suas atribuições e cargos, ou não sejam deles privados senão nos três casos determinados pelas antigas leis do reino e pela sentença dos juízes ordinários dos parlamentos; que todos os impostos lançados sobre o povo sejam empregados na defesa do Estado, e para o objeto a que são destinados; e que os Estados-gerais sejam reunidos de três em três anos pelo menos, livremente e sem cabala, com plena liberdade para cada um se queixar dos danos não reparados".
A França pertenceu desde então ao duque de Guise, ê Henrique III, fraco e desprezado, não viu para si outro meio de salvação senão o de se unir aos protestantes: todavia ousou recorrer a êle, e congraçou-se, pelo con-trário, com os da liga, não obstante já conhecer perfeitamente os seus desígnios.
Isto não eram questões momentâneas de partidos; longe disso, elas se ligavam com o estado da civilização. O clero tinha-se constantemente aplicado a substituir a organização romana pela dos bárbaros, a centralização pelo feudalismo. Os reis tinham-se internado no mesmo caminho, com a vontade de abater também o clero, que, consagrando-se com o povo, se unia a êle contra eles, de onde vêm as idéias democráticas da liga. O sistema germânico tinha a seu favor, pelo contrário, os protestantes, inimigos da autoridade, faivorecidos pelos gentis-homens, igualmente opostos ao poder imperioso de Roma e ao despotismo do rei. Os reformados tendiam portanto a decompor a uni-dade francesa; o clero e o rei a fortalecê-la, mas com idéias diferentes.
Voltou-se então às armas (1587); os príncipes alemães, excitados pelo velho Teodoro de Bèze, maneiram tropas à França, para sustentar os seus correligionários, isto é, um exército estrangeiro foi introduzido em França pelo partido dos nobres e dos reformados. Henrique de Navarra ilustrou-se então com a vitória de Coutras, e pela magnanimidade com que se portou.
Os Dezesseis ainda ficaram mais irritados contra Henrique III; e, pondo em prática tudo para o desacreditar, maquinaram uma sublevação na intenção de se apossarem do Arsenal, e de obrigarem o rei a abandonar a direção dos negócios. O duque de Guise, que eles chamavam "Flagelo da Heresia", o "Macabeu Francês", entrou como senhor em Paris, apesar do rei, que reuniu tropas para se defender. Porém a tal notícia, os da liga sublevam o povo, as ruas são guarnecidas de barricadas (12 de maio), a multidão arroja-se ao Louvre, onde faz grande morticínio nos suíços, vítimas venais predestinadas ao seu furor; e Henrique III, sitiado em sua morada real, toma o partido de fugir. O duque de Guise ocupa o Arsenal e a Bastilha; depois com um sinal aquieta o tumulto, e faz largar as armas. Era para êle o momento de se fazer rei, bastava, que-rè-lo. Porém, poucos homens sabem consumar uma empresa audaciosa, e a sua hesitação reanimou a coragem de seus adversários. Isso não impediu que Henrique III, sempre fraco, aceitasse uma páz vergonhosa, confirmando a liga e prometendo mostrar-se severo para com os huguenotes.
A contar deste momento, o duque de Guise não dissimulou a intenção de destronar Henrique III; e a duquesa de Montpensier, sua irmã, trazia sempre ao pescoço uma tesoura, destinada, dizia ela, a fazer-lhe a tonsura logo que êle fosse encerrado em um convento. Henrique III, arrancado à sua indolência habitual, recorreu ao expediente da covardia. O duque de Guise, que êle mandou chamar ao seu gabinete, foi apunhalado em Blois por sua ordem (23 de setembro de 1588), e no dia seguinte aconteceu o mesmo ao cardeal de Lorena, seu irmão; Mayenne, seu outro irmão, fugiu, e muitos dos seus foram perseguidos. Henrique III exclamou, apresentando-se ante sua mãe: O rei de Paris, já não existe, madame, e daqui em diante sou rei. — Queira Deus, lhe respondeu ela, que esta morte vos não torne rei de nada! Cortais bem, meu filho, porém é preciso saber coser: haveis disposto tudo.
Pouco tempo depois. Catarina expirava, recomendando lhe de se reconciliar com o rei de Navarra (5 de janeiro de 1589). As necessidades inexoráveis da política puderam fazer desculpar os atos desta princesa; mas a moral os repelirá sempre.
Henrique III não tardou em reconhecer que não era verdade, como lho tinham repetido, que morto o animal, morto o veneno. Êle teria devido atacar imediatamente Paris, e apoderar-se dos Dezesseis. Porém as suas hesitações lhes deixaram tempo para armar a cidade. O povo tomou luto, as igrejas foram armadas de preto, os pregadores fulminaram contra o assassino; e colocou-se sobre os altares imagens do rei, em cera, que eram furadas com grandes alfinetes, como para o votarem à morte. A liga pareceu legítima mesmo aos homens de bem contra um assassino; e a Sorbona, declarando que não era devida fidelidade a um rei pérfido, dispensou os franceses da obediência. A ousadia da multidão aumentou ainda; quando ela soube que Henrique III tinha posto em liberdade os chefes presos, o lumulto rebentou, o duque Mayenne foi proclamado chefe da liga, e ao mesmo tempo lugar-tenente-general do Estado e da coroa.
Nestas circunstâncias, Henrique III não viu outro recurso senão lançar-se nos braços dos huguenotes. lintão, executando muito tarde o que o teria salvado alguns anos antes, êle foi ter com o rei de Navarra, que se lançou a seus pés e o recebeu como amigo leal; depois os dois reis reunidos marcharam sobre Paris (1 .° de junho de 1589), com forças imponentes para lhe porem sítio. Sixto V, que já tinha citado o rei ao seu tribunal, para que se justificasse da morte do cardeal de Guise, excomungou-o então; e Jacques Clemente, jovem frade jacobino, ignorante, fanático e assaz presunçoso para se julgar o intrumentos da providência, impelido pelos Dezesseis e pela duquesa de Montpensier, chegou-se ao pé do rei, e matou-o com uma facada. Preso imediatamente, êle suportou os tormentos com intrepidez, e a obcecação do espírito de partido, a intolerância do século fizeram- elevar às nuvens o seu heroísmo; chegou-se mesmo a venerá-lo como um santo. Porém não temos nós visto também André Chenier e Klopstock fazerem a apoteose de Carlota Corday? Não ouvimos todos os dias gabar em nossas escolas o heroísmo de Timoleon, de Múcio Cévola (1) ?
(1) Napoleão deixou um legado àquele que tinha teittado assassinar Wellington.
Fonte: Edameris. Tradução de Savério Fittipaldi.
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