Pelópidas, por Plutarco

SUMÁRIO DA VIDA DE PELÓPIDAS

  • I. Reflexões sobre a temeridade e sobre o desprezo da morte.
  • VI. Nascimento e nobreza de Pelópidas. Sua liberalidade.
  • VII Seu casamento.
  • VIII. Caracteres de Pelópidas e de Epaminondas.
  • IX. Suas ligações e sua amizade.
  • X. A autoridade é usurpada em Tebas pelos nobres, apoiados pelos lace-(lemônios que se apoderam da cidadela. Pelópidas é banido.
  • XII. Sua ação em Atenas, para libertar a pátria.
  • XIII. Conspiração.
  • XIV. Sua execução.
  • XXIV. Seu sucesso. Pelópidas e os principais conjurados são nomeados capitães da tropa sagrada e governadores da Beócia.
  • XXV. Coragem desta proeza comparada com a de Trasíbulo, que libertou Atenas.
  • XXVI. Os lacedemônios levam a guerra à Beócia. Os atenienses abandonam a parte dos tebanos.
  • XXVII. Política de Pelópidas.
  • XXIX. Os tebanos alcançam vantagens sobre os lacedemônios. Batalha de Tegire. Derrota dos lacedemônios.
  • XXXIII. Origem da tropa sagrada. XXXVI. Cleômbroto, rei da Lacede-mônia, marcha contra os tebanos.
  • XXXVII. Batalha de Leuctres. XL. Vitória de Epaminondas e de Pelópidas.
  • XLI. Entram no Peloponeso, fazem revoltar a maioria dos povos contra os lacedemônios e vão atacar Esparta.
  • XLIII. Tentativa de acusação contra Epaminondas e Pelópidas por não se terem demitido do cargo de governador a tempo.
  • XLIV. Injustiça do orador Meneclides. Pelópidas o faz condenar.
  • XLVII. A Tessália pede socorro contra Alexandre, tirano de Feres. Tebas envia-lhe Pelópidas.
  • XLVIII. Passa na Macedónia para pacificar diferenças entre Ptolomeu e Alexandre, rei da Macedónia.
  • XLIX. É enviado na qualidade de embaixador na Tessália, para enfrentar novas dificuldades que se haviam levantado.
  • L. Alexandre, tirano de Feres, o faz prisioneiro. Lili. Tebas torna a pedir Pelópidas. Mau resultado e castigo dos deputados. Epaminondas marcha para libertar Pelópidas e o reconduz.
  • LIV. É enviado como embaixador a Artaxerxes, rei da Pérsia.
  • LV. Seu sucesso.
  • LVII. A Tessália o solicita de novo para o opor aos vexames de Alexandre, tirano de Feres.
  • LVIII. Chega a Farsale. LIX. Batalha onde Pelópidas é morto.
  • LXI. Luto do exército.
  • LXII. Pompa dos funerais.
  • LXIV. Os tebanos fazem marchar um exército contra o tirano de Feres, que é obrigado a receber a lei.
  • LXV. Alexandre é morto em uma conspiração formada por sua mulher.

Do terceiro ano da nonagésima-nona Olimpíada até o primeiro da centésima-quarta, 364 anos antes de Jesus Cristo.

PLUTARCO – VIDAS PARALELAS – PELÓPIDAS

O antigo Catão, respondendo um dia a alguns que engrandeciam um personagem, arrojado além da medida e valente sem discreção nos perigos da guerra, disse que havia grande diferença entre estimar muito a virtude e pouco a vida. Isto foi sabiamente dito. A esse propósito, contam que o rei Antígono tinha a seu serviço um soldado, entre outros, muito temerário, mas, bem observado, via-se que era uma pessoa de aparência desagradável e com o físico bem gasto. O rei, perguntou-lhe, um dia, de onde procedia estar êle assim pálido e com aquela côr tão má. O soldado confessou-lhe que era devido a uma doença secreta que não ousava de boa vontade declarar. Ouvindo isso, o rei ordenou expressamente a seus médicos e cirurgiões que lhe avisassem do que se tratava e se havia algum meio de o curar e que empregassem toda rapidez e diligência que lhes fosse possível. Agiram eles, de tal maneira, que o soldado recuperou sua saúde, mas ficando curado não se mostrou mais tão amável companheiro nem tão ousado nos perigos da guerra como fazia antes, de maneira que Antígono mesmo, tendo percebido a mudança, chamou-o um dia, dizendo-lhe que se espantava bastante em ver uma tão grande transformação nele, a que o soldado, não tendo senão aquela ocasião, respondeu-lhe: — "Vós me tendes, senhor, vós mesmo me tornastes menos corajoso o que eu não era, fazendo curar-me e tratar-me dos males pelos quais eu não tinha em conta minha vida".

II. A isto se relaciona também o dito de um sibaritano (1), referindo-se à maneira de viver dos lacedemônios: — "Que não era nada de mais se eles tinham grande desejo de morrer na guerra para se redimir de tanto trabalho e livrar-se de uma tão árdua e austera maneira de vida, como era a sua". Mas não é preciso admirar os sibaritanos, homens afeminados e fundidos em delícias e volúpias, se eles consideravam que aqueles que não temiam a morte pelo desejo que tinham de fazer o bem e pela afeição com que cumpriam o seu dever, mas que tivessem ódio da vida, era falso com relação aos lacedemônios, pois eles tornariam a viver e a morrer voluntariamente se isto fosse possível, no exercício da virtude, conforme o testemunho deste brasão funerário:

Estes mortos aqui não tiveram ainda desta vez
Que o seu morrer nem o seu viver
Foi belo e bom, mas souberam fazer bem
E um e o outro têm o direito em boa causa.

(1) Sibaris, cidade famosa pela moleza de seus habitantes. Estava situada sobre a costa oriental ao pé da Itália, entre os rios Sibaris e Cratis. Foi destruída pelos de Crotona no terceiro ano da quinquagésima-sétima Olimpíada, sob as ordens do famoso atleta Milon. Reconstruída pelos atenienses no terceiro ano da octogésima-terceira Olimpíada, à pequena distância de seu primeirc sítio, foi denominada Túrio.

III. Também em verdade, fugir à morte não é em si reprovável, conquanto seja sem covardia de coração, nem a espera é louvável se é feita com moleza e desprezo da vida.

Eis porque Homero descreve sempre como os mais valentes e corajosos guerreiros, os que estão mais bem armados quando é tempo de combater. E os que fizeram e estabeleceram as leis dos gregos, castigam aqueles que abandonam o seu bouclier e não sua espada ou sua lança, porque o soldado deve primeiramente pensar em se defender a si do que ofender seu inimigo, proceder que deve ser também daqueles que têm nas mãos o governo de um estado ou de um exército.

Assim, a comparação que fazia o capitão ateniense Ifícrates é verdadeira, quando dizia que em um exército, as tropas ligeiras se assemelhavam às mãos; a soldadesca (2) aos pés, os batalhões de infantaria, ou o grosso das tropas, ao estômago e ao peito, e o capitão era a cabeça do corpo humano. Parece que o capitão, que se arrisca muito e se atira ao perigo sem propósito, não é indolente somente em sua vida mas também em tudo o que a salvação dependa de si e, semelhantemente, tendo o cuidado da segurança de sua pessoa, tem também cuidado de todos os que estão sob suas ordens.

(2) No grego; "a cavalaria".

IV. Calicrátidas, capitão lacedemônio, pensando bem, foi um grande personagem, mas não respondeu sabiamente ao adivinho que lhe anunciou e predisse que êle se guardasse porque os sinais e presságios dos sacrifícios o ameaçavam de morte: — "Esparta, disse êle, não depende de um homem só". A verdade é que para combater por mar e por terra, Calicrátidas não era nada mais que um só homem verdadeiramente, mas como capitão, tinha toda a força e poder de seu exército unida e reunida em si, e, assim, não era um homem sozinho, pois que tantos outros pereceriam com êle.

Mas ao contrário, o velho Antígono, estando no momento de travar uma batalha naval perto da ilha de Andros, respondeu bem melhor a um que lhe dizia que os inimigos tinham muito mais navios do que êle. "E eu, disse-lhe, por quantoj navios me contas tu?" Pois fazia muito bem ter em grande conta a dignidade do capitão, pois esta, em ação, com a proeza e a experiência, daria como primeiro resultado salvar aquele que deve salvar todos os outros. Portanto, Timóteo, assim como Cares, mostrou um dia publicamente aos atenienses as cicatrizes de diversos ferimentos que recebera em seu corpo, bem como seu escudo todo dobrado e perfurado por diversos golpes de lança: — "Estou, disse êle, envergonhado, pois quando mantinha a cidade de Samos sitiada, uma seta lançada das muralhas da cidade veio cair bem perto de mim, porque havia avançado demais, como um jovem afoito, temerariamente, o que não convinha ao chefe de um tão grande exército". Mas quando a causa é de grande importância, vá que o chefe do exército se exponha ao perigo mas, deve ir de cabeça baixa, empregar bem sua mão e resguardar sua pessoa, sem se esquivar e não fazer caso das palavras daqueles que dizem que um bom e sábio capitão deve morrer de velhice, ou pelo menos velho.

Onde, porém, não espera senão pouca vantagem e perda, pondo em jogo a vida de todos, não deve se expor e jamais homem sábio algum reclamará que êle devia ter praticado ato de soldado raso, q liando isto traz o perigo de fazer perder um capitão em chefe.

V. Pareceu-me necessário fazer este prefácio diante das vidas de Pelópidas e de Marcelo, que foram dois grandes personagens e ambos mortos de forma que não deviam, pois tendo sido homens valentes, de arma em punho e tendo honrado seu país com vitórias gloriosas e, mais, contra inimigos temíveis, porque um foi o primeiro, ao que se diz, que aniquilou Aníbal, o qual até esse dia havia se mantido invencível e, o outro derrotou em batalha alinha-da os lacedemônios, que na ocasião dominavam toda a Grécia, tanto por mar como por terra e ambos perderam suas vidas sem razão, por serem mui temerariamente afoitos, justamente quando seus países tinham a maior necessidade de homens e de capitães como eles. É a causa pela qual, seguindo as semelhanças que houve entre os dois, reunimos e comparamos suas vidas uma com a outra.

VI. Pelópidas, filho de Hipoclo, de uma das mais nobres casas da cidade de Tebas, como Epaminondas, foi educado em grande opulência, vindo a ser herdeiro de sua casa, que era rica e poderosa desde a sua juventude. Mostrou incontinenti ter vontade de socorrer aqueles que tinham necessidade e eram dignos, dando assim a conhecer que era verdadeiramente dono e senhor e não servo de seus bens.

Da maioria dos homens ricos, uns não aproveitam nada de suas riquezas, porque são avarentos, como diz Aristóteles e, os outros abusam, porque se entregam aos prazeres, e assim são eles servos toda a vida, uns das volúpias e os outros dos negócios e do lucro. Os que conheciam essas qualidades de Pelópidas, agradeciam-lhe e usavam francamente de sua bondade e liberalidade para com êle, exceto Epaminondas, a quem não pôde nunca dar nada de seus bens, mas ao contrário, Pelópidas mesmo recebeu dele a vontade de imitar sua pobreza, no que tomou gosto e teve orgulho em se vestir de maneira tão simples, comer sobriamente, trabalhar voluntariamente e fazer a guerra sem rebuços, sendo tal como o poeta Eurípides descreve Capaneo, quando disse dele (3):

Era rico e em bens opulento
Mas por isso não menos extraordinário.

Pois tinha vergonha se o homem mais pobre da cidade de Tebas gastasse menos com sua pessoa, do que êle.

VII. Ora, quanto a Epaminondas, a pobreza lhe era familiar e hereditária. É bem verdade que êle a tornou mais leve e mais fácil de suportar, pelo estudo da filosofia à qual se dedicou e porque desde sua juventude escolheu uma vida simples, dispensando o supérfluo.

Quando Pelópidas casou com uma dama da grande nobreza, da qual teve filhos, não foi, no entanto, por isso, menos ativo em conservar e aumentar seus bens, mas deu-se a servir em tudo à causa pública enquanto viveu, de maneira que suas posses diminuíram, o que dava motivo a seus amigos mais chegados a repreendê-lo, mostrando-lhe que estava errado, tendo em pouca monta uma coisa que era tão necessária, como o possuir bens. Êle, então, lhes respondeu: — "Necessária é, verdadeiramente, mas é a um como este Nicodemo". E mostrou-lhes um (4) pobre homem aleijado e cego que passava.

(3) Nos Suplicantes, v. 861.
(4) "Pobre" não está no original grego.

VIII. Haviam nascido assim cs dois, igualmente, com todas as disposições para as virtudes, com a diferença que Pelópidas tinha mais prazer em exercitar o corpo e Epaminondas em exercitar o espírito e aprender, de forma que seus passatempos, quando estavam de folga, de um, era lutar, caçar e fazer exercícios corporais e, do outro, ouvir, estudar e aprender sempre qualquer coisa das letras e da filosofia. Mas, entre os diversos e bons passatempos que lhes trouxe tanta honra e tanta glória, cs homens de bom julgamento não acham nada de tão grande nem tão louvável como o haver mantido em toda sua vida sua amizade e benevolência, inalteradas desde o começo até o fim, entre tantos combates, tantas guerras, tantos comandos de exércitos e tantos negócios do governo que tiveram de desempenhar juntos.

Olhando os maus comportamentos de Aristides e de Temístocles, de Cimon e de Péricles, de Nícias e de Alcibíades na administração da coisa pública, de como foram eles cheios de desinteligência, de ambições e de inveja uns contra os outros, e considerando depois o amor e a honra que mantiveram sempre, continuamente, um ao outro Pelópidas e Epaminondas, encontraremos sem dúvida razão para achá-los mais dignos de ser chamados irmãos de armas e colegas de cargos públicos, do que quaisquer daqueles outros, os quais sempre estudavam e trabalhavam mais para vencer um ao outro do que para vencer seus inimigos.

A causa verdadeira, o objetivo visado em seu modo de proceder, era a virtude, porque por seus feitos não procuravam nem glória, nem riqueza para eles, na cobiça das quais está sempre ligada a malquerença e a sediciosa inveja. Ambos estavam como que enamorados, desde c começo, de um amor, de afeição e caridade divinas, que era de ver seu país mais poderoso e mais próspero per seu intermédio e no seu tempo.

IX. Todavia, a maioria dos historiadores estima que esta grande e veemente amizade que tinham um para com o outro, começou e procedeu de uma viagem que fizeram juntos a Mantinéia em socorro dos lacedemônios, que então estavam ainda aliados e confederados aos tebanos. Eles estiveram juntes na linha de batalha, nas tropas de infantaria, lutando contra os arcadinos que tinham pela frente. Aconteceu que uma ponta da linha dos lacedemônios, na qual estavam, recuou e houve muitos que fugiram por lodos cs caminhos, mas eles, preferindo morrer do que fugir, apertaram-se juntos e fizeram frente àqueles que os perseguiam até que Pelópidas, ficando ferido em sete lugares, tedos pela frente, caiu sobre um monte de cadáveres. Epaminondas então, embora tendo-o por morto, atirou-se à frente para defender seu corpo e suas armas e sustentou sozinho o combate contra diversos, preferindo antes morrer do que abandonar Pelópidas deitado entre os mortos. Lutou valentemente e ficando ferido de um golpe de lança no estômago e de um golpe de espada no braço, quase não podendo mais, Agesípolis, rei dos lacedemônios, chegou na outra ponta da linha de combate bem a tempo e salvou os dois que já estavam fora de toda a esperança.

X. Ora, desde esta batalha, que os lacedemônios deram de tratar bem os tebanos como seus aliados, amigos e confederados, mas na verdade começaram a ter suspeitas do poder e da grandeza de coragem de sua cidade, mesmo devido a um partido que obedecia a Ismênias e Andróclidas, no qual estava também Pelópidas, porque lhes parecia ser o mesmo bastante popular e liberal.

Houve três personagens da cidade de Tebas, Arquias, Leôntidas e Filipe, homens ricos e poderosos, que não se contentando em ser iguais aos outros cidadãos, persuadiram a Febidas, capitão lacedemônio, que ia e vinha pelo país da Beócia com seu exército, o qual apoderou-se um dia do castelo de Tebas que se chamava Cadméia, expulsando da cidade os que o queriam contrariar, pôs a direção dos negócios nas mãos de um pequeno número dos mais nobres, os quais fariam todas as coisas com carinho e ao gosto dos lacedemônios. Febidas fêz e executou esta empreitada sem que os tebanos suspeitassem de nada.

No dia da festa denominada Tesmofória, tendo-se apoderado da fortaleza, mandou também aprisionar Ismenias, levá-lo à Lacedemônia, onde poucos dias depois mandou matá-lo. Pelópidas, Ferênico e Andróclidas com diversos outros, tendo-se salvo a tempo, foram expulsos de Tebas ao som de trombetas. Quanto a Epaminondas, ficou na cidade, sem que lhe perguntassem nada, porque o desprezavam como pessoa inofensiva, pois era dedicado ao estudo e mesmo que tivesse vontade de querer qualquer coisa, não podia executá-la, devido sua pobreza.

XI. Os lacedemônios, à vista desta surpresa, depuseram Febidas de seu cargo e o condenaram a multa de dez mil escudos mas guardaram sempre com boa guarnição a fortaleza de Cadméia em suas mãos, o que todas as outras cidades e povos gregos acharam muito estranho, o aprovarem o ato e no entanto castigarem aquele que o havia praticado.

Assim os tebanos, tendo perdido sua antiga liberdade e estando escravizados por esses dois, Arquias e Leôntidas, chegaram a perder a esperança de poder jamais se livrar daquela tirania nem a destruir, vendo que ela estava sendo mantida e defendida pelos lacedemônios, se não havia quem pudesse tirar a estes, a posse e domínio que tinham em toda a Grécia, tanto no mar como em terra.

Todavia, Leôntidas e seus partidários, percebendo como os banidos de Tebas eram em Atenas benvindos e bem vistos pela comuna e honrados por toda gente de bem, experimentaram mandar secretamente matá-los por emboscada e, para fazer isso, enviaram a Atenas alguns homens incógnitos, os quais mataram à traição Andróclidas, mas quase que mataram também os outros. Por isso, os lacedemô-nios escreveram a Atenas dizendo que não deviam receber os banidos de Tebas nem os solicitar, mas sim desviá-los e expulsá-los, como esses, que devido aos seus aliados, eram juridicamente inimigos comuns de toda a federação.

XII. Não obstante, cs atenienses, além da humanidade e bondade de todos os tempos, que lhes era natural, própria e inata, querendo corresponder aos tebanos que haviam sido os autores do estabelecimento do governo popular em Atenas, atendendo que haviam ordenado por edital público que se algum ateniense fosse e viesse pelo país da Beócia, trazendo armas contra os trinta governadores tiranos que sufocavam a liberdade de Atenas oprimida, não houve ninguém que fizesse menção de ver e ouvir para não causar dano nem desprazer aos tebanos. E entretanto, Pelópidas, ainda que fosse dos mais jovens, ia sempre solicitando a cada banido em particular e em comum e fazia discursos mostrando que não seria somente covardia, mas perversidade e crime de lesa-majestade divina, se consentissem que seu país continuasse em tal escravidão e que estrangeiros aí mantivessem guarnições par« os fazer dobrar sob o jugo, enquanto que eles se contentavam em salvar suas pessoas e pôr suas vidas em segurança, permanecendo ociosos em Atenas, esperando o que agradaria aos atenienses lhes ordenar, fazendo a corte aos oradores e a esses que, pela eloqüência, sabiam persuadir sobre o que desejavam da comuna. Portanto, seria preciso tudo arriscar por coisa de tão grande conseqüência, a exemplo da proeza e coragem de Trasí-bulo, a fim de que como êle, que partindo de Tebas havia expulso os tiranos que oprimiam Atenas, também eles partindo de Atenas, libertassem Tebas da escravidão.

Depois de haver tirado essas observações de sua própria opinião, enviaram secretamente instruções aos seus amigos que estavam morando em Tebas, para lhes dar a entender sua deliberação, a qual aprovaram, tanto que Caron, que era o mais evidente de todos, prometeu fechar sua porta para realizar a assembléia, e Filidas arranjou jeito de ser escrivão e secretário de Filipe e de Arquias, que eram então governadores e capitães da cidade.

XIII. Por outro lado, Epaminondas, sem deixar transparecer, vinha de longa data procurando levantar a coragem dos jovens tebanos, pois quando estes passavam seu tempo entregues aos exercícios corporais, achava sempre um meio de os emparelhar em luta com os lacedemônios e quando os via orgulhosos, por havê-los jogado por terra e por serem os mais fortes, vinha apertar-lhes os músculos, dizendo que deviam ter vergonha, por estarem sujeitos a outros, que não eram tão fortes, tão rígidos e nem tão robustos como eles. Assim, num dia determinado entre aqueles que dirigiam, para executar a empresa, foi avisado que Ferenico com outros banidos estavam morando no povoado de Triasio e que alguns dos mais jovens e mais dispostos correriam o risco de ir na frente para entrar na cidade, com a condição de que, se porventura, fossem surpreendidos pelos inimigos, todos os outros conjurados juntos teriam que cuidar para que seus pais, mães e filhos não sofressem falta de coisa alguma que lhes fosse necessária.

XIV. Pelópidas foi o primeiro que se apresentou para esta obrigação e depois dele Melon, De-móclidas e Teopompo, todos pertencentes às primeiras famílias de Tebas, que se estimavam muito uns aos outros e que por nada cometeriam uma fuga ou praticariam qualquer deslealdade, um ao outro, embora, em todos os tempos, houvesse entre eles inveja, desejo de glória e contenda sobre quem levantaria o prêmio. Foram doze ao todo, os quais despedindo-se uns dos outros, enviaram na frente um mensageiro a Caron para o avisar, e puseram-se a caminho levando casacos curtos sobre as costas, conduzindo cães de caça e trazendo nas mãos estacas para esticar as redes, a fim de que aqueles que os encontrassem pelo caminho não desconfiassem de sua empreitada e pensassem que iam assim passeando pelos campos e caçando para o seu prazer. Quando o mensageiro que haviam enviado na frente chegou à cidade e disse a Caron como se encontravam pelo caminho, não recuou, se bem que visse aproximar-se o perigo mas, como homem de bem, persistiu no oferecimento que havia feito e disse que seriam benvindos em sua casa. Um outro, porém, chamado Hipostênidas, que não era de forma alguma mau homem, pois desejava o bem e a honra de seu país e era amigo dos banidos, mas não tinha muita coragem, pelo menos assim como se mostrou na ocasião e no negócio que naquela hora se apresentava, reclamou tanto que a cabeça virou, conforme a maneira de dizer, e o nariz sangrou, quando se pôs a examinar e considerar de perto a enormidade do perigo, no qual teria de entrar, não podendo compreender como é que poderiam abalar desse jeito o império dos lacedemônios e construir o alicerce da ruína de seu poder sobre a confiança de um pequeno número de exilados que não tinham meios. Pelo que, retornado à sua casa, enviou subitamente um de seus familiares a Melon e Pelópidas, a dizer-lhes que transferissem sua empreitada para uma outra ocasião melhor e que por ora voltassem a Atenas. Aquele que mandou, chamava-se Clidon, o qual foi apressadamente para sua casa e, tirando seu cavalo fora do estábulo, disse a sua mulher que lhe trouxesse depressa o freio, mas a mulher, não o encontrando prontamente, disse-lhe que havia emprestado a um de seus vizinhos. Começaram primeiro a se empurrar um ao outro, depois a se injuriar mutuamente até que a mulher, amaldiçoando-o, pediu aos deuses que fizesse infeliz a viagem que êle devia fazer, bem como aqueles que o enviaram, de tal forma que esse Cli-don, tendo perdido boa parte do dia a discutir e brigar com sua mulher, e também porque tinha em mau presságio as maldições e pragas que ela havia rogado centra êle, resolveu por si mesmo não prosseguir e pôs-se a fazer qualquer outra coisa. Assim muito pouco foi necessário para que a empresa de uma tão digna e gloriosa proeza não fosse cortada antes do começo.

XV. Mas aqueles que se achavam na companhia de Pelópidas vestidos como camponeses, a fim de não serem reconhecidos, dividiram-se para não entrar todos juntos, mas por diversas portas da cidade, enquanto era dia. Ora, havia por sorte, bastante vento e nevava, de maneira que começando a ficar escuro, a maior parte das pessoas retirou-se para suas casas, o que serviu muito para que eles não fossem descobertos ao entrar; aqueles que estavam de acordo os recebiam à medida que chegavam e os levavam para a casa de Caron, onde se encontraram com os exilados, quarenta e oito homens somente.

XVI. Quanto aos tiranos, eis o que acontecia. Filidas o secretário, fazia parte da conjuração como dissemos e conhecia toda a meada por meio da qual muito tempo antes havia expressamente convocado Arquias e seus companheiros a virem jantar em sua casa, prometendo que traria também mulheres a fim de que, quando estivessem bem embriagados e bem mergulhados em suas volúpias, os conjurados fizessem mais à vontade tudo o que desejassem. Assim, tendo o banquete começado, antes que tivessem ainda bebido muito, vieram lhes contar a verdade sobre a conjuração, não porém ponto por ponto como tudo era nem como coisa certa, mas somente que havia rumor de que os banidos estavam dentro da cidade, escondidos na casa de Caron. Filidas procurou desviar esse propósito, mas Arquias enviou um de seus arqueiros a Caron, ordenando que viesse imediatamente à sua presença.

XVII. Ora, já era tarde, Pelópidas e seus companheiros preparavam-se para irem executar sua empreitada, estando todos armados, tendo já em mãos suas espadas, quando de súbito ouviu-se bater com força na porta. Acorreu alguém da casa, que veio dizer muito amedrontado que era um dos satélites de Arquias, que vinha ordenar a Caron para ir imediatamente à frente dos governadores. Pensaram incontinenti que todo seu trabalho fosse descoberto e, conseqüentemente, estavam perdidos, antes de poderem fazer alguma prova de sua virtude. Todavia, foram todos de aviso que Caron obedecesse essa ordem e que se apresentasse diante dos governadores para desfazer qualquer suspeita. Se Caron era homem corajoso, constante e seguro do perigo quanto a olhá-lo, no entanto, na hora ficou espantado e zangado, temendo que fosse suspeito de haver praticado traição, se acontecesse que tanta gente de bem e tão grandes cidadãos, aos quais havia cedido sua casa, fossem presos. Pelo que antes de sair, foi pegar no quarto de sua mulher, seu filho que era ainda criança, mas belo e forte, mais que qualquer outro de sua idade e o pôs entre as mãos de Pelópidas, pedindo-lhe que se soubesse que havia cometido qualquer traição, ou qualquer farsa de mau gosto, fizessem com seu filho como a um inimigo, sem nenhuma piedade.

XVIII. As lágrimas vieram aos olhos de muitos dos conjurados, quando viram esse zelo e essa magnanimidade de Caron. Discutiram todos pelo fato de considerar êle alguns deles tão fracos de coração e tão assustados por qualquer perigo que se apresentasse. Não suspeitavam nem o acusavam de nada e lhe disseram para não deixar a criança entre eles, mas a escondesse em algum lugar fora do perigo dos tiranos, onde pudesse ser criado para um dia vingar o erro que teriam feito a eles e a seu país. Caron respondeu-lhes que não o tiraria, pois não via nenhuma vida nem salvação mais feliz para êle, do que morrer sem infâmia como seu pai e entre tanta gente de bem, seus amigos. Assim, depois de haver orado aos deuses para virem em sua ajuda e ter abraçado e confortado todos os conjurados, um após outro, foi-se e pelo caminho procurou compor de tal modo seu rosto, seu domínio e sua palavra, que parecia pensar antes em toda outra coisa que naquela que queria em pensamento fazer.

XIX. Quando chegou à porta da casa onde se realizava o festim, Arquias e Filidas vieram ao seu encontro, dizendo-lhe: — "Caron, quem são aqueles que dizem haver entrado secretamente nesta cidade e que estão escondidos em alguma casa, tendo burgueses que se entendem e conversam com eles?" Caron perturbou-se um pouco no começo e lhes perguntou: — "E que espécie de gente é? Quem são aqueles que os recebem nesta cidade?" Mas (5) quando viu que Arquias não lhe podia declarar nada de certo, pensou bem que a descoberta lhe havia sido feita por alguém que não sabia nada de toda a trama da empreitada. Disse-lhe: — "Guardai que não seja qualquer falso alarme que querem dar para vos assustar, todavia indagarei, pois em toda aventura é sempre mais seguro não fazer nada em tais coisas com incerteza". Filidas respondeu que êle dizia a verdade e com isso levou Arquias para a sala, onde o fêz beber ainda mais do que antes, entretendo sempre cs outros com a esperança das mulheres que deviam vir e, Caron voltando à sua casa, encontrou os conjurados todos prontos e aparelhados para pôr mãos à obra, não como gente que esperasse salvar suas vidas, nem ficar sob o poder de seus inimigos, mas disposta e bem resoluta em morrer corajosamente e vender sua morte bem cara. Assim disse a verdade toda, como era, só a Pelópidas, dando a entender aos outros que Arquias o havia chamado para lhe dizer qualquer outra coisa.

(5) Grego: "em seguida, tendo perguntado", etc, "quando viu", etc.

XX. Apenas havia passado o perigo da primeira tormenta, a sorte lhes enviou um outro, pois chegou logo depois um mensageiro vindo de Atenas, que trouxe ao mesmo Arquias uma carta que lhe escrevia o grande pontífice de Atenas, chamado Arquias, como êle, e era seu hóspede e seu velho amigo, na qual escrevia não uma conjectura simples nem uma suspeita imaginária, mas a conspiração de ponta a ponta, toda, tal como a viram depois. Foi o mensageiro conduzido a Arquias que já estava embriagado e dando-lhe a carta, disse: —- "Aquele que te envia esta missiva, ordenou-me expressamente de te dizer que leias incontinenti o que contém, porque é coisa de grande importância". Arquias rindo, respondeu-lhe: — "Amanhã cedo os negócios", e tomando a carta, colocou-a debaixo de sua almofada, e retomou a conversa que havia começado com Filidas; estas palavras ficaram em uso entre os gregos, como um provérbio comum: — "Amanhã cedo os negócios".

XXL Quando, portanto, acharam chegado o tempo de começar a executar sua empresa, dividiram-se em duas partes, indo uns com Pelópidas e Damó-clidas para assaltar Leôntidas e Hipato, porque ficavam um junto do outro e, os demais com Caron e Melon foram contra Arquias e Filipe, disfarçados com vestidos de mulheres que haviam posto sobre suas armas e traziam à cabeça chapéus com ramos de pinheiro que lhes cobriam o rosto. Por esse meio, quando se apresentaram à porta da sala onde se realizava o banquete, os de dentro, julgando à primeira vista que fossem as mulheres esperadas, gritaram e fizeram grande algazarra, mas depois de terem passado seus olhos pela sala, para reconhecerem todos aqueles que estavam no banquete, desembainharam as espadas, e colocando-se por entre as mesas sobre Arquias e Filipe, deram-se a conhecer quem eram. Então Filidas disse àqueles que havia convidado que não se mexessem, que não haveria nenhum mal, no que foi obedecido por alguns, mas os outros, em maior número, acharam que era seu dever defender os governadores e levantaram-se mas, como estavam tão ébrios que não sabiam o que faziam, foram todos facilmente mortos.

XXII. Entretanto, a execução não foi tão fácil para o bando que conduzia Pelópidas, pois iam contra Leôntidas que era pessoa cuidadosa e sóbria. Quando o encontraram já estava deitado e a porta de sua casa fechada. Bateram por muito tempo sem que alguém abrisse; enfim, um criado, com grande pena, ouviu bater daquela forma e veio à porta para lhes abrir e logo que tirou o ferrolho e que a porta começou á se entreabrir, eles a puxaram tão rudemente, atirando o povo todo junto dentro, que puseram por terra o servidor e subiram direito ao quarto. Leôntidas, ouvindo o barulho daqueles que subiam tão depressa, desconfiou logo e, jogando-se fora do leito, tomou uma espada na mão, mas esqueceu-se de apagar as lâmpadas que ardiam à noite em seu quarto, pois se assim não fora, os assaltantes teriam que se empurrar uns aos outros nas trevas, mas ao contrário, sendo fácil se ver em tão profusa claridade de lâmpadas, foram até diante da porta do quarto. Cefisodoro, que se havia atirado primeira dentro, recebeu um tão grande golpe de espada que se abateu todo rígido e morto aos pés de Leôntidas, que assim o matou. Caído esse primeiro, agarrou-se ao que vinha logo depois, que era Pelópidas. Foi um combate contrafeito, não só porque a porta do quarto era estreita, como também porque o corpo de Cefisodoro, estendido no lugar, impedia-os. Todavia, por fim, Pelópidas chegou ao final, matando Leôntidas e se dirigiu incontinenti com seus companheiros para a casa de Hipato, onde entraram nem mais nem menos como em casa de Leôntidas, mas aquele, percebendo logo o que era, cuidou de se salvar nas casas de seus vizinhos, mas os conjurados o perseguiram de perto, sendo morto antes que pudesse alcançar refúgio.

XXIII. Isto feito, reuniram-se com a outra parte de Melon e enviaram imediatamente, com rapidez a Atenas, diversos outros exilados e começaram a gritar pela cidade: "Liberdade, liberdade", e armando os camponeses que vinham se entregar e aliar-se a eles, com armas e despojos dos inimigos, que estavam suspensas e penduradas nos pórticos dos edificios públicos e nas lojas dos armadores e fornecedores ao redor da casa de Caron, as quais arrombavam ou faziam abrir à força. De outro lado vieram também em seu socorro Epaminondas e Górgidas, bem armados com uma milícia de jovens e também de velhos dos melhores que haviam reunido. Logo, toda a cidade ficou virada debaixo para cima pelo pavor, cheia de tumulto e de barulho. Já havia luzes por todas as casas, correndo os habitantes para casa uns dos outros, procurando saber o que acontecia. Todavia, o povo não se havia ainda reunido, mas estava admirado por não saber em verdade o que havia e esperando o clarear do dia para se reunir em conselho. Por esse meio, parece-me que os capitães da guarnição dos lacedemônios cometeram um grande erro, não agindo na hora e não atacando logo os revoltosos, atendendo que possuíam mil e quinhentos guerreiros, sem contar, naturalmente o grande número dos moradores da cidade que iriam juntar-se a eles, mas é que tiveram medo do grande barulho que ouviam, do fogo que viam por todas as casas e do povo que ia e vinha de todos os lados formando grandes multidões. Assim, decidiram não se mexer mas guardaram somente a fortaleza de Cadméia.

XXIV. Ao clarear do dia seguinte chegaram da Ática os outros exilados bem armados e reunindo todo o povo de Tebas em conselho, Epaminondas e Górgidas, se apresentaram, bem como Pelópidas e seus comparsas rodeados pelos sacerdotes e religiosos da cidade, que apresentavam coroas para colocarem sobre suas cabeças e proclamaram à assembléia de cidadãos que desejavam socorrer seus deuses e seu país. Toda a assistência do povo levantou-se nos pés, logo que os viu, com grande clamor e batendo as mãos e recebeu-os como seus benfeitores, os que os haviam libertado da escravidão e conquistado sua liberdade. Na hora, foram eleitos capitães e governadores da Beócia pelas vozes do povo, Pelópidas, Melon e Caron. Pelópidas, então, fêz cercar com trincheiras e tapume de madeira (6) o castelo de Cadméia, ordenando o assalto de todos os lados e empregando todo seu esforço para tomá-lo e expulsar os lacedemônios, antes que viesse de Esparta um exército para socorrê-los. Os da guarnição, que capitularam, haviam saído do castelo para voltarem à Lacedemônia, e encontraram nas terras de Mégara, Cleômbroto, rei de Esparta que vinha auxiliá-los com grandes e poderosas forças. Mas dos três capitães que serviram naquela guarnição de Tebas, os espartanos condenaram a morte dois deles, Hermipidas e Arcisso, que foram executados, e o terceiro Disaóridas foi condenado a pagar uma grande soma de dinheiro como multa e foi-se para fora do Peloponeso.

(6) O grego designa por uma palavra genérica uma circun-valação com trincheiras.

XXV. Esta proeza tendo sido organizada e executada com a mesma valentia, os mesmos riscos e o mesmo trabalho que a de Trasíbulo quando libertou a cidade de Atenas dos trinta governadores tiranos e tendo atingido o mesmo fim pela sorte, foi denominada pelos gregos, irmã daquela, pois não poderiam citar outros senão esses dois, que com tão pouca gente caíram sobre seus adversários, em número maior do que eles e que com tão apoucados meios houvessem vencido aqueles que se achavam mais fortes, chegando ao fim de sua empresa, somente pela sua coragem e pela sábia conduta, trazendo maiores benefícios para seus países. O que tornou a empreitada ainda mais honrosa e mais gloriosa para eles, foi a mudança dos negócios que vieram depois, pois a guerra, que diminuiu a dignidade de Esparta e tirou aos lacedemônios o principado da terra e do mar, começou naquela noite em que Pelópidas, sem ter procurado surpreender nem cidade, nem castelo, nem praça forte, entrando o décimo-segundo em uma casa particular, cortou e partiu pela maneira de dizer, e, para melhor exprimir a verdade com esta figura de retórica, as cadeias que mantinham firme o domínio e principado dos lacedemônios em toda a Grécia, os quais, até esse tempo, eram considerados tão fortes que seria impossível quebrá-los, romper ou desligar.

XXVI. Tendo, entretanto, algum tempo depois, os lacedemônios entrado com uma força poderosa no país da Beócia, os atenienses, amedrontados com a sua grande força, recusaram continuar a aliança e linha defensiva que tinham com eles (7) e até, fizeram justiça e processaram aqueles que foram acusados de tomar o partido dos beócios, dos quais uns foram executados à sorte, outros expulsos da Ática e outros condenados a pagar grandes multas. De fato, a opinião comum era de que os negócios dos tebanos deveriam andar muito mal, atendendo que eles não eram socorridos nem favorecidos por pessoa alguma do mundo. Ora, naquele ano eram capitães-gerais da Beócia, Pelópidas e Górgidas, os quais procuravam cs meios de pôr em rígido os atenienses, em lança e inimizade contra os lacedemônios e tramaram um ardil. Havia um capitão lacede mônio chamado Esfódria, homem valente, mas sempre estouvado e leviano, que punha facilmente em sua cabeça vãs esperanças e era animado por uma louca ambição de ter ainda em sua vida algum belo feito. Ora, êle havia ficado com um bom número de guerreiros na cidade de Téspia, para recolher e favorecer os da Beócia que desejavam rebelar-se contra os tebanos.

(7) Os tebanos.

XXVII. Pelópidas, com sua autoridade particular, enviou-lhe um mercador, seu familiar e amigo, levando dinheiro e palavras que valiam mais ainda que o dinheiro que lhe punha na frente, ajuntando que devia esperar maiores coisas ainda para que fosse surpreender e tomar o porto de Pireu, o que poderia facilmente fazer, se o assaltasse desprevenido, pois os atenienses não duvidavam de nada, nem tinham guarda segura. Ainda mais, com toda a certeza, para os senhores lacedemônios não haveria nada tão caro nem tão agradável como o de tomarem a cidade de Atenas em seu poder, e os tebanos, que lhe queriam mal de morte porque os haviam traído e abandonado quando precisavam, não os socorreriam de maneira alguma. Esfódria, movido por essas insinuações, tomou consigo os guerreiros que pôde arranjar e, partindo uma noite, entrou no país da Ática, onde penetrou até a cidade de Eleusina, mas quando ali chegou, sua gente ficou com medo e não quis mais passar adiante. Assim,’ sendo descobertos, foram constrangidos a voltar a Téspía, tendo provocado aos lacedemônios uma guerra que não lhes foi de pequena conseqüência nem fácil de desenrolar, pois depois disto os atenienses procuraram de rijo a aliança dos tebanos, socorrendo-os mui afetuosamente e mais ainda, restabelecendo a marinha foram daqui e dali concitando e conseguindo como aliados aqueles que desejavam rebelar-se contra os lacedemônios. Enquanto isso, os tebanos uniam-se constantemente nos pequenos encontros dentro do país da Beócia aos lacedemônios. É verdade, que não eram grandes batalhas, mas não deixava de ser bom aprendizado da guerra e um exercício que lhes elevava o coração cada vez mais e tornava suas pessoas mais fortes, de maneira que com as tais emboscadas tornaram-se mais valentes, mais aguerridos e melhor dados às armas do que não eram antes.

XXVIII. Encontraram escrito, certa vez, que Antãlcidas, Espartano, dissera um dia ao rei Agesilau, que voltava da Beócia todo ferido: — "Certamente recebeste dos tebanos o salário que merecias, por lhes haver ensinado, apesar deles, a fazer a guerra e a combater". Todavia, a verdade é que Agesilau não foi o chefe que lhes ensinou a fazer a guerra, mas foram os bons e sábios capitães que souberam em tempo e lugar, colocar na frente seus inimigos, como bons galgos largados de propósito, para os reter com segurança depois de os haver açu-lado, fazendo-os saborear um pouco à vontade o fruto da vitória, entre os quais estava Pelópidas, quem mais mereceu honra e glória, porque depois da primeira vez que lhe deram o encargo dos guerreiros, não deixou nunca de ser eleito continuamente, cada ano, como capitão da tropa sagrada ou governador da Beócia, enquanto viveu, de sorte que foi êle quem fêz a maior parte de tudo o que se deu nesta guerra.

XXIX. Ora, houve diversas derrotas e rupturas dos lacedemônios junto das cidades de Platéia e de Téspia, onde Febidas mesmo, aquele que havia assaltado o castelo de Cadméia, foi morto entre outros. Também foi derrotada (8) uma outra grande tropa perto da cidade de Tanagra, onde aquele que era governador, Pantoidas, foi morto, mas todos esses encontros assim como serviram bem para assegurar e garantir os vencedores e levar-lhes o coração, também não destruíram completamente os vencidos, pois não houve batalha em linha com força inteira, mas foram apenas guerrilhas emboscadas, onde ora fugiam, ora expulsavam e eram atacados ou derrotados. Mas a batalha de Tegire, que foi como um ensaio da jornada de Leuctres, trouxe a Pelópidas grande reputação, porque não houve nenhum companheiro que quisesse disputá-la nem que com ele partilhasse a glória da vitória, nem deixou aos inimigos nenhuma desculpa pela qual pudessem cobrir sua derrota, pois espreitava sempre a ocasião como poderia assaltar a cidade de Orcomene, a qual havia tomado o partido dos lacedemônios, e havia recebido duas insígnias (9) da infantaria para guardá-la. E um dia, sendo avisados de que aquela guarnição havia feito uma incursão ao país da Lo-crida, esperando encontrar a cidade de Orcomene vazia, foi Pelópidas atacá-la com a tropa sagrada e alguns cavaleiros, mas assim que chegou perto da cidade, soube que vinha de Esparta uma guarnição em lugar daquela que havia partido e por isso voltou atrás pela cidade de Tegire, porque não quis retornar pelo outro caminho que volteava ao pé da montanha, por causa da planície, que situada no meio, estava inundada com as águas do rio Melas, o qual desde o local onde nasce, espalha-se formando alagadiços, de sorte que é impossível atravessá-lo (10).

(8) Pelópidas.
(9) Ê o que chama mais abaixo companhias. Veja cap. 31.

XXX. Um pouco abaixo dessas baixadas alagadas há um templo de Apolo denominado Tegirião, onde haviam embebedado antigamente um oráculo, que hoje está abandonado e não floresceu longamente, mas somente até o tempo da guerra dos medos, tendo então como superintendente Equecrates. E querem alguns dizer que é o lugar mesmo onde Apolo nasceu, porque denominam a montanha vizinha De los, ao pé da qual terminam as enchentes do rio Melas e atrás do templo, ensurdecedoras, há duas fontes que jorram a água em grande quantidade, boa e fresca que é uma maravilha, das quais, uma denomina-se ainda em nossos dias, Palma e a outra, Oliva. E dizem mais que não foi entre duas árvores, mas entre dois riachos que a deusa Latona deu à luz, pois (11) mesmo a montanha de Ptoum está ali perto, da qual saiu subitamente o javali que a amedrontou e, coisa semelhante contam da serpente Piton e do gigante Titio, o que confirma e prova que é propriamente lá o lugar do nascimento de Apolo. Deixou diversos outros indícios que se referem a isto, porque não consideramos em nosso país que Apolo seja do número daqueles que per transmutação foram feitos homens mortais, como Hércules e Baco que, pela excelência de sua virtude, despojaram-se do que havia de mortal e de passivo neles, mas acreditamos ser daqueles que eternamente foram sem princípio de geração, se devemos ter fé no que cs mais sábios .e cs mais antigos deixaram por escrito no tocante a coisas tão grandes e tão santas.

(10) Grego: de o atravessar.
(11) Leia: -pois Ptoum está ali perto" O grego não se refere em nada que fosse uma montanha.

XXXI. Os tebanes, então, tendo voltado de Orcomene e os lacedemônios do cutro lado, voltando igualmente da Locrida ao mesmo tempo, encontraram-se uns diante dos outros perto da cidade de Tegire. E, tão logo descobriram cs lacedemônios passando o estreito, houve alguém da tropa dos te-banos que depressa acercou-se de Pelópidas e lhe disse: — "Caímos entre as mãos dos lacedemônios". "Quem sabe, respondeu-lhe subitamente, se não foram eles entre as nessas?" E dizendo isto, ordenou aos cavaleiros que se encontravam na retaguarda de toda a tropa que passassem à frente, como para começar a carregar, enquanto êle formava um pequeno batalhão bem unido com a infantaria de que dispunha e que não eram senão trezentos soldados, certo que ende desse com este esquadrão, forçaria e fenderia os inimigos que estavam em maior número, pois havia duas companhias de lacedemônios e cada companhia, como escreve Eforo, era de quinhentos homens, e segundo Calístenes, de setecentos, havendo ainda outros que referem novecentos, entre os quais Políbio. Marcharam os capitães lacedemônios Teopompo e Gorgoleão, de grande bravura, contra os tebanos e o primeiro encontro começou por acaso, nos lugares onde estavam os chefes tanto de uma parte como de outra, com um furor e uma impetuosidade tão grande, que os primeiros que morreram foram os dois capitães lacedemônios, que juntos se arremessaram sobre Pelópidas. Depois deles, aqueles que estavam à volta de suas pessoas e ficaram também bastante feridos ou mortos sobre o campo. O resto do exército ficou tão assustado que se partiu em dois e rompendo-se daqui e dali, pelos flancos, deu passagem aos tebanos para poder atirar além se quisessem, mas quando viram que Pelópidas não se divertia em passar pela abertura feita e, conduzia sua gente contra os que estavam ainda em batalha e matando os que lhe faziam frente, então puseram-se a fugir por todos os caminhos. Todavia, os tebanos não os expulsaram para muito longe, porque temiam os orcomênios, que não estavam longe dali, como também a nova guarnição que antes havia chegado da Lacedemônia. Isso foi a causa de se contentarem apenas em haver rompido aquela força e, com indignação deles, haver passado entre seu exército, mal conduzido e derrotado.

XXXII. Depois de haver levantado troféus e despojado os mortos, voltaram para suas casas bem alegres, tendo os corações elevados, porque em tantas guerras que os lacedemônios sustentaram no passado, tanto contra os gregos como contra os bárbaros, não há memória que tivessem sido derrotados por um número tão diminuto de inimigos nem por um número igual em batalha de linha. Eles, que eram tão corajosos (12) e tão terríveis, que pessoa alguma ousava alcançar, pois só sua reputação espantava de tal forma os adversários que deviam combater contra eles, que não pensavam poder, com igual força poder fazer tanto quanto eles. Mas esta batalha deu o primeiro conhecimento a eles e aos outros gregos, que não era só o rio Eurotas e nem o lugar situado entre os riachos de Cnacion e de Babice (13) que possui homens belicosos e valentes e também ensinando aos jovens a ter vergonha das coisas desonestas, temendo mais a censura e a desonra do que o perigo. São estes, sempre, os mais temíveis e os mais terríveis inimigos.

XXXIII. Ora, quanto à tropa sagrada da qual já fizemos menção pouco antes, dizem que foi um chamado Górgidas, o primeiro a comandá-la e compunha-se de trezentos homens escolhidos, assalariados e mantidos às expensas do erário público e que habitavam no castelo de Cadméia, chamado ordinanamente a "tropa da cidade", porque então denominavam do mesmo jeito esses bairros da Grécia, come também os castelos e fortalezas dos grandes lugares eram chamados de cidades. Os outros querem dizer que era uma companhia de infantaria composta de homens enamorados uns dos outros e, a esse propósito, contam um dito notável de Pamenes, o qual, brincando, disse que Nestor nada entendia do comando, contando que na Ilíada de Homero êle aconselha aos gregos que se alinhem em batalha por nação e por linhagem,

"A (14) fim que mais tenham afeição
Em socorrer cada um sua nação".

Era necessário, dizia êle, colocar mais cedo um amante junto daquele que ama, porque os homens ordinariamente, ocupam-se bem pouco daqueles que são de sua nação nem de sua linhagem em um perigo, mas um batalhão que seria composto de homens amorosos uns dos outros, não poderia jamais romper-se nem forçar, porque os amantes, pela afeição veemente que têm aos seus amados, não os abandonariam nunca e os amados, tendo vergonha de fazer alguma coisa covarde ou desonesta diante de seus amantes, manter-se-iam uns por amor dos outros, até o fim.

(12) Orgulhosos. 
(13) Babice não é um riacho, mas uma ponte que se achava sobre o Eurotas, como vimos na Vida de Licurgo, cap. 9. A cidade de Esparta estava situada entre esta ponte e o riozinho de Cnacion.

XXXIV. O.que não está fora de propósito, se é verdade que os amarosos respeitam seus amores, mesmo quando estão ausentes, assim podem conhecer pelo exemplo, como daquele que, estando caído por terra, assim que seu inimigo levantou a espada para matá-lo, pediu-lhe que lhe desse o golpe de morte pela frente, com medo que seu amado vendo seu corpo morto, ferido nas costas, viesse a se envergonhar. Assim, dizem que Iolao sendo amado por Hércules, socorreu-o e acompanhou-o em todos os seus combates e trabalhos, na ocasião em que Aristóteles escreve que até seu tempo os amantes davam fé e juravam lealdade um ao outro sobre a sepultura de Iolao. Pelo que parece-me verossímil dizer, que esta tropa tenha sido primeiramente denominada a tropa sagrada, pela mesma razão que Platão chama um amante de amigo divino ou inspirado dos deuses. E, pelo que está escrito, jamais foi rompida nem desfeita até a batalha de Queronéia, depois da qual Filipe vendo a decomposição dos mortos, parou no lugar onde estavam os quatrocentos (15) homens desta companhia deitados por terra, apertados uns contra os outros (16), todos perfurados por grandes golpes de lança no estômago, do que assombrou-se enormemente vendo que era a tropa dos amantes e começou a chorar de piedade, dizendo: — "Que mal pode acontecer àqueles que julgam que tal gente faça alguma coisa de desonesto". Em suma (17), o inconveniente de Laio, que foi morto por seu próprio filho Édipo, não foi a causa primitiva deste costume que os tebanos tinham de serem amorosos uns com os outros, mas foram esses que primeiramente estabeleceram suas leis, os quais vendo que era uma nação corajosa e violenta por natureza, quiseram amortecer e adocicar um pouco a sua natureza, desde a infância e com esta intenção misturaram entre seus atos, o prazer e os deveres e, o tocar flauta, ordinariamente, colocava-os em honra e em reputação. Igualmente também entre as diversões da juventude nos exercícios corporais, introduziram o uso do namoro, para temperar e adocicar os costumes e o natural de seus jovens. E por isto, foi atribuído aos tebanos, com bom julgamento e seguindo este propósito, como tutora e patrona de sua cidade, a deusa Harmonia, a qual dizem ter sido gerada de Marte e de Vénus; pois isto dá a entender que, onde a força e a valentia militar estão unidas e conjuntas com a graça da aparência e da persuasão, todas as coisas são reduzidas por esta união, a um belo, esplêndido e perfeito governo.

(14) Ilíada, liv. 21, v. 363.
(15) Grego, trezentos. Veja cap. 33.
(16) Veja as Observações sobre o cap. 34.

XXXV. Voltando ao caso da tropa sagrada dos tebanos, Górgidas, separando as primeiras filas, estendeu-as ao longo de toda a frente da batalha, não quis tomar conhecimento do quanto elas valiam separadamente e por isso não as colocou num só corpo, de sorte que se pode ver o efeito que procedia de toda a companhia reunida, levando em conta que fora dividida e misturada entre muitas outras que valiam menos. Mas Pelópidas, que havia visto claramente, como valiam juntos esses soldados, porque haviam combatido à sua volta em Tegire, não quis, daí em diante, dividi-los nem separá-los uns dos outros, mas serviu-se deles como de um corpo inteiro com todos seus membros, com o qual começou a fazer carga em suas batalhas de maior sucesso, pois assim como vemos nos jogos das corridas de carros, onde os cavalos, atrelados diversos juntos, numa só frente, correm mais firme e mais fortemente do que quando estão desligados e aguilhoados sozinhos, não porque se atiram diversos juntos e aspiram melhor o ar, mas porque aquele esforço e desejo que têm uns contra os outros sobre qual correrá mais depressa e qual passará seu companheiro, esquenta-lhes a coragem; assim apreciava que os homens valentes, distribuindo uns aos outros um zelo e uma inveja de bem fazer, teriam mais coragem e fariam maior esforço quando tivessem que combater juntos à vista uns dos outros.

(17) Leia: «a aventura de Laio não foi a causa primitiva», etc. Veja a segunda Observação sobre o mesmo capítulo.

XXXVI. Mas desde que os lacedemônios celebraram a paz e acordo com todos os outros gregos, declararam guerra só aos tebanos, indo em seu encalço o rei Cleômbroto com um exército de dez mil soldados da infantaria e mil da cavalaria. Os tebanos não estavam em igual perigo como tinham estado, antes de perder somente a sua liberdade, mas os lace-demônios os ameaçavam públicamente, declarando que os destruiriam e exterminariam por completo, de maneira que todo o país da Beócia estava com muito medo, como nunca tinha estado. Um dia, como Peló-pidas saía de sua casa para ir para a guerra, sua mulher, que o acompanhava até fora da porta, disse-lhe chorando que lhe pedia para ter cuidado em salvar sua pessoa, respondeu-lhe: —- "É aos soldados rasos, minha amiga, a quem se deve lembrar isto, mas aos capitães, deve-se trazer-lhes à memória que tenham olhos para salvar a vida dos outros". Chegando ao campo e encontrando os capitães gerais e chefes do exército em divergência de opiniões foi o primeiro que concordou com a de Epaminondas, que era de aviso que deviam dar batalha aos inimigos.

XXXVII. Pelópidas não era na ocasião nem governador da Beócia, nem capitão-geral, mas somente comandante da tropa sagrada. Todavia, confiavam nele, dando-lhe crédito e autoridade no conselho dos negócios, pois era um personagem que havia dado muitas provas do amor que devotava a seu país. Assim, tendo resolvido no conselho que dariam a batalha aos inimigos, encontraram-se uns na frente dos outros na planície de Leutres (18), onde, à noite, dormindo, Pelópidas teve uma visão que o perturbou bastante. Há, naquele campo, as sepulturas das filhas de um Cedaso, que denominam, por causa do lugar, as Leutridas, porque aí foram enterradas depois de terem sido violentadas e forcadas pelas hostes espartanas que passavam. Este ato sendo infeliz e malvado, no entanto, não pôde ter reparação nem vingança na Lacedemônia e o pai, depois de haver amaldiçoado os lacedemônios com as mais horríveis e execráveis maldições e pragas que podia conhecer, matou-se a si mesmo sobre os túmulos de suas filhas. Tinham os lacedemônios em diversos oráculos e diversas profecias e presságios dos deuses que os admoestavam, para que ficassem em guarda contra o furor Leutriquio, mas o povo comum não compreendia o que queria significar esse aviso e assim abusavam no equívoco do nome, porque havia no país da Lacônia, sobre a borda do mar, uma cidadezinha chamada Leutrum e igualmente também na Arcádia, perto da cidade de Megalípolis havia uma outra com o mesmo nome. Ora, este acidente surgiu muito tempo antes da batalha de Leutres mas, Peló-pidas, dormindo na sua tenda, teve uma visão em que julgou ver as filhas de Cedaso, lacrimejantes à volta de suas sepulturas, amaldiçoando os lacedemônios e viu também seu pai, que lhe ordenava em sacrificar a suas filhas, uma virgem ruiva, se quisessem obter a vitória. Essa ordem à primeira vista, pareceu-lhe cruel e inócua, porque logo que se levantou foi comunicar aos adivinhos e aos chefes do exército, o que uns disseram que não era coisa que deviam omitir ou desleixar, citando exemplos de casos semelhantes, como o de Meneceo, filho de Creon, antigamente, e o de Maçaria, filha de Hércules: e, de mais recente memória, a do sábio Ferecides que os lacedemônios mataram e do qual seus reis guardam ainda a pele, por ordem de um oráculo e Leônidas que seguindo uma divina profecia, imolou-se, como maneira de dizer, a si mesmo para a salvação da Grécia e ainda mais, os rapazes que Temístocles, antes da jornada de Salamina sacrificou à Baco, denominado Omestes, isto é, comendo carne crua. Todos aqueles sacrifícios foram aprovados e aceitos pelos deuses, como testemunham as vitórias que se seguiram.

(18) Deu-se esta batalha no segundo ano da centésima-segunda Olimpíada, 371 anos antes de J. C.

XXXVIII. Ao contrário, o rei Agesilau, partindo dos mesmos lugares, de onde antigamente partira o rei Agamenon, no tempo da guerra de Tróia e marchando contra os mesmos inimigos, viu igualmente, uma noite, dormindo, a deusa Diana na cidade de Aulide, que pediu o sacrifício e oblação de sua filha. Êle não quis obedecer por ter o coração muito terno e assim foi constrangido a desistir da viagem, antes de haver executado seu empreendimento, sem nenhuma glória. Agora, os outros em oposição, diziam que não precisava fazer coisa alguma, porque um tão cruel, tão abominável e tão bárbaro sacrifício não podia ser agradável a nenhum dos deuses nem a nenhuma entidade melhor e mais poderosa que a nossa, considerando que não são nem Tifões nem gigantes os que têm o domínio do mundo, mas o todo poderoso, que é o pai dos deuses e dos homens. E a crer que haja deuses e semideuses que se deleitam com o assassínio e efusão de sangue humano, é uma loucura, e mesmo que assim fosse, não deveria ser levado em conta, pois não teriam poder algum, porque somente uma alma covarde e má, poderia alimentar tão infelizes e estranhos apetites.

XXXIX. Estavam assim, os principais do exército dos tebanos neste debate de opiniões, encon-trando-se Pelópidas, devido a sua irresolução, em maior dúvida do que nunca, quando uma potranca, que havia fugido e corrido através do campo, veio postar-se direito na frente deles. Uns não observaram que tinha o pêlo e as crinas vermelhas muito reluzentes e que era viva e alegre ao soltar seu claro e arrogante relinchar, mas o adivinho Teócrito que era da companhia, tendo incontinenti compreendido o que se dava, exclamou subitamente muito alto: — "Ó gentil Pelópidas, eis a hóstia que pediste, não procures mais outra virgem para imolar, mas recebe e emprega esta que deus mesmo te envia". Ditas essas palavras, pegaram logo a potranca, levando-a sobre a sepultura das filhas de Cedaso, coroaram-na com festões e chapéus de flores, como fazem nos sacrifícios e, depois de haverem feito suas orações e invocar aos deuses, sacrificaram-na com grande alegria e foram espalhar por todo o acampamento a notícia da visão que Pelópidas havia tido à noite, dormindo, e o sacrifício que haviam feito seguindo o seu aviso.

XL. Na espera, quando chegou o dia da batalha, Epaminondas, que era o capitão geral, estendeu de revés todas suas tropas sobre o lado esquerdo, a fim de que a ponta direita dos inimigos, onde estavam os nativos espartanos, se agastasse ainda mais dos outros gregos seus aliados, que ficaram na outra extremidade, podendo assim atacar com todas as suas forças juntas, a Cleômbroto, seu rei, que estava num canto onde podia ser aniquilado. Os inimigos compreendendo porque êle assim procedia, começaram, a mudar suas ordens, querendo alargar e estender sua ponta direita para envolver Epaminondas com o grande número de gente que aí se achava. Mas Pelópidas avisou-os às pressas e correndo com firmeza com o esquadrão de seus trezentos homens, foi fazer carga a Cleômbroto antes que pudesse abrir e alargar a ponta direita de sua tropa, isto, num instante, de sorte que encontrou os lacedemônios ainda não colocados em suas linhas, e chocou-se com eles nessa deserdem, quando estavam ainda misturados uns aos outros. Os lacedemônios, que sempre foram os soberanos e senhores de tudo o que pertence à arte e disciplina militar, agora não se habituavam e não se exercitavam em nada mais do que se atrapalhar e confundir-se, quando mudava a ordem de suas filas, pois queriam que sua gente fosse cabeça e

Flanco em todos os sentidos, ao mesmo tempo, segundo o negócio e a necessidade que se apresentassem e que se colocassem e combatessem em todos os lugares igualmente. Assim Epaminondas assaltou-os com tôda a força de sua gente unida, sem se deter com os outros. Igualmente Pelópidas, com uma rapidez e coragem incríveis, apresentando-se de súbito com as armas à sua frente, assustaram de tal forma o inimigo que os fizeram esquecer toda sua arte de esgrimir e perder sua costumeira coragem, pois fugiram por vales e caminhos, sendo feita a seguir uma fogueira dos nativos espartanos, muito maior do que jamais havia sido feita até aquela jornada, em qualquer batalha.

XLI. Pelópidas, que não era então nem governador da Beócia, nem capitão-geral do exército, mas somente chefe da tropa sagrada, conquistou, no entanto, tanta honra e glória nesta vitória, como Epaminondas, que era governador da Beócia e capitão-geral. É verdade que desde que foram os dois juntos governadores da Beócia, quando entraram no Peloponeso, onde dirigiram a rebelião contra os lacedemônios, trazendo para seu lado a maior parte das cidades e dos povos, como os helenos, os argenos, toda a Arcádia e a maior parte da Lacônia mesmo, quando chegou quase no coração do inverno, nos dias mais curtos e no fim do último mês do ano, do qual não restava mais senão poucos dias e seria necessário logo na entrada do mês seguinte deixassem seus cargos para que outros entrassem, sob pena de perder a vida se recusassem passar seu cargo e autoridade aos novos oficiais. Nessa ocasião, seus outros companheiros na situação de governadores da Beócia, tanto pelo receio de incorrer na pena da lei, como também para fugir ao trabalho de ficar acampado no mais áspero rigor do inverno, instavam e solicitavam para reconduzir o exército para casa, mas Pelópidas foi o primeiro que concordou com a opinião de Epaminondas, chamando a si também os outros tebanos para, sob suas ordens, assaltar a própria cidade de Esparta. Passaram despercebidos o rio Eurotas e tomaram diversas cidadezinhas aos lacedemônios, pilharam e estragaram todo o país até o mar, conduzindo sob suas bandeiras um exército de setenta mil combatentes, todos gregos, do qual os tebanos não faziam nem a décima-segunda parte, mas a glória e grande reputação desses dois personagens fazia que sem outra resolução do conselho ou ordem pública, os outros aliados e confederados seguissem, sem contradizer uma palavra e marchassem voluntariamente sob suas ordens.

XLII. A primeira e soberana lei da natureza, a meu ver, é que aquele que por si mesmo não se possa guardar e defender, submeta-se ao que pode e tem meios para o fazer, nem mais nem menos do que sobre o mar, aqueles que estão dentro de um navio, mesmo com bom tempo, e o mar calmo, ou enquanto estão ancorados em alguma boa enseada, conduzem-se altivos e audaciosos para com os pilotos, todavia, assim que a tormenta se levanta, vendo-se em perigo, lançam os olhos sobre eles e não depositam esperança de salvação senão neles. Também em caso idêntico os helenos e argenos, ainda que nas assembléias do conselho brigassem e discutissem contra os tebanos pela superioridade e a honra na direção da tropa, todavia quando tinham que entrar na batalha, conhecendo o perigo que havia, colocavam-se e submetiam-se voluntariamente às ordens de seus capitães.

XLIII.Nessa viagem, juntaram-se numa só aliança todas as cidades da província da Arcádia e tiraram dos lacedemônios toda a região de Messênia, da qual se aproveitavam sossegadamente, chamaram os antigos habitantes nativos, aos quais a devolveram e repovoaram a cidade de Itome. Depois, voltando a seu país pela cidade de Cencréia, derrotaram os atenienses que foram inquietá-los dentro do estreito, na entrada do Peloponeso, para vigiá-los e evitar a passagem. Se era a virtude desses dois personagens amada e honrada de todo o mundo por tantos belos e bons feitos, a sua prosperidade era também grandemente admirada, mas a medida que sua glória crescia, a inveja dos de seu país e de seus concidadãos aumentava também, tramando à sua volta, um aran-zel que não era bonito nem honesto, nem conveniente aos serviços que acabavam de praticar, pois todos os dois, a sua chegada, foram chamados perante a justiça e acusados de crime capital, porque havia em Tebas uma lei que ordenava expressamente que aqueles que eram governadores da Beócia, transmitissem sem demora as atribuições aos que fossem, novamente eleitos na entrada do primeiro mês do ano que denominam na Beócia, boucation, e eles haviam retido seus cargos por mais tempo do que lhes estava fixado, quatro meses todos inteiros, durante os quais haviam executado tudo o que dissemos, tanto na província de Messênia e de Arcádia, como na Lacônia.

XLIV. O primeiro a quem processaram foi Pelópidas, que por isso esteve em perigo muito maior. Todavia, no final, foram todos os dois absolvidos. Quanto a Epaminondas, suportou resignadamente a calúnia e o ensaio das maledicências de seus patrícios que procuraram arruiná-los, considerando que a paciência daqueles que se intrometem nos negócios de um governo, tem uma grande parte da força e da magnitude. Pelópidas, sendo de natureza mais colérica, sendo mais impulsivo e estando irritado por alguns de seus amigos, aproveitou tal ocasião para se vingar. Menéclides, o orador, era um daqueles que haviam ficado na casa de Caron com Pelópidas e Melon, mas não o honraram tanto como aos outros, pelo que, estando despeitado e sendo homem muito eloqüente, viciado e de natureza maligna e má, abusou de sua eloqüência para caluniar e, falsamente, depôs e acusou esses que valiam mais do que êle; não se contentando com a primeira acusação, tanto fêz em seus meneios, que num ano conseguiu depor Epaminondas do ofício de governador da Beócia, perseguindo-o e contrariando-o longamente em tudo que experimentava fazer na direção da coisa pública.

XLV. Mas a Pelópidas, não conseguiu colocá-lo no desagrado do povo, por isso procurou lançá-lo em questão com Caron, pois o conforto comum dos invejosos, quando não podem ser admirados, como pessoas de bem como aqueles a quem invejam, procuram demonstrar que não são em nada melhores do que quaisquer outros que se lhe ponham na frente. Não fazia outra coisa senão elogiar bem alto, ordinariamente, em todas as suas arengas perante o povo, os feitos e gestos de Caron e enaltecer suas vitórias, mesmo aquela que os tebanos ganharam na jornada de Leutres num encontro da cavalaria, junto da cidade de Platéia, sob seu comando, da qual (19) se procurou deixar uma lembrança. An-drócides, pintor ciziceno, combinou com os da cidade pintar qualquer outra batalha, fazendo este serviço na cidade mesmo de Tebas, mas assim que havia começado, surgiu a rebelião dos tebanos contra os lacedemônios e, conseqüentemente, a guerra tendo o pintor se retirado de Tebas deixando sua obra quase acabada e perfeita. Os tebanos esconderam o quadro e esse Meneclides colocou-o na frente do povo que o dependurou em algum templo ou lugar público, com uma inscrição que diz que era a vitória de Caron, procurando assim ofuscar e apagar a glória de Pelópidas e de Epaminondas. Era uma vã e louca ambição querer confrontar tantos combates e tantas vitórias a um só encontro de Caron, no qual morreu Gerandas, um dos menos famosos fidalgos de Esparta e outros quarenta com êle, e mais nada.

(19) Meneclides.

XLVI. Pelópidas acusou esse decreto que Meneclides propunha, que estava diretamente contra as leis de Tebas, as quais defendiam expressamente que não honrassem nenhum particular pelo título de uma vitória pública, porque deviam ser atribuídas e glorificadas a comunidade e o povo. É verdade que por todas as arengas que proferiram neste processo, Pelópidas louvou e exaltou sempre Caron grandemente mas provou que Meneclides era um invejoso maligno e um homem mau e malvado, perguntando constantemente aos tebanos se não haviam feito nada de belo, nem de bom e, finalmente, fazendo condenar Meneclides a multa de uma boa soma de dinheiro, a qual não podendo pagar porque era muito grande, tentou depois remover e mudar inteiramente o estado e o governo da coisa pública. Procurei explicar bem isso de maneira um tanto longa, porque parece-me que de outra forma daria a conhecer quais eram os costumes e a natureza de Pelópidas.

XLVII. De resto, por volta desse tempo, Alexandre, o tirano de Feres, fazia abertamente a guerra a diversos povos da Tessália e procurava os meios pelos quais pudesse escravizá-los todos universalmente, a si. Por esta razão as cidades francas enviaram seus embaixadores a Tebas, a requerer que lhes enviasse um capitão com um exército para socorrê-los. Pelópidas, vendo que Epaminondas estava ocupado em governar os negócios do Peloponeso, apresentou-se a si mesmo, entregando-se aos da Tessália, não querendo que sua força e conhecimento nos misteres da guerra, ficassem ociosos ou inúteis e sabendo que o lugar onde estava Epaminondas não precisava de outro capitão. Tendo então chegado com um exército na Tessália, a cidade de Larisse entregou-se incontinenti entre suas mãos, onde o tirano Alexandre veio encontrá-lo e pedir acordo entre êle e os tessalianos, o que experimentou fazer, procurando torná-lo em vez de tirano, amável, justo e legítimo governador da Tessália; mas vendo que quando lhe faziam algumas observações era intratável e feroz, não querendo de forma alguma ficar em casa, e, ainda mais, se lamentavam das grandes crueldades que praticava, e acusavam-no por ser homem dissoluto e desordenado em todos os seus apetites e extremamente avarento, começava então a falar rudemente e a enfurecer-se, desistiu de sua intenção,

XLVIII. Nessa ocasião o tirano ocultou-se e fugiu com seus satélites e soldados de sua guarda. Pelópidas, deixando os tessalianos fora de todo temor e perigo do tirano, estando em boa paz, união e concórdia uns com os outros, foi à Macedónia, onde Ptolomeu (20) guerreava Alexandre, que retinha o reino da Macedónia, tendo todos os dois mandado chamá-lo para conhecer, compor e pacificar suas diferenças e também para ajudar aquele que estaria com a razão e contra aquele que estaria errado. Ao chegar, terminou amigavelmente todas as suas contendas, repôs os exilados por uma parte, e pela outra em suas casas e em seus bens e para segurança daquela decisão, tomou como refém o irmão do rei chamado Filipe e outras trinta crianças das mais nobres casas da Macedónia, os quais levou todos a Tebas, fazendo ver aos gregos quão longe se estendia a reputação das forças dos tebanos e a fama de sua igualdade e justiça. Foi esse Filipe que depois guerreou os gregos para lhes tirar a liberdade, mas agora sendo menino, era criado em Tebas na casa dos Pamenes. Eis porque alguns estimaram que o dito Filipe tenha sido o imitador de Epaminondas e poderia bem ser que, por acaso, tivesse aprendido com êle a ser assim pronto e de execução súbita na guerra, como foi, o que não é senão uma bem pequena parte das virtudes de Epaminondas, mas de sua abstinência, justiça, magnanimidade e clemência que eram as qualidades que o tornavam verdadeiramente grande, Filipe nem por natureza, nem por criação ou estudo tinha conservado.

(20) Ptolomeu, antes de J. C. 369 anos.

XLIX. Depois, tendo os tessalianos enviado outra vez a Tebas suas queixas contra Alexandre, o tirano de Feres, que perturbava e agitava as cidades livres da Tessália, Pelópidas foi mandado como embaixador com Ismênias, sem levar forças de Tebas, não pensando nunca que houvesse guerra, razão pela qual foi obrigado a se servir do povo do país, num caso urgente que se apresentava. Ao mesmo tempo, também foram perturbados os negócios da Macedónia porque Ptolomeu matou o rei e usurpou o reinado. Os servidores e amigos do rei morto chamaram em seu socorro Pelópidas, o qual desejando chegar logo, não levou consigo guerreiros de seu país, mas, reuniu subitamente alguns no lugar mesmo onde estava, com os quais se pôs imediatamente a caminho para ir em busca de Ptolomeu. Quando se aproximaram um do outro, este achou meios de comprar e corromper por dinheiro os soldados que Pelópidas havia trazido, fazendo-os passar para o seu lado, mas não obstante isso, temendo ainda o nome e grande reputação de Pelópidas, foi à sua frente como a uma pessoa muito maior do que êle e usando de todo o carinho, prometeu e jurou que guardaria o reino para os irmãos do rei defunto e que tomaria, por seus amigos e por seus inimigos, aqueles mesmos que os tebanos tivessem. Para garantia daquela promessa, deu como refém seu filho Filóxeno e cinqüenta de seus amigos, os quais Pelópidas enviou todos a Tebas. Mas nessa ocasião sentindo-se gravemente ultrajado peles soldados que lhe haviam feito tal traição e compreendendo que a maior parte de seus bens, suas mulheres e seus filhos estavam na cidade de Farsale, pensou que se pudesse tomá-la, o que seria um bom meio em praticar tal vingança, que queria pelo logro que lhe haviam pregado: reuniu um certo número de tessalianos e partiu, mas apenas havia chegado, o tirano Alexandre apareceu também com seu exército.

L. Pelópidas, julgando que êle vinha para se justificar e confiar-lhe as queixas que os tessalianos apresentavam contra êle, foi ao seu encontro, embora soubesse muito bem que era um mau homem e que facilmente manchava suas mãos com homicídio e sangue, mas confiava que, para a autoridade do domínio de Tebas, pela qual era enviado lícito, também pela dignidade de sua pessoa e pela sua reputação, não ousaria causar-lhe algum contratempo. Todavia o tirano, vendo-o mal acompanhado e sem armas, deteve-o prisioneiro e no mesmo instante apoderou-se da cidade de Farsale. Isto causou grande medo e terror a todos os seus subordinados, os quais pensaram bem como êle havia tido a coragem de praticar tal injustiça e com certeza não perdoaria a mais ninguém e faria o mesmo de todas as coisas e de todas as pessoas que caíssem em suas mãos, como um homem desesperado que está dando tudo por perdido. Quando os moradores de Tebas receberam essa notícia, ficaram sobremaneira ofendidos e prontamente enviaram um exército sob o comando de outros capitães e não de Epaminondas, devido a um descontentamento que estavam tendo com ele.

LI. Ora, nessa ocasião o tirano, tendo levado Pelópidas para Feres, permitiu de início, a quem quisesse, ir vê-lo e falar-lhe, pensando que lhe havia diminuído o ânimo, mas quando compreendeu o contrário, que o prisioneiro mesmo confortava os habitantes de Feres e exortava-os a terem coragem, dizendo-lhes que havia chegado a hora em que o tirano seria castigado por um só golpe de todas as suas maldades e que mandara lhe dizer, a êle mesmo, em pleno rosto, que não havia justificativas para, todos os dias, martirizar e fazer morrer de tormentos seus pobres concidadãos, que não o haviam em nada ofendido e que não fazia nada a êle, Pelópidas, porque sabia bem que jamais escaparia de suas mãos, vingando-se dele; o tirano, admirado com esta grandeza de coragem e esta constância em não temer nada, perguntou por que tinha tanta pressa e tanto desejo em morrer. Tendo ouvido isso Pelópidas respondeu-lhe: — "Isto é para que morras mais cedo, odiado dos deuses e dos homens ainda mais do que és agora".

LII. Depois destas palavras, o tirano não quis mais que pessoa de fora lhe falasse. Mas Teba, que era filha do defunto tirano Jasão e mulher de Alexandre, compreendendo a constância, firmeza de coragem e magnanimidade de Pelópidas, pelo que contavam os que o guardavam, teve vontade de vê-lo e de falar-lhe. Foi um dia visitá-lo, mas como mulher, não compreendeu, à primeira vista, a grandeza de sua coragem e a excelência oculta de seu valor, vendo-o em tal cativeiro, mas conjecturando pelo que via por fora, assim simplesmente vestido, os cabelos e a barba longos, pobremente servido e mal tratado, julgou que havia piedade em seu caso e que não estava em situação de acordo com a glória de seu nome e pôs-se a chorar de compaixão. Pelópidas, que não sabia de quem se tratava, espantou-se a princípio, mas pouco depois, quando lhe disseram quem era, então cumprimentou-a (21) pela honra de Jasão seu pai, do qual quando vivo havia sido outrora familiar e amigo. E ela lhe disse: — "Tenho grande pena de tua pobre mulher, senhor Pelópidas". "Também tenho eu de ti, respondeu-lhe, visto que não sendo prisioneira possas suportar um homem tão mau como Alexandre". Estas palavras tocaram fundo em Teba, a qual suportava muito impacientemente a crueldade, o ultraje e a vilania do tirano seu marido, que além de outras infâmias de sua vida desordenada, abusava carnalmente da mais jovem das irmãs dela, pelo que, voltando constantemente a ver Pelópidas, contava-lhe livremente suas tristezas e as faltas e ultrajes que lhe praticava seu marido. Com essa convivência, ia pouco a pouco se enchendo de coragem, como também aumentavam seu ódio, seu rancor e o desejo de vingar-se.

(21) No grego: «pelo nome de Jasão seu pai>. C.

LIII. Os capitães tebanos enviados para libertar Pelópidas, tendo entrado com seu exército na Tessália, seja por ignorância ou por infelicidade, vergonhosamente voltaram sem nada fazer. Em razão disso, os de Tebas, na sua volta condenaram cada um a pagar a multa de dez mil escudos (22) e enviaram então Epaminondas com um outro exército, a vista do qual toda a Tessália se revolucionou, dada a reputação de um tão grande capitão. Assim, era preciso bem pouco, para empurrar a roda e fazer estrebuchar o tirano em ruína total. Até os seus amigos e capitães ficaram amedrontados e seus súditos prontos a se rebelar, alegres pela esperança que tinham, de ver bem cedo o ditador pagar a pena toda que merecia, pelo golpe de tanta desgraça e perversidade que havia cometido no passado. Todavia, Epaminondas, colocando a libertação e salvação de Pelópidas em primeiro plano, diante da consideração de sua honra e de sua glória e receando que Alexandre quando visse seus negócios em perigo de ruína não voltasse, no seu desespero, como um animal selvagem assustado, de encontro a êle, ia prolongando a guerra, volteando ao redor, sem dar entrada conscientemente, sob pretexto de fazer seus preparativos e transferindo sempre, a fim de preparar e moderar o coração do tirano por um tal contrapeso, nem tão pouco não largou muito a rédea à sua arrogância e desenfreada crendice. Procurou também não irritá-lo contra Pelópidas, que correria o risco da dureza e desumanidade de seu ódio, sabendo muito bem como era homem cruel e que não se preocupava com razão nem com justiça, de maneira alguma, pois costumava mandar enterrar homens vivos e cobrir outros com peles de ursos e de javalis e depois soltava os cães de caça sobre eles, que os rasgavam em pedaços ou então, êle mesmo, como passatempo, matava-os a golpes de dardo ou seta. E nas cidades de Meliboe e Escotuso, estando as duas em paz e amizade com êle, espreitou quando os habitantes estivessem um dia reunidos em conselho da cidade, atacou-os de repente com seus apaniguados e mandou passar todos ao fio da espada, até as crianças, tendo consagrado e coroado com festões e flores *a lança com a qual havia morto Polifrão, seu próprio tio, sacrificando-o como se fosse um deus e chamando-o Ticon, como quem dissesse, feliz em bem assentar. E, uma vez, estando em um teatro onde desempenhavam a tragédia das Troadas de Eurípides, saiu e mandou dizer aos que representavam que não deixassem de trabalhar tão diligentemente como se êle tivesse ficado e que não tinha saído, porque se zangara ou não achara sua representação satisfatória, mas porque tinha vergonha que seus concidadãos o vissem chorar ao ouvir representar as desgraças de Hecuba e de Andrômaco, visto que não havia tido jamais piedade de nenhum de todos aqueles que havia mandado matar. Pois este tirano, apesar de tudo, assustou-se somente com o nome e a reputação de Epaminondas; e, como dizem num provérbio comum:

Abaixou a asa assim como o galo
Que sai fugindo da briga.

Enviou incontinenti mensageiros à sua presença para se desculpar e justificar, mas Epaminondas não quis que por seu intermédio os tebanos, tratassem paz nem aliança com um homem tão mau, mas concedeu uma trégua por trinta dias, retirando de suas mãos Pelópidas e Ismênias, com os quais voltou a Tebas.

(22) Ê um erro de Amyot: No grego: mil dracmas.

LIV, Os tebanos, sendo avisados de que os lacedemônios e os atenienses enviavam embaixadores à presença do grande rei da Pérsia para obter sua aliança, enviaram da sua parte também Pelópidas, no que foram sabiamente aconselhados pela grande glória de seu nome. Passando primeiramente pelos países e províncias que deviam obediência ao rei, onde era tão famoso que não falavam senão dele, dada a fama das batalhas que havia ganho contra os lacedemônios e que havia penetrado adiante e atravessado as regiões da Ásia; e depois que a primeira notícia da jornada de Leutres foi trazida, juntando proezas sobre proezas, sua glória cresceu de tal modo que se expandiu por tudo, até as mais altas e mais distantes províncias do Oriente. Assim, quando chegou à Corte da Pérsia, os senhores, príncipes e capitães que o viram, tomaram-no com grande admiração dizendo: — "Eis aquele que tirou aos lacedemônios o domínio da terra e do mar e que alinhou até do outro lado do rio Eurotas e da montanha Taigeto (23) os espartanos, os quais há pouco tempo guerreavam o grande rei da Pérsia, scb o comando de seu rei Agesilau, até o meio da Ásia, para os reinados de Susa e de Ecbátana".

LV. Estava o rei Artaxerxes muito contente mesmo com a sua vinda, elogiando-o mais altamente e colocando-o ainda em maior estima e muito maior reputação do que nunca, pelas honras que lhe tributava desejando mesmo que esta glória o acompanhasse sempre e que os personagens mais virtuosos e mais excelentes do mundo deviam fazer-lhe a corte, porque consideravam sua grandeza e sua altivez soberanamente feliz. Além disso, quando o viu à sua frente e ouviu os seus conceitos, achou-os mais graves do que os dos atenienses e mais sinceros do que os dos lacedemônios, amando-o ainda e tomando uma afeição verdadeiramente real para com êle, de tal forma, que sem nada dissimular, honrou-o e favoreceu-o acima de todos os outros embaixadores, os quais bem se aperceberam que se fazia mais caso dele do que de nenhum outro. Como parecesse ao rei dever maior apreço a Antalcidas Lacedemônio, do que a qualquer outro dos gregos, um dia estando à mesa, tirou de sua cabeça o chapéu de flores que trazia e molhando-o êle mesmo em um licor de perfume, enviou-lho. É bem verdade que não fêz a Pelópidas demonstrações de tão grande intimidade, mas enviou-lhe presentes os mais belos e mais ricos que soube enviar e concedeu-lhe inteiramente todos os seus pedidos que foram: "Que todos os povos gregos ficassem livres e libertados, que a cidade e região de Messênia fossem repovoadas, que os tebanos fossem nomeados os velhos amigos hereditários dos reis da Pérsia".

(23) Taigeto, montanha vizinha de Esparta.

LVI. Obtendo esta resposta, Pelópidas voltou sem aceitar receber coisa alguma senão os presentes que lhe haviam sido ofertados da parte do rei (24), o que foi causa a que os outros embaixadores gregos ficassem malvistos em suas cidades. Entre os outros, os atenienses processaram o seu, que se chamava Timágoras, que foi condenado a morte e executado. E assim recebeu muitos presentes do rei, justamente, pois não aceitou somente de ouro e de prata tanto quanto queriam dar, mas também um leito muito rico e criados de quarto persas, para o servirem como se os gregos não o soubessem fazer; ainda mais, recebeu também oitenta vacas leiteiras e vaqueiros para as guiar, o que lhe foi útil, pois teve necessidade do leite de vaca na cura de uma enfermidade que lhe sobreveio. Por esta razão foi conduzido desde a corte persa até a costa do mar Mediterrâneo numa liteira a braços, sendo dado, da parte do rei, àqueles que o levaram, dois mil e quatrocentos escudos como seu salário. Todavia, parece que não foram as dádivas que recebeu, que mais irritaram os atenienses, levando em conta que Epícrates o carregador, não somente confessou em público haver aceito presentes do rei da Pérsia, mas disse ainda mais que queria propor e levar avante um decreto que em vez de elegerem todos os anos, nove oficiais (25) que mantinham o governo da cidade, elegessem nove embaixadores dos mais pobres e dos mais adoentados que houvesse entre a plebe, para os enviar como embaixadores à presença do rei, a fim que voltassem ricos com presentes que lhes daria. O povo não fêz senão rir, mas ficaram invejosos porque os tebanos haviam obtido tudo o que haviam pedido, não levando em consideração quanto a estima e reputação de Peló-pidas havia sido de mais eficácia e força do que todos os falatórios que os outros fizeram, mesmo em face de um príncipe que procurava sempre considerar esses gregos que eram os mais poderosos nas armas. Esta embaixada, portanto, aumentou grandemente o amor e benevolência que todo o mundo tinha a Peló-pidas, por causa da restauração e repovoamento de Messênia e a libertação de todos os outros gregos.

(24) Juntai segundo o grego: «que o que podia ser visto como um penhor de favor e de benevolência–. C.
(25) Arcontes. C.

LVII. Mas Alexandre, o tirano de Feres, tendo voltado ao seu natural ríspido, destruiu diversas cidades da Tessália, pôs guarnições por todo o país dos Ftiotes, aqueanos e magnesianos. Tão logo as cidades souberam da volta de Pelópidas, despacharam incontinenti seus embaixadores a Tebas para solicitar que lhes enviasse um exército, e Pelópidas especialmente como seu capitão para as libertar da escravidão do tirano. Os tebanos acederam bem voluntariamente e todas as coisas ficaram prontas em pouco tempo. Mas no momento em que Pelópidas quis partir, repentinamente, o sol eclipsou-se (26) e em pleno dia ficou toda a cidade de Tebas obscurecida nas trevas, pelo que Pelópidas vendo todo o mundo assustado por este sinal e presságio celeste, não quis obrigar seus concidadãos a partir com este temor, nem com tanta esperança colocar ao acaso sete mil burgueses tebanos que estavam arrolados para irem nesta viagem, mas deu-se a si mesmo aos tessalianos com trezentos cavaleiros estrangeiros que o seguiram de boa vontade, na companhia dos quais se pôs a caminho contra a proibição dos adivinhos e contra a vontade de seus concidadãos mesmos, aos quais parecia que este sinal do céu ameaçava algum grande personagem, como êle. Êle, porém, estava mais ardentemente desejoso de ir ao encontro de Alexandre, pela vontade que tinha de se vingar da injúria que lhe havia feito. Ainda esperava êle muito mais, que encontraria sua casa em condições favoráveis à derrota do inimigo, pela conversa que havia tido com a mulher Teba. Todavia, a beleza do ato em si era o que mais o incitava e aguilhoava e por isso esforçava-se para fazer ver aos gregos ao mesmo tempo que aos lacedemônios, que enviavam a Dionísio, tirano da Sicília, governadores e capitães para o servir e que os atenienses, como mercenários recebiam dinheiro e soldo de Alexandre, o tirano de Feres, em honra do qual haviam levantado dentro de sua cidade uma estátua de cobre como a um benfeitor, que só os tebanos, ao contrário, tomavam as armas para libertar os que estavam oprimidos pelos tiranos e combatiam para exterminar e retirar os usurpadores do domínio violento e iníquo dentre os gregos.

(26) Éste eclipse chegou 364 ou 365 anos antes de J. C.

LVIII. Tendo chegado à cidade de Farsale, logo que reuniu seu exército, pôs-se logo em campo para ir à procura do tirano, o qual vendo que Peló-pidas tinha poucos soldados à sua volta e que êle se encontrava com um número duplicado de gente, foi até o templo de Tétis, onde alguém disse a Pelópidas que Alexandre vinha ao seu encontro com numerosos combatentes e Pelópidas respondeu-lhe rápido: — "Tanto melhor, pois assim venceremos mais gente." Ora, há no centro desta planície outeiros redondos e bastante altos, que chamam comumente as cabeças de cão e trataram uns e outros de alcançá-los mais depressa. Pelópidas, que contava com cavalaria e bons guerreiros, enviou-os na frente para aniquilar os inimigos que pensassem alcançar esses outeiros e, tendo-os aniquilado, puseram-se a persegui-los através da planície. Entretanto, Alexandre com infantaria ali perto, marchou na frente e ocupou os ditos outeiros porque os tessalianos que estavam mais longe chegaram muito tarde. Todavia, chegados, aí ficaram e trataram de escalar pelo lado contrário os declives desses outeiros, que eram altos e retos, mas Alexandre, fazendo carga do alto, com vantagem, matou esses que avançavam primeiro e os outros, que vinham atrás, retiraram-se feridos, sem nada fazer.

LIX. Vendo isso, Pelópidas chamou com urgência seus cavaleiros que estavam expulsando aqueles que haviam aniquilado e ordenou-lhes que fossem ao encontro da infantaria inimiga, enquanto êle mesmo foi, correndo, ajudar os que combatiam para alcançar os penhascos. Tomando um escudo sobre o braço e passando entre os que vinham atrás, fêz tanto que chegou até os primeiros, aos quais sua presença aumentou de tal forma a força e a coragem, que os inimigos pensaram que fossem combatentes novos que vinham fazer carga; no entanto, sustentaram ainda dois ou três ataques, mas no fim, vendo que aqueles atiravam sempre vigorosamente para a frente e a cavalaria lhes vinha por cima, entregaram-lhes .a praça e se retiraram recuando passo a passo.

LX. Assim, Pelópidas, tendo ganho os outeiros, ficou sobre o cume olhando o exército dos inimigos, o qual não estava ainda fugindo rapidamente, mas já se achava em movimento e em grande desorganização. Olhou daqui e dali, à volta toda para ver se não percebia Alexandre e, finalmente, escolheu-o entre os outros na ponta direita de sua tropa, tentando garantir sua gente. Tendo-o percebido, não pôde, com razão, dominar sua cólera, mas sentindo inflamar-se de ódio por tê-lo visto, abandonou a direção de sua empreitada e jogou-se longe, à frente de toda sua gente, gritando e chamando em alta voz o tirano para o combate. Este não ouviu, nem se apresentou para combatê-lo, mas fugiu escondendo-se entre seus guardas. Quanto aos soldados, os primeiros que pensaram em fazer frente a Pelópidas, foram por êle feitos em pedaços e ficaram muitos mortos sobre o campo, mas os outros aliando-se em tropa cerrada, dando-lhe de longe grandes golpes de lança, torceram seu corpo de couraça, ferindo-o no estômago, até que os tessalianos penalizados de vê-lo assim maltratado, correram de cima dos outeiros para socorrê-lo, mas êle já estava caído por terra quando chegaram e então todos, juntos com a cavalaria, fizeram um tão grande esforço que viraram a batalha dos inimigos em fuga e os perseguindo até bem longe de lá cobriram toda a planície de mortos, pois mataram mais de três mil (27).

(27) 364 anos antes de J. C.

LXI. Ora, não é de admirar que os tebanos presentes à morte de Pelópidas tenham ficado muito descontentes e tenham posto grande luto chamando-o seu pai, seu salvador e seu chefe, como aquele que lhes havia ensinado as mais belas e as mais honrosas coisas que souberam aprender. Mas os tessa-lianos e outros aliados e confederados de Tebas, além do que fizeram por seus editais e decretos públicos, prestaram em louvor de sua memória, toda a honra que poderia ser devida à mais excelente das virtudes humanas, demonstraram ainda mais seu amor e sua afeição para com êle pelo desgosto que sentiam e o grande luto que puseram; pois diz-se que esses que se encontravam nesta batalha, não se despojaram de suas armas, não desenfrearam seus cavalos nem fizeram pensar suas feridas, quando ouviram a notícia da morte de seu chefe antes de irem primeiramente junto do corpo, ainda todo quente que estava do combate, juntando à volta grande quantidade de despojos dos inimigos, como sinal de sentimento e de luto. Cortaram seus cabelos e as crinas de seus cavalos e houve ainda muitos que depois de terem se retirado para suas tendas e pavilhões, não quiseram acender o fogo, nem beber nem comer e por todo o campo um triste e morno silêncio como se não tivessem ganho uma bela e gloriosa vitória, mas houvessem sido derrotados e escravizados pelo tirano. Depois, quando a notícia foi espalhada por todo o país, os oficiais de cada cidade por onde o corpo devia passar com os rapazes, as crianças e os sacerdotes iam à frente para recebê-lo honrosamente, com exibição de troféus, de coroas e de armas de ouro puro.

LXII. E quando chegou o momento dos funerais, quando era preciso retirar o corpo, os mais antigos e mais notáveis personagens dentre os tessalia-nos dirigiram-se aos tebanos pedindo que lhes permitissem poderem eles mesmos, exumar, tendo um falado desta maneira: — "Senhores tebanos nossos bons amigos e aliados, solicitamos uma graça que se nos reverterá em honra e também nos confortará numa calamidade tão grande, pois não podemos nunca mais acompanhar Pelópidas vivo, nem lhe pagar as honras que de nós mereceu, mas se vós nos fizerdes esse bem em permitir que possamos tocar seu corpo com nossas próprias mãos, amortalhar e enfeitar nós mesmos as suas exéquias, pelo menos nos seria um sinal que acreditais no que firmemente cremos, que a perda é mais grave e maior para os tessalianos do que para os tebanos, pois perdestes um bom capitão mas nós não perdemos somente um bom capitão, mas também a esperança da recuperação de nossa liberdade, pois como ousaremos ainda pedir para enviar outro comandante, quando não podemos vos devolver Pelópidas?"

LXIII. Estas súplicas ouviram os tebanos, dando-lhes o que pediam. Parece-me que não poderiam ser dos mais honrosos nem mais magníficos os funerais como foram aqueles, pelo menos para aqueles que medem a dignidade, o esplendor e magnificência, não pelos ornamentos de marfim nem de púrpura como faz Filisto, que tanto exaltou e engrandeceu o enterro de Dionísio, o tirano de Siracusa, que saiu de sua tirania, como a conclusão pomposa de uma tragédia. E Alexandre, o Grande, na morte de Efestion mandou cortar não somente as crinas dos cavalos e das mulas, mas também mandou demolir as seteiras das muralhas das cidades a fim de que parecesse que mesmo as muralhas trouxessem luto tomando, em lugar de sua forma primitiva, uma demolição que trazia indício de dor e sentimento. Mas todas as coisas assim são ordens de senhores, dadas pela força e pelo constrangimento, os quais não alimentam senão inveja contra a memória daqueles para quem elas são feitas e ódio desses que são constrangidos apesar de a cumprirem, não trazendo porém testemunho de honra, nem de benevolência, mas antes são mostras de uma pompa, arrogância e vaidade bárbara, que emprega sua autoridade e o supérfluo de seus bens em coisas frívolas que não são para desejar unicamente; quando um simples homem privado, morto em país estrangeiro, onde não tinha nem mulher, nem parentes, nem filhos convidados para seus funerais, é levado e coroado por tantos povos e as cidades fazendo inveja uma a outra, procurando honrar mais sua memória, sem que pessoa alguma lhes pedisse e ainda mais as constrangesse. Com justiça, parece haver atingido tal testemunho o cume da verdadeira felicidade humana, pois a morte dos homens felizes não é muito grave, como dizia Esopo, mas é muito feliz, levando em conta que ela põe em pé de segurança as prosperidades e os bons atos das pessoas de bem, deixando a sorte variar e mudar a seu prazer. E, portanto, falou melhor, a meu julgamento, um lacedemônio que agradando um bom velho Diágoras, o qual havia, êle mesmo levantado antigamente, o prêmio dos jogos olímpicos, tendo visto coroar como vitorioso nos ditos jogos seus filhos e os filhos de seus filhos, tanto de seus filhos como de suas filhas, disse-lhe: — "Morres tu agora, Diágoras (28), pois não subirás mais ao céu".

Mas as vitórias dos jogos olímpicos e píticos, mesmo colocadas todas juntas, não têm no que comparar a uma só de tantas batalhas em que Pelópidas combateu e ganhou, tendo empregado a maior parte de seus dias na honra e na glória e finalmente tendo-as terminado como governador da Beócia pela décima-terceira vez, que era a honra suprema de seu país e tendo morrido entre aqueles tiranos que oprimiam a vida dos tebanos e sendo morto combatendo corajosamente pela recuperação da liberdade dos tessalianos.

(28) Este acontecimento é da nonagésima-sexta Olimpíada, aproximadamente 433 anos antes de J. C. Diágoras descendia de Hércules, por Tlepolema, que reinou em Rodes, antes do cerco de Tróia onde foi morto. Sua família conservou o trono mais ou menos seiscentos anos. Diágoras levantou um. grande número de vitórias nos diferentes jogos da Grécia. Foi para êle que Píndaro compôs a sétima de suas Olimpíadas, que os rodinos mandaram escrever com letras de ouro no templo de Minerva em Linde, uma das três cidades antigas da ilha.

LXIV. Mas se a morte foi desagradável aos aliados de Tebas, foi-lhes ainda de maior proveito, pois logo que os tebanos receberam a notícia, não pensaram senão em vingança e despacharam incontinenti um exército de sete mil soldados de infantaria e setecentos cavaleiros sob o comando de Maleitas e de Diogiton, os quais encontrando Alexandre derrotado e tendo perdido a maior parte de suas forças, obrigaram-no a devolver aos tessalianos as suas cidades que estavam em seu poder e deixar os magne-sianos, ftiotes e aqueanos em liberdade, retirando e suprimindo as guarnições que havia posto nas praças fortes, e também prometer e jurar que doravante marcharia sob as ordens dos tebanos contra tal ou qual inimigo ou contra quem eles ordenassem.

LXV. E quanto aos tebanos, contentaram-se com essas condições, mas eu quero, ainda mais, contar o castigo com que os deuses, tanto antes como depois, fizeram os responsáveis pagar pela morte de Pelópidas, o qual como havíamos citado acima, havia primeiramente instruído Teba, sua mulher que não devia nunca temer a aparência exterior nem o poder da tirania, ainda que Ficasse entre os satélites armados e no meio dos banidos que o tirano mantinha na sua guarda. Por outro lado, temendo sua deslealdade e odiando sua crueldade, conspirou sua morte com seus irmãos que eram três, Tisífono, Pitolau e Licofrão e executou sua conspiração desta maneira: todos os moradores do palácio onde se achava o tirano estava cheio de guardas e de soldados que guardavam a noite toda junto de sua pessoa, mas o quarto onde costumavam dormir, ficava no pavimento mais alto, na porta do qual havia um cachorro amarrado que montava a guarda e era terrível para todo o mundo, não conhecendo ninguém, somente eles dois e um criado que lhe dava de comer. Quando então quis pôr mãos a obra para a execução de seu plano, manteve um dia todos os seus irmãos fechados num quarto bem próximo ao seu e depois vindo a noite foi sozinha, como estava acostumada, ao quarto de Alexandre que já dormia e logo depois saiu ordenando ao criado que levasse o cachorro para alguma parte longe dali, porque seu marido queria descansar à vontade e sem barulho. Ora, subia-se naquele quarto somente por uma escada, a qual desceu e com receio que seus irmãos subindo fizessem barulho, cobriu-a e forrou-a com lã antes de a descer, fazendo-os assim subir com suas espadas e pondo-os diante da porta, entrou no quarto e tirou ela mesma, a espada do tirano que estava suspensa sobre sua cabeceira, que lhes mostrou, sendo esse o sinal combinado com eles para lhes dar a entender que êle dormira.

LXVI. Os rapazes ficaram assustados e afastaram-se um pouco quando chegou o momento de chegar às vias de fato. Ela se zangou asperamente com eles, chamando-os de homens covardes, visto que o coração assim lhes falhava quando necessário e lhes jurou colérica que iria ela mesma acordar o tirano e contar-lhe toda a conspiração, de tal jeito que parte por vergonha e parte por medo, obrigou-os a entrar e aproximar-se do leito, segurando ela mesma a lâmpada para os clarear. Então um deles pegou-o pelos pés apertando-os bastante, o outro atirou a cabeça para trás, segurando-a pelos cabelos e o terceiro matou-o a golpes de espada. Assim morreu mais rapidamente, por sorte e mais prontamente do que não devia. No entanto, por esta maneira foi morto, assim como suas perversidades e infelicidades o fizeram merecer, pois foi o primeiro tirano assassinado por conspiração de sua própria mulher e também pelos ultrajes que fizeram a seu corpo depois da morte, pois os habitantes de Feres, depois de o haver arrastado por toda a cidade e pisado, por fim o jogaram e abandonaram como repasto aos cães.


Fonte: Edameris 1960. Vidas dos Homens Ilustres, tomo III. Tradução
de José Carlos Chaves a partir da edição francesa de Amyot.

 

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