Continued from: Vida de Sólon, por Plutarco - Vidas Paralelas
Seguindo esse oráculo, Sólon passou uma noite em Salamina e sacrificou a Perifemo e a
Cícris, semideuses do país.. Isso feito, deram-lhe os Atenienses quinhentos homens
que se ofereceram voluntariamente e fizeram um decreto pelo qual ordenaram que,
se eles tomassem a ilha de Salamina, seriam os primeiros no governo da coisa
pública. Sólon embarcou com sua gente em diversos botes de pesca, com uma
galeota a trinta remos que o seguia atrás, e ancorou bem perto da cidade de
Salamina, abaixo de uma ponta que dá para a ilha de Negroponto. Os Mégaros que
estavam dentro de Salamina, tendo sentido não sei como algum vento, sem todavia
saberem de outro modo nada de certo, acorreram incontinenti às armas, em
desordem e tumulto, e enviaram um de seus navios para descobrir o que havia, o
qual, tendo-se aproximado demais, foi aprisionado por Sólon, que mandou prender
e ligar os Mégaros, em lugar dos quais fez embarcar naquele mesmo navio os
melhores homens Atenienses que havia
em sua tropa, injungindo-lhes que singrassem diretamente para a cidade,
conservando-se o mais ocultos e encobertos que pudessem; e, no mesmo instante,
tomando consigo o restante de seus homens, desceu em terra e foi enfrentar os Mégaros que tinham saído para os campos; e,
enquanto combatiam, os que ele enviara dentro do navio chegaram e se apoderaram
da cidade.
XIV. E
que esse relato seja verdadeiro, o que a esse respeito se representa ainda hoje
o testemunho; pois há um navio Ateniense
que chega muito quieto no começo, depois de repente os que estão dentro fazem
um grande barulho e um deles, armado, lança-se fora do barco e dirige-se
gritando para o escolho chamado Cirádion (6), situando do lado da terra, perto
do templo de Marte, que Sólon fundou após haver derrotado em batalha os
Mégaros, de onde ele devolveu, sem pagar resgate, os prisioneiros que não foram
mortos no ardor da refrega.
XV. Não obstante, os Mégaros se obstinaram em
querer ainda recuperar Salamina, até que, depois de terem causado e sofrido muitos males, aca
baram fazendo os Lacedemônios juízes e árbitros de sua causa: no qual
julgamento, a comum opinião é que a autoridade de Homero serviu a Sólon, porque
ele ajuntou à lista dos navios nomeados na Ilíada de Homero (7) estes versos
que pronunciou diante dos juízes, como tendo verdadeiramente sido assim
escritos por Homero:
Doze barcos o altivo Ajax levava
De Salamina e em linha os conservava
Com o quartel no qual os comandantes
De
Atenas alojaram seus infantes. (8)
XVI. Todavia,
os próprios Atenienses estimam
ser por isso uma história inventada e dizem que Sólon fez ver aos juízes que
Fileu e Eurisaces, ambos filhos de Ajax, tinham sido feitos burgueses de
Atenas. Por esse meio, deram eles a ilha de Salamina aos Atenienses e foram
habitar, um no lugar que se chama Bráuron, no país da Ática, e o outro no burgo
de Mélita, em testemunho do que dizem eles que ainda há um cantão da Ática que
se chama cantão dos Fileidas, do nome desse Fileu, do qual era natural
Pisístrato. E dizem mais que Sólon, querendo ainda mais amplamente convencer os
Mégaros, alegou que os de Salamina não enterravam os mortos como faziam os
Mégaros, mas como os Atenienses; pois em Mégara, são enterrados com a face
voltada para o sol levante, e em Atenas para o sol poente; todavia, Héreas
de Mégara insiste em contradizer que os de Mégara os enterravam também com a
face voltada para o sol poente, e alegou ainda mais que em Atenas cada morto
tinha um sarcófago à parte e que em Mégara eram aí postos três ou quatro
juntos. Mas dizem que houve ainda oráculos de Apolo Pítico que ajudaram Sólon,
pelos quais o deus chamava Jônia a Salamina, Essa divergência foi decidida por
cinco árbitros naturais da própria cidade de Esparta: Critolaidas, Amonfareto,
Hipséquidas, Anaxilas e Cleômenes.
(6) O grego: contra os que vêm do
lado da terra. C,
(7) Ilíada, II, 557 e 553.
(8) Em sua versão direta do grego e no metro original, publicada recentemente no Brasil pelo saudoso editor italiano Pasquale Petraccone, assim traduz o poeta Carlos
Alberto Nunes esses versos de Homero: "De Salamina Ajax trouxe,
também doze naves simétricas. Indo
postá-las a par com as falanges dos homens de Atenas." — N. do ed, bras.
XVII. Ora,
tinha já Sólon adquirido grande
glória e reputação por essa façanha; mas ainda foi mais estimado e renomeado
pela arenga que pronunciou em defesa do templo de Apolo na cidade de Delfos,
advertindo ser preciso não admitir que os Cirreus abusassem à vontade do
santuário do oráculo, e ser ainda necessário levar socorro aos Délficos em
honra e reverência de Apolo; pois o conselho dos Anfictiões, comovido por suas
advertências e razões, sentenciou a guerra contra os Cirreus (9), como vários
outros testemunham, e mesmo Aristóteles no livro que escreveu sobre os que
conquistaram o prémio nos jogos Píticos, ao atribuir a Sólon a honra de tal
sentença; todavia, ele não foi eleito capitão para conduzir a guerra, como
Hermipo diz que Evantes de Samos escrevera; pois o orador Esquines não o admite, e nos registros dos Délficos achasse que foi certo Acméon, e não Sólon, o
capitão dos Atenienses. Ora, havia já longo tempo que o crime de Cílon (10)
mantinha a cidade de Atenas em grande pena e aflição, desde o ano em que
Mégacles, sendo preboste (11) em Atenas, usou de tão belas palavras para com os
cúmplices de Cílon, que se haviam lançado na imunidade da deusa Minerva, que os
persuadiu de que estavam com o direito e de que se apresentassem a julgamento
segurando pela extremidade uma rede que ligariam à base da imagem da deusa, a
fim de não perderem a imunidade; mas, quando chegaram à mansão das veneráveis
deusas que eles dizem serem as imagens das Fúrias, descendo para irem
apresentar-se a julgamento, a rede se rompeu por si mesma e, então, Mégacles e
os outros oficiais seus companheiros os agarraram incontinenti, dizendo que era
sinal manifesto de que a deusa Minerva lhes recusava salvaguarda. Assim foram
os que puderam ser agarrados imediatamente lapidados fera da cidade, e os
outros que acorreram aos altares foram ali mortos, e não se salvaram senão os
que tiveram meio de fazer interceder por eles as mulheres dos governadores da
cidade, os quais desde esse tempo ficaram muito mal queridos do
povo e comumente chamados os excomungados,
(9) De Cirra, cidade da Fócida, perto do golfo de Corinto.
(10) Seiscentos
anos antes de Jesus Cristo, Cílon apoderou- se da cidadela de Atenas, mas foi obrigado a
fugir. Seus cúmplices foram degolados perto do altar das Eumênides. Eis o que se chama
o crime de Cílon. Vide Tucídides, liv. I, n. 126.
(11) Arconte.
XVIII. Além disso, os
descendentes dos que tinham sido dessa conspiração de Cílon recuperaram crédito
e, tendo-se tornado poderosos, jamais cessaram, depois, de ter grandes querelas
contra os descendentes de Mégacles; e aconteceu que as suas parcialidades adquiriram maior força ao tempo de Só
lon, o qual, tendo autoridade e vendo que todo o povo estava dividido nessas
duas partes, pôs-se entre ambas com os principais personagens de Atenas e fez tanto, por suas advertências e pedidos para com aqueles que se chamavam os
excomungados, que eles ficaram contentes de se submeterem a julgamento; assim
foram eleitos juízes, para conhecer do caso, trezentos homens dentre a gente de
bem da cidade, e foi acusador Míron de Fliunte, A causa foi pleiteada e, por
sentença dos juízes, condenados os excomungados: dos quais os vivos foram para o exílio, e os ossos dos executados foram
desterrados e lançados fora dos limites do território de Atenas. Os Mégaros,
entretanto, aproveitaram-se habilmente da ocorrência de tais perturbações para atacarem os Atenienses, tomando-lhes o porto de Niséia e recuperando de suas mãos a ilha de Salamina.
XIX. Ademais, toda a
cidade se achou presa de supersticioso terror, porque se falava na volta dos
espíritos e no aparecimento de
fantasmas. Os próprios adivinhos diziam que, por seus sacrifícios, notavam que a cidade estava contaminada de
alguns casos abomináveis, que
necessariamente constituíam motivo de purgação. Por essa causa, foi enviado a
Cândia, para investigar, Epimênides de Festo, que se conta o sétimo dos sábios,
ao menos entre os que nesse número não querem receber Periandro. Era um santo
homem religioso e muito entendido nas coisas celestes por inspiração e
revelação divina: em razão do que os homens de seu tempo lhe chamavam o novo
Curete, isto é, profeta, e sustenta- va-se que era filho de uma ninfa chamada
Balta. Tendo pois chegado a Atenas e contraído amizade com Sólon, ajudou muito
e preparou-lhe-o caminho para estabelecer suas leis: pois acostumou os
Atenienses a tornarem seus sacrifícios mais ligeiros e menos dispendiosos, mais
suportáveis em seu suplício, eliminando deles certas austeridades e cerimônias
barbarescas, que a maior parte das mulheres observava pondo luto, e ordenando
certos sacrifícios que ele queria se fizessem logo após as obséquias de um
defunto. Mas, o que é mais ainda do que tudo isso, acostumando a cidade à
santidade e a devoções, por sacrifícios contínuos de propiciação, por preces
aos deuses, purgações, oferendas e fundações, tornou aos poucos os corações dos
homens mais dóceis para obedecerem à justiça e mais idóneos e tratáveis para
conduzirem à união e concórdia, Conta-se também que, tendo visto o porto de
Huníquia, após havê-lo considerado longamente, disse aos que o cercavam que «o homem era bem cego nas coisas do futuro, pois que, se os Atenienses,
disse ele, soubessem quanto mal este porto aqui lhes deve acarretar, eles o
comeriam, por assim dizer, com os próprios dentes». Dizem também que Tales,
semelhantemente, predisse coisa análoga e ordenou que, quando falecesse,
enterrassem seu corpo num mau lugar do qual não se fizesse conta dentro do
território dos Milésios, dizendo que seria um dia a praça da cidade.
Epimênides, pois, gozando por essas causas de grande reputação no conceito
geral, prestaram-lhe os Atenienses grandes honras e lhe ofereceram belos
presentes com boa soma de dinheiro, mas ele nada quis aceitar e pediu somente
que lhe dessem um ramo da santa oliveira. O que lhe foi outorgado, lavrando ele
um tento.
XX. Mas,
sendo essa sedição de Cílon
apaziguada e extinta em Atenas, porque os excomungados de lá foram expulsos,
recaiu de novo a cidade nas antigas perturbações e dissensões, no tocante ao
governo da coisa pública, e se dividiu em tantas ligas e parcialidades quantas
eram as diversas espécies de territórios dentro do país da Ática: pois havia a
gente da montanha, a gente da planície e a gente da marinha. Os da montanha
eram populares para a vida; ao contrário, os da planície queriam que pequeno
número dos grandes burgueses tivessem toda a autoridade no manejo dos negócios;
e os da marinha, querendo um governo médio e composto de ambos, impediam que qualquer das partes contrárias pudesse sobrepujar a outra. Ademais, ao
mesmo tempo, a querela entre pobres e ricos, procedendo da desigualdade, estava
então no auge do seu vigor, de modo que a cidade enfrentava um perigo muito
grande e parecia não haver nenhum meio de compor e pacificar todas essas
diferenças, a não ser que se levantasse algum tirano para ocupar a monarquia e
tornar-se senhor absoluto; pois todo o povo miúdo estava tão endividado com os
ricos que, ou trabalhavam suas terras e estas lhes rendiam a sexta parte dos
frutos, e por esse motivo se chamavam Hectemorii e criados, ou deles tomavam
dinheiro emprestado com usura sobre a garantia de suas próprias pessoas, e, não
podendo pagar, ficavam adjudicados aos credores, que os mantinham como servos e
escravos em suas casas, ou então os mandavam vender em país estrangeiro; e
vários havia que por pobreza eram constrangidos a vender os próprios filhos,
porque não havia lei que o proibisse, ou a abandonar a cidade e o país pela
aspereza e crueldade dos credores usurários, até que diversos dos mais
dispostos e mais robustos se uniram e se entrecorajaram a não mais
sofrerem isso, para elegerem um capitão dentre eles, homem fiel, que fosse
livrar do cativeiro os que estivessem adjudicados como servos por não terem
pago as dívidas no dia prefixado, e que também fizesse repartir de novo todo o
território e mudar inteiramente o governo.
XXI. Então, os mais sábios da cidade, vendo que Sólon
era o único isento de culpa, porque não participava nem da iniquidade e
violência dos ricos, nem da necessidade dos pobres, pediram-lhe interviesse nos
negócios, para apaziguar e sopitar todas essas parcialidades; todavia, Fânias
de Lesbos escreveu que ele usou de um ardil, pelo qual enganou ambas as partes
em benefício da coisa pública: pois prometeu secretamente aos pobres que
mandaria de novo repartir as terras, e aos ricos que mandaria revalidar e
confirmar os contratos. Como quer.que seja, é certo que Sólon no começo hesitou
muito em interferir, temendo a cobiça de uns e a arrogância de outros; por fim,
todavia, foi eleito preboste (12) depois de Filombroto, e ao mesmo tempo
mediador e reformador das leis e do estado da coisa pública, por vontade e
consentimento das duas partes: tendo agradado aos ricos como homem que não era
necessitado, e aos pobres como homem de bem. Dizem mais que uma frase e
sentença dele, então na boca de toda a gente, que a igualdade não gera debate,
contentava tanto os que tinham recursos como os que não possuíam nada: porque
uns consideravam essa igualdade esperando que ele a medisse de acordo com a
dignidade e o valor de cada um, e os outros somente de acordo com o número e
por cabeça: de sorte que os próprios chefes de ambas as partes o admoestavam
e solicitavam-lhe que ousadamente assumisse
o principado, visto como tinha na mão
toda a cidade; e os que não eram de uma nem de outra liga, vendo ser bem
difícil pacificar as coisas com a lei e a razão, não estavam descontentes de
que o mais sábio e melhor homem exercesse sozinho a autoridade soberana; e,
assim, há os que dizem ter havido mesmo tal oráculo de Apolo:
Toma assento na popa e tua mão
Segura firme e intrépido o timão
Para reger
Atenas, a cidade
Onde possuis dos teus a atividade.
(12) Arconte.
XXII. Mas
sobretudo os familiares e amigos o instavam dizendo que ele seria bastante
besta se, por medo somente de ser chamado tirano, deixasse de aceitar a monarquia,
a qual se torna incontinenti justo reinado quando aquele que a exerce é homem de bem: como outrora Tinondas se fez
rei do Negro- ponto pelo consentimento do povo, e agora Pítacd o é dos
Coríntios. Não obstante, todas essas belas razões, jamais puderam fazê-lo sair
de sua resolução; e dizem que respondeu aos amigos que «o principado e tirania
era bem um bonito lugar, mas que não havia por onde sair depois de nele ter
entrado»; e, num poema que escreveu a Foco, diz:
Se deixei de ultrajar o meu país
Usurpando um governo que não quis
Fosse de tirania e principado,
Por força iníqua e mando exacerbado,
Deslustrando meu nome e
meu talento,
Não há motivo de arrependimento,
E nisso espero haver ultrapassado
Os homens do presente e do passado.
Por onde aparece que, ainda antes de ter sido eleito
reformador do estado, para estabelecer leis novas, já era tido em grande reputação e possuía muita
autoridade; mas ele próprio escreveu o que vários diziam dele após ter recusado
a ocasião de usurpar a tirania:
Sólon um louco foi desabusado,
Por haver dessa forma rejeitado
Aquele grande oráculo divino.
Puxar a si não soube, astuto e fino,
A rede com a presa já segura.
E o motivo se vê de tal loucura
Somente em seu falido coração
E no cérebro
cego de razão;
Pois que ser deveria, sem favor,
De Atenas rei e dos seus bens
senhor,
Mesmo que depois, vivo o
esquartejassem
E até parentes seus despedaçassem.
XXIII. Eis
como imaginou o homem comum falando a seu respeito; mas, tendo recusado a
monarquia, não se portou por isso
mais mole nem mais frouxamente no
governo dos negócios e nem vergou
com medo dos mais poderosos, nem acomodou suas leis ao grado e à vontade dos
que o elegeram reformador; e também não extirpou o mal ao vivo, nem remodelou o
estado da maneira que teria sido mais expediente, por temer que, tentando
reformar de alto abaixo todo o governo da cidade, não tivesse depois bastante
poder para assentá-la de novo e restabelecê-la na melhor forma: portanto,
modificou somente o que esperava persuadir pela razão ou fazer aceitar pela
força aos seus concidadãos, misturando, como ele próprio disse, a força com a
justiça. Ao que se acorda o que depois respondeu a alguém que lhe perguntara se
havia estabelecido as melhores leis possíveis para os Atenienses: «Sim, disse
ele, tais como as receberiam.» E o que mais tarde se observou na língua dos
Atenienses, que adocicam a dureza de certas coisas odiosas em si mesmas,
cobrindo-as e diminuindo com doce e graciosos nomes, como quando chamam às
putas, amigas; às talhas, contribuições; às guarnições das cidades, guardas; à
prisão, casa — surgiu isso primeiramente da invenção de Sólon, o qual chamou à
abolição das dívidas «Seisachtheian», que equivale a dizer desencargo.
XXIV. Pois a primeira
inovação e reforma que fez do
governo da coisa pública foi ordenar que «todas as dívidas passadas seriam
abolidas, de sorte que no futuro não mais se poderia reclamar nada aos devedores; e ninguém mais poderia emprestar dinheiro com usura sob
obrigação do corpo». Todavia, há quem escreva, como entre outros Andrócion, que
os pobres se contentaram de que as usuras fossem apenas moderadas, sem que as
dívidas fossem abolidas e anuladas inteiramente, e que Sólon chamou
«Seisachtheian» a esse desafogo e a esse gracioso desencargo, com o aumento das
medidas e do valor das moedas; pois fez que a mina de prata, que antes não
valia mais de setenta e três dracmas (13), valesse cem, de maneira que os que
tinham a render grande soma de dinheiros vinham a pagar em estimação e valor
tanto quanto deviam, e não tanto em número de peças (14); assim, os devedores ganhavam muito e os credores nada
perdiam. Não obstante, a maior parte dos que escreveram a esse respeito diz que
tal desencargo foi uma recisão geral e universal e uma abolição de todos os
contratos, com o que parecem concordar os próprios poemas de Sólon, pois se
gaba e glorifica, em seus versos (15), «de haver tirado todos os limites que
antes faziam as separações das herdades em todo o território da Ática (16) a qual diz ter
libertado, quando antes era serva; e dos burgueses de Atenas, que por falta de
pagamento estavam adjudicados como escravos aos seus credores, trouxera, uns de
países estrangeiros onde por muito tempo tinham sido vagabundos e que tinham
esquecido ao falarem a língua natural Ateniense, e os outros, reduzidos no país
a um cativeiro de miserável condição, a todos libertara.»
(13) A mina de Atenas, antes da reforma de Sólon, era de 75
dracmas. Essas 75, ou essas 100 dracmas, valiam 77 libras francesas
(14) Há aqui uma transposição que Ruauld notou bem- É
preciso corrigir: "de maneira que os que tinham a render grande soma de
dinheiros vinham pagar em número de peças tanto quanto deviam, e não tanto em
valor", isto é, em peso e em valor intrínseco.
(15) Nas
Observações
sobre o cap. XXIV achar-se-á uma tradução
desses versos, que Aristides nos conservou mais completos.
XXV. Mas,
assim fazendo, dizem que interveio um caso que o irritou e desgostou bastante:
pois, quando estava a ponto de publicar o édito pelo qual cassava e anulava todas as dívidas,
não restando senão deitá-lo em bons termos e dar-lhe honesto começo,
descobriu-se a alguns de seus amigos de maior confiança e com os quais tinha
mais familiaridade, Cônon, Clínias e Hipõnico, e lhes disse que não.tocaria nas
terras nem herdades, mas que anularia toda espécie de dívidas; eles,
incontinenti, antes que o édito fosse publicado, foram tomar em prestada daqueles que estavam cheios de. pecúnia grande soma de dinheiros, com a qual
compraram herdades; depois, quando o édito foi publicado, retiveram muito bem
as herdades e não restituíram o dinheiro que haviam tomado de empréstimo. Isso
provocou grande barulho contra Sólon e fez com que fosse muito caluniado, como
se ele próprio não tivesse sofrido, mas feito parte daquela injustiça e daquele
abuso; todavia, justificou-se dessa falsa imputação, mediante três mil escudos
que perdeu (17), pois acharam que tanto ele devia, e foi assim o primeiro que
os remeteu e deu aos seus devedores, segundo o teor de seu édito; dizem outros,
entre os quais Polizelo de Rodes, que havia destes nove mil (18); todavia,
jamais se deixou mais tarde de chamar aos seus amigos Creocopides, como quem
dissesse anuladores de dívidas.
(16) Amyot não entendeu essa passagem dos poemas de Sólon. Ela foi muito bem explicada por Loiseau, sábio jurisconsulto,
que corrige: "Pois ele se gaba e glorifica, em seus versos, de haver tirado
os brandões e pendões colocados em muitos lugares nas terras hipotecadas. Diz
ele havê-las libertado, quando antes eram servas.” Chamam-se brandões e pendões os avisos ou sinais colocados nas terras
apenhadas e por vender judicialmente. Eram postos na Ática sobre as terras hipotecadas:
operação simples, sábia e útil.
XXVI. Essa ordenança não aguardou nem a uns nem a outros, porque ofendeu
grandemente os ricos pela cassação dos contratos; e desagradou ainda mais aos
pobres, porque não punha em comum todas as terras, assim como esperavam, e não
igualou todos os cidadãos em faculdades e em bens, como Licurgo fizera entre os
Lacedemônios. Mas Licurgo era o undécimo descendente de Hércules em linha reta e tinha
sido vários anos rei de
Lacedemônia onde adquirira enorme autoridade e fizera muitos amigos: todas as
quais coisas o ajudaram grandemente a pôr em execução o que sabiamente
imaginara para o estabelecimento de sua coisa pública; e, não obstante, ainda
usou ele mais de força que de advertência, como testemunha o fato de que lhe
furaram um olho ao querer impor um ponto que na verdade é o principal e de
maior eficácia, para longamente manter uma cidade em união e concórdia, ou
seja, fazer que não haja nem pobre nem rico entre os cidadãos. O que Sólon não
pôde conseguir, porque era nascido de raça popular e não era dos mais ricos de
sua cidade, mas dos médios burgueses somente; mas fez bem tudo o que era
possível fazer, com o pouco poder que tinha, não sendo ajudado senão pelo
bom-senso e pela confiança que os cidadãos lhe depositavam. E que seja verdade
que por esse édito incorreu no desagrado da maior parte dos habitantes da cidade, testemunhado ele próprio, dizendo:
Os que antes se diziam meus
amigos
São agora ferozes inimigos,
Vendo-me sempre com olhar reverso,
Como se eu fosse mesmo algum
perverso.
E, todavia, também diz depois que ninguém, com a mesma
autoridade e poder
Teria (19) em qualquer tempo
assim logrado
Apaziguar o povo amotinado.
(17) No grego, cinco talentos,
ou 23,343 libras francesas,
(18) No
grego, quinze talentos, ou 70,120 libras francesas.
XXVII. Mas não
passou muito tempo para conhecerem a utilidade de sua ordenança; e, então,
esquecendo cada qual suas queixas particulares, fizeram todos juntos um público
sacrifício a que chamaram o «Sacrifício de Seisachthein», isto é, de
desencargo, e elegeram Sólon reformador geral das leis e de todo o Estado da
coisa pública, sem limitar- lhe o poder, antes submetendo indiferentemente
todas as coisas à sua vontade, os magistrados, as assembleias públicas para o
conselho, os votos e sufrágios nas eleições dos oficiais, os julgamentos, o
corpo do Senado, com autoridade e poder de definir as faculdades e poderes que
cada um deveria ter, o número que deveriam ser e o tempo que teriam de durar,
conservando, confirmando ou cassando o que bem lhe parecesse das leis e
costumes antigos e já recebidos em uso.
XXVIII. Primeiramente,
pois, revogou e anulou todas as leis de Drácon, excetuadas somente as dos crimes e homicídios,
por sua demasiada rigo
rosa severidade e crueldade das penas, pois quase a única espécie de punição,
ordenada para todas as faltas e todos os crimes, era a morte; de maneira que os
acusados e convencidos de ociosidade eram condenados à
morte, e os que roubavam frutas ou ervas num jardim eram tão severamente
punidos como os sacrílegos ou os assassinos. E, portanto, observou muito bem
Dêmades quando disse que «as leis de Drácon tinham sido escritas com sangue e
não com tinta»; e ele próprio, sendo um dia interrogado porque havia assim
ordenado indiferentemente para todas as espécies de crimes a pena de morte,
respondeu que «porque estimava os menores crimes dignos de tal pena e que para
os maiores não encontrava outra
mais grave».
(19) Vide as Observações sobre o capítulo XXVI.
*
XXX. (20) Secundariamente, querendo Sólon que a administração e a magistratura
ficassem nas mãos dos cidadãos ricos, como estavam, e além disso misturar a
autoridade do governo de sorte que o povo miúdo nela tivesse parte, o
que não havia antes, fez uma estimação geral dos bens de cada cidadão
particular e dos que se acharam ter renda anual até à quantidade de quinhentas
meias-minas e acima, tanto em grãos como em frutos líquidos, e fez deles a
primeira ordem e lhes chamou Pentacosiomedimnes, isto é, possuidores de
quinhentas meias-minas (21) de
renda. E os que possuíam
trezentas e podiam entreter um cavalo em serviço foram postos na segunda ordem
e chamados cavaleiros. Os que tinham apenas duzentas foram postos na terceira
ordem e chamados Zeugites. Todas as outras abaixo se chamavam Tetes, como quem
dissesse mercenários ou assalariados, vivendo de seus braços, aos quais não
permitiu tivessem nem exercessem nenhum cargo público e não gozassem do direito
de burguesia, senão quando votassem nas eleições e assembléias, públicas, bem
como nos julgamentos, nos quais o povo julgava soberanamente. O que no começo
parecia não ser nada, mas depois se conheceu muito bem ser grande coisa, porque
a maior parte dos processos e diferenças surgidas entre os particulares vinha
afinal perante o povo, pois ele permitiu que perante o povo, de todas as coisas
de que conheciam os oficiais, apelassem aqueles que pensassem ser gravados por
suas sentenças.
(20) Falta no original o cap. XXIX ou
então se trata, possivelmente, de
mero erro de numeração. — N. do ed. bras.
(21) No
grego, quinhentos medimnos. A meia-mina não é mais
de três alqueires de Paris. Mas o medimno continha mais de quatro alqueires,
como notei sobre a vida de Licurgo, cap. XII. Sobre essa base deve ser calculada a renda das classes
em Atenas.
Consistia ela em grãos e frutos líquidos, isto é, vinho e óleo.