XXXI. E,
mais, como suas leis estivessem um pouco obscuramente escritas, de maneira que
podiam ser interpretadas em vários
sentidos, isso aumentou grandemente a autoridade e o poder dos julgamentos e
dos que deviam julgar, porque não podendo ser suas diferenças resolvidas nem
acordadas por expressa decisão das leis, era preciso recorrer sempre para os
juízes e quase todas as questões serem debatidas diante deles; de tal maneira
que os juízes, por esse meio, vinham a ficar de algum modo acima das
próprias leis, porque davam a
estas as interpretações que entendiam. O próprio Sólon nota e testemunha igual
distribuição da autoridade pública, numa passagem de sua poesia, onde diz:
Ao povo humilde conferi poder
No
que lhe cabe por direito haver,
Sem reduzir-lhe em nada a dignidade
Nem lhe
aumentar demais a autoridade:
E, quanto aos grandes, cheios de opulência,
Detentores de toda a preeminência,
Agi
de tal maneira que afinal
Não se pode causar-lhe nenhum mal (22).
XXXII. Mas,
estimando necessário prover ainda
à fraqueza do povo miúdo, a quem o quisesse permitiu tomar e esposar a causa do
ultrajado; pois, se alguém tivesse sido ferido, batido, forçado ou de outro
modo prejudicado, a quem o quisesse era permitido chamar o ultrajante à justiça
e persegui-lo. O que foi sabiamente ordenado por ele, para acostumar os
cidadãos a ressentir-se e doer-se pelo mal causado uns aos outros, como membro
do corpo ofendido; e com essa ordenança se relaciona uma resposta que dizem ter
ele dado uma vez. Interrogado sobre que cidade lhe parecia melhor policiada,
respondeu: «Aquela onde os que não são ultrajados perseguem tão
asperamente a reparação da injúria de outrem como aqueles mesmos que a
receberam.»
(22)
Acrescentar, segundo o grego: "Armei cada porção do povo, em suma, Para que opressão não haja de
nenhuma." C.
XXXIII.
Ora, tinha já estabelecido a
corte e o conselho de Areópago, compondo-o daqueles que cada preboste (23) da
cidade elegia, ele próprio era um deles, porque tinha sido preboste durante um
ano; mas, não obstante, vendo que o povo estava ainda ao mesmo tempo arrogante
e excessivo, por- sentir-se desobrigado de suas dívidas, criou outro segundo
conselho para as matérias de estado, elegendo cem homens de cada linhagem, dos
quais havia quatro para consultar e debater as matérias antes de propô-las ao
povo, a fim de que não se pudesse dar andamento a nenhuma causa, quando o
grande conselho de todo o povo estivesse reunido, que não tivesse sido
primeiramente bem debatida e bem digerida nesse conselho dos quatrocentos. Além
disso, quis que a corte soberana tivesse a direção e a superintendência de
todas as coisas, mesmo quanto a fazer entreter, observar e guardar as leis,
estimando que a coisa pública seria menos agitada e menos atormentada com essas
duas cortes, nem mais nem menos do que com duas fortes âncoras, e que o povo
seria mais pacífico e mais quieto. A maior parte, pois, dos autores é dessa
opinião de que foi Sólon quem estabeleceu a corte dos Areopagitas, como
dissemos: do que parece ser grande testemunho que Drácon, em suas leis, não faz em nenhuma parte menção dos Areopagitas, antes dirige sempre
suas palavras aos Éfetas, que eram os juízes criminais, quando fala dos crimes
e homicídios.
(23) Arconte.
XXXIV.
Mas a oitava lei da décima-terceira
tábua de Sólon diz assim, nestes próprios termos: «Os que tiverem sido banidos
ou marcados de infâmia antes de haver Sólon estabelecido suas leis, serão
restituídos em seus bens e em sua boa reputação, exceto aqueles que tiverem
sido condenados por aresto da corte de Areópago ou pelos Éfetas, ou pelos Reis
no auditório do palácio e prefeitura da cidade, por crime e homicídio, ou por
ter aspirado a usurpar tirania.» Essas palavras, ao contrário, parecem provar e
fazer fé de que a corte de Areópago existia antes de Sólon ter sido eleito
reformador das leis: pois como haveria malfeitores condenados por aresto da
corte de Areópago antes de Sólon, se o próprio Sólon foi o primeiro que lhe deu
autoridade para julgar? Com isso não se quer dizer que seja preciso um pouco
ajudar a letra da ordenança, que é obscura, e suprir alguma coisa que lhe falte
dando-lhe tal interpretação. Os que se acharem acusados e convencidos nos casos
de que conheciam a corte de Areópago, os Éfetas ou os governadores da cidade,
quando esta ordenança for publicada, ficarão condenados, e todos os outros
serão absolvidos e restituídos. Como quer que seja, isso era o fim de sua
intenção. Mas, de resto, entre as suas leis, há uma que lhe é peculiar, porque jamais alhures foi estabelecida
semelhante.
XXXV. É aquela que quer que, numa sedição civil, aquele dos cidadãos que não se enfileira numa ou noutra parte seja
marcado de infâmia: por onde parece que ele tenha querido que os particulares não cuidassem somente de pôr em segurança suas próprias pessoas e seus
negócios privados, sem de outro modo afeiçoar-se ou apaixonar-se pelo público,
fazendo virtude de não comungar dos infortúnios e misérias do país, antes que
desde o começo da sedi
ção se juntassem àqueles que tivessem a causa mais justa, ajudá-los e
arriscar-se com eles, em lugar de esperar, sem correr perigo, qual das duas
partes fica
ria vitoriosa.
XXXVI. Mas há outra que me
parece à primeira vista impertinente e digna de escárnio: a que determina que,
tendo alguém desposado uma rica herdeira segundo o direito que a lei lhe
confere, se ache impotente ou incapaz de carnalmente usar e habitar com ela,
seja permitido à mulher habitar com quem lhe aprouver dentre os parentes
próximos do marido; todavia, há quem sustente que isso foi sabiamente instituído contra os que, sentindo-se impotentes para realizar ato de marido, querem contudo desposar ricas herdeiras
para gozar de seus bens e, pelo direito que lhe dá a lei, querem forçar a natureza;
pois, vendo que a lei permite também a tal herdeira mal casada juntar-se com
quem ela queira dentre
os parentes do marido, eles não
mais ambicionarão tais casamentos ou, quando se mostrem tão vis que os
ambicionem e os aceitem, será para sua vergonha e confusão, sofrendo assim a
pena de sua avareza e desordenado apetite. E ainda isso está tão bem ordenado
que ele não permite à mulher juntar-se com todos indiferentemente, mas só com
aquele que desejar dentre os parentes do marido a fim de que os filhos que
nascerem sejam ao menos do sangue e da raça do marido.
XXXVII. Com isso também concorda
o fato de querer que a recém-casada seja encerrada com o esposo, comendo
marmelo (24) com ele, e que aquele que toma tal herdeira em casamento seja
obrigado a visitá-la ao menos três vezes por mês. Pois, ainda que não lhe faça
filhos, será isso uma honra que o marido presta à mulher, mostrando que a
reputa honesta, que a ama e que faz conta dela: o que evita muitas brigas e
descontentamentos que frequentemente ocorrem em tal caso e impede que
as;coragens e vontades se alheiem inteiramente entre si. Além disso, aboliu os
dotes dos outros casamentos e quis que as mulheres não levassem aos maridos
senão três vestidos somente, com alguns outros móveis de bem pequeno valor, sem
outra coisa, não querendo que elas comprassem os maridos nem que se traficasse
com os casamentos, como com outra mercaria para obter ganho, antes querendo que a conjunção
de homem e mulher se fizesse para ter linhagem e por prazer e amor, não por
dinheiro.
(24)
Os antigos estimavam o marmelo por seu odor e efeitos salutares. Vide Plínio, XV, II,
XXIII, 6.
XXXVIII.
A esse propósito, o tirano da
Sicília, Dionísio, respondeu um dia a sua mãe, que a toda a força queria
casar-se com um jovem de Siracusa: «Eu posso muito bem, disse ele, anular as
leis civis de Siracusa e usurpar a tirania, mas forçar as leis da natureza,
fazendo casamentos fora da idade competente, isto não é de minha alçada.»
Também é preciso não permitir que essa desordem tenha lugar nas cidades bem
ordenadas, nem suportar que se realizem tais conjunções de pessoas tão desiguais
em idade e tão desagradáveis, visto como não há nem ato nem fim próprio e
requerido para o casamento; e poderia um sábio governador de cidade ou um
censor e reformador dos costumes e das leis dizer a um velho que desposasse uma
mocinha o que disse o poeta de Filoctetes:
Agora, em tal estado, na verdade,
Tens para o casamento a boa idade.
E, encontrando certo rapaz em casa de uma
velha rica, com as despesas pagas para dormir com ela, à maneira das perdizes que engordam cobrindo as
fêmeas, o tirará de lá para o pôr com alguma rapariga necessitada de marido:
eis o que há quanto a esse ponto.
XXXIX. Mas,
louva~se grandemente outra ordenança
de Sólon, que proíbe falar mal de um defunto: pois é bem e devotamente feito
pensar que não se deve tocar nos defuntos, como tampouco nas coisas sagradas, e
se deve evitar ofender os que não mais estão neste mundo; e, assim, é prudência
civil impedir que as inimizades sejam imortais. Proibiu ele também pela mesma
lei injuriar com palavras ultrajantes os vivos, as igrejas, durante o serviço
divino, em julgamento, no palácio onde se assentam os governadores da cidade,
nem nos teatros, enquanto ali se representam as peças, e isso sob pena de três
dracmas de prata (25) pagáveis à pessoa injuriada e duas à coisa pública; pois
lhe parecia uma licença dissoluta demais não poder conter em parte alguma a
própria cólera, a menos que se trate de pessoa muito mal-educada; mas também
poder vencê-la por toda parte é coisa bem difícil, e para alguns totalmente
impossível. E é preciso que aquele que faz a lei observe a ordinária
possibilidade dos homens, se pretende castigar uns poucos com proveitoso
exemplo, e não muitos sem nenhuma utilidade.
XL. Também foi ele muito estimado, pela ordenança que fez no tocante aos
testamentos, pois antes não era permitido instituir herdeiro à vontade, mas era
preciso que os bens ficassem na raça do defunto; mas ele, permitindo a
qualquer deixar seus
bens para quem quisesse, desde que não
houvesse filhos, preferiu assim fazendo a amizade ao parentesco, e a vontade e
graça ao constrangimento e necessidade; fazendo que cada um fosse senhor e dono
inteiramente de seus haveres; e, todavia, não aprovou simples e
indiferentemente todas as espécies de doações que de qualquer modo fossem
feitas, mas só as que não procedessem nem de senso alienado por moléstia grave,
ou por bebidas, medicinas, envenenamentos, encantamentos ou outra violência e
constrangimento, nem de atrações e aliciamentos de mulheres, estimando muito
bem e muito sabiamente que era preciso não pôr diferença entre o ser forçado
por vias de fato e o ser induzido por suborno a fazer alguma coisa contra o
dever, e reputando em tal caso a fraude igual à força e a volúpia à dor, como
paixões que têm ordinariamente tanta eficácia umas quanto as outras para
fazerem os homens desviar-se da justa razão.
(25) A dracma valia cerca de
dezesseis soldos de libra francesa.
XLI. Fez ainda outra ordenança pela qual limitou as saídas das damas para os
campos, o luto, as festas e os sacrifícios, eliminando toda desordem e toda
licença desregrada, ali em uso anteriormente: pois as proibiu de saírem da
cidade com mais de três vestidos e levarem então consigo, para comerem e
beberem, o que passasse o valor de um óbolo (26), ou cesto com mais de um
côvado de altura; e, notadamente,
as proibiu de saírem à noite, a
não ser de carreta e que se lhes levasse à frente um archote. Proibiu-as também
de se escalavrarem e de se mortificarem à força de tanto baterem em si mesmas
nos enterramentos dos mortos, de fazerem lamentações em versos, de irem chorar
nos funerais de um estrangeiro que não fosse seu parente, de sacrificarem
um boi na sepultura do defunto, de inumarem com os corpos mais de três
vestidos, de irem às sepulturas de outrem senão à hora mesma do cortejo do
enterramento — todas as quais coisas que, em sua maior parte, são ainda hoje
proibidas por nossas íeis, e mais, pois querem que os que as fazem sejam
condenados a multa por certos oficiais expressamente ordenados para controlar e
reformar os abusos das mulheres, como sendo pessoas efeminadas e de coragem
frouxa, que se deixam dominar por tais paixões e tais erros em seu luto.
(26) O óbolo era a sexta parte da dracma e valia cerca de
dois soldos e meio de libra francesa.-
XLII. E, vendo que a cidade de Atenas se
enchia todos os dias cada vez mais, para ali acorrendo os homens de todas as partes
pela grande segurança e liberdade
ali existentes, que a maior parte do território era inteiramente estéril ou
magra, e que os homens traficando no mar não tinham o costume de nada levarem
para os que não lhes davam nada em troca, ensaiou fazer que os cidadãos se
dedicassem aos misteres e manufaturas, e fez uma lei pela qual «o filho não
seria obrigado a nutrir o pai na velhice, a não ser que este o tivesse feito
aprender um mister na juventude». Pois a Licurgo, que habitava numa cidade
onde não havia nenhum dote de estrangeiros e que possuía tão grande território
que poderia ter o dobro de seus habitantes, como disse Eurípides, e que além
disso estava por toda parte cercado de grande multidão de Hilotas escravos, os
quais era melhor evitar fossem ociosos e manter submissos, constrangendo-os a
trabalhar e lidar continuamente, fora indicada a conveniência de conservar os
cidadãos sempre ocupados no exercício das armas, sem fazê-los aprender nem
exercer nenhum outro mister, desencarregando-os de quaisquer outras vocações
penosas e tarefas braçais. Mas a Sólon, acomodando suas ordenanças às coisas, e
não as coisas à sua ordenança, e vendo que o território da Ática era tão magro
e tão fraco que mal podia dar para nutrir somente os que o laboravam, sendo-lhe
impossível sustentar tão grande multidão de habitantes, pareceu-lhe haver
necessidade de honrar e dignificar os misteres. Quis, assim, que a corte
soberana de Areópago tivesse a autoridade e o encargo’ de inquirir de que vivia
cada habitante e de castigar os que achasse ociosos (27) e sem fazer nada.
(27) Tinha razão Sólon, ao considerar a
ociosidade um crime. Queria ele
que todo cidadão prestasse contas da maneira pela qual ganhava sua vida. Numa
boa democracia, não se deve gastar senão para o necessário. Cada um deve
possuí-lo; pois de quem o receberíamos? —
como observa muito bem Montesquieu, "L’ Esprit des Lois", v.
7.