A MEDIOCRIDADE INTELECTUAL – Capítulo II de “O Homem Medíocre” de José Ingenieros

O Homem Medíocre (1913)

José Ingenieros (1877-1925)

 

A
MEDIOCRIDADE INTELECTUAL
– Capítulo II de “O Homem Medíocre de José Ingenieros”

I. o homem rotineiro. —II. os estigmas da mediocridade intelectual. — III. a maledicência: uma alegoria de botticelli — IV. a senda da glória.

 

I — O homem rotineiro

 

A rotina é um esqueleto fóssil, cujas
peças resistem à carcoma do século. Não é filha da experiência; é a sua
caricatura. A primeira é fecunda, e engendra verdades; a outra é estéril, e as
mata.

Na sua órbita giram os espíritos
medíocres. Evitam sair dela, e cruzar espaços novos; repetem que é preferível
o mau conhecido ao bom ignorado. Ocupados em desfrutar o existente, alimentam
horror a toda inovação que perturbe a sua tranqüilidade, e lhes traga
desassossegos. As ciências, o heroísmo, as originalidades, as invenções, a
própria virtude, parecem-lhes
instrumentos
do mal, posto que desarticulam o edifício dos seus erros: como nos selvagens,
nas crianças nas classes incultas.

Acostumados a copiar, escrupulosamente,
os preconceitos do meio em que vivem, aceitam, sem verificação, as idéias distiladas
no laboratório social: como esses enfermos de estômago imprestável, que se
alimentam com substâncias já digeridas nos frascos das farmácias. Sua
impotência para assimular idéias novas, obriga-os a adotar as
antigas

 

A Rotina, síntese de
todas as renuncias, é o hábito de renunciar a pensar. Nos rotineiros, tudo
é
menor esforço;
a
preguiça
enferruja a
sua
inteligencia.
Cada hábito é um risco, porque a familiaridade se forma no
sentido das coisas
detestáveis e
das pessoas
indignas.
Os atos
que,
a princípio,
provocavam pudor,
acabam
por
parecer naturais;
a
retina percebe os tons
violentos
como simples matizes,
o
ouvido
escuta
as mentiras com
igual
respeito
com que
ouve
verdades,
o coração
aprende
a não
se
agitar diante
de
ações
torpes.

Os conceitos são crenças anteriores
à
observação; os juízes
exatos,
ou
errôneos,
são
consecutivos a ela. Todos os indivíduos possuem hábitos mentais; os conhecimentos
adquiridos facilitam os vindouros, e marcam o seu caminho. Até certo ponto,
ninguém pode subtrair-se
à
sua ação.
Não
são exclusividades
dos
homens medíocres; mas, nestes, representam sempre uma passiva obseqüência ao erro
alheio. Os hábitos adquiridos pelos homens originais são genuinamente seus,
intrínsecos: constituem o seu critério, quando pensam, e o seu caráter, quando
atuam; são individuais e inconfundíveis. Diferem substancialmente da Rotina,
que é coletiva
e
sempre perniciosa, extrínseca ao indivíduo, comum ao rebanho; consiste em ser
contagiado pelos preconceitos que infestam a cabeça dos outros. Aqueles
caracterizam os homens; esta empana as sombras. O indivíduo plasma para si
próprio nos primeiros; a sociedade impõe a segunda. A educação oficial envolve
esse perigo; tenta apagar toda originalidade, pondo iguais opiniões em cérebros
diferentes. A cilada persiste no inevitável trato mundano com homens
rotineiros. O contágio mental flutua na atmosfera, e acossa por todos os
lados; nunca se viu um tolo originalizado pela contiguidade, mas freqüentemente é
possível que um engenho se atoleie entre palpavos.

A mediocridade é
mais contagiosa que o talento.

Os rotineiros racionam com a lógica dos
outros. Disciplinados pelo desejo alheio, encaixam-se em seu escaninho
social,
e se catalogam, como recrutas, nas fileiras de um regimento. São dóceis à
pressão do conjunto, maleáveis ao peso da opinião pública, que os
aplaina, como inflexível laminador. Reduzidos a sombras
inúteis, vivem do critério alheio; ignoram-se a si próprios, limitando-se a
crer que são como os outros julgam. Os homens excelentes, ao invés, desdenham a
opinião alheia na justa proporção em que respeitam a própria, sempre mais
severa, ou a de seus iguais.

São sáfios sem que, entretanto, se
julguem desgraçados por isso. Si não se presumissem razoáveis, o absurdo que
representam, enterneceria. Ouvindo-os falar durante uma hora, parece que esta
tem mil minutos. A ignorância é seu verdugo, como outrora o foi do servil, e o é atualmente
do selvagem; ela os transforma em instrumentos de todos os fanatismos, dispostos
à domesticidade, incapazes de gestos dignos.

Seriam capazes de enviar em comissão um
lobo e um cordeiro, surpreendendo-se, depois, sinceramente, de ver o lobo
voltar sozinho. Carecem de bom gosto e de aptidão para o adquirir. Se o humilde
guia de museu não os detém, com insistência, passam indiferentes diante de uma
madona do Angélico, ou de um retrato de Rem-brandt; à saída, assombram-se
diante de qualquer mostrador contendo oleografias de toureiros
espanhóis, ou de generais americanos.

Ignoram que o homem vale por seu saber;
negam que a cultura é a mais profunda fonte da virtude. Não procuram estudar;
suspeitam, porventura, a esterilidade do seu esforço, como essas mulas que,
pelo costume de marchar a passo, perderam a faculdade do galope. Sua incapacidade
de meditar acaba convencendo-os
de
que não
ha
pro blemas difíceis,
e
qualquer
reflexão parece-lhe um sar casmo; preferem confiar em sua ignorância, para
adivinhar tudo. Basta que um preconceito seja inverossímil, para que o aceitem
e o difundam;
quando
jugam ter errado, podemos jurar que cometeram a imprudência de pensar. A
leitura produz-lhe efeitos de envenenamento. Suas pupilas se deslizam frívolamente
sobre
centões absurdos; gostam dos mais superficiais, desses em que um espírito claro
nada poderia aprender, embora sejam bastante profundos para
empantanar um
torpe. Engolem sem digerir, até a indigestão mental; ignoram
que o homem não vive do que engole, sinão, do que assimila. O atascamento
pode convertê-los em eruditos, e a repetição pode dar-lhes hábitos de
ruminantes. Mas, acumular dados não é aprender; tragar não é digerir. A mais
intrépida paciência não transforma um rotineiro em pensador; é preciso saber
amar e sentir a verdade. As noções mal digeridas só servem para atolar o entendimento
.

Povoam a sua memória com máximas de
almanaque, e ressucitam-nas de vez em quando, como se fossem sentenças. Sua
cerebração precária tartamudeia pensamentos armazenados, fazendo gala
de simplezas que
são a espuma inocente da sua tolice; incapazes de espicaçar a sua própria
cabeça, renunciam a qualquer sacrifício, alegando a insegurança do resultado;
não suspeitam que "há mais prazer em marchar em direção da verdade, do
que em chegar a ela".

Suas crenças, limitadas pelos fanatismos
de todos os credos, abarcam zonas circunscritas por superstições pretéritas.
Dão o nome de idéias às suas preocupações, sem advertir que são simples rotina
engarrafada, paródias de razão, opiniões sem juízo. Representam o senso comum
desbocado, sem freio do bom senso.

São prosaicos. Não têm ânsias de
perfeição: a ausência de ideais impede-os de pôr, em seus atos, o grão de sal
que poetiza a vida. Estão saturados dessa humana tolice que obsecava Flaubert,
insuportavelmente.
Êle a descreveu em muitas personagens, devido a ela tomar tão grande parte na
vida real. Homais e Bouriseu são seus protótipos; é impossível julgar se é mais
tolo o racionalismo
agressor
do boticário livre-pensador, ou a casuística untuosa do eclesiástico
profissional. Por isto, o autor os fez ditosos, de acordo com
sua doutrina: "ser tolo, egoísta, e ter uma boa saúde, eis aí as três
condições para ser feliz. Mas, si vos falta a primeira, tudo está
perdido".

Sancho Panza é a encarnação
perfeita
dessa animalidade humana: resume em sua pessoa as mais conspícuas proporções da
tolice, do egoísmo e da saúde. Em hora, para êle fatídica, chega a maltratar o
seu amo, numa cena que simboliza o desdobrar vilão da mediocridade sobre o
idealismo. Horroriza pensar que escritores espanhóis, julgando mitigar, com
isto, os estragos do quixotismo, se tenham jeito apologistas do
grosseiro Panza,
opondo
o seu bastardo sentido prático aos quiméricos sonhos do
cavaleiro; houve quem o encontrou cordial, leal, crédulo, iludido, em tal grau,
que o poderia tornar em símbolo exemplar de povos.

Como não distinguir que um tem idéias e
outro apetites; um, dignidade e outro servilismo; um fé e outro credulidade;
um,
delírios originais de sua cabeça e outro absurdas crenças imitadas das
alheias? O autor de "Vida de Dom Quixote e Sancho"
respondeu
a todos, com profunda emoção, fazendo que o conflito espiritual entre o senhor e o
lacaio, se resolva na evocação das memoráveis palavras pronunciadas pelo primeiro.

"Asno és, e asno hás de ser, e em
asno hás de acabar quando se esgotar o curso da tua vida".

Dizem os biógrafos que Sancho Panza
chorou, até convencer-se
de
que, para ser asno, faltava-lhe
apenas
a cauda. O símbolo é cristalino. A moral também; em face de cada forjador de
ideais, mil Sanchos se alinham, impávidos, como si, para conter o advento da
verdade, fosse necessária a conjura de todas as hostes da estultícia.

O revérbero da originalidade cega o
homem rotineiro. Foge dos pensadores alados, albino diante da sua luminosa
reverberação. Teme embriagar-se
com
o perfume do seu estilo. Si pudesse, proscrevê-los-ia em massa, restaurando a
Inquisição e o Terror; aspectos equivalentes de um mesmo ciúme dogmatista.

Todos os rotineiros são intolerantes; a
sua exígua cultura condena-os
a
ser assim. Defendem o anacrônico e o absurdo; não permitem que as suas opiniões
sofram a fiscalização da experiência. Chamam herege ao que busca uma verdade,
ou aspira a um ideal, os negros queimam Bruno e Severt, os vermelhos decapitam
La-voisier e Chenier. Ignoram a sentença de Shakespeare.

"O herege não é aquele que as
queima na fogueira, sinão, aquele que a acende".

A tolerância dos ideais alheios é
virtude suprema dos que pensam. É difícil para os semi-cultos; inacessível.
Exige um perpétuo esforço de equilíbrio diante do erro dos demais; ensina a
suportar essa conseqüência
legítima
da falibilidade de todo juízo humano. O que trabalhou muito para formar suas
crenças, sabe respeitar as dos outros. A tolerância é o respeito, nos outros,
de uma virtude própria; a firmeza das convicções, reflexivamente adquiridas,
faz estimar nos próprios adversários um mérito cujo preço se conhece.

Os homens rotineiros desconfiam da sua imaginação,
persignando-se quando esta os atribula com heréticas tentações. Arrenegam
a
verdade e a virtude, si elas demonstram os erros dos seus juízos; revelam grave
inquietude, quando alguém se atrave a perturbá-los. Astrônomos houve que se
negaram a olhar para o céu, através do telescópio, temendo ver desbaratados os
seus erros mais firmes.

Pressentem um perigo em toda idéia nova;
se alguém lhes dissesse, que os seus preconceitos são idéias novas, chegariam
a julgá-los perigosos. Essa ilusão os faz proferir balelas com a solene
prudência de augures, que temem desorbitar o mundo com suas
profecias. Preferem o silêncio e a inércia; não pensar é a única maneira de
não errar. Seus cérebros são casas de hospedagem, mas, sem dono; os outros
pensam por eles que, no íntimo, agradecem esse favor.

Os rotineiros carecem de opinião a
respeito de tudo o que já não tenha julgamentos definitivamente consolidados.
Seus olhos não sabem distinguir a luz da sombra, como os rústicos não sabem
distinguir o ouro do latão; confundem a tolerância com a cobardia,
a
discrição com o servilismo, a complacência com a dignidade, a simulação com o
mérito. Denominam sensatos os que subscrevem mansamente os erros
consagrados, e conciliadores os que renunciam a ter crenças próprias; a
originalidade no pensar produz-lhes calefrios. Comungam em
todos os altares, emulsionando crenças incompatíveis, e chamando ecletismo
a suas tolices; julgam, por isso, descobrir uma agudeza particular na
arte de não se comprometer com juízos decisivos Não suspeitam que a dúvida do
homem superior foi sem
pre
de outra espécie, muito antes que Descartes a explicasse; é
afã de retificar os próprios erros, até aprender que toda força é falível, e
que todos os ideais admitem
aperfeiçoamentos indefinidos. Os rotineiros, ao contrário, não corrigem, nem se
desconvencem nunca; suas opiniões são como os cravos: quanto mais se bate
neles, mas eles penetram. Entendiam-se com os escritores que deixam rastros
onde põem a mão, denunciando uma personalidade em cada frase, principalmente
si procuram subordinar o estilo às idéias; preferem as descoloridas lucubrações dos
autores despersonalizados,
isentas
das aresta que dão relevo a toda forma, e cujo mérito consiste em transfigurar
vulgaridades mediante aplicação de barrocos adjetivos. Si um ideal borboleteia
nas páginas, si a verdade faz estalidar o pensamento nas frases, os livros
parecem-lhes material de fogueira; quando eles podem ser um ponto luminoso no
porvir, ou no sentido da perfeição, os rotineiros desconfiam .

A caixa cerebral dos homens rotineiros é
um estojo
de
jóias vazio. Não podem raciocinar por si mesmos, como se o cérebro lhes
faltasse. Uma antiga lenda conta que, quando o Criador provoou o mundo de
homens, começou fabricando os corpos à guisa de manequins. Antes de lançá-los
em circulação, levantou-lhes a calota craneana, encheu as cavidades com pastas
divinas, amalgamando
as
aptidões e qualidades do espírito, boas e más. Ou fora imprevisão ao calcular as
quantidades, ou desalento do Criador ao ver os primeiros exemplares da sua
obra prima; o certo é que muitos ficaram sem mescla, sendo enviados ao mundo
sem coisa alguma dentro. Esta lendária origem explicaria a existência de homens
cuja cabeça tem uma significação puramente
ornamental.

Vivem uma vida que não é viver. Crescem
e morrem
como
plantas; não necessitam ser curiosos, nem observadores. São prudentes,
por definição, de uma prudência desesperadora. Si um deles passasse junto
ao
campanário
inclinado de Piza,
afastar-se-ia,
temendo morrer esmagado. O homem original, imprudente, se detém a
contemplá-lo; um gênio vai mais longe: sobe ao campanário, observa, medita,
ensaia, até descobriras
leis
mais altas da física. É Galileu.

Si a humanidade tivesse contado somente
com os rotineiros, os nossos conhecimentos não excederiam os que um avoengo
hominídio poderá ter tido. A cultura é o fruto da curiosidade, dessa
inquietação misteriosa que convida a olhar para o fundo de todos os abismos.
O ignorante não é curioso; nunca interroga a natureza .

Ardigó observou que as pessoas vulgares
passam a vida inteira vendo a lua no seu lugar, em cima, sem perguntar porque é
que ela está sempre ali, sem cair; julgarão que perguntar tal coisa não é
próprio de pessoa bem educada. Dirão que está ali, poroue é o seu lugar, e
lhes parecerá estranho eme outros procurem explicarão de coisa tão natural. Só
o homem de bom senso, que comete a incorreção de se opôr ao senso comum, isto
é, um original ou um gênio — que nisto se homologam — pode formular a pergunta sacrílega:
porque
é aue
a
lua está ali, e não cai? Esse homem que ousa desconfiar da rotina, é Newton, um
audaz, a auem
coube
adivinhar alguma semelhança entre a pálida lâmpada, suspensa no céu, e a maçã
que cai da árvore, sacudida pelo vento. Nenhum rotineiro teria descoberto que
u’a mesma força faz girar a lua para cima e cair a maçã para baixo.

Nesses homens, imunes da paixão da
verdade, supremo ideal a que pensadores e filósofos sacrificaram a sua vida,
não cabem impulsos de perfeição. Suas inteligências são como as águas mortas: povoam-se de ger mes nocivos e acabam
apodrecendo. Aquele que não cultiva a sua mente, vai direito no
sentido da desagregação da sua personalidade. Não debastar
a própria ignorância, é como perecer em vida. As terras férteis tornam-se más,
quando não são cultivadas; os espíritos rotineiros povoam-se de opiniões que
os escravizam.

II — Os estigmas da mediocridade intelectual

No verdadeiro homem medíocre, a cabeça é
um simples adorno do corpo. Si nos ouve dizer que serve para pensar, julga que
estamos loucos. Diria que o esteve Pascal, se lesse suas palavras decisivas.

"Posso
conceber um homem sem mãos, sem pés; chegaria até a concebê-lo sem cabeça, se a
experiência não me tivesse ensinado que com ela se pensa. É o pensamento que
caracteriza o homem; sem êle, não podemos concebê-la" (Pensées, XXIII).

Se, disto deduzíssemos que quem não
pensa não existe, a conclusão provocaria nele uma gargalhada capaz de o desconjuntar.

Nascido, sem esprit de finesse, desesperar-se-ia
inutilmente por adquirí-lo. Cerece de perspicácia adivinhadora; está condenado a
não penetrar nas coisas, nem nas pessoas. Quando a inveja corrói, pode
contentar-se com agrodoces perversidades; fora deste caso,
dir-se-ia que o arminho
do
seu candor
não
apresenta uma só ih.incha de engenho.

O medíocre é solene. Na pompa grandíloqua
das
‘ terloridades, busca um disfarce para a sua íntima vacuidade Acompanha, com
fofa retórica, os atos mais In tonificantes, e profere
palavras insubstanciais, como se a humanidade inteira quisesse ouvi-las.

As mediocracias exigem de seus atores certa
seriedade convencional, que dá importância na fantasmagoria coletiva. Os habituados
ao êxito o sabem: adaptam-se a ser inócuas "personalidades dignas de
respeito", certeiramente crivadas de apodos por Stirner e expôstas por
Nietzsche é chacota de todas as posterioridade. Nada fazem para significar o
seu eu verdadeiro, esforçando-se somente no
sentido de inflar o seu fantasma social. Escravos da sombra que suas aparências
projetaram
na
opinião dos que o rodeiam, acabam por sobrepô-la a si próprios. Este culto da
própria sombra obriga-os
a
viver em contínuo alarme; supõem que basta um momento de distração, para
comprometer a obra pacientemente elaborada durante muitos anos. Detestam o
riso, com medo de que o gás possa escapar pela comissura dos lábios, esvasiando
o balão. Destruiriam um funcionário do Estado, se o surpreendessem lendo
Boccacio, Quevedo ou Rabelais; julgam que o bom humor compromete o respeito, e
estimula o hábito anárquico de rir.

Obrigados a vegetar em horizontes
estreitos, chegam até a desdenhar todo o ideal e todo o agradável, em nome do
imediatamente proveitoso. Sua miopia mental impede-os de compreender o
equilíbrio supremo entre a elegância e a força, a beleza e a sabedoria.

"Onde julgam descobrir as graças do
corpo, a agilidade, a destreza, a flexibilidade, recusam os dons da alma; a
profundidade, a reflexão, a sabedoria. Desmentem a história, onde esta diz que
o mais sábio e o mais virtuoso dos homens — Sócrates — bailava".

Esta aguda advertência de Montaigne, nos
Ensaios, mereceu uma corroboração de Pascal, nos seus Pensamentos:

"Ordinariamente, costuma-se imaginar
Platão e Aristóteles, com grandes togas, e como personagens grave; e sérios.
Eram bons sujeitos, que se divertiam, como os outros, no seio da amizade.
Escreveram soas leia e seus tratados de política, para se distraírem; essa era a
parte menos filosófica de sua vida. A mais filo sófica era viver singela e tranqüilamente"

O homem medíocre que renunciasse a sua
solenidade, ficaria fora da sua órbita: não poderia viver.

São modestos, por princípios. Pretendem
que todos o sejam, pretensão aliás fácil, porquanto, neles, sobre a modéstia,
desde que estão desprovidos de méritos verdadeiros. Consideram tão nocivos o
que afirmam as próprias superioridades em voz alta,
como o que ri de seus convencionalismos suntuosos.
Denominam modéstia à proibição de reclamar direitos naturais do gênio,
da santidade, do heroísmo.

As únicas vítimas dessa falsa virtude
são os homens excelentes, constrangidos a não pestanejar, enquanto os
invejosos empanam
a
sua glória. Para
os néscios, nada
mais fácil do que ser modestos: — eles o são, por necessidade irrevogável; os
mais cheios de si o fingem por cálculo, considerando que essa atitude é o
complemento necessário da solenidade, além de deixar suspeitar a existência
de méritos pudibundos.

Heine disse:

"Os
charlatães da modéstia são os piores de todos".

E Goethe sentenciou:

"Somente os
velhacos
são
modestos".

Isto não obsta a que essa
reputação seja um tesouro, nas mediocracia. Presume-se que o
modesto nunca pretenderá ser original. nem levantará a palavra, nem formulará
opini ões
perigosas, nem desaprovarão os que governam, nem blasfemará contra os dogmas
sociais: o homem que aceita essa máscara hipócrita, renuncia a viver mais do
quanto lhes permitem os seus cúmplices. Há, é certo, outra forma de modéstia,
apreciável como uma verdadeira
virtude: é o afã decoroso de não gravitar pobre os que o rodeiam, sem
declinar, por isso, a mais leve partícula da sua dignidade. Tal gênero de
modestia é
um simples respeito para consigo mesmo e para

com
os outros. Esses homens são raros; comparado com os falsos modestos, são como
os trevos de quatro folhas. Há fracassados que se julgam gênios não compreendidos,
e se resignam a ser modestos por complacência para com a mediocrasia, que pode
transformá-los em funcionários; e são medíocres, iguais aos outros, tendo, a
mais, a cataplasma
da
modéstia sobre as úlceras de sua mediocridade. Neles, como
sentenciou La Bruyère, "a falsa modéstia é o último requinte da vaidade".
A mentira de Tartarin
é
ridícula: mas a de Tartufo é ignominiosa.

Adoram o senso comum, sem saberem, ao
certo, em que consiste, confundindo-o com o bom senso, que é a sua antítese.
Duvidam, quando os outros resolvem duvidar, e são ecléticos, quando os outros
o são: chamam ecletismo ao sistema daqueles que, não se atravendo a ter opinião
alguma, extraem de todas um pouco, e logram acender uma vela no altar de cada
santo. Com medo de pensar, como se residisse nisso o maior dos sete pecados
mortais, perdem a aptidão para formar qualquer juízo; por isso, quando um
medíocre é juiz, ainda que compreenda que o seu dever é fazer justiça,
submete-se à rotina, e desempenha o triste ofício de não a fazer nunca, e de
iludi-la, com freqüência.

O medo de comprometer-se leva a
simpatizar com um precavido ceticismo. É conveniente desconfiar do hipócrita
que elogia tudo, bem como do fracassado que acha tudo detestável; mas é cem
vezes menos estimável
o
homem incapaz de um sim e de um não, o que vacila para admirar o
digno e execrar o miserável.

No primeiro capítulo dos Caracteres, La
Bruyère
parece
que se refere a eles, em um parágrafo citado per Hello:

"Podem chegar a sentir a beleza de
um manuscrito que
lhes é lido, mas não ousam declarar-se em seu Pavor, enquanto
não tenham notícias do seu curso pelo mundo, e ouvido a opinião dos
presumivelmente competentes; não arriscam o seu voto; querem ser conduzidos
pela multidão. Depois, dizem que foram os primeiros a aprovar a obra, e
alardeiam que o público é da sua opinião.

Medrosos de julgar por si próprios,
consideram-se obrigados a duvidar dos jovens; isto não os impede de afirmar,
depois do seu triunfo, que foram os descobridores. Então prodigalizam
juramentos de escravidão, que chamam palavras de estímulo: são a homenagem do
seu pavor inconfessável. Sua proteção a toda superioridade já irresistível, é
uma antecipação usurária
sobre a gl ória
segura: preferem tê-la como amiga, a sentirem a sua hostilidade.

Fazem mal por imprevisão ou por
inconciência, como as crianças que matam pardais a pedradas.
Praticam traições por descuido. Comprometem por distração. São incapazes de
guardar um segredo: confiar-lhes um, equivale a ocultar um
tesouro em caixa de vidro. Se a vaidade não os tenta, costumam atravessar a
penumbra, sem ferir, nem ser feridos, levando às costas certo otimismo de
Panglos. À custa de muita paciência, podem adquirir alguma habilidade parcial,
como esses autômatos aperfeiçoados que honram a moderna indústria de
brinquedos para crianças; poder-se-ia atribuir-lhes uma espécie de vivacidade,
resquício
do ser e do não-ser, intermediária entre uma estupidez complicada e uma travessura
inocente.

Julgam as palavras, sem advertir que
elas se referem a coisas; convencem-se de que já têm um lugar marcado em sua moleira,
e
mostram-se esquivos
a
tudo quanto não se encaixa em seus espírito. São os acrobatas da palavra; não
ascendem até a idéia, nem concebem o ideal. Seu maior engenho é sempre verbal,
e só chegam
ao trocadilho, que é uma prestidigitação de pa lavras; tremem
diante daqueles que podem jogar com as idéias, e produzir essa graça do espírito que é o
paradoxo. Por meio deste, descobrem-se os modos de ver que permitem conciliar
os contrários, e se ensina que toda crença é relativa ao seu crente, podendo as suas
contrárias ser seguidas por outros ao mesmo tempo.

A mediocridade intelectual torna o homem
solene, modesto, indeciso e obtuso. Quando esse homem não é envenenado pela
vaidade e pela inveja, dir-se-ia que dorme sem sonhar. Passeia sua vida pelas
planícies; evita olhar para os cimos que os videntes escalam, bem como
abeirar-se dos precipícios que os eleitos sondam . Vive entre as engrenagens
da rotina.

 

III — A maledicência

 

Se se limitassem a vegetar, dobrados como cariátides, sob o
peso dos seus atributos, os homens sem idéias escapariam à reprovação e ao
elogio. Circunscritos em sua órbita, seriam tão respeitáveis como qualquer objeto
que nos rodeia. Ninguém tem culpa de nascer sem dotes excepcionais; não se
poderia exigir deles que subissem às costas insidiosas, por onde ascendem os engenhos preclaros. Mereceriam a indulgência dos espíritos
privilegiados, que a não recusam aos imbecis inofensivos. Estes últimos, sendo
mais indigentes, podem ser justificados diante de um otimismo risonho: desajeitados em tudo, rompem o tédio e fazem
que a vida pareça menos longa,
divertindo os engenhosos, e aju dando-os
a atravessar o caminho. São bons companhei ros, desopilam o fígado durante a
marcha; seria necessário agradecer-lhes os serviços que prestam sem saber, Os medíocres, assim como os
imbecis, seriam credores

dessa
amável tolerância, se se mantivessem à superfície; quando renunciam a impor
suas rotinas, são simples exemplares do rebanho humano, sempre dispostos a
oferecer sua lã aos pastores.

Infelizmente, costumam esquecer a sua
hierarquia inferior, e pretendem tocar a sanfona com a irrisória pretensão de
que outros marquem o passo, ao ritmo dos seus desafinamentos. Tornam-se, então,
perigosos e nocivos. Detestam os que não podem igualar, como se eles, pelo
fato de existirem, os ofendessem. Sem azas para se elevarem até eles, decidem
rebaixá-los; a exiguidade
do
próprio valor os induz
a
roer o mérito alheio. Cravam seus dentes em toda reputação que os humilha, sem
suspeitarem que nunca a conduta humana pode ser mais vil; basta este traço,
para diferenciar o domesticado do digno, o ignorante do sábio, o
hipócrita do virtuoso, o vilão do gentilhomem. Os lacaios podem focinhar
na
fama; os homens excelentes não sabem envenenar a vida alheia.

Nenhuma cena alegórica possui eloqüência
mais profunda do que o quadro famoso de Sandro Botticelli. "A
Calúnia" convida meditar, em doloroso recolhimento; em toda a Galeria dos
Ofícios parece que ressoam as palavras que o artista — não duvidemos disto —
quis pôr nos lábios da Verdade, para consolo da Vítima: em seu ressentimento
está a medida do seu mérito.

A Inocência jaz, no centro do
quadro, intimidada, sob o gesto infame da Calúnia. A Inveja a
precede; o Engano e a Hipocrisia acompanham. Todas as paixões vis
e traidoras reúnem o seu esforço implacável, para a vitória do mal. O arrependimento
olha de esconso,
na
direção do extremo oposto, onde está, como sempre, só e núa, a Verdade; contrastando
com os ademanes selvagens de suas inimigas, ela levanta seu índice ao céu, em
apelo tranqüilo
à
justiça divina. E, enquanto a vitima junta as mãos, e lh’as
estende,
a ela, em s úplica infinita e comovedora, o juiz Midas inclina
suas vastas orelhas à Ignorância e à Suspeita.

Nesta apaixonada reconstrução de um
quadro de Apeles, descrito por Luciano, o suave pincel que transborda de
doçura na "Virgem da Romã" e no "São Sebastião", parece
adquirir firmezas dramáticas; convida ao remorso com a "Abandonadas",
santifica a vida e o amor na "alegoria da Primavera", e no
"Nascimento de Venus".

Os medíocres, mais inclinados à
hipocrisia do que ao ódio, preferem a maledicência surda à calúnia violenta.
Sabendo que esta constitue crime, e é arriscada, optam pela primeira, cuja
infâmia é sub-reptícia
e
sutil.
Uma
é audaz, outra é cobarde. O caluniador desafia o castigo, expõe-se; o
maledicente o esquiva. Um se afasta da mediocridade, é anti-social, tem o
valor de ser delinquente; o outro é cobarde e se oculta na cumplicidade dos
seus iguais, permanecendo na penumbra.

Os maledicentes florescem em qualquer
parte: nos cenáculos, nos clubes, nas academias, nas famílias, nas profissões,
acossando a todos os que perfilham alguma originalidade. Falam a meia voz, com
certo recato, constantes em seu afã de verrumar a dita alheia, semeando, a
mancheias, a semente de todas as hervas venenosas. A maledicência é uma
serpente que se insinua na conversação dos envilecidos; suas vértebras são
nomes próprios, articulados pelas palavras mais equívocas do dicionário, para
arrastar um corpo cujas escamas são qua lificativos pavorosos.

Vertem a
infâmia em todas as taças transparentes, com a serenidade de Bórgia; as mãos
que a manejam, são como as dos prestidigitadores,
destras na maneira e amáveis na forma. Um sorriso, um encolher de ombros,

um
franzir de testa, como sublinhando a possibilidade do mal, bastam para macular
a probidade de um homem, ou a honra de uma mulher. O maledicente,
cobarde entre
todos os
envenenadores, está
certo da sua impunidade: por isso, é desprezível. Não afirma; insinua; chega
até a desmentir imputações
que
ninguém faz, contando com a irresponsabilidade de fazê-los por essa forma.
Mente com espontaneidade, como respira. Sabe selecionar o que vai convergir com
a detração. Diz, distraidamente,
todo
o mal de que não está seguro, e cala, com prudência, todo o bem que sabe. Não
respeita as virtudes íntimas, nem os segredos do lar, nada; injeta a gota de peçonha que assoma como
uma erupção aos seus lábios irritados, até que, de toda boca, feita uma
pústula, o interlocutor espera ver sair, em vez da língua, um estilete .

Sem cobardia, não há maledicência.
Aquele
que pode gritar, face a face, uma injúria, aquele que denuncia, em voz alta,
um vício alheio, aquele que aceita os riscos dos seus dizeres, não é um maledicente.
Para
sê-lo, mister se faz que trema diante da idéia do castigo possível, e que se
oculte sob disfarce menos suspeito.

Os piores são os que maldizem elogiando:
batem seus aplausos com reservas arremangadas, mais graves do
que as piores imputações.
Esta
baixeza no pensar é uma insidiosa maneira de praticar o mal, de
efetuá-lo potencialmente, sem valor da ação retilínea.

Se estes basílicos falantes possuem
algum verniz de cultura, pretendem encobrir sua infâmia com o pavilhão da
espiritualidade. Vã esperança; estão condenados a perseguir a graça e a
tropeçar com a perfídia. Sua burla não é sorriso, é esgar. O hábito pode tornar-lhes
fácil a malignidade
zombadora, mas
esta não
se
confunde
com a ironia sagaz e justa. A ironia é a perfeição
do engenho, uma convergência de intenção e de sorriso, aguda na oportunidade justa
na medida; é um cronômetro; não anda muito, mas anda com precisão .

O medíocre ignora isso. É-lhe mais fácil
ridicularizar uma ação sublime, do que imitá-la. Nas sobremesas subalternas,
a su adicacidade urticante
pode
confundir-se com a gra ça, enquanto a cumplicidade maledicente a ampara;
falta-lhe, entretanto, o aticismo sadio daquele que perdoa, porque compreende
tudo, e essa inteligência cristalina que permite decifrar a verdade na própria
entrada das coisas que o vai-e-vem mundano submete à nossa experiência. Esses ofídios têm malignidade
perversas
devidas à falta de fidalguia; com mesurada condolência,
disfarçam o ressentimento da sua inferioridade humilhada. Os caluniadores minúsculos,
são mais terríveis; como as forças moleculares, que ninguém vê, mas que
carcomem os metais mais nobres. O maledicente, ao semear as
suas mancheias de esterquilínio, nada teme: sabe que tem, atrás de si, uma
inumerável chusma
de
c úmplices, prontos a se regozijarem toda vez que um espírito omisso confabula
contra
uma estrela.

O escritor medíocre é pior pelo seu
estilo, do que pela sua moral.

Arranha, timidamente, os que inveja; em
seus arranques, nota-se a temperança do medo, como se os perigos da
responsabilidade os assustassem. Esse sentimento abunda entre os maus
escritores, embora nem todos os medíocres consigam sê-lo; muito se limitam
a ser terrivelmente aborrecedores, acossando-nos com volumes, que poderiam
terminar no primeiro parágrafo Suas páginas
estão recheadas de lugares comuns, como os exercícios dos guias poliglotas.
Descrevem tropeçançando contra a realidade que operam, e não retortas que distilam; e
se desesperam
ao pensar
que o decalque não
está
incluido entre as belas artes. Quando acometem
a
literatura, dir-se-ia que Vasco da Gama empreende a descoberta
dos
lugares comuns,
sem vislumbrar
o cabo de uma
boa
esperança;
quando patinham as ciências, o seu andar
é de mula
montanheza,
detendo-se a ruminar
o
penso
pastado
meio
século antes
pelos seus
predecessores. Esses fiéis da rapsodia e da paráfrase
praticam essa pudibunda modéstia que
é a sua
mentira
convencional; admiram-se entre si, com solidariedade de
igrejola, execrando qualquer sopro de ciclone,
ou revolutear de águia. Empalidecem diante do orgulho desdenhoso dos homens
cujos ideais não sofrem inflexões; fingem não compreender essa virtude de
santos e de sábios, supremo desprezo de todas as mentiras por eles veneradas. O
escritor medíocre, tímido e prudente, é inofensivo. Somente a inveja consegue
merecer seus cuidados; neste caso, prefere transformar-se em crítico.

O medíocre falante é pior por sua moral,
do que por seu estilo; a sua língua se centuplica em abundancias
acicaladas, e
as palavras rodam sem a trave da ulterioridade. A maledicência
oral tem eficácias imediatas, pavorosas. Está em toda parte, agride em qualquer
momento. Quando se reúnem espíritos maldosos, para se exercitarem em dizer
tolices sem interesse para quem os ouve, o terreno é propício para que o mais
aleivoso comece a maldizer algum ilustre, rebaixando-o até o seu próprio nível.
A eficácia da difamação tem a sua raiz na complacência tácita daqueles que a
ouvem, na cobardia coletiva
de
quantos a podem ouvir, sem se indignarem; morreria, se eles n ão lhe preparassem
uma atmosfera vital. É esse o seu segredo. Semelhante à moeda falsa: é posta
em circulação, sem escrúpulos, por muito que teriam a coragem de cunhá-las. 

As línguas mais amargas são as daqueles
que têm menos autoridade moral, como ensina Molière, no primeiro ato
de Tartufo:

Ceux de qui la conduite offre le
plus
à rire Sont toujours sur autrui les
premier
s à medirei’.

Dir-se-ia que empanam a reputação
alheia, para diminuir o contraste que forma com a própria. Isso não exclue que
existam estabanados
cuja
culpa é inconciente:
maldizem
por ociosidade, ou por divers ão, sem suspeitar para onde conduz o caminho a que
se aventuram. Ao referir uma falta alheia, põem certo amor próprio em ser
interessantes, aumentando-a ador-nando-a, passando insensivelmente da verdade à
mentira, da torpeza à infâmia, da maledicência à calúnia.

 

IV — A Senda da Glória

O homem medíocre que se aventura à lição
social, tem apetites urgentes: o êxito. Não suspeita da existência de outra
coisa —
a
glória —
almejada
somente pelos caracteres superiores. Aquele é triunfo efêmero; esta é
definitiva, inacessível através dos séculos. O êxito se mendiga; a glória se
conquista.

É
desprezível todo cortezão da mediocracia em que vive; triunfa humilhando-se,
reptando, a furtadelas, na sombra, disfarçado, apoiando-se em cumplicidade de
inúmeros seus semelhantes. O homem de mérito adianta se ao seu tempo, tem a
pupila posta em um ideal; impõe-se dominando, iluminando,
fustigando, em plena luz, a rosto
descoberto, sem se humilhar, alheio a todos os disfarces
e arcaísmo do servilismo e da intriga.

A
popularidade oferece perigo. Quando a multidão crava
seus olhos, pela primeira vez, em um homem, esquece de si próprio,
para pensar somente nos outros. É preciso pôr mais longe a intenção e a
esperança, resistindo às tentações do aplauso imediato; a glória é mais difícil
de ser conquistada, mas é mais digna.

A vaidade impele o homem vulgar a
procurar um emprego respeitável na administração do estado, mesmo indignamente,
se
fôr necessário; sabe que a sua sombra assim o exige.

O homem excelente é reconhecível,
porque é capaz
de renunciar a toda
prebenta
que tenha por preço uma partícula de sua dignidade. O gênio move-se em sua
própria órbita, sem esperar sanções fictícias de ordem política, acadêmica ou
mundana; revela-se pela perenidade da sua irradiação, como se sua vida fosse um
perpétuo amanhecer.

Aquele que flutua na atmosfera, como uma
nuvem, sustentado pelo vento da cumplicidade alheia, pode abocar, pela adulação,
o
que outros deveriam receber por suas aptidões; mas, quem obtém favores sem ter
méritos, deve tremer: fracassará, depois, cem vezes, a cada mudança da direção
do vento.

Os nobres engenhos só confiam em si
próprios; lutam, suplantam os obstáculos, impõem-se. Seus caminhos são
verdadeiramente seus; enquanto que o medíocre B6 entrega ao erro
coletivo que o arrasta, o homem superior vai contra êle, com energias inesgotáveis,
até desobstruir sua rota.

Merecido ou não, o êxito é o álcool dos
que combatem, A primeira vez embriaga; o espírito se
rende, insensivelmente;
depois,
converte-se em invencível necessidade. O primeiro, grande ou pequeno, é
perturbardor.

Sente-se uma indecisão estranha, um prurido moral que
deleita e que molesta, ao mesmo tempo, como a emoção do
adolescente que se encontra a sós, pela primeira
vez, com a mulher amada: emoção que terna e violenta, que estimula e coíbe
a um tempo, que instiga e amedronta.

Encarar de frente o êxito, equivale
a
assomar-se a um precipício: retrocede-se a tempo, ou se cai dentro dele, para sempre. É
um abismo irresistível, como uma boca juvenil que convida ao beijo; poucos
retrocedem. Imerecido, é um castigo, um filtro que envenena a vaidade, e
torna infeliz para sempre; o homem superior, ao contrário, aceita, como simples
antecipação da glória, esse pequeno tributo da mediocridade, vassala dos seus
méritos.

Apresenta-se sob cem aspectos, tenta de
mil maneiras diferentes. Nasce por um acidente inesperado, chega por azinhagas
invisíveis.
Basta o simples elogio de um professor estimado, o aplauso ocasional de uma
multidão, a conquista fácil de uma mulher formosa; todos se equivalem,
embriagam
da mesma mentira. Com desta embriaguez; a única coisa difícil é iniciar esse
costume, como acontece para com todos os vícios. Depois, já não se poderá
viver sem o tóxico vivificador, e esta ansiedade atormentará a
existência daquele que não tem azas para ascender sem o auxílio de cúmplices
ou de pilotos. Para o homem acomodatício, há uma certeza absoluta: seus êxitos
são ilusórios e fugazes, por mais humilhante que haja sido o esforço para o
conseguir. Ignorando que a árvore espiritual tem frutos, preocupa-se com a
colheita da folhagem; vive no aleatório, espreitando as ocasiões propícias.

Os grandes cérebros ascendem pela senda exclusiva do
mérito; ou então, por nenhuma. Sabem que, nas mediocracias é costume seguir por
outros caminhos; por isso, nunca se sentem vencidos, nem com um contraste
sofrem mais do que gozariam com êxito: estas duas coisas são
obras dos outros. A glória depende de parte mais cruel de toda a
proeminência que tem fundamento no capricho alheio, ou em aptidões físicas
transitórias. O público oscila com a moda; o físico se gasta. A fama de um
orador, de um esgrimista, ou de um comediante, dura tanto, quanto uma
juventude; a voz, as plorestadas e os gestos, cedo ou tarde devem acabar,
deixando aquilo que, no belo frasear dantesco, representa a dor; recordar, na
miséria, o tempo feliz.

Para estes triunfadores acidentais, o
instante em que se dissipa o seu erro, deveria ser o último de sua vida. Volvei- à
realidade é uma suprema tristeza. É preferível que um Otelo excessivo mate,
realmente, sobre o tablado, uma Desdêmona próxima da velhice, ou que um
acrobata quebre a espinha dorsal num salto prodigioso, ou que um orador sofra
a ruptura de um aneurisma, ao falar diante de cem mil homens que aplaudem, ou
ainda que um Dom Juan seja apunhalado pela amante mais formosa e sensual. Já
que se mede a vida por suas horas de felicidade, seria conveniente despedir-se dela
sorrindo, encarando-a de frente, com dignidade, com a sensação de que se
mereceu vivê-la até o último instante. Toda ilusão que se desvanece, deixa,
atrás de si, uma sombra indissipável.

A fama e a celebridade não são a glória;
nada mais falaz do que a sanção dos contemporâneos e das multidões.

Condividindo as rotinas e as
debilidades da medio-cridade ambiente, é fácil converter-se em
protótipos da massa, a ser pro-homem entre os seus iguais;
mas quem assim
culmina,
morre com eles. Os gênios,
os
santos e
os
heróis
desdenham toda submissão ao presente, e conservam a proa
em direção de um ideal remoto: são os pro-homens da
história.

A Integridade moral, e a excelência de caráter são
virtudes
estéreis
nos ambientes rebaixados, mais acessíveis aos apetites do domesticado,
do que à altivez do digno: neles se incuba o êxito falaz. A
glória nunca cinge de louros a fronte daquele que se
emaranhou entre as rotinas do seu tempo; tardia, freqüentemente, póstuma, às
vezes, embora sempre segura, sói ornar a fronte daqueles que olharam para o
futuro, serviram um ideal, praticando o lema que foi a nobre divisa de Rousseau: vitam impendere vero.


 Fonte: Livraria Paratodos, 1953

 

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