A perseguição aos índios nos primórdios de São Paulo – História do Brasil

Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)

História do Brasil

Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.

TOMO II

CAPÍTULO XI

A capitania geral de São Paulo

 

A parte nordeste da antiga capitania geral, a atual província de São Paulo, prende a nossa atenção no mais alto grau; pois, embora a história do seu território não possa de todo rivalizar em diversidade e abundância de acontecimentos notáveis com a de Pernambuco, por exemplo, todavia nenhuma outra das províncias brasileiras exerceu em tão largo círculo influência na colonização das terras vizinhas, ora com ação fecunda, ora destruidora.

121 No ano financeiro de 1854-5.5, exportou Santos o valor total de 3.367 contos, de café 2.960; Paranaguá, um valor total de 811 contos, de mate 715; o mate era no total exportado no valor de 739 contos. A importação estrangeira é pequena em ambos esses portos, respectivamente, no valor de 372 e 364 contos; ela é realizada por intermédio do Rio de Janeiro (Nota do autor).

 

Já em outros pontos foram detalhadamente citados os começos históricos de São Paulo; igualmente a cooperação dos paulistas na primeira colonização do Rio de Janeiro, que em certa medida pode ser considerada como seu Estado-filho primogênito; finalmente, nos fins do século XVI, tivemos que partir o fio da história provincial, numa época em que a questão dos índios estava na ordem do dia para a província.

Como se sabe, era objeto da contenda um princípio, segundo o qual o clero e, sobretudo, a Companhia de Jesus, combatiam pela liberdade e igualdade de direitos da raça humana dos índios, ao passo que, por outro lado, os possuidores do solo e fazendeiros, embaraçados pela falta de braços para o trabalho, reivindicavam como seu direito adquirir, por meio de presa de guerra, caçada ao homem e compra, a raça dos índios em escravidão hereditária; e entre esses dois extremos o governo ficava indeciso, balançado de um lado para o outro, procurando, ora de um modo ora de outro, estabelecer uma acomodação.

Esta questão de índios, que surgiu, em meados do século XVI (cap. III), interessou no princípio todo o Brasil; todavia, foi relegada para segundo plano nas províncias centrais, Pernambuco, Bahia, onde o tráfico de negros fornecia continuamente novos braços de trabalho. Só no extremo norte e no extremo sul essa questão tomou importância histórica; e acolá, no Estado do Maranhão (cap. VII), já tivemos ocasião de acompanhar até ao fim as suas vicissitudes; ali também expusemos a série de providências legislativas que deram lugar à solução final. Aqui em São Paulo e nas regiões vizinhas, ao contrário, estas leis em pouco influíram; não o direito escrito, mas o direito de fato decidiu da questão.

No princípio do século XVII, em São Paulo (então capitanias de São Vicente e de Santo Amaro), os indígenas da costa estavam absorvidos por casamentos mistos ou subjugados como escravos; igualmente no Rio de Janeiro. Não obstante, era sempre sensível a falta de trabalhadores, e daí a razão por que se considerava único recurso a captura ininterrupta de servos índios. Ora, ainda existiam nas vizinhanças alguns aldeamentos de índios livres e mansos, sob a proteção dos jesuítas; estes foram visados em primeiro lugar: as autoridades da Câmara de São Paulo exigiram (1,5 de agosto de 1611) que fosse facultado aos fazendeiros tomar de aluguel trabalhadores entre esses índios. Daí sem dúvida ter-se-ia criado pouco a pouco um direito, e para os índios uma obrigatoriedade, nesse serviço de aluguel; todavia os missionários negaram o assentimento, e empregar violência não ousaram aqui os fazendeiros, sob as vistas das autoridades.

Por isso, tomava agora sempre maior incremento a costumada caçada ao homem; conduzidas por experimentados mateiros, embrenhavam-se as expedições pelo sertão a dentro, atacavam as aldeias de índios a ferro e a fogo, e os que apanhavam, homens, mulheres e crianças, eram levados amarrados, a fim de serem vendidos, como escravos, nos mercados de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Assim continuou sem interrupção, apesar de todas as reclamações da Companhia de Jesus, apesar de repetidas leis e proibições; a caçada ao escravo tornou-se uma verdadeira profissão; e, se também muitos paulistas sucumbiam às canseiras e privações das viagens ou nos combates, sempre se achavam novos participantes para tais expedições. Afinal as terras altas de São Paulo ficaram completamente desertas e os incansáveis caçadores de homens tinham que perseguir e acuar o selvagem na região do Paraná. Ali eles se encontraram de novo com os seus antagonistas por princípio, de cujo caminho eles se arredavam para as costas do Atlântico: os jesuítas, amigos dos índios.

Foi assim. No fim do século XVI, quando a colonização brasileira em São Paulo ainda se limitava à costa e à orla do planalto, a colonização espanhola, que desde a foz do Prata rapidamente subira ao longo dos rios Paraguai-e Paraná, havia já alcançado até mesmo as terras do interior dessa província; dentro da atual província do Paraná (os espanhóis deram então a essa região marginal do rio o nome de distrito de Guaíra), foram construídas duas pequenas cidades espanholas, Ciudad Real de Guaíra, na foz do rio Piquiri ou Itatim (1557), e Vila Rica, no rio Ivaí (1576). E, nos arredores dessas cidades, a Companhia de Jesus havia começado entre os índios a mesma obra humanitária da catequese e civilização, como no vizinho Paraguai e em tantas outras partes da América espanhola e portuguesa; a sua mais antiga redução era Loreto, no curso superior do Paranapanema, fundada em 1610; agora, em 1625, existiam mais de dez, com considerável população, e sempre, cada vez mais numerosas, ali recorriam as tribos índias caçadas, em busca de acolhida.

Como se pode imaginar, os paulistas, que consideravam o índio sua legítima presa, não ficaram satisfeitos por encontrarem, como na costa, também aqui às margens do Paraná, estações jesuíticas que ofereciam asilo aos indígenas e estorvavam as suas caçadas ao escravo. Se aqueles aldeamentos da costa, sob a proteção da própria bandeira portuguesa e situadas numa região de caçada já esgotada, já contrariavam aos caçadores de homens, quanto mais estas reduções espanholas, que ameaçavam ocupar e obstruir o sertão ainda rico em população indiana.

Vários atritos excitaram ainda mais o rancor, até que afinal em São Paulo se chegou à convicção de que, para manter a rendosa indústria da caçada ao escravo, para poder explorá-la à maneira antiga, com sucesso, seria de absoluta necessidade romper e destruir a série de missões do Paraná. Daí em diante, cada vez mais as expedições dos paulistas foram tomando feição bélica, e em breve chegou-se mesmo à guerra aberta.

Devemos a este respeito lembrar que, justamente então, os reis da casa de Habsburgo, Filipe II, III e IV, reuniam na sua cabeça as coroas de Espanha e Portugal. Esta guerra não incorria, portanto, em nenhuma sanção do direito internacional, nem oferecia pretexto qualquer para isso; as autoridades de São Paulo conservaram-se alheias a toda participação; uma ordem real de 18 de setembro de 1628 proibia mesmo aos paulistas, terminantemente, toda hostilidade contra as missões do Paraná e ameaçava com severo castigo os transgressores.

Também não podia ser questão de guerra nacional de limites, que, apesar da união hispano-portuguesa, sempre poderia ter lugar; sem dúvida, esbarraram aqui no Paraná, pela primeira vez, os extremos pioneiros da colonização espanhola do Prata com os da luso-brasileira; e, como até aqui nada se havia feito para uma determinação das fronteiras, assim ambos podiam apresentar pretensão de posse; todavia não se tratava disso.

O ataque dos paulistas visava exclusivamente aos jesuítas e aos seus pupilos índios, ao passo que as colônias puramente espanholas não foram de todo molestadas, por enquanto; os colonos espanhóis de seu lado, não menos que os seus vizinhos brasileiros, cobiçando os escravos índios, não fizeram também o menor gesto para proteger as missões; mesmo secretamente talvez fizessem causa comum com os paulistas.

Portanto, não temos aqui senão uma guerra de caçadores de índios contra os protetores de índios, destituída de todo pretexto, toda desculpa e que em absoluto constitui uma das manchas mais negras da história do Brasil. Porém a sua importância, as suas conseqüências históricas foram incalculáveis!

Se as reduções do Paraná não houvessem sido destruídas oportunamente, houvessem em vez disso tido tempo os jesuítas de levar mais adiante a sua série de missões por todos os lados, pelo sertão, teriam com isto posto um dique a todo adiantamento da colonização lusitana, e, de todo o conjunto da bacia do Prata, o Brasil não seria aquinhoado com nenhuma porção: em Goiás e Mato Grosso, no interior de São Paulo e de São Pedro, dominaria atualmente a nacionalidade hispano-americana, não a brasileira.

A guerra de extermínio contra as reduções do Paraná consistiu numa série de expedições anuais, que em São Paulo, mesmo sob as vistas das autoridades, contudo sem participação qualquer delas, eram preparadas inteiramente à custa de particulares; apresentava-se um chefe, ao qual se reunia quem quisesse, e, assim, dentro em breve se punha em campo, ora um bando expedicionário, ora diversos ao mesmo tempo.

Primeiramente, foi ameaçada, no ano de 1628, a missão de Encarnación; todavia não se chegou a formal ataque, e os paulistas, depois de haverem’apanhado nos arredores um certo número de índios da missão, regressaram para casa. Porém no ano seguinte, 1629, mobilizaram-se 900 paulistas e 2.000 índios aliados, assim se conta, e assumiu o comando Antônio Raposo, um experimentado caçador de índios. Os jesuítas no Paraná foram desta vez avisados a tempo; orecém-nomeado governador espanhol do Paraguai, que justamente então passava por Santos e seguia por terra a tomar conta do seu cargo, havendo visto em São Paulo os preparativos militares, com os próprios olhos, informou-os do iminente perigo; porém aos seus rogos de lhes prestar auxílio militar, ele não deu ouvidos; também dos vizinhos espanhóis em Vila Rica e Ciudad Real nada eles puderam conseguir, e assim tiveram os missionários que se preparar para o extremo.

Apenas chegados os paulistas às vizinhanças, logo procuraram e acharam um pretexto para contenda: um cacique índio, que numa de suas correrias eles haviam apanhado, soltou-se dos seus grilhões e pediu proteção à missão de Santo Antônio; exigiram os paulistas a sua entrega; porém o superior, padre Mola, respondeu que não devia e não podia entregar para presa da escravidão um homem nascido livre, que estava sob a proteção do rei.

Nas circunstâncias do momento, era grande ousadia; porém o padre Mola sabia muito bem o que fazia, e que a submissão covarde dificilmente lhe teria servido para alguma coisa; mal havia ele despedido os mensageiros com a resposta negativa, foi cuidar apressadamente de preparar para a morte a sua comunidade, cujas vidas não mais podia salvar; todos os recém-convertidos receberam o batismo; depois esperaram com resignação piedosa o inimigo que se aproximava. Na manhã seguinte, os paulistas investiram à viva força e penetraram na missão; as exortações, os rogos e lágrimas do padre foram desatendidos ou respondidos com descarada insolência; em breve foi vencida a pouca resistência que os índios desarmados podiam prestar; só poucos conseguiram fugir; os restantes imploraram misericórdia e consentiram que os manietassem; viu assim o padre Mola carregarem com mais de mil dos seus convertidos, ao passo que ele próprio, no meio dos corpos dos trucidados, ficava só na missão incendiada.

Igual sorte tiveram mais três outras missões; então a rapacidade dos paulistas se satisfez por esta feita, e trataram de tomar o caminho de regresso, levando atrás de si o longo séquito sinistro dos índios amarrados, homens, mulheres e crianças, tangidos a chicote. Eram os prisioneiros no início em número de cinco mil; porém a maioria sucumbiu durante a marcha através das selvas, às privações, padecimentos ou desgosto íntimo; quando os caçadores de homens, depois de nove meses de ausência, alcançaram São Paulo, só traziam 1.500 escravos ao mercado; todavia, vangloriaram-se de ainda não haver obtido tão rica presa como desta vez (1629-30).

Porém, logo nas suas pegadas seguiram os acusadores; dois jesuítas, Monsilla e Manceta122, superiores de uma das missões destruídas, haviam seguido a rota das tropas expedicionárias dos paulistas, a grande distância, desde o Paraná até ali, e haviam prestado a muitos índios, que inteiramente exaustos morriam de fome, os últimos socorros; finalmente, chegaram a São Paulo, contaram os horrores de que haviam sido testemunhas de vista, e reclamaram justiça.

Todavia as autoridades, aqui e na vizinha Rio de Janeiro, estavam em conivência demasiado estreita com os interesses da aristocracia rural para desaprovar o acontecido, senão para salvar as aparências; em ambos os lugares foram os santos padres entretidos com palavras bonitas, afinal aconselhados a levar as suas queixas ao governador-geral do Brasil. Eles viajaram para São Salvador, onde o governa-dor-geral, conde de Miranda, ouviu, com interesse, as suas queixas e reclamações; porém ele estava no momento — depois da conquista de Recife pelos holandeses — ocupado noutro sentido, muito ocupado demais para poder prestar-lhes auxílio sério; e o que eles reclamavam, entrega dos índios levados por violência, era materialmente impossível, depois de haverem estes sido espalhados, por compra ou permuta, em todos os sent-idos na"província; ele lhes deu, por este motivo, somente um comissário, que devia investigar o fato no local.

Disso pouco caso fizeram os paulistas; apenas de novo em São Paulo, foram ambos os jesuítas espanhóis logo lançados num cárcere; o comissário, por seu lado, quando de conformidade com a sua incumbência colhia informações, viu-se ameaçado de morte, e tratou de retirar-se quanto antes da província; somente às reclamações de seus irmãos brasileiros da ordem, foram Monsilla e Manceta libertados do cárcere e regressaram ao Paraguai espanhol, com o coração apertado, porém com a consciência do dever plenamente cumprido.

O sucesso e a impunidade, que a sua primeira expedição depredatória havia obtido, animou naturalmente os paulistas para novas empresas deste gênero: anualmente punha-se em campo, pelo menos, um bando armado em guerra; foram destruídas muitas das reduções dos jesuítas espanhóis, e, dentro de poucos anos, estava a obra das missões, por assim dizer, exterminada no alto Paraná. Muitos milhares de índios foram arrastados ao cativeiro; outros desconfiaram dos missionários, como se estes os houvessem reunido em grande multidão em torno da cruz somente para facilitar aos ladrões de homens as suas capturas. E, de fato, ao assalto de uma missão caíam nas mãos dos vencedores mais escravos do que antes com expedições durante anos; eles abandonaram, assim, as reduções e voltaram ao seu antigo modo de vida selvagem; os míseros restantes foram reunidos pelos padres da Companhia de Jesus e levados, em peregrinação penosa e demorada, para o sul, ao próprio território das missões, entre os rios Paraná e Uruguai (Entre Rios), ou para oeste, ao Paraguai.

A região no Alto Paraná, a antiga província espanhola Guaíra, ficou, portanto, completamente desocupada pelos jesuítas espanhóis e os seus pupilos índios; apenas duas colônias exclusivamente espanholas ali ainda restavam, Ciudad Real de Guaíra e Vila Rica; e agora também elas entraram em discórdia com os paulistas.

O motivo era fora de dúvida. Já vimos que os habitantes espanhóis de ambas as cidades haviam permanecido completamente neutros; eles próprios, cobiçosos de escravos índios, jamais haviam sido favoráveis aos missionários; e, quando a desgraça feriu a estes, não só lhes recusaram qualquer auxílio, mas até se aproveitaram da oportunidade para seu interesse: repetidas vezes haviam apanhado para si os índios dispersados das missões, que escapavam dos paulistas; tornavam-nos seus escravos, nem se dignavam de dar uma resposta às queixas dos jesuítas.

Pode-se, portanto, imaginar que, uma vez o país desocupado, eles passaram mais ativamente à caçada da restante população indígena, e nisso se encontraram em conflito com os paulistas caçadores de homens; rebentou uma guerra pelo território, na qual os espanhóis foram derrotados; os paulistas, inebriados pelo triunfo, conquistaram, saquearam e destruíram ambas as aldeias e apagaram assim os últimos vestígios da colonização espanhola. Foram deste modo ganhas para o Brasil as selvas à margem esquerda do Alto Paraná, o interior das atuais províncias de São Paulo e Paraná.

Todavia não ficaram satisfeitos com isto os paulistas; a região de caçada recém-conquistada oferecia poucas presas humanas, e eles achavam mais cômodo buscá-las, aos bandos, nas reduções espanholas; por esta razão, seguiram no encalço da Companhia de Jesus e embrenharam-se pelo Paraná inferior, assim como na região das nascentes do Uruguai, e ali destruíram muitas missões, apenas fundadas, de sorte que os superiores da obra das missões tiveram que pensar em preparar-se para séria resistência.; eles abandonaram, um após o outro, os seus postos avançados, aconchegaram as suas colônias umas às outras, muniram os seus neófitos índios com armas de fogo; então lhes foi possível, quando não sempre, todavia freqüentemente, defender-se com sucesso contra os brasileiros ladrões de homens. Porém, com a guerra contínua, mesmo quando lhes coubesse sempre o sucesso, nada podiam lucrar os missionários; eles necessitavam e almejavam uma paz estável para a sua obra de conversão e civilização, segurança de direito, e isso não podiam nem queriam proporcionar-lhes as autoridades brasileiras.

Depois de repetidas e baldadas reclamações, feitas em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, resolveram os jesuítas, por esta razão, apelar diretamente para a proteção do rei Filipe IV, que então governava os reinos unidos de Espanha e Portugal, e em seguida para a da Santa Sé; dois irmãos da ordem partiram de Buenos Aires, um, Ruiz de Montoya, para Madri, o outro, Francisco Diaz Tanno, para Roma; e em ambos os lugares alcançaram o que pediam.

O rei renovou todas as leis já existentes em favor dos índios; aprovou as medidas preventivas tomadas e colocou os membros das missões espanholas na bacia do Prata sob a imediata proteção da coroa da Espanha; ao mesmo tempo profligou as expedições depredatórias dos paulistas, como contrárias a todas as leis divinas e humanas, ordenou a restituição de todos os escravos roubados e ameaçpu, no caso de reincidência, com um processo perante o Santo Oficio, com o castigo de alta traição. Por seu lado, o papa Urbano VIII ordenou que a bula de 1539, que o seu antecessor Paulo III havia publicado em favor dos indígenas do Peru, também servisse para o bem dos índios da bacia do Prata, e ordenou a publicação oficial da mesma, sem demora, no Brasil; esta bula ameaçava com a excomunhão todo aquele que matasse um índio, ou o escravizasse ou vendesse (1638-39).

Munidos com estes documentos, embarcaram de novo os mensageiros e dirigiram-se primeiro a São Sebastião (Rio de Janeiro), onde o padre Tanno tratou logo de dar cumprimento à sua incumbência; depois de haver obtido a licença do prelado diocesano, e de se haver entendido com os irmãos da ordem, brasileiros, foi lida solenemente a bula papal aqui, na igreja do colégio dos jesuítas.

Porém, não se haviam calculado certo as conseqüências; a aristocracia de fazendeiros do Rio de Janeiro estava em estreitas relações com a de São Paulo; o seu mercado de escravos era abastecido pela caçada ao homem dos paulistas, e, em referência à raça dos índios, eram do mesmo ponto de vista; assim a notícia do que havia acontecido produziu o mais geral descontentamento. Com furioso vozerio, apinhou-se o povo tumultuariamente diante do colégio, arrombou as portas; e teriam tombado vítimas do furor popular pelo menos os jesuítas estrangeiros, se o lugar-tenente da coroa, Salvador Correa de Sá e Benevides, não houvesse intervindo a tempo e não houvesse provisoriamente sossegado a população enfurecida.

Por sua mediação foi então ajustado um acordo (22 de julho de 1640), pelo qual a Companhia de Jesus devia desistir de toda publicação futura e execução da citada bula no Brasil, de todos os direitos especiais que a mesma lhe facultava, e devia prometer não armar demanda ou intentar processo por motivo da mesma contra os detentores de escravos; além disso, deviam os irmãos da ordem prometer que de modo algum se imiscuiriam na economia das fazendas e no que dizia respeito a escravos particulares, nem proporcionarem asilo a qualquer um destes últimos nos seus aldeamentos.

Assim, a vitória que os jesuítas espanhóis haviam obtido em Roma e Madri inverteu-se em completa derrota aqui no Rio de Janeiro; eles haviam esperado que a bula do papa lhes conseguisse a restituição dos neófitos raptados, ou pelo menos uma paz estável para o futuro de suas missões; em vez disso, tinham que se retirar de mãos vazias, sem esperança alguma. E, ainda mais, viam o direito de proteção, exercido por seus irmãos brasileiros da ordem sobre a raça índia, muitíssimo diminuído, a situação dos índios na costa do Atlântico extremamente piorada.

Assim aconteceu no Rio de Janeiro; ainda muito mais graves foram os sucessos no próprio foco da questão dos índios. Quando em São Vicente e em São Paulo foi conhecida a bula de Urbano VIII, toda a população se levantou como um só homem, e, depois de um pavoroso tumulto, no qual nem as vestimentas sacerdotais garantiam proteção, foram em ambos os lugares expulsos os jesuítas dos seus colégios e da província (13 de julho de 1640).

O governador do Rio de Janeiro, Salvador Correa de Sá e Benevides, encarregou-se também aqui da mediação, e a cidade de São Vicente concedeu, sob as mesmas condições que no Rio de Janeiro, a volta dos irmãos da ordem expulsos; porém a cidade de São Paulo e os fazendeiros das terras altas se obstinaram na sua recusa, de sorte que afinal chegaram a formal rompimento com o lugar-tenente da coroa.

No meio destas perturbações da ordem, chegou da mãe-pátria a notícia da revolução de Lisboa, de l9 de dezembro de 1640, e da elevação do duque de Bragança ao trono; a 10 de março de 1641, prestava o Rio de Janeiro juramento de fidelidade ao novo rei, d. João IV; igualmente o fizeram nas semanas próximas as cidades de São Vicente e de Santos; somente São Paulo hesitou muito tempo e não deu consideração alguma às ordens de Salvador Correa; até, a darmos crédito a uma tradição da província, chegou-se aqui a pensar numa separação da mãe-pátria, em deixar de fazer parte do império colonial brasileiro.

Parece que aqui não se tinha mais o sentimento de coesão nacional, e a população havia de fato, no que diz respeito à nacionalidade, experimentado mais forte mistura do que em qualquer uma das outras províncias suas irmãs; por um lado, no princípio, haviam os casamentos mistos introduzido forte contingente de sangue índio; depois, antigamente, aventureiros de diferentes nações — sabemos ao menos de ingleses e franceses — ali imigraram, e mais tarde, quando, sob a dominação espanhola, uma lei proibiu a entrada de estrangeiros no país, continuaram em todo caso a vir numerosos espanhóis. Além disso, estavam os paulistas desde muito emancipados das autoridades, desacostumados da obediência; ao passo que o povo, apesar da ainda subsistente biseção feudal, se mantinha unido pela próxima vizinhança e comunhão de interesses e, assim, fazia frente como forte unidade, por seu lado as famílias dos donatários de São Vicente e de Santo Amaro estavam continuamente em luta umas com as outras, e os seus funcionários estorvavam-se reciprocamente, de modo que elas não podiam exercer influência alguma; todo o poder estava com o povo ou, com maior verdade, nas mãos da aristocracia de fazendeiros e das autoridades municipais e provinciais, eleitas pela comunidade.

Na verdade tinha o lugar-tenente régio do feudo real do Rio de Janeiro um certo direito de superintendência sobre a província feudal vizinha; porém o seu poder raramente se exercia além da costa; serra acima, na cidade de São Paulo, só vigoravam as suas ordens, as suas leis, quando agradavam; o povo fazia o que bem lhe parecia123; e acabamos de referir como, justamente então, entre Salvador Correa de Sá e os paulistas se havia chegado a rompimento formal*.

Não há que admirar que nestas circunstâncias a essa aristocracia de fazendeiros ocorresse idéia de que podia e devia desligar-se de toda dependência, estabelecer em São Paulo um reino autônomo, isto é, naturalmente, uma república aristocrática com chefia monárquica.

123 Este estado de coisas evidentemente levou à errônea concepção, que se encontra em tantas obras históricas mais antigas, segundo a qual teria existido em São Paulo uma república independente de mamelucos (cruzamento de sangue branco e índio). (Nota do autor.)

 

Mirando a isso, tinha-se em vista para o trono um dos mais ricos fazendeiros, Amador Bueno Ribeiro, que, filho de um imigrante espanhol de Sevilha, descendia por sua mãe de uma das principais famílias portuguesas, e por seus nove filhos era. aparentado com as mais poderosas famílias de fazendeiros da província. À frente de sua residência, na cidade de São Paulo, reuniu-se o povaréu e em tumulto o aclamou rei; porém Amador Bueno não ousou segurar a oferecida coroa, ou percebeu, com correto julgamento, as circunstâncias e desdenhou o papel de um rei títere; respondeu então com o brado: "Viva o rei d. João IV!"; em seguida safou-se por uma porta dos fundos e refugiou-se num mosteiro beneditino, cujas portas se fecharam atrás dele; também ali o acompanhou o povo com aclamações turbulentas e não queria contentar-se com a sua obstinada recusa, até que afinal o abade e os religiosos se puseram de permeio; o mesmo fizeram o clero civil e a parte sensata da população, e, a seus conselhos, afinal, acalmou-se a multidão turbulenta; desistiu-se do plano, ainda não amadurecido, da formação de um Estado independente de São Paulo, e proclamou-se o duque de Bragança como rei d. João IV.

O ato de submissão nada mudou nas condições internas de São Paulo; durante muitos anos existiu o governo independente ou, para dizer melhor, a anarquia, à maneira antiga.

Tanto depois, como antes, recusaram os paulistas decisivamente conformar-se com as exigências do lugar-tenente da coroa no Rio de Janeiro e receber de novo os jesuítas, de sorte que Salvador Correa de Sá se pôs formalmente em campo contra eles. Tomou pé firme em Santos; porém as comunicações dali para as terras altas eram muito penosas (uma boa picada entre Santos e São Paulo só foi aberta no século XVIII, e uma estrada de rodagem só foi construída em 1840), e, como as diversas veredas eram bem-fortificadas e vigiadas, ele não pôde seguir adiante. Salvador Correa entendeu-se então, para negociações, com os quarenta e oito homens que o povo de São Paulo havia escolhido para seus representantes e regentes; e as condições do ajuste que ele lhes propôs, e que depois foram sancionadas por ambas as partes, não são lisonjeiras para a sua autoridade, nem para a autoridade régia.

Os paulistas comprometeram-se sem dúvida a prestar, em geral, obediência ao rei, sem resistência; porém, no que diz respeito à questão dos índios, eles faziam expressa exceção, e não queriam sujeitar-se às leis e ordenações relativas a ela, senão quando lhes conviessem; também o restabelecimento dos jesuítas no seu colégio em São Paulo foi denegado; por outro lado, devia o representante da coroa suspender as hostilidades e retroceder à sede do seu próprio governo no Rio de Janeiro.

Por conseqüência, o partido dos detentores de escravos e caçadores de escravos em São Paulo havia obtido completa vitória; havia-se livrado completamente da sua adversária de princípios, a Companhia de Jesus, e podia tranqüilamente e à vontade proceder contra os índios.

Na verdade era uma conquista provisória, não definitiva, pois a decisão final dependia do rei, de Lisboa; e para lá foi expedido sem demora o relatório de Salvador Correa, ao passo que os paulistas de seu lado por intermédio de Amador Bueno e mais dois procuradores do povo, apresentaram uma defesa, na qual se suscitavam contra os missionários expulsos as mais sérias acusações.

"São Paulo, com o seu fértil terreno de lavoura e a sua riqueza em tesouros minerais de toda espécie — assim dizia a exposição — podia tornar-se para a coroa de Portugal um segundo Peru; mas, para isso, o trabalho, a escravização dos índios eram imprescindíveis e, portanto, não devia o rei exigir, nem permitir a reintegracão da Companhia de Jesus; pois, se os dignos padres regressassem e ao modo antigo excitassem com os seus sermões caridosos os índios contra os brancos, os escravos contra os seus senhores, certamente em breve rebentaria aqui um levante geral da população indígena, como não se havia visto igual no Brasil, e a conseqüência seria a completa devastação da província, a decadência do Estado cristão aqui fundado")I24.

Semelhantes exageros literários deviam naturalmente errar o alvo em Lisboa, perante a sagacidade de homens bem informados e a estreita relação em que estava a Casa de Bragança com a Ordem dos Jesuítas; o rei d. João IV pediu o parecer do Conselho Ultramarino (3 de outubro de 1643), e em conseqüência decretou que os irmãos da ordem expulsos íossem restabelecidos no seu colégio em São Paulo e na posse de seus bens.

Não obstante, a isso recusaram-se os paulistas ainda por muito tempo; a ordem real teve que ser novamente intimada em 1647, e, mesmo assim, ainda se passaram seis anos, atê que, finalmente, a 14 de maio de 16.53, se concluiu uma acomodação amigável entre as autoridades provinciais e a ordem. Os jesuítas puderam fazer a sua reentrada em São Paulo, porém a sua situação foi de constrangimento; a sua atividade se limitou daí em diante aos poucos aldeamentos índios, ainda existentes na costa; por outro lado, não puderam mais exercer nenhuma influência sobre a totalidade da população indígena, nem aliviar a dura sorte dela.

Portanto, mais ou menos na mesma época em que a mesma guerra de princípios ia acender-se no Estado do Maranhão, já estava resolvida a questão dos índios no Sul do Brasil, e inteiramente com vantagem para o partido escravocrático. Contudo, a população branca ainda ficou muito tempo extremamente suscetível em tudo que dizia respeito a este ponto, e ainda muitas vezes essa sensibilidade se desafogou turbulentamente, quando era pressentida a menor idéia de abolicionismo.

* * *

Lembraremos primeiro os acontecimentos de 1660. Como se sabe, pelo decreto de 17 de setembro de 1658, o feudo real do Rio de Janeiro foi elevado a capitania geral independente, e o direito de superintendência, que ela até aqui havia exercido provisoriamente sobre os feudos vizinhos, do Espírito Santo e de São Paulo, foi-lhe atribuído em caráter permanente. Porém o primeiro capitão-general, que tomou assento em São Sebastião com tal plenitude de poderes, foi Salvador Correa de Sá e Benevides, o mesmo que já antes (1638-1642) ali governara e que, durante os tumultos de então, se havia provado amigo ardente da Companhia de Jesus e da sua obra de missões. Por isso, foi acolhido em toda parte com a mais absoluta desconfiança, e especialmente em São Paulo; ainda piorou esse estado de coisas, quando ele deixou de dar parte oficial de sua nomeação às autoridades municipais de São Vicente, para a tomada de posse de seu cargo, como era costume; os paulistas declaravam francamente que, pelo fato da omissão dessa formalidade legal, eles não estavam obrigados à obediência.

Agravou-se ainda a situação; inventaram-se e espalharam-se boatos malévolos, de que ele queria romper com a coroa de Portugal, passar o país para as mãos dos espanhóis; e, de uma feita, as autoridades municipais de São Vicente foram francamente intimadas pelas de São Paulo a despachar uma ordem de prisão contra o capitão-general, porque ele estava a ponto de passar-se para os espanhóis. Assim acontecia em São Paulo.

Também no Rio de Janeiro tinha Salvador Correa numerosos adversários, e estes, enquanto ele estava empreendendo uma viagem circular no Sul, aproveitaram-se da oportunidade para fazer um levante. Apoderaram-se da Câmara Municipal (8 de novembro de 1660), decretaram a deposição do capitão-general, e lançaram na prisão o seu substituto e outros funcionários; aos seus partidários foi facultado que saíssem do país dentro de dois dias; porém aquele que, depois, ainda que urdisse tramas em favor de Correa ou trocasse cartas com ele, seria preso e deportado por dez anos para a Africa. Os cabeças do motim instituíram então um governo provisório e intimaram os paulistas, seus vizinhos, a fazer com eles causa comum; na sua intimação, eles lembravam como Salvador Correa sempre havia sido amigo dos jesuítas, protetor das missões, e avisavam que não se devia consentir que ele chegasse a subir até à cidade de São Paulo, pois ele era amado pelos índios e, a um sinal seu, muitos milhares de arqueiros se reuniriam em torno dele.

Como era de esperar, teve esta carta o desejado efeito, e as autoridades municipais de São Paulo resolveram formalmente impedir a entrada do capitão-general na cidade, se fosse preciso usar mesmo da violência.

A revolta ameaçava tomar proporções vastas, estendendo-se em largo círculo, e Salvador Correa, que se achava com poucas tropas em Santos, não teve meios para resistência; contudo, em breve ele restabeleceu completamente a ordem.

Já se vê que ele não se utilizou do poderoso meio que, segundo a carta do chefe dos revoltosos, estava ao seu dispor; na verdade, ele sempre havia procurado fazer todo o possível para proteger os índios, porém provocar um levante de escravos, uma guerra de raças, para o restabelecimento de sua autoridade, em tal não pensou ele um instante, nem homem sensato algum no seu lugar o faria. Antes pelo contrário, limitou-se o capitão-general a usar somente dos meios legais e medidas conciliadoras; primeiro que tudo, ele exortou os revoltosos do Rio de Janeiro ao restabelecimento da ordem e permitiu ao governo provisório continuasse a governar interinamente em seu nome; dirigiu-se depois a São Vicente, satisfez as formalidades legais, fazendo registrar pelas autoridades municipais a sua nomeação, e mandou uma duplicata do mesmo documento ao conselho municipal de São Paulo.

Esta atenção e toda a sua atitude tão moderada sossegaram de certo modo os ânimos excitados, de sorte que os paulistas não puseram mais embaraço algum à continuação de sua viagem na província; e, como ele, pelo caminho, evitava toda intervenção na questão dos índios e, por outro lado, dava todo o cuidado aos interesses materiais do povo, principalmente aos meios de comunicação, dentro de pouco tempo se fez um completo reviramento na opinião pública: Salvador Correa, que até então era considerado com tão grande desconfiança, havia agora conquistado a geral estima; manifestaram o desejo de que para o futuro ele fixasse sua residência permanente em São Paulo, e tendo recusado, como devia, foi-lhe mesmo oferecido restabelecê-lo de novo à mão armada na sua capital, São Sebastião. De tal auxilio ele não precisou, todavia. Também no Rio de Janeiro se havia, entretanto, dissipado o fogo revolucionário; e, quando se soube que Salvador Correa ia regressar, o governo provisório entregou o poder às mãos do seu filho João Correa; cinco dias depois (16 de abril de 1661), fez o próprio capitão-general a sua entrada solene; os chefes dos revoltosos foram despachados para Lisboa, para serem julgados e castigados, e em todo o Sul do Brasil de novo reinou a legalidade.

Daí em diante perdeu toda significação histórica, nestas latitudes, a questão dos índios; os funcionários da coroa deixavam que se fizesse aquilo que eles não podiam impedir, e todas as leis, que daí em diante se decretaram para proteger a raça dos índios, foram como letra morta.

Continuamente e sem estorvo, prosseguiram os paulistas nas suas expedições ao sertão, que já tantas vezes temos mencionado, a caçada ao escravo era sempre o principal objeto; todavia, além disso, também tinham em mira ao mesmo tempo os metais e pedras preciosas, como já desde cem anos corriam boatos sedutores sobre a riqueza mineral do Brasil, sem que até agora, apesar de todas as diligências, se houvessem verificado em grande escala.

* * *

Essas expedições ou bandeiras, durante todo o século XVII, e também mais adiante, foram em São Paulo o mais importante elemento da vida do povo; nelas se consumia, por assim dizer, toda a força desta província; por outro lado, elas também foram de grande importância para o desenvolvimento geral no Brasil.

Não devemos, portanto, omitir a descrição mais detida de todo o seu modo de ser.

Logo que se tratava de uma empresa deste gênero, punha-se à sua frente um chefe, que, por sua fama de antigas façanhas, por experimentada proficiência, parecesse apto para isso; ele cuidava do necessário custeio para aquisição de provisões de guerra. Se o seu nome gozava de boa reputação, não demorava muito reunirem-se em torno dele mateiros de ofício, aventureiros e desocupados de toda espécie; os participantes brancos levavam cada qual alguns escravos índios, e, quando se oferecia oportunidade, se procurava também ganhar aliados entre as tribos amigas. Afinal, estando pronto o bando ou bandeira, como era a sua denominação portuguesa, punha-se em marcha.

"Sem a menor bagagem e sem víveres, costumavam esses homens penetrar nas selvas; toda a sua vestimenta consistia num par de calças de algodão, uma camisa curta sobreposta, um cinturão de couro, além disso às vezes um gibão de couro e polainas de couro muito altas; os pés estavam quase sempre descalços; cobria-lhes a cabeça um alto chapéu de palha de abas largas, e traziam a tiracolo uma bolsa de couro, ao lado da pequena gamela e do chifre para beber; como arma, traziam uns espingardas, outros machados, cada um, porém, uma grande faca, ao passo que os índios do acompanhamento quase sempre só levavam arcos e flechas. Assim marchava a bandeira, sustentando-se unicamente de caça, pesca, de frutos do mato e mel.

"A natureza aqui não deixa o homem sofrer fome, os campos e as inatas virgens lhe fornecem a subsistência, e estas últimas, especialmente, em grande variedade. Todavia, quando a expedição devia durar alguns anos, levavam sementes, sobretudo milho e feijão, também instrumentos agrícolas, a fim de fazerem uma plantação no lugar onde se demorassem mais tempo; quando assim acontecia em algum sítio, seguia-se para diante alegremente e voltava-se ali somente no tempo da colheita, a fim de satisfazer a saudade dos alimentos habituais." (Eschwege.)

Quase não precisamos dizer que os resultados desses empreendimentos eram os mais diversos; muitos traziam ricos despojos ao regressar, muitos apenas a vida, e grande número de bandeirantes não voltaram mais; morriam às privações, às canseiras das viagens, de doenças, ou na guerra com os índios. Contudo, o exemplo desses não conseguia assustar ninguém; o incansável andarilho das matas, curtido do sol, apresentava-se como um ideal à fantasia da mocidade de São Paulo, ávida de aventuras, até que, nos fins do século XVII, ao descobrimento das minas gerais, a figura do minerador coroado de sucessos suprimiu pouco a pouco a dos antigos bandeirantes.

Não é o lugar para acompanharmos todas essas expedições erradias; porém ao menos o rumo das mesmas, o seu desenvolvimento geográfico devemos descrever em traços gerais.

Primeiramente, mantiveram-se os paulistas ainda nas pegadas dos jesuítas espanhóis; como nuvens ameaçadoras de tempestade, flutuavam as suas bandeiras, constantemente, em torno das terras das missões, e desde a revolução de 1640, que, como se sabe, deu motivo a uma guerra de muitos anos entre Espanha e Portugal, não lhes faltou ao menos o pretexto internacional para as suas hostilidades. Por outro lado, da parte dos espanhóis estava-se melhor armado; as denominadas Reduções de Entre Rios, densamente aconchegadas entre os rios Uruguai e Paraná, podiam com facilidade socorrer-se mutuamente, e os índios convertidos traziam armas de fogo. Além disso, o povo e as autoridades do império colonial espanhol do Prata, enquanto durou a união dos dois reinos, observaram as incursões dos paulistas com certa indiferença; e dificilmente as ordens benévolas do rei Filipe IV alterariam esse estado de coisas; agora, depois da separação, as coisas mudaram’; as aldeias de missões, por sua posição, serviam de certo modo como postos avançados para as colônias de brancos, contra o assalto dos portugueses, e por esta razão recebiam prontamente auxílio, quando eram ameaçadas.

Nestas circunstâncias, a sorte abandonou as bandeiras paulistas; se, ainda assim, conseguiam alguma vez aproximar-se de manso e, por um assalto de surpresa, vencer uma redução, contudo no caminho de regresso era-lhes de novo tomada a presa, o rebanho de escravos; freqüentemente caíam prisioneiros dos espanhóis, e, amarrados com as suas próprias cordas, marchavam para Assunção ou Buenos Aires, para ali receberem a sua sentença, o seu castigo.

Estas amargas experiências serviam de escarmento; já no seguinte decênio se foram tornando mais raras as incursões hostis contra as missões de Entre Rios, e, por assim dizer, quase cessaram de todo; em troca, volveu-se o espírito empreendedor, o gosto dessas expedições, para oeste e norte.

Cerca do ano 16.50, já se ouvia falar de uma extraordinária bandeira para essas regiões: Antônio Raposo (seria o mesmo que comandava no Paraná em 1629?) alcançou com 60 paulistas e um bom número de índios a província espanhola de Quito (na atual República do Equador); e, quando eles tiveram que retirar-se dali, tomaram por um dos afluentes do Amazonas, depois esse mesmo rio principal, em jangadas construídas às pressas; os sobreviventes alcançaram finalmente a aldeia de Gurupá, província do Pará. De novo, no ano de 1672, encontramos uma bandeira paulista no rio Tocantins, província do Pará, sob o comando de Manuel Pais de Araújo, que ali caçava escravos, de sorte que as tribos convertidas daquela região pediram auxílio e proteção às autoridades de Belém.

No ano seguinte, 1673, combateu João Amaro, com uma outra bandeira de paulistas, os indígenas selvagens do interior da Bahia, e forneceu milhares de escravos para o mercado de São Salvador.

Terceira bandeira, sob a direção de Domingos Jorge, encontrou-se em 1674 nas solidões de Piauí com a expedição de Domingos Afonso, procedente de Pernambuco, ajudou este a conquistar o país, caçar os índios bravos; em seguida, voltou para São Paulo, tocando por diante alguns centos de índios manietados.

Mais adiante, em 1697, tomou parte uma bandeira paulista, sob a direção de Domingos Jorge (o mesmo?), na guerra de destruição do Estado negro de Palmares, província de Alagoas, e enriqueceu-se desta vez com presas humanas negras.

Cerca do mesmo ano (1696), ouviu-se falar, no longínquo Oeste, de outros paulistas que, depois de haverem percorrido a região das nascentes do Paraguai, invadiram a província de Chiquitos (hoje pertencente à República da Bolívia), e ali ameaçaram de novo as aldeias de missões dos jesuítas, mesmo a cidade espanhola de Santa Cruz de la Sierra; chegaram a renhida batalha, na qual a vanguarda da bandeira sofreu derrota e foi quase toda aniquilada; todavia, não ousaram os espanhóis aproveitar a sua vitória, e a outra parte da bandeira de paulistas, que estava bastante mais atrás do acampamento e guardava os índios prisioneiros, umas 1.500 cabeças, pôde tranqüilamente regressar a São Paulo.

Estes exemplos de especial relevo mostram de sobra como as incursões e caçadas ao homem pelos paulistas se estenderam em quase todo o continente sul-americano, neste lado da cordilheira.dos Andes; eles formaram de certo modo a moldura geográfica, dentro da qual se enquadraram os descobrimentos contemporâneos das províncias de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, bem assim os sucessos obtidos ali pelos pesquisadores de ouro.

O descobrimento do ouro deu depois, por seu lado, nova direção ao espírito empreendedor dos paulistas e limitou as suas expedições a mais estreito cenário; eles criam em geral mais lucrativa a cata do ouro do que a dos escravos, e, como o ouro era encontrado mais perto, derramou-se para ali, especialmente para as "minas gerais", toda a torrente dos corredores de matas.

As incursões e longínquas caçadas ao homem foram se tornando cada vez mais raras, desde o princípio do século XVIII; e ficaram em paz e em plena liberdade os habitantes dos limites do império colonial espanhol do Peru e do Prata, assim como os índios bravos e tribos convertidas pelos jesuítas espanhóis da bacia do Prata, que durante tantos anos haviam tremido diante das contínuas agressões dos paulistas.

Cessaram as incursões dos paulistas; eles, porém, deixaram atrás de si inapagá-vel rasto de devastação; em todo o sertão, no centro e Sul do Brasil, ficava reduzida, de modo terrível, a população índia primitiva; em muitos lugares, completamente exterminada. Podem-se avaliar as perdas da raça índia, nessas regiões, em muitas centenas de milhares; poucos, desse número, foram os que morreram pela guerra, nas suas moradas pátrias, ao passo que o restante foi expatriado em cativeiro, acorrentado e amarrado; mas, em caminho, a grande maioria destes sucumbiu às privações e doenças.

Somente uma pequena parte, sempre ainda algumas centenas de milhares, alcançou os mercados de São Paulo e Rio de Janeiro, para ser vendida, e incorporou-se com a população escrava dessas províncias; mas esse acréscimo à população não era de vitalidade salutar; o índio, criado na liberdade das selvas, não se acostumava ao jugo da servidão, em breve sucumbia no trabalho incessante da lavoura ou das bateias de ouro, ao qual não estava habituado, de sorte que as contínuas caçadas ao homem somente conseguiam manter o número primitivo existente da escravatura.

Quando elas foram pouco a pouco cessando, foi então preciso recorrer ao comércio de escravos africanos. Rio de Janeiro, que até aqui pequena parte tomava nele, tornou-se (fim do século XVIII), tal como Bahia e Pernambuco, um porto igualmente importante para o tráfico de negros, e dali se espalhou também para São Paulo e todos os seus Estados filiais; e em tão grande quantidade, que, na população desses territórios (tanto como nos grupos de Estados de Bahia e Pernambuco), o sangue africano contrabalança perfeitamente o sangue europeu. O sangue índio, ao contrário, como’que se apagou inteiramente na mistura com ambos; somente em pontos excepcionais, onde o favoreceram especialmente as circunstâncias, ele se conservou na original pureza. Lembramos em primeiro lugar as pequenas tribos selvagens, que já tivemos ocasião de mencionar em algumas províncias de ambos os grupos de Estados sul-brasileiros, os Puris e Botocudos, que predominavam nas montanhas cobertas de matas do Espírito Santo, os Bugres na serra Geral de São Pedro, que dali vagavam pelas vizinhanças; outras tribos selvagens, de certa importância e número, teremos ainda que mencionar, sobretudo em Goiás e Mato Grosso.

Além disso, existem no Sul do Brasil, no domínio da antiga capitania geral do Rio de Janeiro e de São Pedro, ainda um pequeno número de índios livres meio civilizados, restantes da obra das missões da Companhia de Jesus.

Vimos como a atividade desta ordem, desde meados do século XVII, foi completamente paralisada; ela conservava sem dúvida os poucos aldeamentos que ainda tinha em mão, porém não podia estender-se mais, e, onde quer que ela fizesse a menor menção de se desenvolver, logo se via violentamente guerreada; de uma feita, chegaram mesmo os paulistas a ameaçá-la de nova expulsão, e os jesuítas só escaparam capitulando humildemente (24 de julho de 1687). Somente na região mais ao norte de ambos estes grupos de Estados, no Espírito Santo, tinham esses missionários plena liberdade de ação, e ali obtiveram também resultados consideráveis.

Na expulsão da ordem (3 de setembro de 1759), existiam em São Paulo seis aldeias de missões, no Rio de Janeiro e suas dependências, cinco; além destas, foram fundados alguns aldeamentos mais recentes, e adquiridas, em 1801, à margem esquerda do Uruguai (província de São Pedro), sete antigas missões espanholas, que então podiam contar uns 14.000 habitantes. De tudo isso, sob o governo brasileiro, só subsistiu muito pouco: os índios eram oprimidos pelos diretores civis, roubados das suas propriedades particulares em favor dos brancos, e sentiram-se tão desgraçados, que muitos regressaram à vida selvagem de seus antepassados ou se dispersaram.

Em maior escala foi, porém, o descontentamento no território das Sete Missões; a população não podia absolutamente acostumar-se com a dominação brasileira, e, quando se ofereceu, enfim, uma oportunidade favorável, emigrou em massa, com todos os seus bens (1828). Assim, atualmente, no que diz respeito a aldeamentos de índios meio civilizados, só existem: um no Espírito Santo com 70 índios, um em Minas Gerais com 1.000, dois em São Paulo com 500, um no Paraná com 441, e, finalmente, cinco em São Pedro com 1.200 (Relatório oficial de 11 de maio de 1855).

Esta é a final conclusão da questão dos índios sul-brasileiros!

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