ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL – Georges Bataille

RESUMO DE ENTRE EROTISMO E ECONOMIA GERAL: BATAILLE – Capítulo do Discurso Filosófico da Modernidade de Jürgen Habermas.

Miguel Duclós

 

Neste capítulo Habermas tentará mostrar o pensamento de Bataille sob três prismas principais: a formação dos conceitos de heterogêneo – que levará a uma filosofia da heterologia, uma despedida da modernidade em uma filosofia da história e uma abordagem da economia geral, com a qual Bataille esperava responder à questão: como transformar a reificação (num sentido marxista) em heterelogia.

Habermas tece ao longo de todo o capítulo uma série de aproximações e diferenciações entre Bataille e outros pensadores. Com Heidegger, trata da questão da despedida da modernidade e da crítica da metafísica. Com Horkheimer e Adorno, da questão da análise psicológica do fascismo como manifestações de massa homogênea e com Lukács, Marx e Weber, da questão do trabalha capitalista que resulta em fetichismo, alienação e reificação.

À primeira vista, as diferenças entre Heidegger e Bataille são mais fáceis de enxergar do que as semelhanças. Porém Bataille participou do movimento surrealista, introduzido por André Breton, da militância radical de esquerda, prosseguidor da literatura "maldita" de Marquês de Sade, descrito por Foucault como "o homem do impossível".

Bataille têm uma biografia, orientação política maneira de filosofar muito diferente de Heidegger. O projeto comum dos dois, entretanto, aparece junto com a herança nietzscheana para a filosofia do século XX – já que Bataille é peça-chave da chamada "recepção francesa" do filósofo alemão. Bataille busca a fuga do "cativeiro da modernidade, do universo fechado da razão ocidental, vitoriosa na história mundial. Ambos querem superar o subjetivismo que cobre o mundo com sua violência reificante, cristalizando-o em uma totalidade de objetos tecnicamente controláveis e economicamente aproveitáveis" (pg. 249).

A coincidência e o empenho dos dois em tal projeto é tanta que Habermas, citando um trecho de Foucault sobre a superação dos limites em Bataille, afirma que este pode ser lido como tratando da noção de transcendência de Heidegger, sem que no entanto se perca o sentido.

Bataille ataca a razão pela via weberiana de uma racionalização ética que possibilita o sistema econômico capitalista. O início da modernidade não é a autoridade de uma consciência de si dilatada, como no cogito cartesiano, mas a orientação para o êxito de uma ação que serve à realização de finalidades subjetivas.

Heidegger direciona sua crítica aos fundamentos da subjetividade, enquanto Bataille pretende acabar com os limites desta. Heidegger pretende destronar o sujeito em favor de um destino superfundamentalista do ser, ao passo que Bataille pretende tirar o sujeito dos limites de seu casulo, para um contexto de vida desfamiliar, estranho, e para uma transgressão que o liberte em direção à sua verdadeira soberania, com a espontaneidade livre de seus impulsos até então proscritos.

A soberania de Bataille aproxima-se do conceito nietzscheano de liberdade, da vontade de poder que se intensifica a si própria, com a auto-afirmação do super-homem, que é autor de seus próprios valores. Estes conceitos voltam-se contra qualquer tipo de autoridade, principalmente contra a autoridade do divino e do sagrado.

Bataille pensa a morte de Deus de um ponto de vista rigorosamente ateu, enquanto Heidegger nega Deus como omitido, mas mantém o acontecimento da revelação. Bataille não tem a ilusão de que na modernidade haja algo ainda a profanar, nem que a filosofia tem de criar alguma compensação pela mística do ser. Mas defende uma proganação vazia, sem desejo, voltada apenas para si.

Em seguida Habermas explica a análise psicológica de Bataille acerca do fascismo, feita sob a luz dos elementos homogêneos e heterogêneos da sociedade. O conceito de heterogêneo aparece pela primeira vez numa revista Documents, editada por Bataille, Michel Leiris e Carl Einstein após um racha do grupo surrealista no final dos anos 1920. O heterogêneo aparece como todas as formas de vida que escapam à assimilação das formas de vida burguesa e dos hábitos do cotidiano. A vivência dos surrealistas é neste sentido heterogênea, pois fogem em suas obras de arte ou livros, da sobriedade e normas sociais em direção à embriaguez, ao êxtase dionisíaco, às paixões, às influências do inconsciente da psicanálise. O heterogêno aparece nesses instantes que o sujeito escapa dos grilhões da normalidade e repetição de hábitos para um estado de estranhamento consigo mesmo e com o mundo. Bataille entende a heterogenia como constante nos proscritos em geral: os loucos, as prostitutas, os agitadores, revolucionários, poetas, boêmios e outros segmentos marginalizados.

É neste segundo sentido que Bataille atribui aos líderes fascistas – Hitler e Mussolini, uma existência heterogênea. Bem antes da explosão da Segunda Guerra em 1938, durante a ascensão e consolidação de Hitler no poder e a marcha sobre Roma de Mussolini, Bataille publica um ensaio chamado "A estrutura psicológica do fascismo". O ano, 1933, é o mesmo em que Heidegger publica seu ensaio de exaltação ao Führer, que Habermas trata em outro capítulo. A tomada de poder por parte dos fascistas foi motivo de indignação e fascínio, mas nunca de indiferença. Habermas afirma que nenhuma teoria da sensibilidade deixou de ser afetada por ela, e cita, além de Bataille e Heidegger, a teoria crítica de Adorno e Horkheimer. Bataille, no ensaio, busca nas causas do fascismo os aspectos psicológicos, e não somente econômicos e estruturais. O fenômeno que mais interessa a Bataille no fascismo são os rituais de mobilização de massas antes enervadas em torno da figura carismática do Führer. Na figura deste estariam condensados o poder religioso e o militar.

Hitler nas primeiras décadas do século viveu de forma marginal, proscrita, na Áustria e alimentou-se durante dois anos com a sopa dos pobres da cidade, dormindo na rua. Hitler aparece como uma alternativa heterogêna: o inteiramente outro da democracia de massas orientadas por interesses do homogêneo da vida cotidiana, do metabolismo com a natureza e o exterior, que no capitalismo determinara-se como o trabalho medido abstratamente em tempo e dinheiro. Este mundo racionalizado e homogeneizado é entediante e não encontra em si mesmo forças para reproduzir-se. A incapacidade de encontrar em si uma razão de ser o coloca na dependência que ele exclui. Os elementos homogêneos excluem e estabilizam os limites que só podem ser rompidos pela violência. É neste contexto que irrompe a figura dos líderes fascistas e das massas em transe. Os elementos heterogêneos no estado fascista mesclam-se com perfeição aos elementos homogêneos de disciplina, amor à ordem e unidade de sangue.

Horkheimer e Adorno também pensaram o fascismo em termos psicológicos, destacando que o fascismo empregou a seu favor comportamentos eliminados pela civilização, como o comportamento mimético – um modelo secular de reação. A diferença entre Bataille e Adorno & Horkheimer aparece na forma cmo são determinadas as partes proscritas da subjetividade. Para Horkheimer & Adorno o comportamento mimético leva à uma felicidade sem poder, ao passo que para Bataille é impossível pensar a felicidade sem violência, pois estas estão unidas no heterogêneo. Essa violência, como superação de limites, existe tanto no erótico como no sagrado.

Os atos revolucionários que fundam posteriormente o direito são extremamente violentos. Para Benjamin, a violência é transcendida através da intersubjetividade e do acordo mediado pela linguagem. Bataille se interessa no fascismo com a política estetizada, poetizada, libre de qualquer esfera moral Mas ressente-se da falta de um ponto de referência, como o benjaminiano, que permita a superação da violência. Assim Bataille vê-se frente à questão em que as manifestações espontâneas e subversivas se diferenciam de canalização fascista.

Essa análise do fascismo vai levar Bataille a propôr uma ciência hetereológica (pg. 311) que permita prever as reações afetivas e sociais que percorrem a super-estrutura e que permita, talvez até certo ponto, a dispôr livremente delas…. O saber sistemático dos movimentos sociais de atração e repulsa apresenta-se simplesmente como uma arma em um movimento que não se opõe ao comunismo, mas antes às formas imperativas e radicais de homegeneidade.

Na parte III do capítulo, Habermas trata da filosofia da história de Bataille. Esta foi estabelecida, segundo ele, de forma maniqueísta. Bataille, como comenta, empregava figuras de pensamento típicas do marxismo, mas distancia-se da filosofia da práxis em uma outra direção no tratamento da questão do trabalho e da atividade humana. Nega que o atendimento das necessidades básicas da vida seja a razão pela qual se produz. Vê no próprio consumo um conflito entre a reprodução da força de trabalho e o consumo de um luxo que ultrapassa em muito as necessidades vitais e os ditames do metabolismo.

Bataille concebe uma forma de consumo diferente da habitual, que reprime a soberania através da produção e reprodução. Identifica este novo consumo com as formas de auto-renúncia, delírio, e auto-ilusão. Além desse consumo necessário à consumação da vida, deve haver também os dispêndios improdutivos, como a guerra, o luxo, os cultos e construtos monumentais, a sexualidade desligada de finalidade genital.

Essa primeira forma de trabalho acontece no sistema capitalista, onde todo o excedente é gasto novamente em produção. Mesmo os ricos não expõe o seu luxo publicamente, mas atrás de muros segundo convenções entediantes e deprimentes.

Esse tipo de consumo é típico de uma razão reificante que surge do trabalho social, e à qual opõe-se a soberania (pg. 314): "Ser soberano significa não se deixar reduzir, como no trabalho, ao estado de uma coisa, mas desenvolver a subjetividade". A soberania reside no consumo do inútil, mas agradável.

A soberania do sujeito é condenada e excluída por um processo de desencantamento e coisificação que existe no trabalho alienado da sociedade capitalista de consumo. A sociedade capitalista é uma sociedade de coisa, e não de pessoas, onde o objeto vale mais do que o sujeito, e este torna-se dependente daquele. Mas não apenas de coisas, já que surge da dominação da razão calculante, anterior ao capitalismo, e projeta-se para além deste no socialismo democrático.

Apesar das semelhanças com Lukács e com a Teoria Crítica, Bataille mais uma vez distancia-se deles porque tem em mente uma filosofia da história da proscrição, de exterritorialização do sagrado, expondo o destino histórico e universal da soberania.

A soberania humana é recuperada nos instantes de êxtase, mas remonta à uma unidade primordial do homem com a natureza. Esta unidade perdida, tratada por inúmeros filósofos, é buscada sempre: toda forma de sacrifício e de religião é uma tentativa de retomá-la, voltando à junção com o seio divino da natureza. Esta perda é descrita no mito bíblico do Gênesis, com a expulsão do paraíso de Adão e da companheira Eva após o pecado original. Depois da queda, Deus diz ao homem que este garantirá seu sustento com o trabalho, com o suor de seu rosto. Nos Trabalhos e os Dias de Hesíodo o trabalho também surge como uma maldição divina Zeus expulsa Prometeu das moradas celestes, após este dar o fogo, o lampejo ao homem (associado ao semítico pecado original). "A introdução do trabalho substituiu, de imediato, a intimidade, a profundidade do desejo e seu livre desencadeamento, pelo encadeamento racional em que a verdade do instante não mais importa, mas sim o resultado final das operações; o primeiro trabalho funda o mundo das coisas… A partir da posição do mundo das coisas, o próprio homem torna-se uma das coisas desse mundo, pelo menos enquanto trabalha. A essa desgraça o homem de todos os tempos tenta escapar". (pg 317).

A soberania surge na história nas figuras que contém uma força diferenciadora, como a categoria social do dominador, nos poderes sacros dos sacerdotes, no poder militar dos nobres e na figura do rei absolutista e sua corte. A soberania supõe uma independência do sujeito em relação às coisa, tal qual uma pessoa sagrada típica das sociedades arcaicas. Na sociedade burguesa, a soberania desaparece por completo, na medida em que a posição social depende apenas da posse de coisas.

Há uma ligação entre soberania e poder que aparece em todas as forças históricas de dominação, e que no regime soviético não existe. A eliminação dos atributos religiosos da soberania de certa forma objetiva o poder, que é definido em termos exclusivamente funcionais, pelo desenvolvimento das forças produtivas. O sistema soviético não dá espaço para a soberania, pois a organização social é definidade de modo igualitário e com o objetivo sócio-político de industrialização materialista. Existe uma dicotomia entre a reificação e a soberania, que deve terminar numa separação das esferas: a homogênea e a heterogênea. A soberania é concebida, então, como o outro da razão.

Bataille parte da explicação weberiana de capitalismo, que é sustentada pelos estudos sobre a ética religiosa, e recua o capitalismo até suas origens nas regulamentações morais das pulsões, anterior a qualquer forma de soberania e exploração. Habermas resume o argumento de Bataille em três passos:

1º) Os homens saem da vida animal e passam a se distinguir destes através da proibição e da regulamentação de suas pulsões, e não apenas através do trabalho. O Gênesis conta que assim que Adão e Eva experimentaram do fruto proibido, conheceram que estavam nús. E também tiveram consciência de sua morte. A morte e a procriação aparecem intrinsicamente ligados, estando na origem de todos os tabus, e representando duas formas de excesso que transcendem os limites do ser individualizado. Os rituais e normas mais antigos aparecem como um dique contra o redemoinho de nascimento e morte de uma natureza que devora as existências individualizadas. Nesse aspecto, não há diferenciação entre nascimento e morte, pois ambos são apenas "os momentos culminantes de uma festa que a natureza celebra com uma multidão inesgotável de seres. Ambas significam um desperdício alimentado que a natureza opera contra o desejo profundo de durar que é próprio de cada ser" (pág. 324).

2º) O segundo argumento de Bataille diz que essas proibições e normas não devem ser tomadas apenas do ponto de vista do sistema de trabalho social. Elas remetem à alguma instância sagrada que provoca ao mesmo tempo horror e encanto, angústria e felicidade. Bataille fala da irmanação entre lei e transgressão: a validade das normas se funda na experiência da transgressão proibida. O trabalho racional é organizado por leis que não são somente racionais, mas que têm uma força de fascínio pelo sagrado.

3º) O terceiro argumento de Bataille é uma crítica da moral, baseada na sociologia weberiana da religião. O desenvolvimento religioso é visto como uma racionalização ética, o sentimento do sagrado causa encanto e pavor, mas é domesticado e cindido, perdendo assim sua ambigüidade.

A crítica não se dirige à moral em si, mas à racionalização das imagens religiosas do mundo, e portanto seu congelamento. Estes se afastam a soberania de suas fontes borbulhantes de excesso e poder.

Por fim, Habermas apresenta o projeto de Bataille para uma economia geral. A economia tradicional apresenta o aproveitamente de recurso escassos na reprodução da vida social. Bataille contrapõe à essa o dispêndio desinteressado dos recursos abundantes, o dispêndio improdutivo da energia transcendente.

Esse desperdício pode ser canalizado de forma gloriosa ou catastrófica. Pode-se escapar momentaneamente do ciclo inexorável de nascimento, reprodução e morte, com a volta da soberania e a exaltação ou elevação da vida. Ou desaguar em imperialismo, guerras mundiais, contaminação ecológica e destruição atômica. Habermas, como de praxe, após fazer sua exposição do pensamento do filósofo tratado, aponta suas discordâncias, os excessos, equívocos e os desvios daqueles que buscaram superar o projeto da modernidade, que pretende resgatar.

Bibliografia

HABERMAS, O Discurso Filosófico da Modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Repa Martins Fontes, São Paulo, 2000.

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