HISTÓRIA DA ARTE DE ERNEST GROSSE – Conclusão (capítulo XI)

HISTÓRIA DA ARTE DE ERNEST GROSSE (1893)

CONCLUSÃO

CAPÍTULO XI

Andamos pelo domínio da arte primitiva como viajantes por um país recém-descoberto. Sem caminho traçado, vimo–nos obrigados a abri-lo nós mesmos. Em toda a parte, encontramos obstáculos. Em mais de um lugar, depararam–se-nos espessuras inextrincá-veis semelhantes aos brejos australianos impossíveis de atravessar e deles, portanto, tem que sair-se forçosamente, contornando-os. Em outros sítios, atravessamos abismos profundos sobre pontos vacilantes. Países inteiros escaparam a nossas pesquisas, ocultos por impenetráveis neblinas, e amiúde os cumes que pensamos divisar nos horizontes eram provavelmente nuvens apenas. Os mapas que se trazem de semelhantes expedições mostram necessariamente numerosos espaços em branco. Não obstante, devemos consolar-nos pelo fato de que os conhecimentos adquiridos, por pobres que sejam, são, contudo, conhecimentos.

Antes de iniciarmos o estudo da arte primitiva, procuramos esclarecer-nos de uma maneira geral acerca da natureza da arte. E dissemos: "Uma atividade artística é uma atividade destinada a despertar sentimentos estéticos pelo seu resultado ou em seu exercício".

Agora, que conhecemos as criações artísticas dos primitivos, vemo-nos obrigados a confessar que essa definição não está inteiramente de acordo com os fatos reais. As produções artísticas dos povos primitivos, na maioria, não devem sua origem a preocupações puramente estéticas. Ao mesmo tempo, têm de servir a um fim prático que, com freqüência, parece o motivo principal, ao passo que a satisfação estética vem somente em segundo lugar. Os ornamentos primitivos, por exemplo, originariamente não são ornamentos, mas símbolos e sinais práticos. Em outros casos, a intenção estética é manifesta, mas, pelo menos de uma maneira geral, só se revela em matéria de música, como a causa única da atividade artística. Os povos superiores são, a esse respeito, iguais aos inferiores: nestes, encontram-se igualmente poucas obras artísticas — com abstração da música e dos ornamentos — que devam sua origem unicamente a um interesse estético.

Mas, se a atividade artística dos povos inferiores não se manifesta quase nunca de uma maneira absolutamente pura, contudo, em toda parte é evidente e assume as mesmas formas que entre os povos superiores. Só há uma arte conhecida inteiramente dos primitivos: a arquitetura. Os abrigos, tetos e choças que os resguardam das intempéries só satisfazem às necessidades práticas mais simples. Em compensação, todas as mais artes dos civilizados já existem entre os caçadores. Vimos que os três gêneros principais da poesia não possuem, como se pensava, origem em uma suposta "poesia primitiva não diferenciada", mas, sim, que já existem entre os povos mais primitivos, independentes um do outro.

Essa semelhança entre as criações artísticas dos povos mais rústicos e mais civilizados é enorme. Por estranhas e pouco artísticas que nos pareçam à primeira vista as obras dos primitivos, um exame profundo demonstrará sempre que foram criadas segundo as mesmas leis que presidem à criação de nossas sublimes obras de arte. Os australianos e os esquimós, da mesma forma que os atenienses e os florentinos, não põem unicamente em prática os grandes princípios estéticos da euritmia, da simetria, do contraste, do reforça-mento e da harmonia. Tivemos ocasião de verificar1 também que os próprios detalhes, em geral tomados como um capricho pessoal do artista, são uma propriedade comum dos povos mais afastados entre si. Isto não deixa de ter certa importância para a estética. Nossas pesquisas demonstraram o que a estética se havia limitado a pretender até agora: que existem para o gênero humano condições gerais em que se produz o prazer estético, isto é, que há leis gerais de criação artística. Nessas condições, as diferenças entre a arte dos povos primitivos e a dos civilizados nos parecem mais quantitativas que qualitativas. Os sentimentos que desperta a arte primitiva são mais grosseiros, os motivos, mais pobres; as formas, mais monótonas e rudes; mas, em seus motivos, fins e meios essenciais, a arte dos tempos primitivos forma uma só unidade com a de todas as épocas.

Não nos limitamos a estudar a natureza particular da arte primitiva. Também procuramos esclarecer as condições de que depende. A primeira condição de uma atividade artística qualquer é um instinto artístico. É verdade que não existe mais instinto artístico único que atividade artística única. Se, apesar disso, empregamos o termo em questão, é para resumir nele esse elemento comum a toda espécie de instinto artístico2. Esse instinto artístico, essencialmente idêntico ao instinto do jogo, isto é, instinto que compele o indivíduo para a atividade — sem fim aparente, quer dizer, estético — de suas faculdades físicas e intelectuais, e que se combina mais ou menos com o instinto de imitação3, é, sem dúvida, uma propriedade comum da humanidade e talvez mais antiga que esta. O instinto artístico não resulta, portanto, de uma forma particular de civilização. Mas só recebe dela uma forma especial.

Os produtos artísticos dos diversos povos caçadores dis-tinguem-se por sua uniformidade extraordinária. Em toda a parte, tanto na arte ornamental como na poesia, e dança e a pintura, encontramos os mesmos traços que antes havíamos encontrado em outras partes. Essa uniformidade demonstra que o caráter da raça não tem importância decisiva para o desenvolvimento da arte. A unidade da arte primitiva contrasta com a diversidade das raças primitivas. O australiano e o esquimó são tão diferentes do ponto de vista antropológico que podem sedo duas raças humanas. Todavia, os ornamentos de uns se parecem amiúde com os de outro, de modo que seria difícil determinar, na maioria das vezes, a origem de um objeto adornado, se a forma e o material não permitissem apreciar uma origem definida. Todos quantos comparam uma só vez os desenhos dos rochedos dos australianos com os dos bos-quimanos, e em seguida, os próprios australianos e bosqui-manos, autores deles, não se atreveriam a defender a teoria de Taine, de que a arte de um povo é, antes de tudo, resultado de seu caráter étnico. Quando menos lhe atribuiriam o valor geral que seu autor quis dar–Ihe. Não negaremos que o caráter étnico de um povo pode exercer influência no desenvolvimento da arte desse povo. Mas, é impossível determinar exatamente a natureza dessa influência. Pretendemos somente — e, ao dizer isto, ba-seamo-nos nos resultados de nossas investigações — que essa influência não determina nos povos primitivos o caráter geral da arte. Sua importância é, além disso, secundária. Talvez possua uma importância maior para o desenvolvimento da música. Mas, nosso conhecimento da música primitiva é excessivamente precário para que possamos transformar nossa suposição em hipótese.

Tampouco podemos responder à pergunta sobre se a influência do caráter étnico na arte diminui ou aumenta à medida que a arte e a civilização avançam. Tendo em vista que a individualidade dos homens e dos povos se desenvolve à medida que a evolução prossegue, sentimo-nos levados a admitir a possibilidade de semelhante marcha das coisas. De outra parte, também não seria conveniente esquecer que o caráter étnico dos povos superiores é muito menos uniforme que o dos inferiores.

O caráter uniforme da arte primitiva, deve-se sem dúvida, a uma causa uniforme: essa causa encontramo-la nesse fator da civilização que é o mesmo entre todos os povos caçadores e que exerce ao mesmo tempo poderosa influência na civilização de todos os povos: referimo-nos à produção. É verdade que não podemos estudar completamente as relações que existem entre a produção e as formas de arte. Mas, conseguimos demonstrar de modo geral a importância que tem para a arte a vida do caçador. Com efeito, é considerável, e não se pode deixar de observada. Com exceção da música, todas as artes permitem reconhecer imediatamente a influência direta ou indireta que exerce em seus materiais e seus assuntos a vida errante e pobre dos caçadores. Em nenhuma parte vimos essa influência de modo tão nítido quanto em matéria de escultura ou pintura. A reprodução fiel de formas humanas e animais, em que sobressaem os povos caçadores, é para nós a manifestação estética de faculdades que a luta pela vida devia desenvolver fortemente nos povos caçadores.

A forma de produção de um povo depende, em primeiro lugar, das condições geográficas e meteorológicas em que vive. Os povos caçadores permaneceram povos caçadores, não porque careçam, como se poderia supor, das qualidades que tornam possível o progresso, e, portanto, condenados de antemão à imobilidade, como acreditou a etnologia de nossos pais, mas porque a natureza de seu país constituía uma oposição a qualquer progresso. Nossas pesquisas sobre a arte dos povos primitivos permitem–nos lançar agora um olhar sobre as relações entre o clima e a arte, relações de que tanto se tem falado, e que as especulações dos estetas, limitados sempre a estudar a arte dos povos superiores, tornaram obscuras. As influências do clima na arte, tal como agora conhecemos, são de natureza diferente da que Taine e Her-der pensaram ter descoberto como se exercendo na arte dos povos primitivos. Herder e Taine referiram-se a uma influência direta sobre o espírito dos povos e o caráter da arte. Nós, ao contrário, pensamos que essa influência é indireta e que se exerce por meio da produção. Mas, não cremos ter dado com uma lei de valor geral. É duvidoso que semelhante influência exista igualmente no que se refere aos povos civilizados, não porque nestes as coisas sejam muito menos simples, mas porque, melhor aparelhados, tornaram-se de certo modo independentes do clima. O progresso da civilização subtrai os povos da servidão à natureza para conduzi–los ao seu domínio. Deve acreditar-se, pois, que essa mudança influíra também na evolução da arte.

Não existe povo sem arte. Vimos que ainda os mais rústicos empregam grande parte de seu tempo e de suas forças em interesse da arte, dessa arte que do alto de seus progressos práticos e científicos, os povos civilizados consideram cada vez mais como um jogo ocioso. Mas, precisamente quando nos colocamos no ponto de vista científico, parece incompreensível que uma função que custa tanto esforço não possa exercer influência na conservação e desenvolvimento dos organismos sociais, pois se a energia que se emprega em favor da arte fosse realmente tempo perdido para as tarefas sérias e essenciais da vida, já a seleção natural teria, indubitavelmente, feito desaparecer há muito os povos que gastaram seus esforços desse modo, e não teria sido possível à arte desenvolver-se de maneira tão prodigiosa como fez. De antemão, podemos, pois, acreditar que a arte primitiva possui, prescindindo de sua importância estética, um valor prático para a vida dos povos caçadores. Os resultados de nossas pesquisas confirmaram nossa hipótese. As artes primitivas influem na vida primitiva de diversas maneiras. A arte ornamental, por exemplo, desenvolve a técnica.

O adorno e a dança desempenham importante papel nas relações de ambos os sexos. Sua influência na seleção sexual tem, provavelmente, como resultado, uma melhora da raça humana. De outra parte, o adorno, que espanta o inimigo, e a poesia, a dança e a música, que exaltam o guerreiro, aumentam a força de resistência do grupo social em face dos ataques dos adversários. Mas, somente consolidando e ampliando os grupos sociais, exerce a arte sua maior e benéfica influência na vida dos povos. Nem todas as artes são igualmente capazes de fazê-lo.

Enquanto a dança e a poesia parecem destinadas a esse papel, a música é quase incapaz de produzir um efeito dessa espécie. Existem também razões puramente exteriores que decidem esta questão: que arte deve, em determinado povo e numa época certa, realizar a função socializadora? A dança, por exemplo, perde sua influência tão logo os grupos sociais se tornem demasiado numerosos para poder reunir–se com o objetivo de dançar. De outro lado, a poesia deve seu poder incomparável à invenção da imprensa. Portanto, as artes adquirem a hegemonia umas após as outras. Nos povos caçadores, a dança é a arte que exerce maior influência social. Entre os gregos, foi a escultura. Na Idade Média, a arquitetura unia as almas e os corpos sob as naves de suas catedrais gigantescas. No Renascimento, a pintura fala aos povos europeus e é compreendida por todos. Nos tempos modernos, a voz conciliadora da poesia apazigua poderosamente o fragor das armas dos povos e das castas inimigas. Mas, se a importância social das diversas artes se transformou no decurso dos tempos, a importância social da arte aumentou sempre. O poder educador que tem, embora nas tribos mais grosseiras, aumentou e elevou-se sempre. Se a função mais sublime da arte primitiva consiste em unir os desunidos, a arte civilizada e suas obras mais ricas e individuais já não servem tão-somente para unir, mas também para a educação dos espíritos. A ciência enriquece nossa vida intelectual, e a arte, nossa vida emocional. A arte e a ciência são os melhores educadores da humanidade. Portanto, a arte não é um jogo, mas uma função social indispensável. Uma das melhores armas da luta pela vida. Deve, portanto, desenvolver-se cada vez com mais riqueza. Sé, a princípio, os povos exercem a atividade artística por seu valor estético imediato, a história a conserva e desenvolve, antes de tudo, pelo seu valor social mediato. Além disso, não é provável que em todos os tempos se haja tido idéia do valor da arte para o bem social. Poderia citar-se uma longa série de filósofos, artistas e homens de Estado que demonstraram claramente quanto a arte servia ou devia ‘servir para a educação dos povos. Com efeito, existe o direito de exigir da arte que se manifeste no sentido da finalidade social (Zweckmässigkeit), isto é, em um sentido moral, pois a arte é uma função social, e toda função social deve ter por fim a conservação e o desenvolvimento do organismo social. Mas, não há razão para exigir da arte que seja moral, isto é, que moralize. Isto equivale a exigir-lhe que deixe de ser o que é. Servindo aos interesses artísticos é como melhor serve a arte aos interesses sociais.

Limitando nossas pesquisas à arte primitiva, demos-lhe um limite à parte da tarefa histórica que denominamos sociológica. Na civilização primitiva, a arte é para nós um fenômeno social, por isso estudamos suas condições e seus efeitos sociais. Não porque não quiséssemos reconhecer outros, mas porque não os encontramos nos povos que serviram de objeto de nosso estudo. Nas civilizações superiores além da influência que exerce sobre a vida social, vimos a arte adquirir um valor sempre crescente para o desenvolvimento da vida individual. As criações

mais sublimes dos gênios artísticos que se colocam acima do vulgar só produzem imediato efeito em alguns indivíduos. Esta circunstância demonstra que o efeito da arte no indivíduo, a quem impressiona e desenvolve, não é menor que o efeito social que procuramos apreciar em seu justo valor.

Para nós, convencidos que estamos de que todo progresso social só serve para desenvolver o indivíduo, esse efeito individual é ainda mais elevado que o efeito social. Se quiséssemos explicar em que consiste a importância da arte para o desenvolvimento individual, deveríamos realizar um estudo que, provavelmente, seria mais vasto e difícil que o que conseguimos efetuar. Mas, basta haver dito em poucas palavras que, no conceito expresso, a arte não é um passatempo agradável, mas uma das missões mais elevadas da vida. Contudo, ou precisamente em virtude disso, existe profunda diferença entre a função social e a função individual da arte. Enquanto a arte social une sempre mais estreitamente os homens num todo, a arte individual desliga o homem dos vínculos sociais, desenvolvendo sua individualidade. À arte educadora dos povos de Platão antepõe-se desse modo a arte redentora do homem de Schopenhauer.

(1) Veja-se o capítulo sobre o adorno do corpo.

(2) Não pretendemos, pois, de nenhum modo, que haja um instinto artístico único ("cinheitlich. Afirmamos o contrário. É um erro supor que todos os indivíduos dotados para a arte possuam os mesmos instintos e sentimentos artísticos e que só dependem de circunstâncias exteriores para se manifestar sob a forma de música, pintura ou poesia. Só para a linguagem existe um instinto artístico. Na realidade, unicamente há instintos de poeta, de pintor, de músico, de arquiteto. Os diversos instintos, sentimentos e atividades são absolutamente independentes uns dos outros. O músico não possui um instinto musical geral que satisfaz por meio da música, mas vive, sente e cria de improviso por meio de seus sentimentos musicais, que são completamente estranhos aos demais domínios da arte e da vida.

(3) Unicamente em matéria de música não desempenha papel algum o instinto de imitação ou pelo menos, é de todo secundário.

Fonte: Ed. Formar ltda.

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