Introdução a Sociologia
– PRIMEIRA PARTE OS PROBLEMAS SOCIOLÓGICOS
Professor A. Cuvillier (1939).
Capítulo V – OS MÉTODOS SOCIOLÓGICOS
Do exposto anteriormente conclui-se que os métodos da sociologia não poderiam ser em sua essência diversos dos das ciências experimentais. Proceder a priori, seria voltar a cair na ilusão das explicações subjetivas e tomar como evidente o que nos é familiar, por inteligível o que é, simplesmente, um elemento. Proceder dedutivamente, por exemplo: partir do postulado de uma "natureza humana", cujas tendências seriam em toda parte e sempre as mesmas, seria esquecer que essa mesma "natureza humana" é função das condições sociais, e que, por conseguinte, está em via de perpétua evolução.
I. — O "MÉTODO" MONOGRÁFICO
Nestas condições, se é preciso tomar como ponto de partida os fatos, o concreto, não será o melhor método o que descreve atenta e minuciosamente casos especiais e convenientemente escolhidos, isto é, o "método monográfico"?
Foram, sobretudo, a escola de Le Play e a sua filial, a escola da "Ciência Social", que preconizaram este método como o sistema fundamental da sociologia. O que fará, diz Paul Bureau, eminente representante desta escola, na sua Introduction à la méthode sociologique, um mineralogista que pretenda estudar um terreno? Não irá estudar aqui e além certos estratos, não multiplicará as análises parciais e fragmentárias. Colherá uma amostra do jazigo que pretende conhecer e dela fará uma análise completa, levando-a até ao fim.
É sabido que, na realidade, as investigações de Le Play incidiram, principalmente, sobre as monografias de famílias operárias. Estabeleciam o orçamento de uma família normal, numa profissão, lugar e época determinados, e fixavam suas diversas despesas, consagradas à alimentação, ao vestuário, à habitação, à saúde, à instrução, aos divertimentos e à economia. Para estas monografias Le Play constituiu quadros que foram desenvolvidos por Henri de Tourville numa Nomenclature detalhada, em que os fenômenos sociais são agrupados em vinte e cinco grandes classes, subdivididas, por sua vez, em 326 elementos. Le Play estabeleceu, igualmente, um quadro para a monografia de uma nação, que aplicou na sua "Constituição da Inglaterra": Emile Cheys-son, um quadro para as monografias de oficina, etc.
Por outro lado, os geógrafos da escola de Vidal de la Blache preconizaram, por oposição ao método analítico e comparativo dos sociólogos, as monografias regionais, de que podemos encontrar modelos nos estudos, já antiquados, de Demangeon sobre a Picardia, de Blanchard sobre a Flandres, de Vacher sobre o Berry, de Jules SION sobre os camponeses da Normandia oriental, ou no notável e
ainda recente estudo de Demangeon e Febvre acerca do Reno. Em vez de tomar por base um elemento social, como a habitação (formas da casa, distribuição das aglomerações, etc), o povoamento, a irrigação, a localização das indústrias, etc, e de lhe estudar as variações no tempo e no espaço, escolhem uma região geograficamente delimitada e estudam todos os fenômenos que nela ocorrem e as relações entre esses fenômenos e ela.
Este método permitiria, a acreditar em seus partidários, estudar a sociedade na sua evolução, na sua vida, no seu dinamismo, enquanto que todos os outros conduziriam a uma sociologia estática. É assim que P. Bureau critica Durkheim por estudar com os seus métodos não o "já feito" e o "acabado", mas "o envelhecido e o velho, o que amanhã será caduco e depois de amanhã desusado", e desconhecer as "instituições sociais que se elaboram e se experimentam, tímida e, por vezes, dolorosamente, ainda muito modestas e desprezadas pelas "pessoas de qualidade" para terem direito de cidadania e se exprimirem nessas sentenças imperativas que tão bem ficam às pessoas que venceram na vida".
Lionel Bataillon julga, igualmente, poder afirmar que "a diferença de atitude (entre partidários do método analítico e partidários do método monográfico regional) provém de uma diferença de concepção das reações recíprocas do homem e do meio". Os primeiros imaginariam "os homens passivos diante das forças naturais", ao passo que os segundos estariam penetrados da idéia de que "o homem atua sobre a natureza tanto como a natureza atua sobre o homem".
Em boa verdade, não é esta a questão. É possível que os sociólogos durkheimianos não tenham posto suficientemente em relevo a reação do homem sobre a natureza. Mas disso voltaremos a tratar no último capítulo. Mas nunca a negaram. De resto, o "método monográfico" não evita de modo algum os inconvenientes da sociologia estática. Para o provar basta-nos a seguinte observação de Wilbois: as nossas sociedade modernas, diz êle, estão em evolução permanente; nelas se criam sem cessar novas tendências, que ainda não têm órgãos apropriados. Poderão essas tendências, essas novas necessidades, ser interpretadas por meio das monografias? "Por mais preciosas que sejam essas monografias, só indireta e inexatamente respondem à pergunta que fazemos. O que delas se deduz não é uma tendência, ou, mais precisamente, uma "necessidade", se chamarmos necessidade a uma tendência aplicada a um objeto; é, como observou Schmoller, um "pedido": ora, uma necessidade pode ser imperiosa e, por falta de dinheiro, aquele que a sente nem sequer pensar em exprimir o pedido com que a satisfaria: os operários das grandes cidades têm, evidentemente, necessidade de férias ao ar livre, e contudo só recentemente se encontram ligeiros vestígios dessa despesa no seu orçamento".
Na realidade, a questão é puramente metodológica. O que devemos perguntar é se, efetivamente, a monografia constitui um método, que possa levar a uma determinação e a uma interpretação satisfatória dos fatos sociais. Seja-nos permitido recordar aqui alguns princípios elementares que, parece-nos, têm andado muito perdidos de vista nesta discussão:
1.° O singular não é objeto de ciência. Em primeiro lugar, a monografia, pelo simples fato de se referir a um único exemplo, nunca pode esgotar o assunto. Era já essa a objeção formulada por
Durkheim nas Régles: "Inventariar todos os caracteres de um indivíduo é um problema insolúvel. O indivíduo é, só por si, um infinito, e o infinito não pode esgotar-se". Além disso, a descrição pura, tal como é aqui possível, coloca-nos apenas em presença de um conjunto confuso, no qual nada se pode distinguir, aproximadamente como se um físico tivesse a fantasia de Rescrever o estado total de um sistema, misturando, ao mesmo tempo, o que diz respeito aos seus estados mecânico, térmico, elétrico, magnético, higrométrico, etc. "Supondo mesmo — escrevia Simiand, na polêmica a que atrás fizemos referência — que as regiões consideradas são, realmente, unidades ao mesmo tempo geográficas e humanas (com preferência, de resto, mais humanas que geográficas), começar por estudar o todo dessa região, querer compreender e explicar, ao mesmo tempo, tudo o que nela existe, é pretender começar pelo mais difícil, por aquilo que, quando muito, se pode considerar como o fim da ciência: porque é, com efeito, pretender explicar um indivíduo em toda a sua individualidade completa e inteira, em vez de começar, como em todas as ciências, pela análise das relações gerais mais simples".
Por conseqüência, a monografia pode, no máximo, fornecer-nos — e, repetimos, de maneira incompleta — um "dado" que então se apresenta com a complexidade e, também, com a ambigüidade da realidade. "Complexo indivisível", diz-nos Hauser. Indivisível, portanto incompreensível. Porque, se é verdadeiramente rebelde à análise, não pode ser cientificamente conhecido.
2.° Na realidade, a análise é indispensável. E isto é tão verdadeiro que, apesar de a possuírem, os partidários do método monográfico introduzem, naquilo que pretendem ser uma simples exploração dos fatos sociais, hipóteses, pré-concepções, classificações, quadros lógicos, que implicam já uma interpretação completa. Mas essa interpretação é tanto mais perigosa quanto é inconsciente e, muitas vezes, provém, simplesmente, dessa "metafísica do senso comum" que, em 1903, Simiand assinalava como constituindo "os ídolos da tribo dos historiadores".
Vejamos, por exemplo, por que razão Le Play se dedicou, de preferência, às monografias de famílias cie operários. Êle próprio explica-o no seu livro Ouvriers européens. A família burguesa ou rica, diz, tem, em larga escala, a faculdade de se subtrair à influência do meio. "Não sucede assim com a classe operária: a imprevidência que implica um estado habitual de penúria, ou a previdência que a economia aconselha nas despesas, colocam cada família na necessidade de prover às suas necessidades pelas combinações mais diretas e mais simples. Os meios de existência do operário estão, portanto, essencialmente subordinados às influências reunidas do solo e do clima.. . Nestas condições, obtém-se como que um reflexo da constância e da regularidade que os naturalistas constatam entre os indivíduos da mesma espécie". E mais claramente ainda, na Introdução da mesma obra, Le Play declarava: "Apliquei à observação das sociedades humanas regras análogas às que o meu espírito utilizava no estudo dos minerais e das plantas. Construí um mecanismo científico".
Não se pode confessar com maior ingenuidade uma concepção fixista e mecanista da vida social.
Por outro lado, por que razão se há de fazer incidir o estudo especialmente sobre a família? O seu discípulo Paul Bureau não no-la deixa ignorar:
"Partindo dessa incomparável matriz das sociedades humanas que é a família, podemos elevar-nos até à observação integral de todo o grupo". A família, célula original de toda a vida coletiva, é a hipótese — tão contravertida, tão comprometida até, como veremos no capítulo VI — que se dissimula na base desta concepção.
De resto, se compararmos os fatos apontados pelos autores de monografias ou os quadros por eles fixados, apercebemo-nos bem depressa de que certas ordens de fenômenos, aproveitadas por uns, são postas de lado por outros, que aquilo que parece essencial na descrição deste é relegado para o segundo plano na descrição daquele. É assim que "a representação da vida", que não ocupava o mais pequeno lugar na nomenclatura de Henri de Tourville, se torna, na de Paul Bureau, um dos elementos da "trindade organizadora", ao lado do "lugar" e do "trabalho", ao passo que "o País", que era um dos quadros da vida pública na primeira, desapareceu na segunda.
São muito interessantes as páginas consagradas a esta questão por um outro discípulo da "Ciência Social", Paul Descamps, na sua Sociologie expérimentale: "A monografia — observa êle — estuda uma amostra e é preciso saber o que representa a amostra escolhida. Pode ser normal ou anormal, próspera ou doentia. Le Play preconizou a escolha de famílias operárias prósperas, como base dos estudos sociais. Mas as monografias de Ouvriers européens não abrangem somente famílias prósperas ; as que vêm no fim são, manifestamente, tipos patológicos e Le Play não o ignora". Mas, pergunta Descamps com toda a razão, "o que é a prosperidade? Segundo Le Play, é o estado de um agrupamento que resolve a questão do pão quotidiano e se submete à moral". O método monográfico dos discípulos de Le Play supõe uma concepção completa da "saúde moral" de uma sociedade, uma definição total do normal e do patológico.
E não se julgue que as monografias dos geógrafos não são também assim. Nessas monografias regionais de que falamos atrás, revelava Simiand, já em 1910, sensíveis diferenças de orientação: o estudo propriamente físico do solo, do clima, etc, muito desenvolvido em certos estudos, mal aparece esboçado noutros, ao passo que, no estudo de Vacher sobre o Berry, a geografia propõe-se explicar esses caracteres físicos partindo de considerações históricas e políticas, e que, ainda num outro, o de Jules Sion, o autor parece tomar como objeto de estudo mais os homens do que o solo. Mas teremos ocasião de falar mais largamente sobre este ponto, no último capítulo desta obra.
3.° Já se vê agora o perigo deste método. É que, entrando essas pré-concepções na pretensa "descrição" dos fenômenos, sem disso se dar conta, corre-se o risco de generalizar abusivamente, com base num único exemplo. "O sistema monográfico — reconhece Descamps — não está isento de perigos e deve ser usado com discernimento quando se pretendam utilizar os fatos, se não se quiser que as conclusões ultrapassem o alcance que, legitimamente, podem ter". E é também um historiador, mas um historiador muito competente e ligeiramente sociólogo, René Dussaud, quem, na sua Introduction à l’histoire des religions, nos põe em guarda contra o mesmo erro, a propósito do método etnográfico: "Evidentemente, este último é útil, indispensável até, mas não é suficiente desde que se pretenda ultrapassar a fase da coleção dos fatos e abordar a sua explicação. Se, antecipadamente, não tivermos noções muito claras sobre o objeto da religião, sobre ò encadeamento e a complexidade dos fenômenos religiosos, sobre o valor dos ritos essenciais como o sacrifício e a oração, a monografia conduzirá, quase fatalmente, à generalização abusiva de um argumento arbitrariamente escolhido".
4.° Por outro lado, é bastante curioso constatar que os próprios partidários do "método monográfico" reconhecem a sua insuficiência. A monografia de uma só família não é suficiente, escreve Paul Bureau: "Pelo contrário, será vantajoso renovar a observação sobre uma outra família e controlar por uma nova experiência os resultados da primeira". E os historiadores não falam por outra forma : Henri Berr, na sua Synthèse en histoire, reconhece que, "se o autor de uma monografia regional tem um horizonte muito restrito, se abstém de qualquer comparação e ainda por cima abrange nas suas explicações um’ número demasiadamente grande de fatos humanos, arrisca-se a enganar-se acerca das relações que pretende estabelecer entre certos caracteres geográficos e os fenômenos sociais"; e o próprio Febvre, em La Terre et l’Évolution humaine, conclui nestes termos: "Estudos regionais que excluíssem toda a comparação seriam nefastos se fossem realmente possíveis". As passagens que nos permitimos sublinhar nestas citações mostram que os próprios partidários do "método monográfico" reconhecem a necessidade do método comparativo. Mas, nesse caso, se este último é indispensável, não será a comparação, e não a simples descrição de casos singulares, o verdadeiro instrumento de explicação? As monografias não são inúteis; são até, em muitos casos, indispensáveis. Mas não são mais que uma simples exposição, ou, na expressão de Dussaud, uma simples "coleção" de fatos.
II. — o método histórico-comparativo
Dispõe o sociólogo de uma outra fonte de informação, que pode tornar-se um verdadeiro método de análise e de explicação: é a história comparada.
A história propriamente dita, mesmo se a considerarmos como o conhecimento do singular, do "acidental", mesmo se, como escrevia Mantoux em 1903, ela "não passar de uma narração, uma descrição, um quadro", continua a ser indispensável à sociologia. "Qualquer investigação sociológica — escrevia com razão o mesmo historiador — deve ser precedida de uma preparação histórica". Por isso mesmo, Durkheim, nas suas Régles de la méthode sociologique, designava a história comparada como o instrumento por excelência da investigação sociológica, de preferência, mesmo, à etnografia, de que êle próprio e a sua escola deviam fazer tão largo uso.
A história apresenta, nesta matéria, uma grande superioridade sobre a monografia do contemporâneo, do atual. É que ela nos mostra os fenômenos sociais na sua evolução, no que têm de vivo e de dinâmico. A história, escreviam Langlois e Seignobos na sua célebre Introduction aux études historiques, "mostra-nos a relatividade de todas as coisas e a incessante transformação das crenças, das formas de arte, das instituições".
Mas a história é ainda mais do que isso: é um instrumento de análise. Para compreender uma instituição, explicava ainda Durkheim, é preciso saber do que ela é feita. É sempre um todo complexo, formado por elementos diversos, — acrescentemos : em relações recíprocas uns com os outros. Para desenlear essa meada, para descobrir esses elementos, "não basta considerar a instituição sob a sua forma completa e recente: porque, por estarmos acostumados a ela, parece-nos sempre muito simples". A história, pelo contrário, fará aparecer esses elementos, porque "a instituição considerada se constituiu progressivamente, fragmento a fragmento; as partes que a formam nasceram umas depois das outras e acrescentaram-se, mais ou menos lentamente, umas às outras; basta, portanto, seguir-lhe a gênese no tempo, isto é, na história, para ver naturalmente dissociados os diferentes elementos de que ela resulta". O próprio Durkheim cita, como exemplo, os diferentes elementos que constituíram, nos diversos tipos de família e em diversas fases da evolução social, a noção de parentesco. Da mesma forma, se quisermos compreender como, na Grécia antiga, se formou o direito positivo clássico, seremos necessariamente levados, com Gustavo Glotz, a observar que nas origens dessa justiça civil, dessa diké, esteve, primeiro, a justiça mística, a thémis, estritamente limitada à família, ou melhor, ao genos, e baseada no culto dos deuses domésticos, e que a diké, apesar de derivar da thémis, a ponto de con-sevar dela evidentes sobrevivencias, acaba por se lhe opor e absorvê-la numa nova forma do direito. A propriedade fornecerá um exemplo ainda mais característico : se quisermos compreender alguma coisa das múltiplas formas que, nas nossas sociedades, tomou a propriedade, e especialmente a propriedade mobiliária, é indispensável segui-la ao longo da sua história e examinar o caminho por onde ela chegou a ser, como dizia Jaurés, "tão estranha ao possuidor que é através do jornal que o possuidor recebe notícias da sua propriedade".
Fonte incomparável de informação, método de análise, a história comparada é, por isso mesmo, um método de explicação: "Com efeito, explicar uma instituição é prestar contas dos diversos elementos que servem para formá-la, é mostrar as suas causas e as suas razões de ser. Mas como descobrir essas causas senão reportando-nos ao momento em que elas foram aparentes, quer dizer, em que elas suscitaram os fatos que procuramos compreender? Ora, esse momento fica atrás de nós. O único meio de conseguir saber como cada um desses elementos nasceu é observá-lo no próprio instante em que nasceu e assistir à sua gênese: ora essa gênese teve lugar no passado e, por conseqüência, só pode ser conhecida por meio da história" (Durkheim).
É claro que a determinação dessa gênese necessita sempre, pelas razões que indicamos a propósito da noção de causa, a comparação de vários desenvolvimentos históricos. Durkheim dá-nos ainda aqui, como exemplo, as transformações do parentesco desde a sua forma essencialmente materna até à sua forma atual, em que é duplo, ao mesmo tempo paterno e materno, passando pela formação do parentesco agnático (quer dizer, exclusivamente paterno) e seguindo, através da história, as relações de uma com a outra.
Marc Bloch, no seu livro Les Caracteres originauxde l’histoire rurale française (1931), dá-nos um outro exemplo: o da formação da classe rural em França. Para explicar como o senhor feudal se transformou, de grande agricultor em senhorio, é necessário, diz-nos êle, recorrer à história comparada: "Quando conseguirmos datar exatamente as diferentes evoluções regionais e apreciar a sua amplitude, ser-nos-á possível, como por uma experiência natural, eliminar certos fatos e apreciar o valor relativo de outros. O segredo da descriminação dos efeitos e das causas, à qual se opunha, no interior de uma área social limitada, a ausência de datas exatas, tem de perguntar-se à distancia entre as diversas curvas".
A historia comparada torna-se assim, para o sociólogo, um equivalente do método experimental. "Só temos — escrevia ainda Durkheim — uma maneira de demonstrar que entre dois fatos existe uma relação lógica, de causalidade por exemplo, que é comparar os casos em que eles estão, simultáneamente, presentes ou ausentes, e procurar ver se as variações que eles apresentam nessas diferentes combinações de circunstâncias demonstram que um depende do outro". Reconhecem-se facilmente aqui os três sistemas essenciais descritos por Stuart Mill (pomos de parte o método dos resíduos) : o método da concordância — os dois elementos estão simultaneamente presentes —, o método da diferença — os dois elementos estão ausentes —, e o método das variações concomitantes. Em boa verdade, seria fácil mostrar que só este último caracteriza, verdadeiramente, o método experimental. É por isso que, nas Régles, Durkheim observa que, em sociologia mais do que em qualquer outra ciência, "em conseqüência da grande complexidade dos fenômenos", o método da concordância e o método da diferença nada podem provar:
"Como não é possível fazer um inventário, nem sequer aproximadamente completo, de todos os fenômenos que coexistem no seio de uma sociedade ou que se sucederam durante a sua história, nunca se pode estar certo, mesmo de forma aproximada, de que dois povos concordam ou diferem sob todos os aspetos, exceto um."
O método da concordância leva, sobretudo, a "acumular os elementos", quando o que se trata é de criticá-los e escolhê-los; conduz a esse "mostruário empírico", a essa "exemplificação ao acaso", que Simiand denunciava. É sempre possível alegar em defesa de uma hipótese um certo número de exemplos que parecem confirmá-la, e é assim que se faz muitas vezes em sociologia e em economia política. Um método assim não tem o menor poder probatório: "documentar uma idéia não é demonstrá-la". O método das variações concomitantes oferece muito mais garantias, e compreende-se que Durkheim, com René Worms e muitos outros, tenha visto nesse método "o instrumento por excelência da investigação sociológica". Ora a história fornece, precisamente, a esse método o mais vasto campo de aplicação: "a riqueza das variações que se apresentam espontaneamente às comparações do sociólogo" é equivalente à experiência; permite proceder, não por enumeração de exemplos, de casos isolados, mas por comparação de "séries de variações, regularmente constituídas, cujos termos se liguem uns aos outros por uma graduação tão contínua quanto possível, e que, além disso, sejam de uma extensão suficiente".
Durkheim previa três formas possíveis deste método comparativo, conforme as séries compreendem: 1.° — fatos pertencentes só a uma única sociedade ; 2.° — fatos referentes a várias sociedades do mesmo tipo; 3.° — fatos colhidos em vários tipos sociais diferentes.
O primeiro caso não dá lugar a dificuldades. Mas aplica-se, sobretudo, a fenômenos sociais muito
gerais, tais como os fenômenos demográficos, a nup-cialidade, a natalidade, o suicídio, etc, "sobre os quais — diz Durkheim — temos informações estatísticas bastante extensas e variadas". Nesses casos podemos, com efeito, comparar as variações do fenômeno conforme as províncias, as classes sociais, os habitats rurais ou urbanos, os sexos, as idades, o estado civil, etc. Foi um método análogo que Simiand aplicou ao estudo das variações do salário.
Na maior parte dos casos, afirma Durkheim, há interesse em alargar a comparação, a várias sociedades do mesmo tipo ou até a sociedades de tipos diferentes.
Duas sociedades do mesmo tipo nunca são idênticas; cada grupo social tem a sua individualidade própria. Haverá, portanto, interesse em comparar dois ou vários grupos nos quais as condições não são exatamente as mesmas: "Teremos assim uma nova série de variações que aproximaremos das que apresenta, no mesmo momento e em cada um desses países, a Condição presumida". Seja, por exemplo, a família patriarcal: podemos seguir a evolução desse tipo de organização doméstica através da história de Roma, de Atenas, de Esparta, correlativamente com as variações dos diferentes fatores do meio social. Supõe-se, por exemplo, que existe uma relação entre essas transformações e as que se deram numa economia a princípio puramente rural e comunitária, como a que se encontra ainda na Za druga dos eslavos do Sul, e depois, ainda que sempre essencialmente agrícola, mais individualizada e implicando a reunião, sob a autoridade de um único proprietário, de trabalhadores, por vezes, muito numerosos? Verifica-se em todos os casos considerados se se encontra a mesma relação. Poderemos, até,
alargar a comparação, por exemplo, à família chinesa, que representa, como mostrou Granet, uma forma de transição bastante curiosa entre a família agnática indivisa e a família patriarcal, e se nisso encontramos a concomitância entre essa transição e a passagem de uma civilização essencialmente camponesa para uma civilização urbana e senhorial, também poderemos ver um começo de prova da hipótese emitida.
Mas ainda podemos alargar a comparação. Em vez de ela se limitar a um tipo determinado, podem comparar-se as formas que uma instituição apresenta em sociedades de tipos diferentes: procurar-se-á chegar à forma mais rudimentar que se conhece, "para, em seguida, seguir passo a passo a maneira como ela progressivamente se complicou".
São estas as três formas do método comparativo indicadas por Durkheim nas Régles de la méthode sociologique. Observemos, no entanto, que a primeira cabe melhor no método estatístico e que a terceira recorre, necessariamente, à etnografia para chegar às formas elementares. Nisso voltaremos a falar mais adiante. Só a segunda pertence plenamente à história*
Simiand apresentou contra este método uma objeção que precisamos de tomar na devida consideração. Êle observa que o método experimental exige sempre uma contraprova. Ora, tomar para base de comparação sociedades diferentes é uma forma absolutamente insuficiente e grosseira dessa contraprova. Com efeito, dada a multiplicidade dos fatores que intervêm em matéria social, é muito provável que os fatores diversos do fator considerado não se encontrem nos diferentes casos com o mesmo caráter, natureza e valor. É, portanto, difícil estabelecer assim uma relação constante, pois que a experiência, ou melhor, a observação se manterá "ainda que todas as outras coisas sejam desiguais". Por outro lado, "eliminar todos esses fatores entre as diferentes bases de experiência, seria, em parte, impossível ou muito difícil". Ao método comparativo assim compreendido, opôs Simiand o preceito da "identidade de base entre as experiências", quer dizer, que a comparação deverá incidir unicamente sobre fenômenos pedidos ao mesmo grupo social.
Não nos parece que esta objeção seja procedente. Qualquer método experimental comporta uma certa parte de incerteza. A eliminação dos fatores secundários nunca é integralmente possível, e o próprio Simiand reconhece que, com freqüência, "o estudioso, quer queira ou não, conserva na sua experiência mais elementos, ou elementos diferentes, do que desejava". Não se pode pedir aos métodos sociológicos mais do que se pede aos métodos das ciências físicas. E as próprias reservas que Simiand acumula quando afirma a superioridade do preceito da "identidade de base" bastam para prová-lo suficientemente. Nesse caso, diz êle, tem-se "a enorme vantagem de, desses numerosos fatores difíceis de atingir, mal conhecidos ou desconhecidos, se poder com maior freqüência presumir que se mantiveram constantes ou sensivelmente constantes ou, sem os compreender com precisão, que só variaram de certa forma, em certo e determinado momento; e assim a sua eliminação ou a sua classificação no número de condições constantes, ou uma discussão que as elimine ou as coloque no seu lugar, tornam de novo possível o isolamento do fenômeno considerado e do fator a estudar e o estabelecimento de uma relação válida". As fórmulas que sublinhamos mostram até que ponto o autor tinha o sentimento da prudência que é necessária, mesmo quando se trata de comparar fenômenos referentes ao mesmo grupo social. A questão apresenta-se aproximadamente da mesma forma, quando a comparação incide sobre sociedades diferentes, mas pertencentes ao mesmo tipo: o sociólogo deve apenas, nesse caso, ser ainda mais prudente.
Vamos mais longe: ‘se nos limitamos a um tipo único e, a fortiori, a uma sociedade única, o perigo, mesmo tendo o cuidado de fazer incidir as investigações sobre períodos suficientemente extensos, é igual ao do método monográfico: corre-se o risco de extrapolar indevidamente e de generalizar o que só convém a esse tipo ou a essa individualidade social. Será temerário pensar que o próprio Simiand, apesar do seu imenso esforço de informação, não evitou totalmente esse perigo, quando, ao estudar as variações do salário, foi levado a colocar no primeiro plano os fenômenos monetários, recusando-se até a distinguir o salário real do salário nominal? Como se, com efeito, num tipo de organização econômica em que o ouro beneficia de uma espécie de respeito religioso, "o apego ao rendimento monetário" não devesse fazer esquecer tudo o mais! Como se todas as classes, tanto a classe assalariada como as outras, não devessem, nessas condições, ceder a uma espécie de miragem, a uma espécie de "fetichismo" da moeda, que a uns faz entrever a retribuição do seu trabalho através da sua representação monetária, e não segundo a sua real capacidade de compra, e que leva outros a destruir os produtos do trabalho para manter intangíveis as ortodoxias monetárias, a aniquilar a riqueza para salvar a moeda! E, é certo, Simiand mostrou claramente que esse "monetarismo
social" era um produto de evolução, um produto histórico. Mas não haverá perigo em parecer generalizar conclusões que só são válidas para o sistema econômico, tão especial — e talvez tão estranho — sobre o qual se fizeram as comparações?
Reconheçamos, portanto, que é indispensável ultrapassar esta fase e instituir comparações mesmo entre sociedades de tipos diferentes. O método his-tórico-comparativo exige, evidentemente, muita prudência: mas nem por isso deixa de constituir uma fonte de informação e um método de contraprova indispensáveis ao sociólogo.
III — O método estatístico
Já vimos quais foram, de início, as ambições da estatística. Essas ambições ainda se encontram em certos modernos cultores da estatística, como G. VON Mayr, aos olhos de quem a estatística está bem próxima de formar uma ciência social distinta. No entanto, hoje em dia quase todos concordam em ver nela, não uma ciência, mas "um instrumento de método" (Durkheim) ou "uma técnica, um método de estudo" (SIMIAND).
Não entraremos, a este respeito, em detalhes técnicos que fazem parte das matemáticas. Vamos limitar-nos a examinar as suas condições gerais de aplicação à sociologia.
O seu papel é, em primeiro lugar, como disse um eminente cultor da estatística, A.-L. Bowley, dar uma descrição quantitativa da sociedade considerada como um todo organizado. Trata-se de definir, de delimitar as classes, de especificar as características dos membros dessas classes, de lhes medir a importância ou a variação, etc.
Mas a estatística é mais alguma coisa que um simples meio de descrição racional. É, também, um método de experiência e de prova, porque é um método de análise. Bowley diz que as estatísticas permitem obter uma representação simples de conjuntos complexos e verificar se essas representações simplificadas têm relações entre si. Vejamos, por exemplo, o desemprego: isolaremos primeiro, por processos apropriados, o que é atribuível às variações das estações e depois estudaremos as variações em período mais longo. Verifica-se, como mostraram Bowley e Simiand, uma nítida analogia com os processos do método experimental: "Em que se distingue — escreve Simiand — este conjunto de operações, no seu princípio, do conjunto de operações pelas quais o estudo de um movimento material complexo, em qualquer das ciências da natureza, separa e isola sucessivamente cada um dos movimentos componentes e estuda separadamente o que produz cada um deles?"
Porém, se o método estatístico é precioso para o sociólogo, nem sempre é fácil de manejar. E é necessário precisar: 1.°, as condições de organização; 2.°, as condições de interpretação das estatísticas.
1.° Uma boa estatística não é tão fácil de organizar como, geralmente, se ju: ‘a. Uma estatística não é uma simples contagem, e por isso o método estatístico se opõe ao método monográfico, que procede, precisamente, a contagens e a medidas sobre um único objeto (por exemplo, uma família). Pelo contrário, o método estatístico faz desaparecer o singular e o individual para pôr em evidência o geral e o social. Para haver estatística, é necessário que nos encontremos em presença de um conjunto
com certa consistência, possuindo, como conjunto, uma realidade, o que é, precisamente, o caso dos fenômenos sociais. Um físico, observa Simiand, não determina a densidade de um agrupamento qualquer heteróclito, nem um naturalista a altura média dos diversos animais de um jardim zoológico. É necessário que o conjunto seja homogêneo. É aqui que se impõe a regra que indicamos a propósito da determinação dos fenômenos sociais: estes devem ser definidos tão rigorosamente quanto possível, antes de tratarmos de lhes fazer a estatística. Se quisermos organizar uma estatística dos suicídios, precisamos, em primeiro lugar, distinguir com cuidado o suicídio propriamente dito dos outros gêneros de "mortes violentas". É por isso que Durkheim, identificando suicídio e sacrifício da vida, distingue o suicídio altruísta, o suicídio amorfo e o suicídio egoísta. Pretende-se organizar uma estatística do desemprego? É necessário distinguir a renúncia voluntária ao trabalho do desemprego propriamente dito, o desemprego total do desemprego parcial, o desemprego oficialmente registrado e o desemprego clandestino.
Ainda com maior razão se impõe a mesma prudência quando se trata de traduzir as estatísticas graficamente: "É necessário — escreve Lucien March — não, esquecer que a forma de uma curva depende essencialmente da relação que existe entre a unidade de medida das grandezas representadas no eixo das abssisas e a unidade de medida das que são representadas no eixo das ordenadas".
2.° A interpretação exige ainda mais precauções. É necessário, não somente alargar a exploração estatística por um período bastante longo, mas também levá-la até a um certo grau de análise. Devemos desconfiar das médias, quase sempre enganadoras. Vamos tirar mais um exemplo a Simiand. Consultando superficialmente as estatísticas, pareceria que, quando o salário se eleva, a produtividade se eleva paralelamente: é, pelo menos, o resultado que parece obter-se quando se tomam os fatos no princípio e no fim de um período relativamente longo. Mas, se observamos mais de perto e de uma forma contínua, verificamos que, quando o salário se eleva, a produtividade não sobe e até mesmo baixa, e que, em seguida, o salário se mantém estacionário ou até desce, ao passo que a produtividade se eleva.
Sobretudo, não nos devemos apressar a estabelecer relações de causalidade entre fenômenos que pareçam dever ser correlativos. Certas relações podem ser imediatamente eliminadas, e o método estatístico constitui aqui uma espécie de experimentum crucis. Por essa razão se tem, com freqüência, afirmado, seguindo Le Play e a sua escola, a influência da religião sobre o salário. Ora, a experiência estatística mostra que os fenômenos religiosos são uma simples condição geral, totalmente indireta. Esta observação aplica-se aos fenômenos jurídicos, mesmo quando se trata da legislação protetora do trabalho, cuja ação sobre os salários seria "verossímil" se se mostrasse mais eficaz. A mesma observação podemos, finalmente, fazer a respeito dos fenômenos políticos, "apesar de, com freqüência, eles suportarem, na opinião, o castigo ou o mérito das vicissitudes econômicas de que são contemporâneos ou antecedentes".
Mesmo quando a estatística revela uma certa correlação entre dois fenômenos, esta precisa de ser interpretada. Em sociologia são muito freqüentes essas correlações que, na realidade, se explicam pela ação de um terceiro fator. As estatísticas põem em relevo um certo paralelismo entre o aumento do número dos suicídios e o desenvolvimento da instrução popular, o que Durkheim interpretava, não como o sinal de uma relação causai direta entre as duas coisas, mas como dois efeitos diferentes de uma terceira causa: o desenvolvimento do individualismo. Verifica-se igualmente uma certa correspondência entre as variações do nível dos salários e as do montante dos suicídios. Ainda de forma idêntica, as guerras parecem mais freqüentes nos períodos de expansão econômica, em que os salários se elevam. Em todos estes casos, seria, evidentemente, pueril concluir pela existência de uma relação direta entre a causa e o efeito.
De uma maneira mais geral, a interpretação dos resultados estatísticos deve ser dominada pelo sentimento da complexidade dos fenômenos sociais, dessas interferências e dessas ações recíprocas de que falamos a propósito da noção de causa. Foi o que Halbwachs demonstrou claramente na sua obra Les Causes du Suicide, ao analisar os resultados e as interpretações fornecidas por Durkheim sobre esse mesmo assunto. Sabemos, por exemplo, que Durkheim mostrara que o suicídio é menos freqüente entre os católicos do que entre os protestantes. O fato é incontestável. Mas como devemos interpretá-lo? As estatísticas, observa Halbwachs, pouco nos dizem a esse respeito: "Há muito poucos Estados que indiquem a confissão religiosa dos seus suicidas. A Prússia e a Suíça são, talvez, os únicos. Ora, na Prússia, na maioria dos casos, entre católicos e protestantes há uma diferença de origem nacional, sendo os protestantes prussianos e os católicos polacos, ou uma diferença de gênero de vida,
sendo os católicos mais numerosos nos campos e os protestantes nas cidades ou nas regiões mais submetidas às influências urbanas. Será por serem polacos ou camponeses ou por não serem protestantes, que os católicos, na Prússia, se suicidam pouco?"
Mas inversamente, se não devemos simplificar excessivamente as relações que a estatística nos revela, não devemos apressar-nos a negar as que não se nos revelem ao primeiro golpe de vista. Verifica-se, por exemplo, uma subida dos salários em seguida às greves, mas tanto nas profissões que não estiveram em greve como nas outras. Deveremos concluir que a greve não é uma causa da subida dos salários? Não temos esse direito, afirma Simiand, porque não está demonstrado que o montante dos salários, no primeiro grupo de profissões, seja independente dos salários daquelas em que houve greves.
Em conclusão, é sempre o sentimento das interdependências e a noção, tão fundamental em sociologia, dos conjuntos que devem guiar a interpretação.
IV. — o método etnográfico
Seja qual fôr o seu interesse e o seu alcance, nem o método histórico-comparativo, nem o método estatístico poderiam satisfazer o sociólogo. É necessário completar esses dois métodos com um terceiro, que permita levar a análise mais longe, remontando a estados de sociedade, em certo sentido, mais simples: o método etnográfico e, especialmente, o estudo dos grupos sociais chamados "primitivos".
Esta necessidade de alargar o método comparativo às sociedades arcaicas foi contestada por muitos autores. Ridicularizaram-se — um pouco levianamente — as "histórias de selvagens", e preconizou-se, em seu lugar, uma sociologia de "observação direta" baseada na observação do atual. Defendeu-se o estudo do presente, que nos é "diretamente inteligível" e "suscetível de um conhecimento mais seguro" que o passado (R. Worms). Mas não há pior erro que essa pretensa inteligibilidade direta do presente; é, como vimos, uma ilusão subjetivista; e, na realidade, a vantagem principal do método etnográfico é, precisamente, colocar-nos em presença de civilizações e de instituições para as quais essas interpretações subjetivas, pedidas ao "bom senso vulgar", isto é, a noções que são produtos históricos de uma certa evolução social, se tornam manifestamente insuficientes.
O método etnográfico apresenta, evidentemente, um certo número de dificuldades e, antes de qualquer outra, a própria definição do "primitivo".
É claro que esse termo não pode designar uma espécie de estado original, muito próximo de uma espécie de "estado de natureza", como daria a pensar a expressão Naturvölker, freqüentemente empregada pelos sociólogos alemães. O primitivo não é por forma alguma o homem no estado de natureza, se por esta expressão entendermos um ser todo feito de instintos, liberto de qualquer influência social. "O selvagem atual — escreve Frazer — só é primitivo num sentido relativo e não absoluto. Não é primitivo em relação ao homem original, quer dizer, tal como era quando se elevou pela primeira vez acima de um nível de existência puramente bestial. Na verdade, por comparação com o homem no estado primário, o selvagem mais atrasado dos nossos dias é, sem contradição possível, um ser de grande desenvolvimento e de elevada cultura, visto que provas e probabilidades estão de acordo em demonstrar que todas as raças de homens, desde a mais grosseira à mais civilizada, atingiram o seu nível atual de cultura, por mais alto ou mais baixo que êle seja, à custa de uma lenta e penosa ascensão que se realizou durante milhares ou talvez milhões de anos… Se a antropologia tem muito que nos dizer a respeito do homem primitivo no sentido relativo, nada nos pode dizer do homem primitivo em sentido absoluto, pela razão bem simples de ignorar tudo a seu respeito e, tanto quanto é possível julgá-lo presentemente, sempre ter de ignorar tudo o que lhe diz respeito".
Entre os povos considerados "primitivos", nem todos estão "no mesmo grau", e, em boa verdade, alguns deles, como os povos do grupo malaio-poli nesiano, não merecem, por forma alguma, esse qualificativo: "Fala-se — diz Mauss — em primitivos: na minha opinião, só os australianos, os únicos sobreviventes da era paleolítica, merecem esse nome. Todas as sociedades americanas e polinesianas estão no período neolítico e são agrícolas; todas as sociedades africanas e asiáticas já passaram da idade da pedra e são agrícolas e providas de animais domésticos. É impossível, portanto, sob qualquer ponto de vista, enfileirá-las no mesmo plano".
Não somente é indubitável que muitos desses povos qualificados de "primitivos" têm, na realidade, atrás de si, uma longa história, mas, além disso, se é absurdo fazer do selvagem um degenerado ou um "atrasado", no sentido patológico da palavra, não é menos certo que, com freqüência, se podem descobrir nele verdadeiras regressões. Era o que já fazia notar Spencer, a quem, no entanto, com freqüência e sem o menor escrúpulo, se censura um evolucionismo demasiadamente simples e, até certo ponto, unilinear:
"Seria bem fácil — escrevia êle nos seus Príncipes de Sociologie — dizer quais as instituições verdadeiramente primitivas, se conhecêssemos a história do homem primitivo. Mas há razões que permitem pensar que os homens de tipos inferiores que hoje existem, e que formam grupos sociais ou ordens mais simples, não são espécimes do homem tal como foi no princípio. É provável que a maior parte deles, se não todos, tivessem antepassados que chegaram a um grau superior de civilização, e no número das suas crenças encontram-se idéias que devem ter sido elaboradas durante esses estados superiores. .. É bem possível e, na minha opinião, muito provável até, que o recuo tenha sido tão freqüente como o progresso."
As descobertas da etnografia têm mostrado bem que, neste sentido, há o que podemos chamar "pseu-doprimitivos". É o caso dos Veddah, do Ceilão, cujos caracteres somáticos parecem fazer deles um dos espécimes mais arcaicos da espécie humana, e que, no entanto, tudo leva a crer que tiveram outrora uma organização social mais complexa. Não somente, como já notara Max Müller, se encontram, na sua língua e nas suas lendas, vestígios da sua civilização anterior, não somente as antigas regras morais, relativas à exogamia e à descendência materna, se vão, entre eles, enfraquecendo, a ponto de se reduzirem à existência de uma espécie de família de fato, mas, até sob o ponto de vista técnico, perderam o trabalho da pedra e a confecção de vestuário de cascas de árvores, que outrora conheciam. É muito provável que possa dizer-se o mesmo da maior parte dos Pigmeus: Negritos de Malaca e das Filipinas ou Negróides da África, em quem certos autores, como o Pe. Schmidt, quiseram ver o tipo da "humanidade na sua infância". Pelo que respeita aos Negritos, só os das ilhas Andaman são bem conhecidos, graças aos magníficos estudos de E.-H. Man e de A.-R. Brown, que não confirmam em nada as teorias do Pe. Schmidt. Quanto aos de Malaca e das Filipinas, como poderemos ver "primitivos" nesses pequenos grupos esporádicos, extremamente mesclados, freqüentemente perseguidos pelas populações que os cercam, sobretudo pelos Malaios, que os obrigaram a refugiar-se nas montanhas e os reduziram a uma vida extremamente precária? Os Semang, pigmeus de Malaca, que foram fortemente influenciados pela civilização malaia, já de si tão complexa, falam uma língua mon-Kmer! Acerca dos Pigmeus do Congo, não temos, no dizer de Lowvie, nenhuma narrativa digna de fé. O próprio Pe. Schebesta confessa que todos os agrupamentos de pigmeus da floresta do Ituri, conhecidos por êle, "vivem em estreita simbiose com os agrupamentos negros que os cercam", a tal ponto que a questão de saber se as suas crenças e o seu culto religioso lhes pertencem ou foram copiados dos vizinhos, "ainda não pôde ser solucionada". Como diz Mauss, são, no geral, "pobres tribos, dizimadas, repelidas para a floresta equatorial e cujos dialetos são aparentados com os que falam as sociedades mais desenvolvidas que as cercam. Nada neles permite reconstruir a fase inicial da humanidade". A mesma conclusão se impõe a respeito dos Fuigianos. Os Yaghans, nos quais o Pe. Koppers julgou, recentemente, descobrir um estado de civilização pré-totê-mico, além de estarem há muito tempo em relações
com comerciantes chilenos e argentinos, vivem hoje, aproximadamente uns oitenta sobreviventes, em duas estações de missionários, falam inglês e andam vestidos à européia! Os Alakalufs também estão em vias de desaparecer. Restam os Onas, que são, na realidade, Patagões emigrados na Terra do Fogo e que foram repelidos para as montanhas depois que, em 1886, principiou a exploração das minas de ouro: estão hoje reduzidos a cerca de duzentos. Tudo o que de seguro se conhece acerca da sua civilização mostra-no-la intimamente aparentada, como se vê dos belos trabalhos de Rivet, com a civilização australiana.
Além dessas misturas de influências e de raças, dessas mestiçagens que fazem, por exemplo, da Malásia, na expressão de Pittard, uma verdadeira "selva étnica", além dos fenômenos de reprodução, muito freqüentes mesmo entre povos tão primitivos como os Australianos, em que se vêem as grandes festas rituais, os corrobore, transmitir-se de tribo em tribo, é preciso ter em consideração, aqui, as influências exteriores, especialmente as exercidas pelos Europeus, "esses fabulosos destruidores de toda a etnografia e de todas as chamadas raças inferiores" (Pittard). Quando essa influência não chegou até ao ponto de os destruir, como no caso dos Tasma-nianos, "exterminados pelos Europeus, que os caçaram como perdizes" (Pittard), temos, contudo, que confessar que ela nem sempre foi mais feliz sob o ponto de vista que nos interessa agora. Assim, os polinésios, diz-nos ainda Pittard, "sofreram tantos golpes desde a chegada dos Europeus (teria havido, na antiguidade, invasões bárbaras que fizessem à Eurásia tanto mal como as invasões européias do Pacífico?) que, em breve, serão apenas a sombra deles próprios". Mesmo fora destes casos, a colonização trouxe, com freqüência, aos povos colonizados, uma civilização inassimilável por eles, e de que receberam mais as taras que o aspeto cultural, de maneira que o resultado foi a desagregação das civilizações existentes. O ensino missionário falseou totalmente o sentido das crenças primitivas, o que, para o etnógrafo, é uma fonte de inúmeros erros. Já em 1870, o bispo Henry Callaway observava, a propósito das crenças dos Hotentotes: "Nada é mais fácil, quando se interrogam selvagens acerca do caráter da sua fé, do que sugerir-lhes, durante a conversa, idéias de que eles nunca tiveram a menor idéia e que, em breve, reaparecem como pretensos artigos do seu próprio credo original, quando, na verdade, não passam do eco do pensamento do investigador". A influência da raça branca não atinge, porém, somente as crenças; falseia e destrói, com freqüência, também as formas de arte, por vezes tão dignas de interesse, características dos povos primitivos foi-nos dado ouvir um canto totêmico canaca das ilhas Loyauté, notável pela sua polifonia e até pela sua politonalidade, que os mesmos Canacas cantam hoje, graças aos missionários que os "civilizaram", com uma música de cântico ou de cançoneta barata!
O emprego do método etnográfico exige, portanto, também muita competência e discernimento. Em especial, é preciso reagir, como já observamos, contra essa noção de uma evolução simples unilinear e contínua que, geralmente, é atribuída aos criadores do evolucionismo, como Spencer, mas contra a qual, como vimos, o próprio Spencer protestou. Não é inadmissível que durkheim, na concepção que formava do método etnográfico, não tenha ainda, em parte, sido vítima dessa ilusão simplificadora. É certo, por várias vezes, repudiou explicitamente essa noção de uma evolução uniforme da humanidade, — partindo de um estado relativamente simples para um estado mais complexo. Vejamos, no entanto, como, nas suas Formes élémentaires de la vie religeuse, êle define a noção de primitivo: "Dizemos — escreve êle — que um sistema religioso é o mais primitivo que podemos observar quando preenche as duas condições seguintes: em primeiro lugar, é preciso que seja encontrado em sociedades cuja organização não seja ultrapassada por qualquer outra em simplicidade; além disso, é necessário que se torne possível explicá-lo sem se fazer intervir nenhum elemento pedido a uma religião anterior". — E acrescenta: "No mesmo sentido, dizemos que essas sociedades são primitivas e chamaremos primitivos aos homens que as constituem". A vantagem desse estudo das formas "primitivas" seria, segundo êle, dupla: 1.° — essas formas estariam no ponto de partida da evolução: "Sempre que se procura explicar uma coisa humana, é preciso começar por subir até à sua forma mais primitiva e mais simples"; 2.° — o acessório, o secundário, os desenvolvimentos de luxo ainda não vieram, nesses grupos primitivos, esconder o indispensável; ora, "o indispensável é também o essencial, isto é, o que antes de mais nada é preciso conhecer".
Em resumo, uniformidade e simplicidade são os dois caracteres que, para Durkheim, definem as sociedades "primitivas": "Ao mesmo tempo que tudo é uniforme, tudo é simples. Nada é mais tosco que esses mitos compostos de um só e único tema que se repete sem fim, como esses ritos que são feitos de um pequeno número de gestos eternamente repetidos".
Ora, não somente, como indica Lacombe na sua crítica a La méthode sociologique de Durkheim, este postulado é muito discutível, porque corresponde a transformar em ordem histórica a série lógica que leva do simples ao complexo, mas também esses dois caracteres não parecem aplicar-se rigorosamente às sociedades primitivas. Parece, efetivamente, que a uniformidade é, por vezes, mais aparente que real e, especialmente, que o famoso "conformismo" das sociedades primitivas, que faria do indivíduo um simples reflexo do grupo, nem sempre é tão estrito como nas nossas sociedades atuais.
Mas é, sobretudo, a noção de simplicidade que, em certo sentido, nos parece absolutamente injustificada. Toda gente sabe hoje que as instituições, regulamentações, classificações, linguagens, sistemas de numeração, etc, que encontramos nas sociedades primitivas, em vez de ser simples, são extremamente complicados e, sabretudo, que todas essas instituições interferem umas nas outras a tal ponto que é, por vezes, bem difícil distingui-las. Assim, tem-se discutido muito a questão de saber se o totemismo é efetivamente uma religião: é-o, sem dúvida, e muitas outras coisas mais, a ponto de se ter podido apresentar umas quarenta explicações diferentes; Frazer, por sua conta, admitiu três sucessivamente; (3) e não é impossível que cada explicação contenha uma parte de verdade e que o totemismo seja um fenômeno complexo, que apresenta, de resto, formas e graus múltiplos e no qual entram, ao mesmo tempo,
(3) Éléments de Sociologie religieuse, de Roger Bastide, Collection Armand Colin.
elementos propriamente religiosos, elementos econômicos, elementos filosóficos, etc. Pode dizer-se o mesmo do potlatch: forma arcaica da permuta, mas também conjunto de cerimônias rituais, festins, jogos, danças, casamentos, adoções, etc. Existe o mesmo "sincretismo" nos códigos arcaicos, nos quais as interdições jurídicas aparecem misturadas com prescrições religiosas, regras de civilidade, quando não são receitas de cozinha ou conselhos de higiene. O mesmo ‘sincretismo aparece ainda nas formas arcaicas da moral, da arte e da ciência, que, ao contrário do que afirmava Durkheim, se encontram numa espécie de estado de simbiose com a religião.
Portanto, as sociedades arcaicas só são simples no sentido de as suas instituições não estarem diferenciadas e de as distinções que valem para os graus mais avançados da evolução social ainda não valerem para elas.
No entanto, há pelo menos um caso em que é permitido falar de simplicidade, num sentido mais rigoroso: é o da técnica. A este respeito, parece, efetivamente, que se pusermos de parte os recursos que aqui ou além o meio natural poderia fornecer, a técnica humana partiu de métodos relativamente simples que, graças às lições de uma experiência ativa, se foram complicando e precisando constantemente. Lucien Febvre falou de uma certa "monotonia primitiva", bem diferente dessa monotonia artificial e limitada, de resto sempre precária, que o homem moderno tende a criar com os meios cada vez mais aperfeiçoados de que dispõe. A "monotonia primitiva" parece, precisamente, explicar-se, em grande parte, pela insuficiência da técnica humana no seu início.
Neste sentido, há, realmente, entre as diversas fases da civilização, diferenças de nível, e não apenas de aspeto. Foi o que Smets claramente formulou por ocasião da segunda Semana Internacional de Síntese (1930) : "Pode haver diferença de aspeto sem haver diferença de nível: habitações redondas ou habitações retangulares. Mas há também diferenças de aspeto que correspondem a diferenças de nível: simples colheita ou agricultura; transmissão oral ou transmissão escrita. Durante uma grande parte do século XIX, a etnologia julgou poder limitar-se a estabelecer níveis, porque admitia implicitamente que aspeto e nível deviam confundir-se: em toda parte descobria um esquema evolutivo, série de fases pelas quais passara a humanidade inteira: promiscuidade — matriarcado — patriarcado. Parece que a etnografia mais recente gosta de estudar os aspetos de preferência aos níveis, e entretém-se a demolir as construções evolutivas. Nunca, porém, conseguirá dispensar a noção de nível: mesmo os que delimitam áreas de cultura são tentados a admitir que elas podem ser de idade diferente e que a ação combinada das suas influências sucessivas reproduz a história de uma determinada civilização". Existem, portanto, realmente, conclui o mesmo autor, sociedades "primitivas" no sentido: 1.° — que essas sociedades são "de um volume restrito e de uma fraca densidade"; 2.° — que só possuem "uma técnica industrial rudimentar, em proporção com as suas necessidades pouco numerosas e pouco variadas"; 3.° — que têm "uma estrutura mais homogênea que a das civilizadas, o que quer dizer que o mesmo indivíduo faz parte de um número mais restrito de grupos sociais".
E ainda faltaria explicar por que razão esse estado "primitivo", ou melhor, arcaico, se pôde manter em certas sociedades, a ponto de elas poderem ser consideradas como constituindo, atualmente, espécies de sociedades-testemunhas por comparação com as sociedades mais evoluídas. Smets parece-nos sugerir uma resposta interessante para este problema, quando observa que a vida social comporta crises, "ruturas de equilíbrio", e quando recorda "o papel das classes desprezadas, que, freqüentemente, foi uma das molas do progresso". As sociedades "primitivas" seriam, pelo contrário, sociedades estagnadas, porque seriam "sociedades equilibradas", sociedades homogêneas, nas quais não há conflitos.
O estudo dessas sociedades deixa-nos assim entrever uma das hipóteses diretrizes fundamentais, necessárias à explicação sociológica. É que a evolução social não deve, necessariamente, ser concebida como contínua. Contrariamente ao axioma leibniziano: natura non facit saltus, ela realiza-se aos saltos ou, como disse Simiand, por "uma sucessão de desequilíbrios". Veremos, no fim do próximo capítulo, que essa noção de uma evolução "dialética", como lhe chamaram, que já se impõe em biologia e que começa a penetrar nas ciências físicas, não é, a fortiori, menos indispensável em sociologia.
Fonte: Editorial Andes.
Tradução do francês de PEDRO LISBOA.
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