AS HIPÓTESES FUNDAMENTAIS DA SOCIOLOGIA

Introdução a Sociologia –

Professor A. Cuvillier (1939).

 

Capítulo VI – AS HIPÓTESES FUNDAMENTAIS DA SOCIOLOGIA

A sociologia não é uma filosofia da história: não supõe uma explicação unilateral dos fenômenos sociais, mas, pelo contrário e como já dissemos, o sentido das interferências e das interações múltiplas cuja reunião forma a vida social. Se, contudo, não quisermos cair num círculo vicioso, que consistiria em explicar os fenômenos sociais sucessivamente uns pelos outros, essas ações recíprocas supõem, necessariamente, uma ação primordial, ou, como dizia Durkheim, um "substrato" fundamental. A sociologia necessita, portanto, como sucede com todas as outras ciências, de uma hipótese diretriz, de uma hipótese de trabalho, incidindo aqui sobre a natureza desse substrato.

I. —O "substrato" biológico

Será esse "substrato" de ordem biológica? E será a sociologia, neste sentido, um apêndice das ciências naturais? Esta interpretação pode apresentar-se — fora das vagas analogias do organicismo, de que já tratamos — sob duas formas principais.

1. O fator racial: a antropossociologia. — A primeira é a teoria da raça ou antropossociologia, a qual, como veremos adiante, é muito antiga. Mas é sabido que, na sua forma atual, ela tem, sobretudo, por origem um livro de Arthur de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855). Desenvolveu-se em França, nos fins do século passado, graças aos trabalhos de Vacher de Lapouge. A própria revista L’Année Sociologique, nos seus três primeiros volumes, julgou dever, ainda que com prudentes reservas acerca, do fundo da doutrina, consagrar uma rubrica à antropossociologia.

Na Alemanha, as teorias de Gabineau conheceram rapidamente o mais vivo sucesso, e, em 1895, o professor Ludwig Schemann fundava uma "Associação Gobineau". Finalmente, é inútil insistir sobre o sucesso conquistado pela idéia de raça na Alemanha nacional-socialista.

Não temos que dar aqui detalhes sobre esta teoria. O que nos interessa unicamente são as suas pretensões a erigir-se, não apenas em hipótese diretriz, mas num dogma,, numa mística, a que estaria subordinado todo o conhecimento do homem. Os profetas da antropossociologia acabaram, com efeito, por fazer desse complexo biológico a que se chama "raça" uma espécie de elemento essencial, pesando sobre o desenvolvimento humano como uma fatalidade inelutável e, por conseguinte, dirigindo-o inteiramente. Logo, não só o desenvolvimento psíquico do indivíduo, mas toda a vida social, dependem dessa fatalidade, e a sociologia é absorvida pela biologia. Era realmente esse o princípio que formulava Lapouge quando escrevia nas suas Sélections sociales: "Os fenômenos sociais explicam-se pela luta de elementos antropológicos diferentes e a história inteira não passa de um processo de evolução biológica".

Todos os fenômenos sociológicos: relações entre as classes, riqueza, distribuição das cidades, e até acontecimentos políticos, são, assim, atirados para o campo da biologia — e de que biologia! —. Tudo se explica pelas aptidões da raça superior ou pelas taras das raças inferiores. Gobineau explica a grandeza ou a decadência dos povos pelo predomínio ou pela degenerescência dos elementos de raça superior, os dolicocéfalos loiros de estatura elevada. Na sua Lutte des races (1883), Gumplovicz afirma que as diversas classes de que se compõe um povo correspondem sempre a raças diferentes, uma das quais firmou pela conquista o seu domínio sobre as outras. Lapouge, num artigo publicado em 1897, apresentava nada menos de uma dúzia de "leis fundamentais da antropossociologia", algumas das quais são bem típicas: a "lei de repartição das riquezas" estipulava que, "nos países de mistura Europaeus-Alpi-nus, a riqueza cresce em razão inversa do índice cefálico"; (4) a "lei dos índices urbanos", ilustrada por Ammon a propósito dos seus estudos sobre os recrutas de Bade, dizia que os habitantes das cidades apresentam uma maior dolicocefalia que os dos campos dos arredores; a "lei de estratificação", assim formulada: "O índice cefálico vai deminuindo e a proporção de dolicocéfalos aumentando das classes inferiores para as classes superiores, em cada localidade". — Nas suas Sélections sociales, o mesmo autor não hesitava em afirmar que a "classe dominante da época feudal era formada, mais ou menos exclusivamente, pelo Homo Europaeus", de maneira que "não foi o acaso que manteve os pobres no fundo da escala social, mas a sua inferioridade congenital".

(4) Recordemos que índice cefálico é a relação da maior largura do crânio multiplicada por 100, com o seu maior comprimento. Abaixo de 76-77, caracteriza a dolicocefalia (crânios longos); à volta de 83-84, a braquicefalia (crânios curtos). Os números variam, aliás, conforme os autores. — O Homo Euro-pceus, o Ariano de Gobineau e de Lapouge, o Nórdico dos racistas alemães, é a raça loira, dolicocéfala e de elevada estatura. O Homo Alpinus é a raça morena, braquicéfala e com menor altura. Havia quem acrescentasse um terceiro tipo: o Homo Mediterraneus, compreendendo raças dolicocéfalas morenas (Napolitanos, Andaluzes, etc).

Vê-se que o "racismo" alemão não inventou nada de novo. Quando Rosenberg afirma que a Revolução francesa se explica por uma revolta dos braqui céfalos da raça alpina contra os dolicocéfalos da raça nórdica e que o bolchevismo não é mais que uma "insurreição de mongolóides", exatamente como quando Aléxis Carrel, num livro recente, apresenta como uma verdade científica que os operários "devem a sua situação aos defeitos hereditários dos seus corpos e do seu espírito" e que os camponeses tiveram antepassados que, em virtude da fraqueza da sua constituição orgânica e mental, tinham nascido servos, ao passo que os seus senhores tinham nascido patrões, — um e outro se mantêm fiéis à mesma tradição.

Mas é bem claro que a vitalidade dessa tradição não pode explicar-se, de modo algum, pelo valor científico do seu conteúdo, mas, muito pelo contrário, pelo seu caráter tendencioso. De resto, não vemos nós que todos os povos, no decorrer da sua história, se esforçam por justificar as suas ambições por meio de razões deste gênero? Eugène Pittard, o sábio antropologista da Universidade de Genebra, observa que a teoria das raças sempre foi "singularmente apreciada pelos imperialistas de toda espécie". Aristóteles não legitimava já a pretensão dos gregos à hegemonia universal, dizendo que a própria natureza, tendo feito os povos bárbaros de raças inferiores, os destinava a servir de escravos aos Gregos? No século XVI, com o início da colonização, vemos reaparecerem argumentos análogos. São o bispo Quevedo e o historiador Sepúlveda, capelão de Carlos V, que baseiam a "missão civilizadora" da Espanha na América, na inferioridade congênita e ‘ na perversidade natural dos índios. Mais tarde, Gobineau recusava-se a admitir que a "mioleira (?) do Huron contenha, em germe, um espírito inteiramente semelhante ao do inglês ou do francês".

O que é necessário denunciar em semelhantes interpretações é a confusão que elas introduzem entre os conceitos da ordem sociológica e um conceito, de resto mal definido, da ordem biológica. Já em 1889, L. Manouvrier, o sucessor de Broca na Escola de Altos Estudos, condenava, na Revue de l’École d’Anthropologie, a "pseudo-sociologia" que se pretendia basear na consideração do índice cefálico, e o método simplista, que consiste em recorrer à biologia para dela tirar uma resposta geral para os múltiplos problemas que apresenta a vida social do homem. Mais recentemente, um dos mestres da paleontologia humana, Marcellin Boule, escrevia no seu livro Hommes fossiles:

"Há já muito tempo que, em França, os bons espíritos — tanto no campo dos historiadores como no dos naturalistas — vêm insistindo no que de extremamente lamentável há na confusão das palavras: raça, povo, nação, língua, civilização (já vimos atrás que se deveria também acrescentar: classe)… No entanto, é ainda hoje freqüente, mesmo entre os autores mais eminentes e mais acadêmicos, quando tratam dos agrupamentos humanos, servirem-se da palavra raça num sentido totalmente falseado. Temos de nos penetrar bem da idéia de que a raça, representando a continuidade de um tipo físico, traduzindo as afinidades de sangue, representa um grupo essencialmente natural, que pode não ter, e geralmente não tem, nada de comum com o povo, a nacionalidade, a língua, os costumes… É assim que não há uma raça bretã, mas um povo bretão; uma raça francesa, mas uma nação francesa; uma raça ariana, mas línguas arianas; uma raça latina, mas uma civilização latina". Eugène Pittard assinala também o perigo desse emprego impreciso da palavra raça: "Quantas raças, quantas línguas até, quantos estados sociológicos, envolvidos numa só e perigosa palavra!"

Na realidade, as considerações biológicas, aqui, nada explicam. "A hereditariedade", que supõe, necessariamente, a teoria das raças, não passa, como observa Manouvrier, de uma palavra que dispensa de conhecer e de analisar; porque só se transmitem aptidões absolutamente elementares, cujo desenvolvimento depende do meio e da educação. Nunca, de resto, se pôde estabelecer a menor correlação precisa entre os caracteres antropológicos — na extensão em que é possível determiná-los — e os fenômenos sociais. "Não conhecemos — escrevia Durkheim — nenhum fenômeno social que esteja na dependência incontestada da raça… Nas sociedades da mesma raça encontram-se as mais diversas formas de organização, ao mesmo tempo que se observam semelhanças impressionantes entre sociedades de raças diferentes. A cidade existiu entre os Fenicios, como entre os Romanos e os Gregos; encontramo-la em via de formação entre os Cabilas. A família patriarcal estava quase tão desenvolvida entre os Judeus como entre os Hindus, mas não se encontra nos Eslavos, que, no entanto, são de raça ariana. Por sua vez, o tipo familiar que encontramos entre eles existe também entre os Árabes. Em toda parte se observam a família maternal e o clã. O detalhe das provas judiciárias, das cerimônias nupciais, etc., é o mesmo entre os povos mais dessemelhantes sob o ponto de vista étnico".

Também Pittard se declara muito cético acerca "das pretensas relações de causa para efeito, entre os acontecimentos políticos e sociais de um país ou de um grupo, e o tipo humano que seja o seu autor". Em. face de certas afirmações perentorias, "o leitor mais indulgente reclamaria provas; mas nunca são apresentadas!" São simples fantasia as pretensas "leis da antropossociologia", a lei das- riquezas, a dos índices urbanos, a da estratificação, etc., ou, pelo menos, na parte em que podem ter um certo fundamento, isso explica-se sem necessidade de, recorrer às misteriosas propriedades da "raça"! Para resolver esses problemas, que os gobinistas e os seus discípulos decidem por forma tão simplista, seria necessário "possuir uma competência particularmente extensa sobre todos os capítulos da História Universal" e recorrer a uma infinidade de disciplinas muito complicadas… especialmente, diz Pittard, "à sociologia".

De resto, não há nada mais confuso que essa noção de raça, pelo menos no uso corrente que dela é feito, e até, talvez, sob o ponto de vista científico. Para falar com propriedade, a raça é "um fenômeno zoológico" (Pittard). Deve definir-se por caracteres somáticos, como a altura, a forma do crânio, a do rosto, a do nariz, a pigmentação cutânea, a côr e a forma dos cabelos e dos olhos, etc, aos quais se devem acrescentar certos caracteres fisiológicos, como o das propriedades do sangue (grupos sanguíneos). Mas, na espécie humana, a mistura desses caracteres é tão grande que se torna difícil determinar tipos fundados nessa base, e basta examinar as classificações propostas para o compreendermos, pois que elas variam por forma desconcertante, conforme os autores. É inegável que, de Go-bineau para cá, a antropologia tem progredido. Mas não nos apresenta o problema com maior simplicidade. Bem pelo contrário, as descobertas mais recentes colocam-nos, incontestavelmente, em presença de uma complexidade ainda maior do que se supunha. (5)

Há, com efeito, na história da humanidade, um fato capital que devemos tomar na-devida consideração: o dos cruzamentos humanos. Desde os tempos pré-históricos que assistimos a imensas migrações de povos, e, desde o período neolítico, a uma extensão das relações comerciais, que tiveram, certamente, como efeito, inúmeros cruzamentos entre as raças: "Há quinze ou vinte mil anos — escreve o abade Breuil — quando os últimos representantes de uma humanidade muito antiga acabavam de se extinguir no extremo ocidental do mundo, que é a Europa, esse grupo heteróclito de tipos humanos que é costume confundir sob a designação de Homo sapíens estava já quase tão diferenciado como hoje.. . O problema da origem das raças "devia, portanto, há vinte mil anos, ser quase tão confuso como "hoje". O que dizer, então, da idade histórica, dessa imensa mistura de elementos humanos que representam as invasões, as guerras e também a extensão das relações pacíficas dos povos?

(5) Ver o livro de Pittard, Les races et l’histoire, e o de Lester e Millot, Les races humaines, este na Collection Armand Collin.

 

Nestas condições, não podendo definir a raça, como se deveria fazer, por meio de critérios somáticos precisos, estendeu-se-lhe a noção até englobar nela qualidades psíquicas, morais e até políticas. O que havemos de dizer da definição do professor GÜnther, segundo a qual a raça seria "uma combinação de caracteres físicos e morais", distinguindo-se a raça nórdica especialmente pela "vontade refletida", "a justiça cavalheiresca", "a franqueza", "o mais puro heroísmo", "as qualidades de chefe", etc? O que dizer, sobretudo, da afirmação de Th. fritsch de que "as qualidades morais são os mais seguros critérios sociais", de maneira que "todos aqueles que pensam e sentem da mesma forma, todos os que professam os mesmos ideais, devem ser aparentados sob o ponto de vista racial"?

Trata-se, evidentemente, de sofismar a idéia de raça. Mas há mais: se assim é, se, como aliás todos reconhecem, qualquer povo é uma mistura de raças, se, por outro lado, aquilo a que assim se chama, por um verdadeiro abuso da palavra, se define por um conjunto de caracteres psíquicos, morais, e até sociais, o elemento biológico cessa de aparecer como o fator essencial da evolução social. A relação inverte-se: a composição étnica de um povo, em dado momento, é o resultado de acontecimentos sociais, e a "raça" é um produto da história.

É assim que as pretensas leis da antropossocio-logia se explicam sociologicamente ou, se quiserem, historicamente. É muito possível, observa Pittard, que em certa época da história francesa, as classes dominantes tenham sido de tipo nórdico; mas não será absolutamente natural que os invasores, pertencentes a esse tipo, se tenham apoderado dos melhores lugares? A lei dos índices urbanos explicar-se-ia igualmente, segundo Pittard, pela influência citadina, "termo extraordinariamente vago", aliás, e do qual seria necessário precisar o conteúdo.

Não interpretam certos antropologistas contemporâneos a pequena estatura dos Pigmeus, dos quais, erradamente, se pretendeu fazer um tipo primitivo de humanidade, como um caráter regressivo devido ao seu isolamento, quer em ilhas, quer em regiões afastadas da floresta tropical? E não se apresentou uma explicação análoga para o fácies, tão curioso, dos Bigoudens de Pont-1’Abbé?

Na excelente introdução que escreveu para o volume Races, (6) Jean Brunhes cita alguns exemplos característicos: "Se é -exato que os turcos, os húngaros, os búlgaros e os finlandeses são hoje, sem contestação, homens de pele branca, a história ensina-nos, também incontestavelmente, que eles são de origem amarela. .. Identicamente, os etíopes são negros, apesar de, quase com certeza, serem de origem semítica, isto é, de raça branca". E mais adiante: "Vimos criar-se, à nossa vista, no decorrer do século XIX, e precisar-se cada vez mais no nosso tempo, esse povo americano dos Estados Unidos da América do Norte (composto pelos elementos étnicos mais variegados e mais diversos, anglo-saxões, latinos, eslavos, escandinavos, etc), e isso em tal grau que, dentro de dois ou três séculos, êle poderá ser encarado, ainda que erroneamente, como uma espécie de raça".

(6) Publicado pela Librairie Firmin Didoí na sua coleção Images du Monde.

 

Mas o exemplo mais típico é, decididamente, o da raça judia. "Não há raça judia", escreve PlTTARD, apoiando-se sobre a documentação mais escrupulosa e mais extensa: "Se pedíssemos a um antropologista para fixar, mesmo em poucos caracteres principais, a verdadeira fisionomia étnica dos Judeus, êle sen-tir-se-ia bastante embaraçado. Deverá atribuir-se-Ihe um crânio dolicocéfalo ou braquicéfalo, uma estatura elevada ou baixa, cabelos louros ou castanhos, olhos azuis ou castanhos, deverá mesmo dar-se-lhe o nariz judeu clássico, que os desenhadores tanto têm caricaturado?" Sobre todos estes pontos existe a mais completa incerteza: "Os israelitas constituem uma comunidade religiosa e social, certamente muito poderosa, muito coerente, mas os seus elementos são extremamente heterogêneos".

Assim, escreve Jean Brunhes, "os atuais judeus da Bessarábia, da Ucrânia e da Polônia (apesar de terem adquirido, quase sem o saber, a fisionomia física e social, o traje e até as maneiras dos verdadeiros israelitas semitas da Palestina, nariz adunco, longas levitas pretas, barbichas caindo dos dois lados da cara), não passam, na sua maioria, de Eslavos ou de Tártaros, que foram, há perto de mil anos, convertidos ao Judaísmo sob a influência militar e política dos Khazars — eles próprios turanianos tornados judeus — que reinaram sobre o grande império do Dnieper, nos séculos IV a X da nossa era! E surge este fato perturbante e, contudo, incontestável: os judeus de Cracóvia ou de Varsóvia parecem-nos mais judeus que os próprios judeus de Jerusalém" !

A conclusão é clara: a "raça" não pode fornecer-nos o "substrato social" que procuramos; é ela, pelo contrário, e em mais larga proporção do que geralmente se imagina, que é um produto da vida em sociedade.

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