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III. — O "substrato" humano

1. A "morfologia social" de Durkheim e a demografia. — A escola de Durkheim propôs um método explicativo, que consiste em procurar em certas modificações quantitativas dos grupos sociais, as causas das suas mudanças qualitativas. A idéia não era nova, pois já se encontrava na sociologia marxista, que a fora, por sua vez, buscar a Hegel, e também em certos representantes da "sociologia formalista", como Simmel: "Qualquer aumento quantitativo de uma sociedade — escrevia este em L’Année Sociologique — provoca modificações qualitativas … As formas dos grupos dependem estreitamente do número dos seus elementos".

Mas esta idéia foi organizada pela escola de Durkheim num sistema, a que deu o nome de "morfologia social", e no qual, durante, pelo menos, certo período da sua vida, o próprio Durkheim viu o método de explicação fundamental dos fenômenos sociais. A exposição mais clara que dele foi dada encontra-se no tomo II de L’Année Sociologique: "A vida social assenta num substrato, que é determinado tanto na sua grandeza como na sua forma. O que o constitui é a massa dos indivíduos que compõem a sociedade, a maneira por que eles estão dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração das coisas de toda espécie que afetam as relações coletivas. Conforme a população é mais ou menos considerável, mais ou menos densa, conforme ela está concentrada nas cidades ou dispersa pelos campos, conforme a maneira por que são construídas as cidades e as casas, conforme o espaço ocupado pela sociedade é mais ou menos extenso, conforme o que são as fronteiras que o limitam, as vias de comunicação que o atravessam, etc, o substrato social é diferente. Por outro lado, a constituição desse substrato afeta, direta ou indiretamente, todos os fenômenos sociais, assim como todos os fenômenos psíquicos estão em relações mediatas ou imediatas com o estado do cérebro. Trata-se, portanto, de um conjunto de problemas que interessam, evidentemente, à sociologia e que, referindo-se todos a um só e único objeto, devem depender de uma só ciência. É a essa ciência que nos propomos chamar morfologia social".

E no tomo III de L’Année Sociologique, Durk heim precisava: "A natureza do substrato social não depende apenas do número dos elementos que compõem a massa da sociedade no seu conjunto, da sua maior ou menor proximidade, da configuração exterior do agregado assim formado; mas a massa, a densidade de cada um dos grupos elementares cuja reunião constitui a sociedade total, as suas bases geográficas, devem ser igualmente tomadas em consideração. Porque a vida social é, necessariamente, diferente segundo o que são esses grupos, conforme eles são ou não numerosos, densos ou não, conforme a maneira como são compostos, distribuídos, ligados, as formas materiais que afetam. Foi por essa razão que incluímos na morfologia social tudo o que se refere à demografia dos centros rurais e urbanos".

Durkheim já explicara na Division du Travail social e nas Régles de la méthode sociologique, como entendia essas noções de volume e de densidade das sociedades. Por "volume" da sociedade deve entender-se "o número das unidades sociais"; por "densidade", "o grau de concentração da massa". Mas esta noção de "densidade social" apresenta em Durkheim uma certa flutuação. Na Division du Travail, declara que a "condensação progressiva das sociedades" se produz por três maneiras principais: concentração da população, formação e desenvolvimento das cidades, aumento do número e da rapidez das vias de comunicação e de transmissão. Acrescenta que a densidade material acompanha a densidade moral — à qual êle reserva, não se sabe bem por que, o nome de "densidade dinâmica" — e que é "inútil procurar saber qual das duas determinou a outra". Mas, nas Régles, corrige: "A densidade dinâmica pode definir-se, em igualdade de volumes, em função do número dos indivíduos que estão efetivamente em relações, não somente comerciais, mas morais, quer dizer, que não somente trocam serviços ou se fazem mútua concorrência, mas também vivem uma vida comum". Por essa "densidade dinâmica", deve, portanto, entender-se "não a concentração puramente material do agregado, que só pode ter efeito se os indivíduos, ou melhor, os grupos de indivíduos se mantiverem separados por vácuos morais, mas a concentração moral de que a precedente é simples auxiliar e, geralmente, a conseqüência". Repudiando até o que tinha escrito em Division du Travail, nega que a densidade material seja sempre uma expressão exata da densidade moral.

E contudo, o objeto próprio da morfologia social, segundo Mauss, é, realmente, o estudo do "grupo como fenômeno material". Compreende, portanto, encarando-o sob o ponto de vista sociológico, tudo o que se confunde ou divide arbitrariamente sob os nomes de: estatística (com exceção das estatísticas especiais, que interessam às instituições, e das estatísticas somáticas), demografia, antropogeogra-fia ou geografia humana, e também o estudo dos movimentos da população no tempo e no espaço e a dos subgrupos da sociedade "no que eles têm de ajustados ao solo". Forma uma verdadeira "anatomia" da sociedade, que, com a "fisiologia" das práticas e das representações coletivas, constituiria toda a sociologia.

É preciso confessar que, apresentados estes princípios, a escola de Durkheim não fêz deles uma aplicação muito extensa em casos concretos: "A morfologia social — escrevia recentemente Mauss — é ainda quase ignorada por nós". Contudo, o próprio Durkheim se esforçara, na sua tese, por explicar a divisão do trabalho pela regressão do "arranjo segmentar" da sociedade, e até indicara logo a complexidade da explicação: "Evidentemente, desde que ela (a divisão do trabalho) existe, pode contribuir para lhe acelerar a regressão; mas só se mostra depois de êle ter regressado. O efeito reage sobre a causa, mas sem perder por isso a qualidade de efeito; a reação que exerce é, por conseqüência, secundária. O aumento da divisão do trabalho é, portanto, devido ao fato de os segmentos sociais perderem a sua individualidade à medida que os tabiques que os separam se tornam mais permeáveis".

Bouglé, na sua tese Les Idées égalitaires, consagrava um capítulo à "quantidade das unidades sociais", e procurava mostrar como as suas modificações de número, de densidade e de mobilidade, levavam a modificações de estrutura que, por sua vez, contribuíam para suscitar as idéias igualitárias. Mauss, no seu "Estudo de morfologia social" sobre as variações periódicas das sociedades esquimós, (Variations saisonnières des sociétês eskimos), parece ter demonstrado, de forma precisa e crucial, como, entre os Esquimós, as variações das estações, não diretamente, mas agindo sobre a densidade social, que elas regulam, determinando dois modos diferentes de agrupamento, determinam, por isso mesmo, "dois sistemas jurídicos, duas morais, duas espécies de economia doméstica e de vida religiosa". Assim, conclui Mauss, "as diferenças qualitativas que separam essas duas civilizações sucessivas e alternantes provêm, sobretudo, de diferenças quantitativas na intensidade muito desigual da vida social nesses dois momentos do ano", de forma que "os efeitos dos fenômenos morfológicos… se estendem às esferas mais elevadas da fisiologia social".

Certos sociólogos durkheimianos chegaram mesmo a admitir uma espécie de morfologia pura, distinta do estudo dos outros fenômenos sociais. Halb-wachs, que realizou interessantes trabalhos de demografia e de morfologia urbana, escrevia em 1907: "Um certo fenômeno morfológico é concomitante de modificações econômicas muito diferentes, sem que, por isso, a sua natureza seja por qualquer forma alterada", de maneira que "fenômenos morfológicos como as migrações são explicáveis por fenômenos morfológicos e devem separar-se, para o¿ estudo, dos fenômenos econômicos".

Mas não será isto voltar a uma sociologia puramente formal? E, despedaçando a apertada conexão que liga uns aos outros os múltiplos aspetos da vida social, correr o risco de deixar escapar as causas profundas dos fenômenos morfológicos? Não se compreenderia, de resto, como o espaço puro, se assim se pode dizer, poderia ser causa do que quer que fosse, nem como essa "sede de espaço", sobre a qual tanto insistiu Ratzel, poderia produzir modificações sociais tão importantes, se não estivesse ligada a uma necessidade de expansão econômica ou a certas ambições da mesma ordem.

A este respeito, parecem-nos amplamente justificadas certas objeções de Febvre contra uma "morfologia social" assim compreendida. É com razão, parece-nos, que Febvre repele a noção de "agrupamentos humanos sem raízes geográficas". Sem dúvida, as condições geográficas, como já vimos, não explicam tudo: longe disso! Mas, mesmo quando o grupo não está fixado ao solo, mesmo não tirando diretamente deste a sua forma, vive sempre sobre um certo solo e, sobretudo, de um certo solo. É, portanto, uma grave falta de método estudar, por exemplo, os fenômenos religiosos e morais entre as populações de que não se estuda a vida material, e especialmente a técnica, como tantas vezes fizeram os sociólogos durkheimianos e os etnógrafos, sobre os quais eles se apoiam.

Quanto às condições demográficas: natalidade, mortalidade, movimentos, e correntes migratórias, etc, é bem evidente que elas não podem, também, ser separadas do conjunto da vida social. A densidade social, mesmo no sentido puramente demográfico, é função da vida econômica. Já o historiador Paul Lacombe observava que "a densidade não é um fator pouco importante", mas que é necessário juntar-lhe a fixidez, e que, apesar de uma e outra serem "condições de uma necessidade evidente para que a humanidade possa realizar uma nova etapa industrial", são elas próprias "devidas à nova forma do trabalho" quando aparece a cultura do solo. A propósito de uma obra de Landry, La Révolution démo graphique, Georges Poyer observava recentemente que "esse fenômeno tão impressionante do desenvolvimento gigantesco da Inglaterra no século XIX, que acabou por quase quadruplicar a sua população no intervalo de algumas gerações, ao passo que o aumento da população francesa, no mesmo espaço de tempo, não atingiu cinqüenta por cento", não pode estudar-se sem ter em conta "o desenvolvimento da grande indústria, no qual a Inglaterra, por diferentes razões, sendo as principais a posse de minas de carvão e de ferro e, por outro lado, a sua situação adquirida no comércio marítimo, precedeu e superou em muito o da França, país essencialmente agrícola … Mesmo no nosso país — continua Poyer — opõem-se os departamentos intensamente povoados do Norte aos do Meio-Dia ; mas, ainda aqui, devemos esquecer a existência do carvão e do ferro, pão da indústria?"; e, nos nossos dias, em que vemos os antigos clientes da Europa principiarem a fabricar produtos, "a queda brusca da natalidade nos países industriais não estará em relação com esses fenômenos econômicos?"

De resto, não admite BOUGLÉ, ainda que recusando-se a considerar os fenômenos econômicos como a "única chave" de toda a sociologia, que "a densidade social depende estreitamente dos modos da produção econômica"? O próprio DURKHElM, nessa discussão da Société d’Économie Politique, em que procurou mostrar que os valores econômicos são, como todos os fenômenos sociais, "questão de opinião", mas de opinião coletiva, — de forma que "a economia política perde, assim, a preponderancia que a si mesma se atribuía, para se tornar uma ciência social ao lado das outras", — reconhecia que, "sob um outro aspeto, a economia readquire uma espécie de primazia. As opiniões humanas, explicava êle, elaboram-se no seio de grupos sociais e dependem, em parte, do que são esses grupos. Sabemos que a opinião difere nas populações aglomeradas e nas populações dispersas, na cidade e no campo, nas grandes e nas pequenas cidades, etc. As idéias mudam conforme a sociedade é ou não densa, numerosa ou não, conforme as vias de comunicação e transporte são, ou não, numerosas e rápidas. Ora, parece inegável que os fatores econômicos afetam profundamente a maneira por que a população se distribui, a sua densidade, a forma dos agrupamentos humanos e, por essa forma, exercem uma influência, por vezes profunda, sobre os diversos estados da opinião".

Se assim é, não será nos fenômenos econômicos, ou, mais especialmente, na técnica, que, em última análise, devemos procurar, na expressão de Karl Marx, "a anatomia" da sociedade?

2. O trabalho humano. — A acreditar em certos autores, os fenômenos econômicos seriam, de certo modo, estranhos ao homem; impor-se-lhe-iam exteriormente, como uma espécie de fatalidade.

Concepção evidentemente absurda! Como se o econômico não fosse o próprio homem, com as suas necessidades, os seus desejos, e também, sobretudo, o seu trabalho! Mesmo no plano puramente biológico, a adaptação do ser vivo ao seu meio é já uma adaptação ativa, aquilo a que se chamou uma "adaptação ofensiva" (D. Roustan). Etienne Rabaud, no seu livro L’Adaptation et l’Evolution, sublinha a importância dessas "interações do complexo organis mo-meio". Com maior razão, a "relação do homem com a natureza" não pode conceber-se sob uma forma simples, nem, sobretudo, sob uma forma estática : o homem imóvel, passivo, em presença da natureza imutável. Em primeiro lugar, como observava Marx, se o meio natural agir sobre o homem, não deve ser de forma mecânica e direta, mas porque desperta nele necessidades, suscitando, por essa forma, novos modos de produção e solicitando as suas capacidades técnicas :

"Não é a fertilidade absoluta do solo, mas antes a diversidade das suas qualidades químicas, da sua composição geológica, da sua configuração física, e a variedade dos seus produtos naturais, que consti tuem a base natural da divisão do trabalho e que excitam o homem, em razão das condições multiformes no meio das quais se encontra colocado, a multiplicar as suas necessidades, as suas faculdades, os seus meios e modos de trabalho".

Por outro lado, a própria natureza não pode ria ser concebida como uma espécie de entidade imu tável e totalmente estranha ao homem. Era o que Marx respondia a Feuerbach, em 1845, no seu ma nuscrito L’Idéologie allemande: "Feuerbach – es crevia êle — não vê que o mundo sensível que o cerca não é uma coisa que sempre tenha sido idên tica a ela própria, mas o produto da atividade d uma série de gerações, cada uma das quais, colo cada sobre os ombros da que a precedeu, aumentou a indústria e modificou a organização social de har monia com a transformação das necessidades. Até os objetos da mais simples "certeza sensível" lhe são fornecidos pelo desenvolvimento social, a indústria e o comércio. A cerejeira, como a maior parte das árvores de fruto, foi transplantada para os nossos climas há algumas centenas de anos".

Já vimos anteriormente que a "geografia huma na" confirma hoje plenamente esta maneira de ver. Quando se trata do homem, o complexo "organismo-meio", para falar como Rabaud, toma, portanto, uma forma inteiramente nova. E essa forma é o trabalho, o trabalho propriamente dito, o trabalho consciente: "O nosso ponto de partida é o trabalho sob uma forma que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha faz operações que se assemelham às do tecelão, e a abelha confunde, pela estrutura das suas células de cera, a habilidade de mais de um arquiteto. Mas o que distingue, logo, o pior arquiteto da abelha mais competente, é que êle construiu a célula na cabeça antes de a construir na colmeia. O resultado a que leva o trabalho preexiste idealmente na imaginação do trabalhador" (Capital, I, trad. Roy, p. 76).

Com maior razão, quando utilizar ferramentas, instrumentos cada vez mais complicados, máquinas, o trabalho deve aparecer como sendo, essencialmente, um fenômeno de ordem humana; porque, tornando-se, por isso, infinitamente mais poderosa a ação do homem sobre a natureza, o homem, transformando assim a natureza exterior, "transforma a sua própria natureza e desenvolve as faculdades que nela dormitam" (ibid.).

Assim: adaptação, se quiserem; mas adaptação perpetuamente instável, visto que os dois termos do "complexo organismo-meio" são perpétua e poderosamente modificados um pelo outro. E vemos assim como se pode compreender essa propriedade essencial da vida social: o seu dinamismo. Como se passa de um sistema social para um outro? Qual é, em suma, o motor da evolução social? Confessemos que não é, certamente, na economia política clássica, nem mesmo na doutrina de Durkheim, que encontramos resposta clara para esta interrogação fundamental. Inutilmente Durkheim chama dinâmica à "densidade moral" das sociedades; já vimos anteriormente que a sua explicação é profundamente deficiente. Em conclusão, por toda parte só encontramos concepções estáticas que nem sequer deixam entrever uma explicação possível. "Toda a antiga concepção histórica — escrevia Marx — desprezou completamente esta base real da história (as forças produtoras) ou só a considerou como uma questão acessória, sem qualquer ligação com o decorrer da história. A história deve, pois, necessariamente, ser sempre escrita de um ponto de vista exterior a ela própria; a produção real da vida aparece como pré-histórica ao passo que o histórico aparece como acima do mundo. A relação entre os homens e a natureza é, por isso, excluída da história".

Parece que, no fim dos seus estudos, Simiand acabou por compreender o problema e o sentido em que se deve procurar-lhe a solução: "A análise da vida econômica — escrevia êle no seu último livrinho — mesmo numa direção positiva e, por maioria de razões, em construção conceituai, desde a economia clássica que tem partido e se tem mantido penetrada de uma concepção da ciência econômica do tipo da mecânica, penetrada das expressão da mecânica, de noções chamadas de equilíbrio, entendido sobretudo no sentido de equilíbrio estático e ainda bem pouco no de equilíbrio dinâmico".

E, recordando as hipóteses dos biologistas contemporâneos, Simiand reproduz as palavras de um deles, que é, diz êle, um mestre na sua ciência: "A minha geração partira de uma concepção mecânica da vida; tivemos, progressivamente, de renunciar a ela, por ser inadequada aos fatos, quer em estática, quer em dinâmica ; tivemos de acabar por reconhecer e por nos propormos compreender a vida como uma sucessão de desequilíbrios". E Simiand acrescenta que esta última fórmula, "uma sucessão de desequilíbrios", lhe parece exprimir o que se pode aperceber de "central, no desenvolvimento econômico" e na vida social em geral. Não será isto o despontar dessa noção capital de um desenvolvimento "dialético", resultante da transformação perpétua da relação homem-natureza, sob a forma fundamental de uma transformação perpétua da técnica humana, noção cuja afirmação será, cremos bem, a glória durável do gênio de Marx?

Nos nossos dias, de resto, muitos sociólogos parecem dispostos a reconhecer essa imensa lacuna da história e da sociologia tradicionais. No último volume de L’Année Sociologique, confessa Mauss que a sociologia de Durkheim não "deu ao fenômeno técnico o lugar formidável que lhe é devido… Em que grau toda a vida social depende da técnica, é o que ainda não está suficientemente estudado". Todavia, três grupos de sábios tomaram consciência do problema: são os historiadores da pré-história e os arqueólogos; são os etnógrafos, que conseguem escrever assim, sobretudo utilizando critérios tecnológicos, a história de sociedade reputadas sem história ; e são, finalmente, os tecnólogos propriamente ditos, como esses tecnólogos americanos que, seguindo J. W. Powell, o fundador da Repartição de Etnologia,"proclamaram que a tecnologia era uma parte especial e muito importante da sociologia". As técnicas são, com efeito, continua Mauss, um dos fatores mais importantes do progresso humano: "A religião, o direito, a economia, estão limitados, em cada sociedade, um pouco mais ou um pouco menos que a língua, mas como ela. Mesmo quando se propagam, não passam de meios usados pela comunidade para agir sobre si mesma. Ao contrário, as técnicas, pelo seu lado, são o processo, material desta vez, de que uma sociedade dispõe para agir sobre o meio. Graças a elas, o homem é, dia a dia, mais senhor do solo e dos seus produtos. Elas são, portanto, um compromisso entre a natureza e a humanidade".

Mas torna-se, aqui, necessário precisar. Até agora, temos falado do "homem" em face da natureza. Era uma abstração; não esqueçamos que o trabalho é um ato essencialmente coletivo, e é precisamente por isso que é permitido ver nele o "substrato social" ou, mais exatamente, o ato social fundamental. O homem de quem se trata, é, portanto, sempre o homem em grupo, e é o homem de uma certa sociedade, considerada em dado momento do seu desenvolvimento histórico. Ainda aqui, Marx foi um precursor. "O nosso objeto — escrevia êle — é, em primeiro lugar, a produção material. Os indivíduos produzindo em sociedade, por conseguinte a produção socialmente determinada dos indivíduos, é, naturalmente, o ponto de partida. O caçador, o pescador isolados, pelos quais principiam Ricardo e Smith, pertencem às pobres imaginações do século XVIII. São robinsonadas… Portanto, quando se fala em produção, trata-se sempre da produção de um grau determinado do desenvolvimento social, da produção de indivíduos sociais".

Geógrafos, historiadores, sociólogos contemporâneos, não falam de outra maneira. É Jean Bru-nhes, fazendo notar que, "de uma maneira geral e quase universal, o homem que cultiva a terra não a cultiva só para êle, mas para um grupo familiar ou social", que "o homem que cria um rebanho faz parte de uma coletividade" e que, finalmente, "os dois homens que permutam não são seres respetivamente isolados, mas pertencem, um e outro, a grupos". É Febvre, observando que a ação dos homens à superfície do globo "não é a ação de indivíduos isolados" e precisando: "Não nos movemos aqui nos domínios do individual. Com quanta razão um antropologista como Deniker, no seu livro sobre as raças e os povos da Terra, classifica tudo o que se refere à alimentação, ao vestuário, aos meios de existência dos homens, entre os seus caracteres "sociológicos"? Não se trata de nada "natural", nem pessoal, mas antes social e coletivo. Não se trata do homem, mais uma vez, — nunca o homem: as sociedades humanas, os grupos organizados". É, finalmente, Mauss, recordando a fórmula famosa, aproveitada por Bergson: "Homo faber", mas objetando que o homo faber é o homem social: "Esta fórmula — escreve êle — tem o mérito de reclamar para a técnica um lugar de honra na história do homem. Recorda uma filosofia esquecida. E nós adotá-la-íamos, com outros, sob uma condição: a de ela denotar, não uma "virtude criadora", que se assemelha bastante à virtude soporífera do ópio, mas um aspecto característico da vida em comum, e não da vida individual e profunda do espírito". E o autor evoca, nessa altura, os trabalhos de L. Noiré que mostravam já que "mesmo nas suas duas raízes: a invenção do movimento ou da ferramenta, a tradição do seu uso e o próprio uso, a arte prática é essencialmente uma coisa social".

A ação coletiva sobre a natureza, o trabalho em comum, é, portanto, o fenômeno inicial, o laço social por excelência, do qual resultarão, por via de complicação gradual, todas as relações sociais entre os homens. Hipótese fecunda, pois nos permite ligar toda a superestrutura que virá edificar-se à sua volta, a uma base, a um "substrato" de ordem, não estática, mas dinâmica, e porque, por outro lado, nos convida a encarar sempre "a sociedade" como uma realidade histórica e concreta, que se modifica sem cessar em função do desenvolvimento das forças produtoras do homem, e, finalmente, porque nos proíbe de falar dela como de uma entidade abstrata, sem ter em conta a sua estrutura real e, por exemplo, as relações entre as classes no interior dessa sociedade.

Mas não será esta hipótese demasiadamente acanhada? Não nos levará a considerar os fenômenos sociais, tão complexos, sob um ponto de vista exclusivo? Não o acreditamos. Em primeiro lugar, se é necessário recorrer a uma hipótese diretriz que deve, em última análise, guiar o trabalho do sociólogo, este não deve nunca esquecer, na explicação dos fatos, a complexidade do objeto que está a estudar e essas relações de ação recíproca em que nós tanto insistimos. Por outro lado, e sobretudo, é necessário compreender bem que a técnica é o homem inteiro, e é, especialmente, o homem com o seu pensamento, as suas faculdades de representação e de previsão, as suas ideologias e até as suas concepções ilusórias ou imaginárias. Em princípio, o pensamento humano é função da ação do homem sobre a natureza. Seria, no entanto, um erro pensar que êle traduz sempre fielmente a realidade. Como observa Wallon, "as primeiras categorias que serviram para guardar e ordenar os objetos de experiência sob conceitos, em vez de se inspirarem nas relações que a prática podia fazer reconhecer entre as coisas, parecem querer impor à natureza as distinções que correspondiam à organização dos clãs ou dos agrupamentos sociais. Mas se, a princípio, a consideração do grupo triunfou da consideração da natureza, foi precisamente por êle ser o ponto de partida indispensável de qualquer atividade coletiva".

Portanto, para o homem, o universo é o universo social antes de ser a natureza exterior, ou melhor, é a natureza exterior vista através do mundo social. Até no pensamento chinês, diz-nos Berr resumindo Granet, "a sociedade não se distingue do universo: tudo tem uma virtude; os nomes são detentores de poder, de influência: fazem o parentesco, possuem os indivíduos, muito mais que os indivíduos os possuem a eles; as palavras, os gestos, as atitudes são dotados de eficácia, mas sobretudo a música e a dança: estas têm por missão preparar o mundo e dominar a natureza em proveito dos homens", e isto, explica-nos Granet, porque a Sociedade e o Universo formam um só "sistema de civilização". Mas, em razão, precisamente, da forma como se constituiu essa ideologia, o sociólogo atento encontra, apesar de tudo, atrás dela a vida de um povo essencialmente agricultor; é "a vida nos campos" que explica as festas, os costumes; nos versos dos calendários, encontra-se o eco de "observações camponesas sobre os hábitos da Natureza"; e nas anedotas dos velhos mais ponderados reina uma bonomia que demonstra "que elas têm um fundo camponês".

Não se poderá, no entanto, admitir que é essa predominância da "consideração do grupo", do universo social, que explica essa proliferação ideológica que desempenha na vida coletiva um papel tão importante, e que oculta, por vezes, aos nossos olhos, o universo real? Disso nasceram as representações místicas da ideologia religiosa; disso também, surgiram os modos de ação místicos, os ritos de toda espécie — porque, diz-nos Bastide, "se a religião é, hoje, sobretudo um sistema de crenças, foi primeiro um conjunto de ritos" —, e também essas práticas mágicas que se encontram em tão grande número nas sociedades pouco evoluídas. Paul La-combe, em De l’Histoire considérée comme science, emitia a opinião que a religião é "economia imaginária" ; que ela não é, por forma alguma, na origem, uma solução para os grandes problemas especulativos que, aliás,’ o selvagem não formula, mas que remedeia, assim, de certo modo, as insuficiências do poder econômico do homem. Mauss, durante uma discussão na Societé Française de Philosophie, -observava que, nessas formas primitivas de identificação ou de "participação", que Lévy-Brühl descreveu, "há um ato: o homem identifica-se às coisas e identifica as coisas a si mesmo". É assim que "os rituais ativos do totemismo são esforços para mostrar à natureza, às plantas e aos animais que se é o que eles são". Técnica, portanto, ainda, técnica ilusória, mas técnica, apesar de tudo!

Mas, se muitas dessas "categorias", aquelas sobre que tanto insistiu Durkheim, são de origem religiosa ou simbólica, não quer isso dizer — e é ainda Mauss quem nos adverte a esse respeito — que todas o sejam: "Resta estudar muitas outras categorias, umas vivas outras mortas, e de origens bem dife-

Pentes, especialmente as categorias de natureza técnica. Para só citar os conceitos matemáticos, do Número e do Espaço, quem dirá jamais bastante e com suficiente exatidão, a parte que a tecelagem, a Carpintaria, a arte náutica, a roda e o torno do oleiro tiveram nas origens da geometria, da aritmética e da mecânica — não nos cansaremos de repetir as belas observações de Cushing, observador profundo e sociólogo genial, acerca dos Manual Concepts".

Não poderemos, de resto, considerar categorias o conceitos científicos como uma verdadeira ferramenta mental, que nos serve para construir uma representação objetiva — e que não será, desta vez, ilusória e vã — da natureza, de maneira que a própria ciência apareça como uma outra espécie de técnica, como uma reconstrução conceituai da natureza, paralela e conjunta à transformação material da natureza pelo homem? Isto dá como resultado a necessidade constante de reajustar essa ferramenta mental aos progressos da técnica: segundo Lange-vin, as dificuldades com que depara a física contemporânea proviriam de nós transportarmos para um domínio para o qual elas não haviam sido criadas (o dos átomos e dos seus corpúsculos) as noções — como as de tempo absoluto, ou de objeto individual, — que "nasceram de um contato ancestral e longínquo" com as coisas familiares. Num artigo recente sobre Psychologie et Technique, wallon explanava essa idéia e mostrava que "as inovações da técnica impõem-nos maneiras inéditas de sentir" e que, por exemplo, a nossa percepção da velocidade está em vias de se modificar sob a ação das transformações da técnica moderna.

A técnica contém, portanto, em potência, toda a vida espiritual do homem. Como escreveu Mauss, "na arte prática, o homem faz recuar os seus limites. Progride na natureza, ao mesmo tempo que acima da sua própria natureza. Identifica-se à ordem mecânica, física e química das coisas. Cria e, ao mesmo tempo, cria-se a si mesmo, cria ao mesmo tempo os seus meios de vida, coisas puramente humanas, e o seu pensamento inscrito nessas coisas. Elabora-se aqui a verdadeira razão prática".


Fonte: Editorial Andes. Tradução do francês de PEDRO LISBOA.

 

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