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CAPÍTULO XXVIII

Em que se declara como Francisco
Pereira Coutinho foi povoar a Bahia de Todos os Santos e os trabalhos que nisso
teve.

Quem quiser saber
quem foi Francisco Pereira Coutinho, leia os livros da índia, e sabe-lo-á; e
verão seu grande valor e heróicos feitos, dignos de diferente descanso do que
teve na conquista do Brasil, onde lhe coube por sorte a capitania da Bahia de
Todos os Santos, de que lhe fêz mercê el-rei D. João III,
de gloriosa memória, pela primeira vez, da terra que há da
ponta do Padrão até o rio de São Francisco, ao longo do mar; e, para o sertão,
de toda a terra que couber na demarcação deste Estado, e lhe fêz mercê da terra
da Bahia com seus recôncavos. E como este esforçado capitão tinha ânimo
incansável, não receou de ir povoar a sua capitania em pessoa, e fêz-se prestes
com muitos moradores casados e outros solteiros, que embarcou cm uma armada,
que fêz à sua custa, com a qual partiu do porto de Lisboa. E com bom vento fêz
a sua viagem até entrar na Bahia e desembarcou na ponta do Padrão dela para
dentro, e fortificou-se, onde agora chamam a Vila Velha, no qual sítio fêz uma
povoação e fortaleza sobre o mar, onde esteve de paz com o gentio os primeiros
anos, no qual tempo os moradores fizeram suas roças e lavouras. Desta povoação
para dentro fizeram uns homens poderosos, que com êle foram, dois engenhos de
açúcar, que depois foram queimados pelo gentio, que se alevantou, e destruiu
todas as roças e fazendas, pelas quais mataram muitos homens, e nos engenhos,
quando deram neles. Pôs este alevantamento a Francisco Pereira em grande
aperto; porque lhe cercaram a vila e fortaleza, tomando lhe a água e mais
mantimentos, os quais neste tempo lhe vinham por mar da capitania dos Ilhéus,
os quais iam buscar da vila as embarcações, com Grande risco dos cercados, que
estiveram nestes trabalhos, ora cercados, ora com tréguas, sele ou oito anos,
nos quais passaram grandes fomes, doenças e mil infortúnios, a quem este gentio
tupinambá matava gente cada dia, com o que se ia apouquentando muito; onde
mataram um seu filho bastardo e alguns parentes e outros homens de nome, com o
que a gente, que estava com Francisco Pereira, desesperadas de poder resistir
tantos anos a tamanha e tão apertada guerra, se determinou com êle apertando-o
que ordenasse de os pôr em salvo, antes que se acabasse de consumir em poder de
inimigos tão cruéis, que ainda não acabavam de matar um homem, quando o
espedaçavam e comiam. E vendo este capitão sua gente, que já era mui pouca, tão
determinada, ordenou de a pôr em salvo e passou-se por mar com ela nuns
caravelões que tinha, para a capitania dos Ilhéus; do que se espantou o gentio
muito, e arrependido da ruim vizinhança que lhe tinha feito, movido também de
seu interesse, vendo que como se foram os portugueses, lhe ia faltando os
resgates que eles lhes davam a troco de mantimentos, ordenaram de mandar chamar
Francisco Pereira, mandando-lhes prometer toda a paz e boa amizade, o qual
recado foi dêle festejado, e embarcou-se logo com alguma gente em um caravelão
que tinha, e outro em que vinha Diogo Álvares, de alcunha "o
Caramuru", grande língua do gentio, e partiu-se para a Bahia, e querendo
entrar pela barra adentro, lhe sobreveio muito vento e tormentoso, que o lançou
sobre os baixos da ilha de Taparica, onde deu à costa; salvou-se a gente toda
deste naufrágio, mas não das mãos dos tupinambás, que viviam nesta ilha, os
quais se ajuntaram, e à traição mataram a Francisco Pereira e à gente do seu
caravelão, do que escapou Diogo Álvares com os seus com boa linguagem. Desta
maneira acabou às mãos dos tupinambás o esforçado cavaleiro Francisco Pereira
Coutinho, cujo esforço não puderam render os rumes e malabares da índia, e foi
rendido destes bárbaros, o qual não somente gastou a vida nesta pretensão, mas
quanto em muitos anos ganhou na índia com tantas lançadas e espingarda das, e o
que tinha cm Portugal, com o que deixou sua mulher e filhos postos no hospital.

CAPÍTULO XXIX

Em que se torna a correr a costa e
explicar a terra dela da ponta do Padrão até o rio de Camamu.

Não tratamos da
Bahia mais particularmente, por ora, porque lhe não cabe neste lugar dizer
mais, para no seu se dizer o prometido, pois à sua conta se fêz outro memorial,
de que pegaremos como acabarmos de correr a costa, e far-lhe-emos seu ofício da
melhor maneira que soubermos.

E tornando à ponta
do Padrão dela, que está em altura de treze graus esforçados, dizemos que dessa
ponta à do morro de São Paulo na ilha de Tinharé são nove ou dez léguas, a qual
ponta está em 13 graus e meio, e corre-se com a ponta do Padrão
nordeste-sudoeste.

Faz esta ilha de
Tinharé da banda sul um morro escalvado, que se diz de São Paulo, a cuja
abrigada ancoram naus de todo o porte, e quem quiser entrar desta ponta para
dentro pode ir bem chegado ao morro, e achará fundo de cinco e seis braças.
Nesta ilha de Tinharé, junto do morro, esteve a primeira povoação da capitania
dos Ilhéus, donde despovoaram logo por não contentar a terra aos primeiros
povoadores, a qual ilha está tão chegada à terra firme que no mais estreito não
há mais canal que de um tiro de espingarda de terra à terra.

De Tinharé à ilha de
Boipeba são quatro léguas; esta ilha possuem os padres da companhia do colégio
da Bahia, a qual e a de Tinharé estão povoadas de portugueses, que despejaram a
terra firme com medo dos aimorés, que lhes destruíram as fazendas e mataram
muitos escravos. De Boipeba ao rio de Camamu são três léguas, o qual está em
quatorze graus. Tem esse rio de Camamu uma boca grande e nela uma ilha pequena
perto da ponta da banda do norte, e tem bom canal para poderem entrar nêle naus
grandes, as quais hão de entrar chegadas à ponta da banda do sul, onde têm seis
e sete braças de fundo. Da barra deste rio para dentro tem uma formosa baía,
com muitas ribeiras que se nela metem, onde se podem fazer muitos engenhos.
Este rio é muito grande e notável, e vem de muito longe, o qual se navega do
salgado para cima ou seis léguas até a cachoeira, que lhe impede não se navegar
muitas léguas, porque pelo sertão se pode navegar, porque traz sempre muita
água, cuja terra com dez léguas de costa possuem os padres da companhia
por lhes fazer dela doação Mem de Sá; os quais padres a começaram a povoar e
alguns outros moradores; mas todos despejaram por mandado dos aimorés, que lhes
deram tal trato, que os íêz passar dali para as ilhas de Boipeba e Tinharé. E
corre-se a costa desta ilha ao Camamu norte-sul pouco mais ou menos.

CAPÍTULO XXX

Em que se declara a terra que há do rio de Camamu até
os Ilhéus.

Este rio de Camamu está em
altura de quatorze graus; e dele ao das Contas são seis léguas, cuja costa se
corre norte-sul. Tem este rio das Contas, a que os índios chamam Jussiape, para
o conhecer quem vem de mar em fora, sobre a boca uns carapinhos descobertos do
mato, e ao mar uma pedra como ilhéu que está na mesma boca, pela qual entram
navios de honesto porte, porque tem fundo e canal para isso bem chegado a esta
pedra. Este rio vem de muito longe, e traz mais água sempre que o Tejo, o qual
se navega da barra para dentro sete ou oito léguas até a Cachoeira, e dela para
cima se pode também navegar, por ter fundo para isso. Ê é muito farto de
pescado e marisco e de muita caça, cuja terra é grossa e boa, e tem muitas
ribeiras para engenhos que se vêm meter neste rio (os quais se deixam de fazer
por respeito dos aimorés, pelo que não está povoado), o qual está em catorze
graus e um quarto. Deste rio das Contas a duas léguas está outro rio, que se
chama Amemoão, e dele a uma légua está outro rio que se chama Japarape, os
quais se passam a vau ao longo do mar, que também estão despovoados. De
Japa-rape ao rio de Taipe são três léguas; este rio de Taipe vem de muito longe,
no qual se metem muitas ribeiras que o fazem caudaloso, cujo nascimento é de
uma lagoa que tem em si duas ilhas. Da lagoa para baixo e perto do mar tem
outra ilha e um engenho mui possante de Luís Álvares Espenha, junto do qual
engenho está uma lagoa grande de água doce, em que se tomam muitas arraias e
outro peixe do mar e muitos peixes-bois, coisa que faz grande espanto, por se
não achar peixe do mar em nenhumas alagoas. De Taipe ao rio de São Jorge,
que é o dos Ilhéus, são duas léguas, a qual terra é toda boa, e está muito dela
aproveitada com engenhos de açúcar, ainda que estão mui apertados com esta
praga dos aimorés; e para se conhecer a barra dos Ilhéus, há de se vir correndo a costa à vista da praia para se poderem ver os ilhéus,
porque são pequenos, e três; e entre a terra e o ilhéu grande há bom
surgidouro, e os navios que houverem de entrar no rio vão pelo canal que está
norte-sul como o ilhéu grande Onde os navios estão seguros com todo o tempo, e
também estão a sombra do ilhéu grande. Este rio tem alguns braços que se
navegam com caravelões e barcas para serviços dos engenhos que têm; cuja terra
é muito fértil e grossa e de muita caça; e o rio tem grandes pescarias e muito
marisco, o qual está em altura de quinze graus escassos, e corre-se a costa
dele ao Rio das Contas norte-sul.

CAPÍTULO XXXI

Em que se contém como se começou de
povoar a capitania dos Ilhéus por ordem de Jorge de Figueiredo Corrêa.

Quando el-rei D.
João III repartiu parte da terra
da costa do Brasil em capitanias, fêz mercê de uma delas, com cinquenta léguas
de costa, a Jorge de Figueiredo Corrêa, escrivão da. sua Fazenda; a qual se
começa da ponta da baía do Salvador da banda do sul, que se entende da ilha de
Tinharé (como está julgado por sentença que sobre este caso deu Mem de Sá sendo
governador, e Brás Fragoso sendo ouvidor-geral e provedor-mor do Brasil) e vai
correndo ao longo da costa cinquenta léguas. E como Jorge de Figueiredo por
respeito de seu cargo não podia ir povoar esta capitania em pessoa, ordenou de
o mandar fazer por outrem, para o que fêz prestes à custa de sua fazenda uma
frota de navios com muitos moradores, providos do necessário para a nova
povoação. E mandou por seu lugar-tenente a um castelhano muito esforçado,
experimentado e prudente, que se chamava Francisco Romeiro, o qual partiu do
porto de Lisboa com sua frota, e fêz sua viagem para esta costa do Brasil, e
foi ancorar e desembarcar no porto de Tinharé, e começou a povoar em cima do
morro de São Paulo, do qual sítio se não satisfez, E como foi bem visto e
descoberto do rio dos Ilhéus, que assim se chama pelos que tem defronte da
barra, donde a capitania tomou o nome, se
passou com toda a gente para este rio, onde se fortificou e assentou a vila de
São Jorge, onde agora está, na qual, nos primeiros anos, teve muitas trabalhos
de guerra com o gentio; mas como eram tupiniquins, gente melhor
acondicionada que o outro gentio, fêz pazes com eles, e fêz-lhe tal companhia
que com seu lavor foi a capitania em grande crescimento, onde homens ricos de
Lisboa mandaram fazer engenhos de açúcar, com o que a terra se enobreceu muito;
a qual capitania Jerónimo de Alarcão, filho segundo de Jorge de Figueiredo, com
licença de S. A. vendeu a Lucas Giraldes, que nela meteu grande cabedal, com
que a engrandeceu, de maneira que veio a ter oito ou nove engenhos. Mas deu
nesta terra esta praga dos aimorés, de feição que não há aí já mais que seis
engenhos, e estes não fazem açúcar, nem há morador que ouse plantar canas,
porque em indo os escravos ou homens ao campo não escapam a estes alarves, com
medo dos quais foge a gente dos Ilhéus para a Bahia, e tem a terra quase
despovoada, a qual se despovoará de todo, de Sua Majestade com muita instância
não lhe valer. Esta vila foi muito abastada e rica, e teve quatrocentos ou
quinhentos vizinhos; na qual está um mosteiro dos padres da companhia, e outro
que se agora começa, de São Bento, e não tem nenhuma fortificação nem modo para
se defender de quem a quiser afrontar.

CAPÍTULO XXXII

Em que se declara quem são os aimorés, sua vida e
costumes.

Parece razão que não
passemos avante sem declarar que gentio é este a quem chamam aimorés, que tanto
dano têm feito a esta capitania dos Ilhéus, segundo fica dito, cuja costa era
povoada dos tupiniquins, os quais a despovoaram com medo destes brutos, e
se foram viver ao sertão; dos quais tupiniquins não há já nesta capitania senão
duas aldeias, que estão junto dos engenhos de Henrique Luís, as quais têm já
muito pouca gente.

Descendem estes
aimorés de outros gentios a que chamam tapuias, dos quais nos tempos de atrás
se ausentaram certos casais, e
foram-se para umas serras mui ásperas, fugindo a um desbarate, em que os
puseram seus contrários, onde residiram muitos anos sem verem outra gente; e os
que destes descendenram, vieram a
perder a linguagem e fizeram outra nova que se não entende de nenhuma outra
nação do gentio de todo este Estado do Brasil. E são estes aimorés tão
selvagens que, dos outros bárbaros, são havidos por mais que bárbaros, e
alguns se tomaram já vivos em Porto Seguro e nos Ilhéus, que se deixaram morrer de bravos sem quererem comer. Começou este gentio a sair ao mar no rio
das Caravelas, junto de Porto Seguro, e corre estes matos e praias até o rio
Camamu, e daí veio a dar assaltos perto de Tinharé, e não descem à praia senão
quando vêm dar assaltos. Este gentio tem a côr do outro, mas são de maiores
corpos e mais robustos e forçosos; não têm barbas nem mais cabelos no corpo que
os da cabeça, porque os arrancam todos; pelejam com arcos e flechas muito
grandes, e são tamanhos frecheiros, que não erram nunca tiro; são mui ligeiros
à maravilha de grandes corredores. Não vivem estes bárbaros em aldeias, nem
casas, como o gentio, nen há quem lhas visse nem saiba, nem desse com elas
pelos matos até hoje; andam sempre de uma para outra pelos campos e matos,
dormem no chão sobre folhas e se lhes chove arrimam-se ao pé do uma árvore,
onde engenham as folhas por cima, quanto os cobre, assentando-se em cócoras; e
não se lhe achou até agora outro rasto de gasalhado. Não costumam estes alarves
fazer roças, nem plantar alguns mantimentos; mantêm-se dos frutos silvestres e
da caça que matam, a qual comem crua ou mal assada, quando têm fogo; machos e
fêmeas todos andam tosquiados e tosquiam-se com umas canas que cortam muito; a
sua fala é rouca da voz, a qual arrancam da garganta com muita força, e não se
poderá escrever, como vasconço. Vivem estes bárbaros de saltear toda a sorte de
gentio que encontram e nunca se viram juntos mais que vinte até trinta
frecheiros; não pelejam com ninguém de rosto a rosto; toda a sua briga é
atraiçoada, dão assaltos pelas roças e caminhos por onde andam, esperando o
outro gentio e toda a sorte de criatura cm ciladas detrás das árvores, cada um
por si, de onde não erram tiro, e todas as flechas empregam, e se lhe fazem
rosto, logo fogem, cada um para sua parte; mas como vêem a gente desmandada,
fazem parada e buscam onde fiquem escondidos, até que passem os que seguem e
dão-lhes nas costas, empregando suas flechas à vontade. Estes bárbaros não
sabem nadar, e qualquer rio que se não passa a vau basta para defensão deles;
mas para o passarem vão buscar a vau muitas léguas pelo rio acima. Comem estes
selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro gentio que a não
come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódios. A capitania
de Porto Seguro e a dos Ilhéus estão destruídas e quase despovoadas com o temor
destes bárbaros, cujos engenhos não lavram açúcar por lhe terem morto todos os
escravos e gente deles, e a das mais fazendas,
e os que escaparam das suas mãos lhes tomaram tamanho medo, que em se dizendo
aimorés despejam as fazendas, e cada um trabalha por se pôr em salvo, o que
também fazem os homens brancos, dos quais têm morto estes alarves de vinte e
cinco anos a esta parte, que esta praga persegue estas duas capitanias, mais de
trezentos homens portugueses e de três mil escravos. Costumam-se ordinariamente
cartearem-se os moradores da Bahia com os dos Ilhéus, e atravessavam os homens
este caminho ao longo da praia, como lhes convinha, sem haver perigo nenhum, o
que estes aimorés vieram a sentir, e determinaram-se de virem vigiar estas
praias e esperar a gente que por elas passava, onde têm mortos, e com estes
muitos homens e muitos mais escravos; e são estes salteadores tamanhos
corredores, que lhes não escapava ninguém por pés, salvo os que se lhe metiam
no mar, onde eles não se atrevem a entrar, mas andam-nos esperando que saiam à
terra até à noite, que se recolhem; pelo que este caminho está vedado, e não
atravessa ninguém por êle se não com muito risco de sua pessoa; e se se não
busca algum remédio para destruírem estes alarves, eles destruirão as fazendas
da Bahia, para onde vão caminhando de seu vagar. E como eles são tão esquivos
inimigos de todo o gênero humano, não foi possível saber mais de vida e
costumes, e o que está dito pode bastar por ora; e tornemos a pegar da costa,
começando dos Ilhéus por diante.

CAPÍTULO XXXIII

Em qiie se declara a costa do rio dos Ilhéus até o rio
Grande.

Para satisfazermos com o
prometido convém que digamos que terra corre do rio de São Jorge dos Ilhéus por
diante, do qual, a duas léguas está o rio Corurupe. Deste rio a cinco léguas
está outro rio, que se chama Patipe, e em nenhum deles podem entrar barcos, por
não terem barra para isso, cuja costa é de praia e limpa, e a terra por dentro
baixa ao longo do mar. Deste rio ao rio Grande são sete léguas, o qual está em
quinze graus e meio, e tem na boca três moitas de mato que do mar parecem
ilhas, por onde é muito bom de conhecer. Na ponta da barra da banda do norte da parte de fora tem bom abrigo
para ancorarem navios da costa, os quais entram neste rio se querem; em cujo
canal na bana tem duas braças, depois uma e daí
por diante três, quatro e cinco braças. Este rio se navega por êle acima em barcos Oito ou dez léguas; neste rio será uma povoação muito proveitosa por ser muito grande
e ter grandes pescarias e muito marisco e caça, cuja terra é muito boa, onde se
darão todos os mantimentos que lhe plantarem; e corre-se a costa deste rio
Grande ao dos Ilhéus norte sul.

Este rio vem de muito longe
e traz sempre muita água e grande correnteza, pelo qual vieram abaixo alguns
homens dos que foram à serra das Esmeraldas com Antônio Dias Adorno, os quais
vieram em suas embarcações, a que chamam canoas, que são de um pau que tem a
casca muito dura e o mais muito mole, o qual cavacam com qualquer ferramenta,
de maneira que lhe deitam todo o miolo fora, e fica somente a casca; e há
destas árvores algumas tamanhas que fazem delas canoas que levam de vinte
pessoas para cima.

Sebastião Fernandes
Tourinho, morador em Porto Seguro, com certos companheiros entrou pelo sertão,
onde andou alguns meses à ventura, sem saber por onde caminhava, e meteu-se
tanto pela terra adentro, que se achou em direito do Rio de Janeiro, o que
souberam pela altura do sol, que este Sebastião Fernandes sabia muito bem
tomar, e por conhecerem a serra dos Órgãos, que cai sôbre o Rio de Janeiro; e
chegando ao campo grande acharam alagoas e riachos que se metiam neste Rio Grande;
e indo com rosto ao noroeste, deram em algumas serras de pedras, por onde
caminharam obra de trinta léguas, e tornando a leste alguns dias deram em uma
aldeia de tupiniquins, junto de um rio, que se chama Raso-Aguípe; e foram por
êle abaixo com o rosto ao norte vinte e oito dias em canoas, nas quais andaram
oitenta léguas. Este rio tem grande correnteza, e entram nele dois rios, um da
banda do leste, e outro da banda do loeste, com os quais se vem meter este rio
Raso-Aguípe no rio Grande. E depois que entraram nele navegaram nas suas canoas
por êle abaixo vinte e quatro dias, nos quais chegaram ao mar, vindo sempre com
a proa ao loeste. E fazendo esta gente sua viagem, achou no sertão deste rio no
mais largo dele, que será em meio caminho do mar, vinte ilhas afastadas umas
das outras uma légua, duas e três e mais; e acharam quarenta léguas de barra,
pouco mais ou menos um sumidouro, que vai por baixo da terra mais de uma légua,
quando é no verão, que no inverno traz tanta água que alaga tudo. Do sumidouro
para cima tem este rio grande fundo, e a partes tem poços, que têm seis e sete
braças, por onde se pode navegar em grandes embarcações; quase toda a terra de
longo dele é muito boa.

CAPÍTULO XXXIV

Em que se declara a costa do Rio Grande até o de Santa
Cruz.

Do Rio Grande ao
seu braço são duas léguas, pelo qual braço entram caravelões, que por êle vão
entrar no mesmo Rio Grande meia légua da barra para cima. Do braço do Rio
Grande ao rio Boiquisapie são três léguas, e do Boiquisape à ponta dos baixos
de Santo Antônio são quatro léguas, e da ponta de Santo Antônio ao seu rio é
meia légua; do rio de Santo Antônio ao de Sernambitibe são duas léguas; e deste
rio de Santo Antônio e da sua ponta até o rio de Sernambitibe, estão uns baixos
com canal entre eles e a costa, por onde entram barcos pequenos pela ponta de
Santo Antônio; e mais ao mar ficam uns arrecifes do mesmo tamanho, com canal
entre uns e outros. E defronte do rio de Santo Antônio têm estes arrecifes do
mar um boqueirão, por onde pode entrar uma nau e ir ancorar pelo canal que se
faz entre um arrecife e o outro, onde estará seguro; no mesmo arrecife do mar
está outro boqueirão, por onde podem entrar caravelões da costa defronte do rio
de Sernambitibe, pelo qual se pode ir buscar o porto. Do rio de Sernambitibe ao
de Santa Cruz são duas léguas, onde esteve um engenho de açúcar. Neste porto de
Santa Cruz entram naus da Índia de todo o porte, as quais entram com a proa
loeste, e surgem numa enseada como concha, onde estão muito seguras de todo o
tempo. Este rio de Santa Cruz está em clezesseís graus e meio, e corre-se a
costa do Rio Grande até esta de Santa Cruz nordeste-sudoeste, o que se há de
fazer afastado da terra duas léguas, por amor dos baixos. Neste Porto de Santa
Cruz esteve Pedro Álvares Cabral, quando ia para a Índia, e descobriu esta
terra e aqui tomou posse dela. onde esteve a vila de Santa Cruz, a qual terra
estava povoada então de tupiniquins, que senhoreavam esta costa do rio Camamu
até o de Cricaré, de cuja vida e feitos diremos ao diante. Esta vila de Santa
Cruz se despovoou donde esteve e a passaram para junto do rio de Sernambitibe,
pela terra ser mais sadia a acomodada para os moradores viverem.

CAPÍTULO XXXV

Em que se declara a costa e terra dela do
rio de Santa Cruz até o de Porto Seguro.

Do rio de Santa Cruz ao de
Itacumirim é meia légua, onde esteve o engenho de João da Rocha. Do rio de
Itacumirim ao de Porto Seguro é meia légua; e entre um e outro está um riacho,
que se diz de São Francisco, junto das barreiras vermelhas. Defronte do rio de
Itacumirim até o de Santa Cruz vai uma ordem de arrecifes que tem quatro
boqueirões, por onde entram barcos pequenos; e faz outra ordem de arrecifes
baixos mais ao mar, que se começam defronte do engenho de João da Rocha, e por entre
uns arrecifes, e os outros é a barra do Porto Seguro, por onde entram navios de
sessenta tonéis; e se é. navio grande, toma meia carga cm Porto Seguro, e vai
acabar de carregar em Santa Cruz.

Porto Seguro está em
dezesseis graus e dois terços, e quem vem de mar em fora vá com boa vigia, por
amor dos baixos. E para conhecer bem a terra, olhe para ao pé da vila, que está
num alto, e verá umas barreiras vermelhas, que é bom alvo, ou baliza, para por
êle a conhecer. Entra-se esse rio leste-oeste com a proa nestas barreiras
vermelhas até entrar dentro do arrecife; e como estiver dentro vá com a proa ao
sul, e ficará dentro do rio. Da outra banda dos baixos e contra o sul está
outra barra, por onde entram navios do mesmo porte; quem entrar por esta barra,
como estiver dentro dela, descobrirá um riacho, que se diz de São Francisco; e
como o descobrir, vá andando para dentro, até chegar ao porto. De Porto Seguro
à vila de Santo Amaro é uma légua, onde está um pico mui alto em que está a
ermida de Nossa Senhora da Ajuda, que faz muitos milagres. De Santo Amaro ao
rio de Tororam é uma légua, onde está um engenho, que foi de Manuel Rodrigues
Magalhães, e junto a este engenho uma povoação, que se diz de São Tiago do
Alto, no qual rio entram caravelões. Desse rio de Tororam ao de Maniape são
duas léguas, e antes de chegarem a êle estão as barreiras vermelhas, que
parecem, a quem vem do mar, rochas de pedras. Do rio de Maniape ao de
Urubuguape é uma légua, onde está o engenho de Gonçalo Pires. Do rio de
Urubuguape ao rio do Frade é uma légua, onde entram braços, e chama-se do Frade
por se nele afogar um, nos
tempos atrás. Do rio do Frade ao de Juuacema são duas léguas, onde esteve uma
vila que se despovoou o ano de 1564, pela grande guerra que tinham os moradores
dela com os aimorés. Neste lugar esteve um engenho, onde chamam a ponta do
Cururumbabo.

CAPÍTULO XXXVI

Em que se declara quem povoou a capitania de Porto
Seguro.

Não é bem que
passemos mais avante sem declararmos cuja é esta capitania do Porto Seguro, e
quem foi o povoador dela, da qual fêz el-rei D. João III
de Portugal mercê a Pedro de Campos Tourinho, que foi um
cavaleiro natural da vila de Viana da foz de Lima, homem nobre, esforçado,
prudente, e muito visto na arte de marear; cuja doação foi de cinquenta léguas
de costa, como as mais que ficam declaradas.

Para Pedro do Campo poder
povoar esta capitania vendeu toda sua fazenda e ordenou à sua custa uma frota
de navios, que fêz prestes, na qual se embarcou com sua mulher, Inês Fernandes
Pinto e filhos, e muitos moradores, casados, seus parentes e amigos, e outra
muita gente, com a qual se partiu do porto de Viana. E com bom tempo foi
demandar a terra do Brasil, e foi tomar porto no rio de Porto Seguro onde
desembarcou com sua gente, e se fortificou no mesmo lugar, onde agora está a
vila cabeça desta capitania, a qual em tempo de Pedro do Campo floresceu, e foi
mui povoada de gente; o qual edificou, mais, a vila de Santa Cruz e a de Santo
Amaro, de que já falamos; e em seu tempo se ordenaram alguns engenhos de
açúcar, no que teve nos primeiros anos muito trabalho com a guerra que lhe fêz
o gentio tupiniquim, que vivia naquela terra, o qual lha fêz tão cruel, que o
teve cercado por muitas vezes, e posto em grande aperto, com o que lhe mataram
muita gente; mas, como assentaram pazes, ficou o gentio quieto, e daí por
diante ajudou aos moradores fazer suas roças e fazendas, a troco do resgate que
por isso lhe davam. Por morte de Pedro do Campo ficou esta capitania mal
governada com seu filho Fernão do Campo Tourinho, e após êle durou pouco, e se começou logo a desbaratar, a qual herdou uma
filha de Pedro do Campo, que se chamou Leonor do Campo, que nunca casou. Essa Leonor do Campo, com licença del-rei, vendeu esta capitania a
d. João de Alencastro, primeiro duque de Aveiro, por cem mil-réis de juro, o
qual a favoreceu muito com gente e capitão que a governasse, e com navios que
ela todos os anos mandava, e com mercadorias; onde mandou fazer, à sua custa,
engenho de açúcar, e provocou a outras pessoas de Lisboa a que fizessem outros
engenhos, em cujo tempo os padres da companhia edificaram na vila de Porto
Seguro um mosteiro, onde residem sempre dez ou doze religiosos, que governam
ainda agora algumas aldeias de tupiniquins cristãos, que estão nesta capitania;
na qual houve, em tempo do duque, sete ou oito engenhos de açúcar, onde se
lavrava cada ano muito, que se trazia a este reino, e muito pau de tinta, de
que na terra há muito. Nesta capitania se não deu nunca gado vacum por respeito
de certa erva, que lhe faz câmaras, de que vem a morrer; mas dá-se à outra
criação — de éguas, jumentos e cabras — muito bem; e de jumentos há tanta
quantidade na terra, que andam bravos pelo mato em bandos, e fazem nojo às
novidades; os quais ficaram no campo dos moradores, que desta capitania se
passaram para as outras, fugindo dos aimorés, no qual tem feito tamanha
destruição, que não tem já mais que um engenho que faça açúcar, por terem
mortos todos os escravos dos outros e muitos portugueses, pelo que estão despovados
e postos por terra, e a vila de Santo Amaro e a de Santa Cruz quase despovoadas
de todo; e a vila de Porto Seguro está mais danificada e falta de moradores, na
qual se dão as canas-de-açúcar muito bem; e muitas uvas, figos, romãs, e todas
as frutas de espinho, onde a água de flor é finíssima, e se leva à Bahia, a
vender por tal. Esta capitania parte com a dos Ilhéus pelo Rio Grande pouco
mais ou menos; e pela outra parte com a do Espírito Santo, de Vasco Fernandes
Coutinho, para onde imos caminhando.

CAPÍTULO XXXVII

Em que se declara a terra e costa do Porto Seguro, até
o rio das Caravelas.

Da vila de Porto Seguro à
ponta Cururumbabo são oito léguas, cuja costa se corre norte-sul; essa ponta é
baixa, e de areia, a qual aparece no cabo do arrecife e demora ao noroeste, e
está em altura de dezessete graus e um quarto. Este arrecife é perigoso e corre
afastado da terra légua e meia. Da ponta de Gururumbabo
ao cabo das barreiras brancas são seis léguas, até onde corre este arrecife,
que começa da ponta de Cururumbabo, porque até o cabo, destas barreiras
brancas, se corre esta costa por aqui, afastado da terra légua e meia. Do cabo
das barreiras brancas até ao rio das Caravelas são cinco ou seis léguas, no
qual caminho há alguns baixos, que arrebentam em frol, de que se hão de guardar
com boa vigia os que por aqui passarem. Defronte de Jucuru está um rodela de
baixos, que não arrebentam, que é necessário que sejam bem vigiados; e corre-se
a costa de Cururumbabo até o rio das Caravelas, norte-sul, o qual está em
dezoito graus.

Tem este rio na boca uma
ilha de uma légua, que lhe faz duas barras, a qual está povoada com fazendas, e
criações de vacas, que se dão nela muito bem. Por este rio acima entram
caravelões da costa, mas tem na boca da barra muitas cabeças ruins, pelo qual
entra a maré três ou quatro léguas, que se navegam com barcos.

A terra por este rio
acima é muito boa, em que se dão todos os mantimentos que lhe plantam, muito
bem, e pode-se fazer aqui uma povoação, onde os moradores dela estarão muito
providos de pescado e mariscos, e muita caça, que por toda aquela terra há.
Este rio vem de muito longe, e pelo sertão é povoado do gentio bem
acondicionado, que não faz mal aos homens brancos, que vão por êle acima para o
sertão. Aqui neste rio foi desembarcar Antônio Dias Adorno com a gente que
trouxe da Bahia, quando por mandado do governador Luís de Brito de Almeida foi
ao sertão, no descobrimento das esmeraldas, e foi por este rio acima com cento
e cinquenta homens, e quatrocentos índios de paz e escravos, e todos foram bem
tratados e recebidos dos gentios que acharam pelo sertão deste rio das
Caravelas.

CAPÍTULO XXXVIII

Em que se declara a terra que há do rio das Caravelas
até Cricaré.

Do rio das
Caravelas até o rio de Peruípe são três léguas, as quais se navegam pelo canal
indo correndo a costa. Neste rio entram caravelões da costa, junto da qual a
terra faz uma ponta grossa ao mar de grande arvoredo, e toda a mais terra é
baixa. Do direito desta ponta se começam os abrolhos e seus baixos;mas entre os
baixos e a terra há fundo de seis e sete braças, uma légua ao mar somente, por
onde vai o canal.

Deste rio Peruípe ao de
Mocuripe são cinco léguas, o qual tem na boca uma barreira branca como lençol,
por onde é bom de conhecer, o qual está dezoito graus e meio. Por este rio
Mocuripe entram caravelões da costa à vontade, e há maré por êle acima muito
grande espaço, cuja terra é boa e para se fazer conta dela para se povoar,
porque há nela grandes pescarias, muito marisco e caça.

Deste rio de
Mocuripe ao de Cricaré são dez léguas, e corre-se a costa do rio das Caravelas
até Cricaré norte-sul, e toma da quarta nordeste-sudoeste, o qual rio Mocuripe
está em dezoito graus e três quartos, pelo qual entram navios de honesto porto,
e é muito capaz para se poder povoar, por a terra ser muito boa e de muita
caça, e o rio de muito pescado e marisco, onde se podem fazer engenhos de
açúcar, por se meterem nele muitas ribeiras de água, boas para eles. Este rio
vem de muito longe, e navega-sc quatro ou cinco léguas por êle acima; o qual
tem na barra, da banda do sul quatro abertas, uma légua e mais uma da outra, as
quais estão na terra firme por cima da
costa, que é baixa e sem arvoredo, e de campinas. E quem vem do mar em fora
parecem-lhe estas abertas bocas de rios, por onde a terra é boa de conhecer.
Até aqui senhorearam a costa os tupiniquins, de quem é bem que digamos neste
capítulo que se segue antes que cheguemos à terra dos goitacases.

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