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3 — HERÁCLITO E OS ELEATAS O   DEVIR   E   O    SER

Até agora os pré-socráticos puseram-se a
indagar sempre e somente a respeito do ser: em que consiste a matéria original
de que tudo consta e o que torna as coisas o que elas são? Considerou-se a
origem e o fim, mas não foi objeto de reflexão a transição, o devir em si
mesmo. Este problema vem agora à tona e desde logo é formulada uma tese sensacional:
tudo, em geral, é devir e movimento; é a constituição do que, até agora, se
chamou ser. Enquanto Heráclito defende
esta posição extrema, provoca êle a contrária, representada pelos eleatas.
Para estes não existe o que se considera devir e movimento. Do confronto
destas duas direções se esclarecerá melhor a questão vertente.

A.   Heráclito de éfeso (ca. 544-484) .

Os antigos lhe chamavam o obscuro,
de personalidade pouco acessível. Conservava uma distância aristocrática do
vulgo; pois, "qual é a sua inteligência ou entendimento? Acreditam nos
saltimbancos de rua, têm como mestre o populacho, e não sabem que, em maioria,
são maus, e só poucos bons". (104) "Um só me vale por dez mil, se fôr
o melhor" (49), De difícil acesso é também a sua doutrina. Os fragmentos
e os ditos que se nos transmitiram são como certas pedras preciosas, raras,
duras e cheias de um brilho obscuro.

a)   Pensamento  
de   Heráclito

α)   "Tudo corre". —  Como
pensamento fundamental da Filosofia de Heráclito,
nos transmite Aristóteles (De
caelo Γ, 1; 298 b 30) a frase,
que tudo corre e nada permanece no ser (παντα
ρει). "Não podemos entrar duas vezes no mesmo
rio" (frg. 91), pois, como as águas, nós mesmos já somos outros. Este
fluxo eterno do ser constituiria a essência mesma do mundo. Arché não é
nem a água, nem o ar,’ nem o apeiron, mas o devir: "Este mundo,
nenhum deus nem homem algum o produziu, mas sempre foi, é e será um fogo eterno
e vivo, que ora se acende e ora se apaga" (30). O fogo é, para Heráclito, não uma matéria primitiva,
particular e cor-pórea, como o pensavam Zeller
e Burnet, fundados na sua
explicação filosófica da natureza, mas o símbolo da eterna agitação do devir
com os seus constantes altibaixos; é, por isso, símbolo da "sabedoria
única" (εν το σοφον), da
"razão universal".  Por isso o fogo é "forma dos
fenômenos".

β) Os contrários. — O devir está,
porém, sempre encerrado entre os contrários, sendo estes, propriamente, que
mantêm, o fluxo do movimento: "É sempre uma só e mesma coisa a vida e a
morte, o despertar e o dormir, a mocidade e a velhice: Quando se muda é aquilo;
e aquilo, por sua vez, quando se muda, é isto, de novo (88). O devir de Heráclito não é uma contínua aparição
de novos seres, mas a comunhão vital dos contrários: "Não entendem como a
discórdia pode pôr-se de acordo consigo mesma. É uma mútua adaptação, como a
do arco e da "lira" (51). "Dispersa-se e reúne-se de novo;
aproxima-se e se aparta" (91). À contrariedade é assim, para Heráclito, fecunda, repleta de vida e
de força geradora; e neste sentido se compreende o seu dito: "A guerra é
o pai de todas as coisas, o rei de todas as coisas" (53).

γ) Eterno retorno — No meio de
todo devir e do curso das coisas descobre Heráclito
ordem e adaptação, inteligência e unidade. Ou não seria uma unidade a
mútua adaptação entre o arco e a lira? Não há assim contradição e não é para
admirar quando Heráclito diz, dos
grandes anos cósmicos, que exprimem o ciclo do devir, devendo cada um abranger 10.800 anos solares e significar o
eterno retorno de todas as coisas.

δ)   
Logos
    – Nem tão pouco é de se admirar se êle faz da idéia do logos
dos seus pensamentos capitais.   O logos é para ele a comunidade nu variedade,
a medida do acender-se e apagar-se no eterno devir, nina uma divina que tudo
rege e da qual "se aproximas todas as humanas", i.é, devem conservar
a sua força jurídica (2,30,114). O logos também êle o considera deus. Como,
semelhantemente, séculos mais tarde, o declara o teólogo de Éfeso, João Evangelista: χαιθεοζ
ην ο λογοσ, assim também o filósofo de
Éfeso: Zeus nós o consideramos como o único sábio. Só que nele o divino
coincide com o todo no seu eterno devir: "Deus é o dia e a noite, o
inverno e o verão, a guerra e a paz, a saciedade e a fome; mas êle se
transforma, como o fogo, conforme a especiaria que se mescla com êle, tirando
a sua denominação do perfume de cada uma" (67). "Logos" é, por
isso, para Heráclito, a lei do
mundo, reguladora do devir. É ainda esse logos a razão do universo. Mas não é
um espírito pessoal transcendente, senão imanente legislação do devir.

b)    Aristóteles a respeito do relativismo dos heraclitenses

Aristóteles
nota, a propósito de Heráclito, que,
se tudo é um fluir perene, não poderá então haver nenhuma ciência nem nenhuma
verdade (Met. A. 6; M. 4). Naturalmente, os nossos conceitos e juízos
científicos são algo de permanente, são esquemas. Mas se tudo flui, então
escapa-nos pelos dedos o que eles pretendem apreender, e não passa de letra
morta e a nenhuma realidade corresponde. Seria então Heráclito nominalista? O fragmento 102 parece permitir essa
interpretação. Nota êle que, para Deus, tudo é belo e justo; os homens é que
compreendem uma coisa como justa e outra injusta. Verdadeiramente nominalistas
são, ao contrário, os heraclitenses que, como p. ex., Crátilo, têm diante dos olhos um devir absoluto, no sentido
de que já não há nada de comum nas coisas. Tal absoluto relativismo é
representado pela moderna Filosofia da vida, como p. ex., Nietzsche e Klages. Embora eles se reportem a Heráclito, na realidade êle não lhes é o precursor, pois, em
todo o curso das coisas, via êle sempre a mútua adaptação (αρμονια),
a lei e o logos. Por isso admite como possível a ciência; a apreciação de Aristóteles deve pois antes aplicar-se
aos heraclitenses que ao próprio Heráclito.

Como, porém, podemos nos certificar
do pólo de repouso, no fluxo dos fenômenos? A isto haurimos a resposta no campo
dos eleatas. Seu chefe, Parmênides, já
tinha conhecimento de Heráclito e
se ocupava com os seus problemas.

 

c)    Bibliografia

E. Weeets, HeraMit und ãie HeraMiteer (Heráclito
e os Heracli-tenses, 1927). O. Gigon, üntersuchungen
zu HeraMit
(Pesquisas sobre Heráclito, 1985). W. Rauschenberger, Parmenides unã HeraMit (1941). K. íIeinhardt, Heraclitea. Hermes
77 (1942). O mesmo: Heraclite Lehre vom Feuer (Doutrina de Heráclito
sobre o Fogo) Hermes, 77 (1942). G. Kerschensteüner,
Der Bericht des Theophrast über HeraMit (Relato de Teofrasto
sobre Heráclito), Hermes, 83 (1955). H. Blass,
Gott und die Gesetze. Mn Beitrag zur Frage der Naturrechts lei HeraMit
(Deus e as Leis. Subsidio para a Questão do Direito Natural, em
Heráclito,   (1958).

B.    Os   Eleatas

Três homens celebrizaram Eléia, na Itália
meridional — Xenófanes, Parmenides e Zenão.

a)    Xenófanes    (ca. 570-475)

Originário de Colofônia, na Jônia,
depois de longas peregrinações fixou-se, finalmente, em Eléia. Fêz da pequena cidade a sede de uma escola de Filosofia. Cabeça de todo independente,
tendo viajado muito, aprendeu a pensar por si e livremente. Com vista
penetrante compreende que os deuses da antiga mitologia foram formados à imagem
e semelhança dos homens: "os etíopes afirmam que os seus deuses são pretos
e de nariz chato; os trácios, de olhos azuis e cabelos rui-vos" (16). Esta
é a mais antiga e crítica Filosofia da religião. O problema que ela entrevê não
é nada menos importante que a questão da possibilidade de um deus
transcendente. O primeiro resultado é uma superação do politeísmo. O divino,
para Xenófanes, deve ser
concebido de outro modo. "Um único Deus, maior que tudo o que o homem se
possa representar, diferente dos mortais tanto pela forma como pelo pensamento.
.. é todo olhos, todo espírito, todo ouvidos… permanece sempre imóvel no
mesmo lugar, não se movendo para nenhum lado, não lhe convindo estar errante
ora para cá, ora para lá. (23, 24, 26). Certo, isto já não é politeísmo. Mas
será monoteísmo? Mais verossimilmente devemos entender o dito num sentido
panteísta, pois Aristóteles informa:  
"Xenófanes, olhando para a
abóbada celeste, dizia que o ser único é Deus" (το εν ειναι
τον θεον). (21 A. 30). Isto está também na
linha geral panteísta, trilhada pelos pré-socráticos. E conforme ao "deus
único, permanecendo no mesmo lugar sem mover-se", de Xenófanes, já vamos ouvir o dito de Parmênides, relativo ao "todo
compacto, repousando em si".

b)    Parmênides  
(ca. 540-470)

Originário de Bléia mesma, diz-se
que deu uma constituição à sua pátria. Cada vez mais se evidencia que esses
filósofos primitivos eram homens de vida prática. Parece que Xenófanes foi seu mestre. Mas o aluno
foi maior, e representa propriamente a escola eleática. Suas relações com Heráclito são contestadas. Para alguns,
Parmênides responde diretamente a
Heráclito. (Zeller, Burnet) ;
outros colocam Heráclito depois
de Parmênides (reinhardt) ; ainda
outros opinam que nem Parmênides conheceu
Heráclito, nem Heráclito Parmênides (Gigon). Em todo
caso, Platão vê em ambos uma
antítese geral. No seu diálogo Parmênides, coloca o velho Parmênides ao lado do jovem Sócrates (127 a; cf. Teet. 183
e; Sof. 127 c) que é cronologicamente apenas possível, mas não poderia
fazê-lo, nem por ficção, se Parmênides ainda
fosse anterior a Heráclito. "Una
escrito seu trazia o título usual "Sobre a Natureza". Era escrito em
hexâmetros, que se desenrolam severos e solenes. A primeira parte do poema,
conforme aos consideráveis fragmentos que dele se conservavam, mostra o
caminho da verdade. Conduz ao ser; seguem-no Parmênides
e a Filosofia. A segunda parte do poema indica o caminho da
opinião; leva às aparências; trilham-no o comum dos mortais.

α) Caminho da verdade.
Para o caminho da verdade três afirmações são características.

αα) "O ser é". — 1.
"Devemos sempre pensar e dizer que só o existente é; a saber, o ser; ao
contrário, o nada não é" (fr. 6, 1). Isto não é uma simples tautologia;
mas também não é apenas o reconhecimento do princípio lógico de identidade,
sendo antes e simplesmente uma polêmica contra a ontologia heráclita do devir,
como resulta particularmente do παλιντροποζ
χελενθοζ  (6, 9)  que, como é claro,
responde ao devir de Heráclito, (frg. 51), que se move entre
os contrários. Parmênides quer
dizer: não há nenhum devir, mas só o ser existe. Quando, em nosso modo de
falar, usamos da expressão é, queremos com ela significar um ser. Parmênides frisa, no seu dito, a
palavra "ente" e o pensa em oposição ao "devir"
heraclítico que, para Parmênides, significa
um não-ser, porque corre e não permanece. Como se vê, aqui se exprime um
pensamento arcaico, pressupondo que "ser" é algo de estático e tem o
sentido de repouso, do mesmo modo que, ainda hoje, um pensamento despido de
crítica costuma dizer "o que é é", significando também com isso uma
existência permanente. Isto inclui, naturalmente, também a identidade lógica
e, ainda mais, ôntica. O "ser" é sempre idêntico a si mesmo; e por isso
não há nem evolução nem, em geral, tempo. Mas a oposição a Heráclito é formalmente querida; aliás,
resulta desta concepção arcaica do conceito de ser em Parmênides. Só
nos diálogos platônicos — Sofista e Parmênides — o
conceito de ser é esclarecido; é explicitado que o ser tem um sentido mais
amplo, devendo incluir em si também o movimento, e não somente o repouso,
sempre idêntico a si próprio.

ββ) "O pensamento
é ser".
— 2. Pensamento e ser são o mesmo (frag 3). Ou como soa a fórmula
paralela: "o mesmo é o pensamento e o que nós pensamos; pois, sem o ser,
de que se afirma algo, não encontrarás o pensamento" (8, 34 segs.). Isto
não significa nenhum monismo, mesmo no sentido como se só existisse o ser
material e o espírito não tivesse nenhuma realidade (Burnet), ou que só houvesse espíritos e a matéria nada
tivesse de próprio (Cohen). Essa
afirmação exprime a teoria cognitiva realista do sadio entendimento humano
consoante ao qual o nosso pensamento é uma reprodução do mundo objetivo e, por
aí, idêntico com o ser, de modo que êle espelha o objeto como, em regra, uma
cópia reproduz o copiado. Não se trata aqui de monismo; para tal é ainda muito
cedo, mas de um dualismo; um dualismo tão pouco ainda contaminado de dúvida,
que considera evidente a identificação entre o conteúdo do pensamento e o da
realidade. Neste sentido explica Aristóteles:
apreendemos a verdade quando dizemos do ser, que êle é, e, do não-ser,
que êle não é (Met. T, 7). Isto pressupõe a convicção metafísica de que
pensamento e ser se coordenam entre si e que o ser não é, corno pareciam
acreditá-lo os heraclitenses, um fluxo perene que escapa ao esquema imobilizado
do conceito. O logos tem o seu complemento no real. É exatamente assim que Aristóteles entende serem as
categorias do espírito as mesmas do real. A importância cosmovisional desta
posição se esclarece se nós nos representarmos a opinião oposta, segundo as palavras
de Nietzsche: "Parmênides
disse que não podemos pensar o que não existe; estamos nós no outro extremo, e
dizemos que o que pode ser .pensado deve certamente ser uma ficção".

 γγ) O um e o todo — 3.
"Há um ser compacto, simultaneamente um e todo" εστιν
ομον παν εν συνεχεζ,
(frag. 8, 5 seg.). Parmênides ensina,
ao extremo, a unidade do cosmos. Não somente não há muitos mundos, mas o
ser em geral é um único, universal e completamente homogêneo. Não podemos
dividi-lo em vários e muitos, individual e substancial; também não se podem
estabelecer diferenças de intensidade. Não. é suscetível de alteração nem de
movimento, não conhece nenhum devir- e nenhum parecer. Permanece fixo diante de
nós em eterno repouso, comparável à forma de uma "esfera toda
perfeitamente redonda, uniformemente circundada pelos seus limites. A
fundamentação da impossibilidade do devir é interessante: "Como poderia o
ser desaparecer, como poderia começar? Pois, se começasse, então não seria; e,
do, mesmo modo, se só no futuro devesse existir. Assim pois, o nascer
desaparece e se evita o desaparecer" (frg. 8, 19 ss.). Parece ser isto um
jogo de palavras e’já se é tentado a pensar no modo de falar da crítica; na realidade
estamos em face de um pensamento arcaico, que não consegue dominar o sentido,
incluído na idéia de ser, da possibilidade de um progresso e de um retrocesso.
O ser não pode começar, porque ser, na seqüência deste pensamento, significa:
já é sempre_ e sempre será. Se o ser pudesse começar ou deixar de existir,
então, segundo esta concepção, seria o mesmo que negá-lo; no que incorre quem
dessa maneira se exprime, caindo por isso em contradição consigo mesmo.
Finalmente, também se deveria aceitar que uma coisa pode proceder de outra
diferente, e isso tornaria ainda mais berrante a contradição. Com a mesma
dificuldade se defronta Anaxágoras (cf.
infra, pág. 63). Mais tarde Aristóteles,
para resolver esta dificuldade, introduziu o conceito de στερεσιζ
e a distinção entre potência e ato.

 

O  ser   de  Parmênides,  
homogêneo,   rígido,   permanecendo num eterno repouso, exprime ainda
uma polêmica com Heraclito, na doutrina do qual este seu
adversário só divisa o devir e o múltiplo, sem nenhuma permanência nem
universalidade. O que transviou Parmênides
na sua tese foi uma fúria de abstração, que prescindiu simplesmente de
toda determinação, chegando assim a uma completa indeterminação, semelhante
ao apeiron de Anaximandro, com
a só diferença de que Parmênides ainda
o denomina ser. Assim, explica a universal homogeneidade deste ser a recusa de
admitir-se a multiplicidade. Quanto ao repouso, êle resulta daquela concepção
arcaica que ser significa o permanente e sempre idêntico a si mesmo.

δδ) Realidade e pensamento. — Parmênides, conscientemente, fixou-se
no pensamento como o único caminho para a verdade. No seu poema, adverte-nos
enfaticamente pela deusa, a propósito da experiência sensível: "Conserva o
teu pensamento muito afastado deste caminho de investigação e, assim, o costume
que tudo experimenta não te impelirá para este caminho, fazendo-te errar, sem
discernimento, os olhos, o ouvido aturdido, e a língua; não, com o teu
pensamento, leva a uma decisão a prova controvertida" (frg. 6). Esta
distinção entre conhecimento sensível e racional se fixará em todo o decurso da
História da Filosofia. Todo racionalismo, especialmente, trilhará sempre o
caminho do pensamento de Parmênides. Comparado com Heráclito,
Parmênides traçou a via con-ducente à verdade imutável e sempre
idêntica consigo mesma: o pensamento abstrativo. ‘Com êle chegamos a um pólo em
repouso, no fluxo dos fenômenos. Mas Parmênides,
não tendo percebido que todos os conceitos do pensamento abstrativo implicam
um artificial estado de rigidez e esquematização de aspectos e realidades
parciais, desmembrados de uma realidade sempre fluente e infinitamente mais
rica, muito embora esses aspectos e realidades parciais possam existir
fundamentalmente e essencialmente; e tendo considerado o seu mundo de conceitos
como o mundo propriamente, e em si mesmo, transformou o mundo do logos no da
realidade, chegando desse modo ao seu peculiar conceito de ser. Aristóteles denominou, com razão, αφυσιχοι
todos aqueles φυσιχοι, para quem o
universal é tudo e o particular nada; que recusam toda individualidade, toda
multiplicidade, toda transformação e todo devir, imobilizando o mundo numa
eterna, homogênea e uniforme unidade. São naturalistas, para quem já não há
natureza, pois tiveram a felicidade de explicar o mundo por eliminação
(acosmismo).

Foi exatamente nesse mesmo espírito
que Espinosa e Hegel desvalorizaram o individual, pois
para eles também o todo é tudo, sendo o indivíduo apenas um "momento"
no processo cósmico, sem nenhuma realidade substancial. Só o universo é, para Parmênides, de relevância; ao passo
que, para Heráclito, só o
individual existe. Quem tem razão? Qual é o verdadeiro mundo: o que está imerso
no fluxo eterno do tempo, mas que é também o mundo sensível ,e efêmero da realidade
concreta, com a sua multiplicidade e riqueza, ou o mundo supratemporal e
abstrato dos conceitos do logos e da ciência, com os seus universais,
descoloridos na verdade, mas de plena validez? E se o essencial deve buscar-se
no universal, em que. universal devemos buscá-lo, na espécie ou no gênero ou numa
universalidade ainda mais alta? Quando se pergunta pelo ser de um determinado
cão, que se deve responder com exatidão: este é o "Rolly" ou o
"basset", ou um cão, ou um ser vivo, ou um ser? Parmênides tem a última resposta como a
verdadeira. Aristóteles respondeu
a esse problema com a sua distinção entre substância primeira e segunda, com a
qual justifica tanto o individual como o universal; e na sua dou trina devemos
entender o ser, não como um conceito genérico, por não ser unívoco, mas
análogo, por onde se salva a pluralidade formal do ser, tornando igualmente
possível a sua comparabilidade.      

β) Caminho da opinião. — Parmênides parece também não se ter
contentado de todo com o caminho da verdade. Dá êle igualmente lugar ao caminho
da opinião (δοξα). Desta parte do poema pouco se conservou.
Mas temos o bastante para compreender que a opinião vive, não do mundo
racional, mas do sensível. Fundada nessa sensibilidade nasce a imagem do devir
e da multiplicidade cósmica. É ela, na realidade, enganosa e imaginária,
"imaginação", como mais tarde se exprimirá Espinosa, que marcha na pegada de Parmênides. O conhecimento sensível, para Parmênides, não é ideal; contudo a
grande massa pode contentar-se com a opinião e a aparência.

Como resultado final, com Parmênides poderemos assentar que a
verdade científica, se realmente existe, permaneceu eterna; ao passo que Heráclito professa, persuadido, que o
mundo real, confinado no tempo e no espaço, é um curso perene. Aquele é o mundo
do pensamento; este o dos sentidos.

c)    Zenão   
(ca. 460)

Também êle é originário de Fléia
e diz-se ter sido o discípulo predileto de Parmênides.
Zenão foi o primeiro, de uma série não despicienda dos filósofos que
caíram vítimas de tiranos, na luta pela liberdade do espírito. Sua obra trazia
o título habitual "Sobre a Natureza". A sua Filosofia deu à Filosofia
eleâtica aquela forma típica que a tornou conhecida na História da Filosofia e
à qual se deu o nome de dialética ou erística.

α) Argumentos contra o movimento.
— Zenão pretende provar a
doutrina de Parmênides, consoante
à qual não há multiplicidade e movimento, mas um ser único e imóvel. Fá-lo com
os seus quatro célebres argumentos contra o movimento (29 A 25-28). 1. Não pode
haver movimento, pois, para tal, deveríamos percorrer sempre um determinado
espaço. Ora, cada espaço pode, por ser extenso, ser dividido em partes infinitamente
pequenas. Mas, pretender percorrer uma serie infinita de partes é o mesmo que
querer chegar ao fim do que não tem fim. — 2. Aquiles
não poderá alcançar uma tartaruga. Pois, na realidade, para vencer a
distância que os separa, precisa êle de um certo tempo; mas, nesse ínterim,
também a tartaruga já avançou, e quando recobrar essa distância, já a tartaruga
estará mais adiante. E assim por diante. — 3. Uma seta que voa está em repouso. Ela só se move na aparência, na realidade ocupa ela, em cada momento, um determinado
espaço. Mas, ocupar em cada momento do tempo um determinado espaço é,
propriamente, estar em repouso; e como o espaço percorrido pela seta consta
desses momentos em número infinito, a seta não está em movimento. — 4. Todo
movimento é ilusório; pois, se dois corpos percorrem, à mesma velocidade e em
direção oposta, um mesmo espaço, eles atravessarão um corpo em repouso, nesse
espaço, numa velocidade diferente da com que se atravessarão a si mesmos,
quando se cruzarem.

β)  
"Dialética".
— Comparados com a realidade experimental, os
argumentos de Zenão são
paradoxos.  É como se se quisesse disputar sobre o azul do céu.  Com razão viu,
por isso,  Aristóteles em Zenão o fundador da dialética;  tendo
aqui a dialética o sentido de arte de disputar (erística).

γ) Pressuposto de Zenão.
Mas Zenão parece não ter tido, de
nenhum modo, a intenção de nos enredar em sofismas, antes sucumbiu a
pressupostos subentendidos na sua arcaica concepção do ser, toda orientada num
sentido mais verbal que real. Na elaboração dessa idéia de ser, feita por Zenão com admirável agudeza, tornam-se
esses pressupostos particularmente evidentes. São eles três: 1. O mundo do
pensamento se identifica com o da realidade. Assim se inter-penetra a esfera do
lógico com a do real. As partículas infinitamente pequenas de uma linha a ser
percorrida existem em número infinito só no pensamento, não porém na realidade.
O mesmo se dá com o número infinito das posições momentâneas no vôo da seta. —
2. Quando se fala de ser, o em que imediatamente e sempre se pensa é num ser de
grandeza positiva e real. Mas ser pode também significai’ algo de negativo,
pois também nesse sentido o incluímos na expressão — é. E a distância
ganha pela tartaruga rapidamente se converte em uma tal grandeza negativa.
Como, porém, os eleatas se atem fortemente à palavra "ser", insinuam
eles o pensamento de que a tartaruga deve sempre conservar uma distância
positiva e real. — 3. O ser é, para Zenão,
um bloco de realidade imóvel em si mesmo e por si mesmo cognoscível, que
podemos perceber imediatamente. O poder do pensamento de determinar um ser com
vários meios indiretos, e de vários pontos de vista, é algo ainda estranho ao
eleata, e, por isso, não lhe explica que uma grandeza de movimento possa ser
diversamente medida. Como próprio e último problema se apresenta visivelmente
aqui o das relações entre o pensamento e o ser. Os eleatas partem, sempre, da
suposição da teoria-cópia e afirmam assim uma total identidade entre o
conhecimento e o seu objeto. Daí todas as dificuldades. Muitas reflexões serão
necessárias até amadurecer a idéia de que também o espírito tem as suas leis
próprias; que êle muitas vezes capta apenas determinados aspectos e momentos do
ser; que muitas vezes ainda apenas indiretamente pode determiná-los; que
ocasionalmente pode abandoná-lo de todo e só construir um mundo de puros
pensamentos estranhos ao real.

d)    Bibliografia

M. Untersteiner, Senofane.
Testimonianze e framenti
— Xenófa-nes. Testemunhos e Fragmentos (Firenze,
1956). K. Reinhardt, Parmênides
und die Geschichte der Griechischen Philosophie
— Parmênides e a História
da Filosofia Grega (1916). K. Riezler, Parmênides
(1933). F. M. Cornford, Plato
and Parmênides
(London, 1939). W. F. Gay-mans,
Parmênides. Een studie (Assen, 1941). J. E. Raven, Pythago-reans and Eleatícs (Cambridge,
194S). J. Beaufret, Le poème
de Parmênides
(Paris, 1955). H. Fkankel,
Wege und Formen des frühgrie-chischen Denkens — Caminhos e Formas
do Pensamento Grego Primitivo (1955). M. Untersteiner,
Parmenide. Testimonianze e framenti. Introduzione, traduzione e
conimento (Firenze, 1958). Particularmente a Zenao — "W. D. Ross, Aristotle’s
Physies
(1936) 71-85. H. D. P. Lee, Zeno
of Elea.
A Text with Translation and Notes. (Cambridge, 1936). W. Cramer, Die Aporien des Zeno und die
Einheit des Raumes
— As Aporias de Zenão e a Unidade do Espaço (Blátter für
deutsche Philosophie, XII, 1939).

 

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