BIOGRAFIA DE CAIO MÁRIO – Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres

SUMÁRIO DA VIDA DE CAIO MÁRIO

I. Diversidade de costumes entre os
romanos no que se refere aos nomes próprios. II. Austeridade do
caráter de Mário. III. Suas primeiras campanhas: Cipião pressagia sua futura
grandeza. IV. É nomeado tribuno do povo e faz aprovar uma lei sobre
a maneira de votar. V. Malogra na sua pretensão à edilidade. Obtém a pretura,
e é suspeitado de haver comprado sufrágios. VI. Altivez de sua
resposta a Herê-nio, que se recusou a testemunhar contra êle, por ser seu
patrão. VII. É absolvido, e vai comandar tropas na Espanha. VIII. Casa-se
com Júlia, da família dos Césares. IX. Sun paciência na dor. X. Metelo
escolhe-o como seu lugar -tenente na África. Conduta de Mário neste cargo. XI. Paz
condenar Turpílio a morte. XII.
Dirige-se a Roma, e pleiteia o consulado.
XIII. Sua eleição. Elogios que faz de si mesmo. Injurioso
desprezo que manifesta pela nobreza. XIV. Boco entrega Jugurta às mãos
de Sila, questor de Mário. XV. Esta foi a origem do ódio entre Mário e Sila.  XVI. Segundo
consulado de Mário. XVII. Origem dos cimbros. XVIII. Sua
coragem, suas vitórias. XIX. Tomam a decisão de atacar Roma. XX. Inútil
oposição à eleição de Mário. XXI.
Seu triunfo, Morte de Jugurta. XXII. Partida
de Mário para a guerra. Como acostumou seu exército à fadiga. XXIII. Aventura
de Trebônio. Admirável conduta de Mário em relação a êle. XXIV. Mário
é nomeado cônsul pela terceira o pela quarta vez. XXV. Manda abrir
um novo canal para servir de embocadura ao Ródano. XXVI. o inimigo
oferece lhe batalha, o que êle não aceita. XXVII. Como
familiariza seus   soldados   com   o   aspecto   medonho   dos   bárbaros.   XXVIII.Queixas dos soldados de Mário, ansiosos
por serem levados ao combate. XXIX.
Acerca de uma mulher síria que Ale trazia
consigo, como profetisa. XXX. Diversos presságios e predições da vitória de Mário. XXXI. O
inimigo levanta acampamento para seguir para a Itália e Mário o acompanha. XXXII Trava-se
a batalha. XXXIII. Mário alcança a vitória. XXXIV. Os romanos mantêm-se em estado de alerta toda a noite
seguinte. XXXV. Preparativos, de ambos os lados, para o segundo
combate. XXXVI. Completa vitória obtida pelos romanos. XXXVII. Mário
oferece um sacrifício, no decorrer do qual lhe trazem a notícia de que havia
sido nomeado cônsul pela quinta vez. XXXVIII. Notícias enviadas sobre o
exército de Catulo. XXXIX. Mário vai ao seu encontro. XL. Modificação introduzida
por Mário no dardo. XLI. Formação por êle adotada para a batalha. XLII. Marcha
do inimigo. XLIII. Trava-se a batalha. XLIV. Vitória completa dos romanos. XLV.
Triunfo dos dois cônsules. XLVI. Refle-xões sobre o caráter de Mário. XLVII.
Liga-se com Gláucias e Saturnino. XLVIII. Seu sexto consulado. XLIX.
Velhaca-ria de Mário. L. Presta juramento, de acordo com a lei de Saturnino.
LI. Metelo recusa-se a prestar juramento. LU. É exilado. I.III. Infame
complacência de Mário em relação a Saturnino. LIV. É obrigado a tomar as armas
contra êle. LV. Saturnino é morto com seus cúmplices. LVI. Metelo é chamado.
LVII- Mário segue para a Ásia. LVIII. Manda construir uma casa perto da praça
pública. LIX. Começo da guerra dos aliados. LX. Conduta de Mário nesta guerra.
LXI. Disputa o comando na guerra contra Mitrídates. LXT Violências de Sulpício
em favor de Mário. LXIII. Mário é obrigado a sair de Roma. LXIV. O filho de
Mário escape perseguição de seus inimigos. LXV. Fuga de Mário; sua desdita.
LXVI. Velho presságio que anunciava a Mário sete consulados. LXVII. Mário
escapa a um novo perigo. LXVIII. Ele se oculta num pântano. LXIX. É proso. LXX.
Ninguém ousa matá-lo. LXXI. É posto cm liberdade. LXXII Aporta na África.
LXXIII. Sextílio ordena-lhe que se retire. LXXIV. Mário encontra-se com o
filho. LXXV. Volta à Itália.    LXXVI.    Liga-se    a    Cina.    LXXVII.   
Apodera-se    do    Janículo. LXXVIII. Morte de Otávio. LXXIX. Crueldades de
Mário, após sua entrada em Roma. LXXX. Comuto é salvo pelos seus escravos. LXXXI. Morte de Marco Antônio, o orador. LXXXII. Morte de Catulo Lutácio.
Horrores em Roma, LXXXIII. Mário é nomeado cônsul pela sétima vez. LXXXIV. Suas
extremas inquietações. LXXXV. Mário adoece e morre. LXXXVI. Reflexões sobre a
ambição de Mário e seu apego à vida. LXXXVII. Exemplos contrários de Platão
e de Antípatro. LXXXVIIL  Reflexões sobre a maneira como os homens encaram sua
fortuna. LXXXIX. Morte do filho de  Mário.

Do ano 591 até o ano 668, de Roma; ano 86,
A. C. Paralelo entre Pirro e Mário, por du Haillan.

VIDA DE CAIO   MÁRIO – PLUTARCO – VIDAS PARALELAS

Baseado na tradução em francês de Amyot, com notas de Clavier, Vauvilliers e Brotier.
Tradução brasileira de José Carlos Chaves. Fonte: Ed. das Américas

I.
Não se sabe qual foi o terceiro nome
de Caio Mário, do mesmo modo como não se conhece o de Quinto Sertório, que foi
durante muito tempo senhor da Espanha, e nem o de Lúcio Múmio, o destruidor da
cidade de Corinto; pois o cognome de Acaico que foi dado a Múmio, o de
Africano, a Cipião, e o de Numídico a Metelo, focam-lhes atribuídos por motivo
das vitórias por eles alcançadas. É este um argumento utilizado por Possidônio
para procurar convencer aqueles que dizem ser o terceiro nome dos romanos o seu
nome próprio, como Camilo, Marcelo, Catão. Se assim fosse, diz êle, os que não
possuem senão dois nomes não teriam nome próprio. Mas êle não viu que, de
acordo com o seu argumento, as mulheres não teriam nomes próprios; pois não
existe unia única mulher romana que tenha o primeiro nome que Possidônio
estima ser próprio dos romanos, apresentando o primeiro dos dois outros como o
nome comum de toda a família, tais como os Pompeus, os Mânlios, os Cornélios,
do mesmo modo como se diz, entre os gregos, os Heráclidas, os Pelópidas; e o
segundo como um cognome advindo do caráter, das ações, das formas do corpo e de
outras particularidades, tais como os apelidos de Macrino, Torquato, Sila.
Entre os gregos podem-se. citar os de Mnemão, que significa possuidor de boa
memória; Gripo, o que possui nariz aquilino; Cali-nico, o vitorioso. Todavia,
quanto a este ponto, a diversidade dos empregos dos nomes (1) daria lugar a
grandes discussões.

II. Quanto
à fisionomia de Mário, vimos em Ravena, cidade da Gália, a sua estátua de
mármore, a qual reproduz com simplicidade o rigor e a austeridade de caráter e
de costumes que lhe foram atribuídos. Dotado de compleição robusta, corajoso,
e inclinado às armas, e tendo recebido uma educação mais militar do que civil,
êle revelou no exercício do autoridade uma violência que não soube moderar.
Conta-se que jamais aprendeu as letras gregas e não quis mesmo se servir da
língua grega em nenhuma questão de importância; achava ridículo aprender a
língua de um povo escravo. Após seu segundo triunfo, no dia da consagração de
um templo, êle promoveu jogos gregos, para a diversão do povo romano; e, dirigindo-se
ao teatro onde os mesmos estavam sendo realizados, sentou-se por um instante, saindo logo
depois. Platão costumava dizer com freqüência ao filósofo Xenócrates, cujo
caráter era muito rude e áspero: "Xenócrates, meu amigo, sacrificai às
Graças". Se, do mesmo modo, alguém tivesse conseguido persuadir Mário a
sacrificar às Graças e às Musas gregas, ele não teria dado às belas ações que o
ilustraram na paz e na guerra um fim vergonhoso; e sua cólera, sua ambição
inoportuna, a sua avareza insaciável, não o teriam atirado a uma velhice
feroz, cruel e desumana. O relato de suas ações permitirá que tudo isso seja
prontamente conhecido.

(1)
Pliutarco tem razão. Existiu, entre os romanos, uma grande diversidade de uso no
que se refere aos nomes. Entretanto, de um modo geral, no tempo dos reis e da
República, o primeiro nome era o nome próprio. O último foi o nome próprio, em
geral, no tempo dos imperadores.

 

III.
Mário nasceu de pais obscuros e pobres, que eram forçados a ganhar a vida com o
trabalho de suas mãos. Seu pai chamava-se, como ele, Mário, e sua mãe,
Fulcínia. Por esse motivo, demorou a freqüentar Roma, e só muito tarde ficou
conhecendo os costumes da cidade. Passou os primeiros anos de sua existência
numa pequena aldeia denominada Cerretino, no território da cidade de Arpino,
onde  levava uma vida rústica e agreste, em comparação com a civilidade e a
cortesia dos que vivem nas cidades, mas sóbria e morigerada, semelhante à vida
dos  antigos romanos. A sua primeira campanha foi contra os celtiberos, na
Espanha, realizada enquanto Cipião, o Africano, assediava a cidade de Numância.
Os capitães de Cipião perceberam logo que Mário possuía maiores qualidades de
homem de guerra do que qualquer de seus companheiros.     Com efeito, êle
assimilou com grande rapidez e facilidade a nova disciplina que Cipião
introduzira nos exércitos corrompidos pela luxúria e pela indolência. Conta-se
que êle mediu suas forças, um dia, com um adversário, na presença de seu
general, matando-o. Cipião, para ganhar a sua afeição, cumu lou-o de favores e
honrarias. Uma noite, quando Mário se encontrava à sua mesa, após a ceia, tendo
a conversação recaído sobre os generais daquele tempo, um dos convivas, seja
porque estivesse realmente em dúvida, seja pelo desejo de lisonjear Cipião,
perguntou a este qual o capitão com que os romanos podiam contar, para
substituí-lo, após sua morte; e o general batendo docemente com a mão no ombro
de Mário, que estava perto dele, disse: "Será, talvez, este". Estes
dois homens, afortunadamente, nasceram, com a capacidade, um para aunciar,
desde a sua juventude, a sua futura grandeza, e, o outro para conjecturar qual
o fim que teria a carreira deste jovem.

(1)    No ano 635, de Roma.

 

IV. Estas
palavras de Cipião foram para Mário, ao que se diz, como uma voz divina, fazendo
o conceber as mais altas esperanças e animando-o a dedicar-se à administração
pública: e, gozando do favor de Cecílio Metelo, cuja casa sempre protegera a
família de Mário, êle foi nomeado tribuno do povo (1).   Durante seu tribunado,
apresentou uma lei sobre a maneira de votar na eleição
dos  magistrados,  a  qual  parecia  privar  os  nobres da influência de que
gozavam nos julgamentos.    O cônsul Cota combateu esta lei e persuadiu o
Senado a opor-se a ela e a impedir a sua adoção; além disso, solicitou   que  
Mário   fosse   intimado   a   comparecer perante os senadores a fim de
explicar as razões de sua conduta.    Esta proposta foi aprovada e Mário t
entrou no Senado, não com o embaraço de um jovem que, sem ser conhecido
por qualquer ação de relevo, mal  começava sua vida pública,  não  tendo 
outros atributos senão a sua própria virtude; mas, ao contrário, tomando com
antecipação o ar de segurança que lhe deram mais tarde os seus grandes  feitos,
ameaçou publicamente o cônsul de prisão, caso não fizesse revogar a decisão.  
Cota, voltando-se para o lado  onde  se  encontrava   Cecílio  Metelo   (1), 
pediu-lhe que manifestasse a sua opinião.  Este senador levantou-se e falou em
defesa do cônsul.    Mário, então, mandou vir de fora um lictor, e ordenou-lhe
que conduzisse Metelo à prisão.    Este apelou para os outros tribunos, mas
nenhum deles tomou a sua defesa; e, assim, o Senado julgou que devia ceder e
anulou o seu decreto.    Mário, cheio de orgulho com a  sua vitória,  saiu  do 
Senado e  dirigiu-se  à assembléia  do povo,  onde  fêz  aprovar a sua lei.
Este começo fêz com que o julgassem um homem que jamais recuaria movido pelo temor ou cederia por timidez, e que,
para servir os interesses do povo, oporia ao Senado a mais forte resistência.

(1)   Colega de Cota no
consulado.

 

V.
Entretanto, logo depois êle desíez
esta opinião, agindo de maneira oposta. Tendo sido feita e proposta uma
distribuição gratuita de trigo aos cidadãos, Mário opôs-se tenazmente a essa me-
dida; e, tendo feito rejeitar a lei, passou a dispor do apoio dos dois
partidos, os quais o julgaram incapaz de favorecer interesses particulares em
detrimento do interesse da República. Após o tribunado, pretendeu ingressar na
grande edilidade. Existem, com efeito, duas categorias de edis: a primeira é a cedilitas
curulis,
assim denominada por motivo das cadeiras de pés recurvados, nas
quais se sentavam os edis quando davam audiência; a segunda, bem inferior em
dignidade, é a aedilitas popularis, ou seja a dos edis plebeus. E, em
Roma, imediatamente após a eleição dos grandes edis, procede-se à eleição dos
outros. Mário, vendo desde o início que o seu nome ia ser recusado para a
primeira edilidade, apresentou-se sem perda de tempo à segunda. Viu-se, nesta
sua atitude, a afirmação de um caráter obstinado e audacioso, e, por este
motivo, num mesmo dia, foi objeto de duas recusas, coisa jamais ocorrida. Este
revés não abateu, contudo, a sua coragem, e tempo depois êle pleiteou também a
pretura, e por pouco o seu nome não foi igualmente recusado. Eleito,
finalmente, em último lugar, foi acusado de haver comprado votos. As suspeitas foram sobremodo
motivadas pelo fato de ter sido visto um escravo de Cássio Sabacão no interior
do recinto onde se procedia à eleição, indo e vindo entre os que votavam.
Cássio era amigo íntimo de Mário; chamado perante, os juízes, e interrogado
sobre tal fato, declarou que, em virtude do excessivo calor, sentira muita
sede, e que pedira por isso água ao seu escravo; este, no entanto, logo após
ter-lhe levado a água numa taça, deixara o local. Entretanto, Sabacão foi mais
tarde expulso do Senado pelos censores escolhidos naquele comício; e julgou-se
que êle havia merecido este castigo infamante, ou por ter prestado depoimento
falso, ou por haver cedido à sua intemperança.

VI. Caio Herênio
foi também chamado a testemunhar contra Mário; mas alegou, para se desculpar,
que a lei e o costume dispensam o patrão de prestar testemunho centra os seus
clientes ou aderentes. Patrão é a palavra pela qual os romanos designam os que
assumem a proteção de pessoas de condição inferior à sua; ora, a família de
Mário, e o próprio Mário, sempre foram dependentes da casa dos Herênios.
Os juizes receberam e concordaram com esta desculpa; todavia, Mário
opôs-se à sua aceitação, alegando que, desde o momento no qual fora nomeado
para uma função pública, sua condição de dependência cessara, deixando de ser
cliente ou aderente de qualquer pessoa.     Isto  não era,  contudo, inteiramente
verdadeiro, pois o exercício de uma magistratura não dispensa os clientes, nem
seus descendentes, de seus deveres para com os patrões, de permanecerem sob a
patronagem de outrem; este privilégio só beneficia os magistrados a quem a lei
permite sentar-se na cadeira curul, ou seja, a cadeira que é transportada num
carro pela cidade.

VIL
Nos primeiros dias, a causa dé Mário
não se apresentou sob auspícios favoráveis, mostrando-se os juizes contrários a
êle. Entretanto, no último dia, contra a expectativa do público, ‘êle foi
absolvido, pois os votos dos juizes dividiram-se. Mário portou-se com grande
honestidade no exercício do cargo de pretor, e, ao deixá-lo, decorrido um ano,
seguiu para a Espanha Ulterior, situada além do rio Betis (1), e que lhe coube
ao serem divididas, por sorte, as províncias. A Espanha possuía ainda costumes
rudes e selvagens, e os espanhóis não conheciam então nada de" mais belo
do que uma vida de roubos e banditismo. Ao que se conta, êle livrou toda a
província dos seus ladrões e assaltantes.

(1)   Hoje, Guadalquivir.

 

VIII. Após o seu regresso a
Roma, decidiu participar do trato das questões públicas; mas verificou logo
que não possuía nem eloqüência, nem riqueza, dois dos mais poderosos meios a
que se podia recorrer na época para obter o apoio e a consideração do povo. Todavia, seus concidadãos tiveram
em conta a firmeza de seu caráter, a sua perseverança no trabalho e a
simplicidade de sua vida, permitindo-lhe assim conquistar as primeiras honras;
e adquiriu logo tal poderio que, através de uma aliança das mais honrosas,
ingressou na ilustre casa dos Césares: desposou Júlia, tia de Júlio César, que
se tornou depois o maior dos romanos, e que, em virtude deste parentesco e da
afinidade existente entre ambos, imitcu, ao que parece, Mário, assim como
relatamos em sua vida.

IX. Além de ser homem de
grande continência, Mário era também dotado de notável paciência, e disto deu
uma prova no decorrer de uma operação a que se submeteu. Suas pernas estavam
cheias de veias dilatadas (1) e, como suportasse mal a deformidade por elas
causada, chamou um cirurgião para cortá-las. Apresentou-lhe uma das pernas,
para que dela cuidasse, não consentindo que a amarrassem: e sofreu as dores
cruéis causadas pelas incisões, sem gemer, sem fazer qualquer movimento, com
uma fisionomia inalterada e num profundo silêncio. Mas quando o cirurgião quis
passar para a outra perna, êle recusou-se a atendê-lo, dizendo: "Vejo que
a cura não vale a dor que provoca".

(1)    Varizes.

X.    O cônsul Cecílio Metelo  (2), tendo sido nessa época designado para ir
à África a  fim de combater o rei Jugurta, escolheu Mário como um de seus
lugar-tenentes.   Mário, que viu nesta expedição uma oportunidade para belas
ações e grandes proezas, não se propôs como objetivo, em tal viagem, a
conquista de novas honrarias e novas glórias para  Metelo,   como   os  
outros   lugar-tenentes,   E estava certo de que não fora Metelo que o
escolhera para esse posto, mas a própria fortuna, a qual lhe apresentava uma
ocasião das mais favoráveis para tornar-se mais conhecido, conduzindo-o, por
assim dizer, a um magnífico teatro, a fim de mostrar o que sabia fazer;  e
assim empenhou-se em dar as maiores demonstrações possíveis de coragem e
talento militar,   No   decorrer  desta   guerra,   que  oferecia inúmeras
dificuldades, jamais receou as tarefas mais rudes ou desdenhou as ocupações de
menor importância.   Superando todos os seus companheiros em bom senso e
prudência, em tudo o que podia contribuir para o bem comum, êle rivalizava em
paciên-cia e frugalidade,  com os  simples soldados,  e  foi assim conquistando
a simpatia e a benevolência de todo o exército.   Na realidade, constitui um
grande confôrto, para os que se encontram em situações difíceis, possuir um
companheiro que partilhe espontâneamente de todos os trabalhos e penas, e isto
porque lhes parece ficarem assim aliviados, no que se refere ao constrangimento
e à necessidade. E, para o soldado romano, nada existe de mais confortador do
que ver seu-comandante comer, à vista de toda gente o mesmo pão que ele, ou
deitar-se numa pobre enxerga, ou trabalhar ao seu lado na escavação de uma
trincheira ou na fortificação de um campo. Êle não estima tanto os generais que
lhe dão dinheiro e o promovem quanto aqueles que se associam aos seus trabalhos
e se expõem aos perigos da guerra; e, acima de tudo, estima mais aqueles que
partilham de suas fadigas do que aqueles que lhe permitem viver na ociosidade.

 

(1)    No ano 645, de Roma.    Foi este Quinto Cecílio
Metelo que recebeu o nome de Numídico.

 

XI. Mário,
agindo desse modo, conquistou a afeição de todos os soldados, e encheu, rapidamente,-
toda a África e a cidade de Roma inteira com o seu renome e a sua glória. Todos
os que, do exército, escreviam para suas famílias, em Roma, não cessavam de repetir
que não se veria o fim da guerra contra aquele rei bárbaro se a sua direção não
fosse confiada a Mário, com a sua eleição para as funções de cônsul. Uma
preferência tão acentuada desagradava fortemente a Metelo; todavia, nada lhe
desagradou tanto quanto a aventura de Turpílio. Era este amigo de Metelo, e as
suas famílias estavam ligadas fazia muito tempo pelos laços da hospitalidade.
Turpílio acompanhara Metelo nesta guerra, e exercia no exército o cargo de
intendente dos operários. Foi-lhe
confiada, por seu comandante, a guarda de Vaca (1), grande e importante cidade;
e, confiando na lealdade dos habitantes do lugar, aos quais tratava com doçura
e humanidade, não percebeu que, tendo sido por eles traído, ficara nas mãos de
seus inimigos. Eles, com efeito, introduziram Jugurta no interior da cidade,
não fazendo, contudo, nenhum mal a Turpílio, tendo mesmo conseguido do rei,
para ele, a salvação de sua vida e a liberdade. Foi por isso acusado de
traição. Mário, um dos membros do conselho de julgamento, além de muito
prevenido contra êle, acirrou de tal modo o ânimo dos outros juízes, que Metelo
foi forçado, contra sua vontade, devido à pluralidade dos votos, a condená-lo a
morte. Algum tempo depois se verificou que a acusação era falsa, o que causou
grande desgosto a Metelo, desgosto este partilhado pelos juizes, com exceção de
Mário que, ao contrário, externou publicamente a sua alegria. Êle se vangloriava
dizendo que a condenação fora sua obra, e não teve pejo de alardear por toda
parte que juntara à alma de Metelo uma fúria vingadora que o punia por ter
mandado matar seu hóspede, A partir de então eles se tornaram inimigos
declarados, e conta-se que, um dia, Metelo, zombando, disse-lhe: "Queres,
então, deixar-nos, homem de bem, e voltar a  Roma  para  disputar o 
consulado,  pois  que  não podes esperar para ser cônsul juntamente com meu
filho". Este filho de Metélo estava ainda em sua primeira juventude.

(1)    A cidade de Vaga, na Numídia.

 

XII,    Entrementes,   Mário   pôs-se   a   solicitar  vivamente o seu
licenciamento, sendo grande a sua  insistência.   Metelo, após vários
adiamentos, decidiu, finalmente,   concedê-lo,   mas  isto   quando   faltavam  somente doze
dias para a eleição dos cônsules.   Por   este motivo,  Mário, apressando-se,  alcançou
Útica,  localidade situada a beira-mar, em dois dias e uma  noite, apesar de
ser considerável a distância que a  separava do acampamento.   Antes de embarcar, of e- receu um
sacrifício aos deuses, e estes, segundo lhe  asseguraram   os   adivinhos,  
prometeram-lhe   êxitos  extraordinários, de muito superiores às suas esperanças.    
Ainda mais  encorajado,  diante  de  tais  promessas, êle fêz-se ao mar: e
como o vento lhe fosse  constantemente  favorável,  a  travessia  foi  feita 
em quatro dias.   Dirigindo-se, logo após o desembarque, a Roma, apareceu
diante do povo, que estava ansioso por vê-lo.   Levado a um comício, por um dos
tribu- nos, ali formulou várias acusações contra Metelo, e em   seguida pediu  
aos   romanos   que   o   elegessem   cônsul, prometendo matar ou
aprisionar, em poucos dias, o rei Jugurta.

XIII     Foi escolhido cônsul sem oposição  (1), e, apenas
investido em suas funções, desprezando os costumes e as
leis de Roma, arrolou, nos novos recrutamentos, pobres homens que nada
possuíam, e vários escravos. Até então, nenhum general recrutara para seus
exércitos gente dessa condição, confiando as armas, assim como outros encargos
honrosos da República, somente a homens que delas fossem dignos e cujos bens
conhecidos oferecessem uma garantia de cumprimento de seu dever na guerra e de
sua fidelidade. Contudo, não foi esta inovação que atraiu para Mário os maiores
ódios; as palavras cheias de altivez e insolência que proferiu, em seus
discursos, ofenderam ainda mais as principais personalidades da cidade. Êle
declarava em altas vozes, por toda parte, que seu consulado era um despojo
tirado à moleza dos patrícios e dos ricos, graças à sua virtude; e
glorificava-se junto do povo, não com monumentos erguidos à memória de mortos
ou com estátuas, mas com cs ferimentos que recebera em seu próprio corpo. E,
muitas vezes, referindo-se a generais que haviam sido mal sucedidos na África.
tais como Béstia (1) e Albino, ambos pertencentes a famílias grandes e nobres,
mas sem capacidade para a guerra e cuja inexperiência motivara as derrotas
sofridas, chamou-os, citando os seus próprios nomes, de covardes, perguntando
aos que estavam em suas proximidades;   "Não acreditais que os antepassados
destes dois capitães teriam preferido deixar descendentes que se
assemelhassem comigo? E eles próprios se tornaram ilustres pelos seus altos
feitos e pelas suas virtudes, e não pela nobreza e pelo sangue". Estes
discursos não eram inspirados a Mário somente pela sua presunção e vaidade,
pelo desejo de atrair gratuitamente o ódio dos patrícios; mas eram também
sugeridos pelo povo que, deliciado com o opróbrio e o desprezo a que era
lançado o Senado, e medindo sempre a extensão da coragem pela altivez das
palavras, elevava Mário até às nuvens, e o concitava a não poupar os nobres e a
|ter em conta apenas a multidão.

(1)   No ano 647, de Roma.

(2)
Béstia foi cônsul no ano 643, de Roma; Albino, no ano de 644. Foram ambos
enviados à África para lutar contra Jugurta, mas tiveram a baixeza de se deixar
corromper pelos seus" presentes.

 

 

XIV,
Quando Mário voltou à África, Metelo
deixou-se dominar pela inveja e pelo despeito, pois que, quando a guerra já
havia sido por êle quase inteiramente terminada, restando-lhe somente apoderar-se
da pessoa de Jugurta, o novo cônsul, que devia o seu posto tão somente à sua
ingratidão, ia Arrebatar-lhe a glória e o triunfo. Não quis por isso
encontrar-se com êle, e retirou-se do exército. O comando deste foi transmitido
a Mário por um de seus lugar-tenentes, Rutílio. Entretanto, antes do fim da
guerra, a vingança celeste puniu Mário por sua perfídia. Sila foi arrebatar-lhe
a glória de concluí-la, do mesmo modo como a havia arrebatado de Meteloi Como
já contei com pormenores este fato na Vida de Sila, eu aqui o repetirei em
poucas palavras:   Boco, rei da Alta Numídia, era sogro de Jugurta (1), a quem
não prestou grande auxílio enquanto este se manteve em guerra com os romanos,
pretextando a sua má fé; na realidade, ele receava o aumento de seu poderio,
Quando Jugurta, fugitivo e errante, não tendo outra pessoa a quem recorrer
senão seu sogro, refugiou-se junto dele, na sua extrema necessidade, Boco
recebeu-o como a um pedinte, mais por vergonha do que por benevolência.
Tendo-o em suas mãos, êle simulava, em público, estar pleiteando seu perdão
junto a Mário. Escrevia mesmo, a este general, com uma franqueza aparente,
dizendo que não lhe entregaria Jugurta. Entretanto, tendo planejado trair este
príncipe, mandou secretamente chamar Sila, então questor de Mário, ou seja, seu
tesoureiro geral, e de quem havia recebido alguns serviços no decorrer da
guerra. Sila, confiando no bárbaro, atendeu ao seu convite e dirigiu-se à sua
corte. Todavia, quando ali chegou, Boco mudou de parecer, e, ao que parece,
arrependeu-se de seu propósito. Durante vários dias permaneceu hesitante, não
sabendo se entregaria seu genro ou se deteria Sila.    Finalmente, decidindo-se
pela   traição   que   havia  
primeiramente   projetado, entregou Jugurta vivo às mãos de Sila (2).

(1)
Boco casou-se com a filha de Jugurta, e, assim, este era seu sogro. Salústio
assegura-o em termos concludentes. As medalhas de Sila confirmam essa
afirmação. Nelas se vêem Boco jovem e sem barba e Jugurta, velho, e com uma
longa barba. Amyot, deixou-se enganar por Plutarco. Deve-se assim corrigir:
Boco, rei da Alta Numídia, era genro de Jugurta. V. o capítulo III da
Vida de Sila

(2)    No ano 648, de Roma.

 

XV.     Este
foi o primeiro germe do ódio implacável e cruel que se manifestou logo depois
entre Mário e Sila, e que por pouco não causou a ruína da cidade e do império
de Roma. Aqueles que  invejavam a glória de Mário diziam que a captura de
Jugurta era devida a Sila; e o próprio Sila mandara gravar um anel que, em
seguida, sempre trouxe consigo, e lhe servia de sinete, no qual ele aparecia representado
no momento em que recebia Jugurta das mãos de Boco (1) e nada irritou tanto
Mário, o mais ambicioso dos homens e o menos disposto a dividir com outrem a
glória resultante de suas ações. Sila, aliás, era instigado pelos inimigos de
Mário, os quais faziam questão de atribuir cs primeiros e maiores êxitos da
guerra a Metelo, e os últimos a Sila, concedendo ainda a este a glória do
remate final. Eles tinham como objetivo impedir que o povo continuasse a
dedicar a Mário uma tão grande admiração e a considerá-lo como o primeiro dos
capitães romanos.

 

 (1)   Vê-se também esta cena
representada nas medalhas consulares da família de Sila.

 

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