Continued from: BIOGRAFIA DE CAIO MÁRIO - Plutarco - Vidas dos Homens Ilustres

XVI.        Mas
todas estas invejas, todos estes ódios e estas invectivas contra Mário foram
logo atenuados e dissipados pelo grande perigo que veio ameaçar toda a Itália
do lado do poente. E daquilo não se falou mais, desde o dia em que se verificou
que a República necessitava de um bom capitão e em que se começou a
procurar com os olhos quem seria o sábio piloto que a poderia salvar numa
guerra tão perigosa e tão tormentosa; e como os cidadãos das casas mais nobres
e mais ricas recusassem apresentar-se como pretendentes ao consulado, Mário
embora ausente, foi eleito cônsul pela segunda vez  (2).

XVII Mal se divulgara em Roma a notícia da captura de
Jugurta, e ali chegava também a nova da invasão dos teutões e dos cimbros.
Todas as afirmações relativas ao número e à força dos invasores pareceram a
princípio inverossímeis; mas o que se afirmava revelou-se logo depois abaixo da
verdade. Somavam eles trezentos mil combatentes, todos muito bem armados, e
arrastavam atrás deles uma multidão ainda mais numerosa de mulheres e crianças,
para quem procuravam terras capazes de proporcionar alimentos e cidades onde
pudessem se estabelecer; pois sabiam que, antes deles, os celtas tinham
conquistado aos toscanos a região mais fértil da Itália. Como estes bárbaros
tinham escasso comércio com os outros povos, e como habitavam países remotos,
ignorava-se a que nações pertenciam, e de que  regiões  haviam  partido  para 
vir,   como  uma nuvem tempestuosa, cair sobre a Gália e a Itália. O seu grande
porte, os seus olhos negros e a denominação de cimbros (1), que os germanos
davam aos bandidos, faziam apenas conjecturar serem um destes povos da Germânia
que habitam às margens do Oceano Setentrional.

(2)   No ano 650, de Roma,

 

XVIII. Outros dizem que a
Céltica, país vasto e profundo, estende-se desde o grande mar Oceano e das
regiões setentrionais, até os pântanos Meótides e a Cítia ou Tartária Pôntica;
dizem ainda que aqueles dois povos, tendo-se unido, saíram de seus países, não
ao mesmo tempo e numa única emigração: cada ano, na primavera, eles avançavam e
atacavam as populações que encontravam à sua passagem., de modo que, através de
conquistas sucessivas, estenderam-se por todo o continente; e é por este
motivo, que embora cada povo tivesse um nome diferente, dada a diversidade de
suas nações, dava-se a todo o seu exército a denominação de celtócitas. Outros
dizem ainda que uma parte da nação dos cimérios, que os antigos gregos
conheceram outrora, parte aliás pouco considerável em relação à nação inteira,
fugiu, ou foi expulsa de seu país pelos citas, em conseqüência de alguma
sedição, e atravessou os pântanos Meótides, na Ásia, sob a chefia de um capitão
chamado Ligdamis. Os restantes, que formavam a parte mais numerosa da nação,
habitavam as extremidades da terra, perto do oceano Hiper-bóreo, numa região
coberta de florestas intermináveis e umbrosas, e tão densas que os raios do sol
não podiam nelas penetrar, e aprofundavam-se tanto no interior da terra que iam
se unir à floresta Hercínia. Elas estavam colocadas sob a parte do céu onde a
inclinação dos círculos paralelos dá ao pólo uma tal elevação que êle fica no
zênite destes povos, e que, sendo os dias, tanto na sua maior duração como na
menor, sempre iguais às noites, dividem ali o ano em duas partes iguais, Foi
isto que deu a Homero a idéia da fábula, na qual diz que quando Ulisses quis
evocar os mortos dirigiu-se ao país dos cimérios, como sendo a região dos
infernos.

(1)
Os cimbros eram os piratas do Báltico, e esse o motivo por que eram chamados de
bandidos. V. "Origine Germanorum", de Jean-Georges Eccard.

Não desejo
examinar o fundamento da descrição de Plutarco. Diodoro da Sicília (liv. V, cap.
32) deriva a palavra eirnbro do antigo vocábulo cimério, e atribui aos cimbros
a mesma origem apresentada aqui por Plutarco, em último lugar. A tradução de
Amyot apresenta, todavia, o texto com muita fidelidade; e a palavra cimbro
significa, com efeito, bandido, segundo Suidas, (C).

 

XIX.
Eis de onde partiram, segundo se diz,
para chegar à Itália, estes bárbaros chamados a princípio cimérios, designação
da qual decorreu, possivelmente, o nome de cimbros. No.entanto, estes informes
baseiam-se mais em conjeturas do que em provas históricas: mas a maior
parte dos autores concorda em que o seu número longe de ser inferior ao que
mencionamos, era ainda mais considerável. Sua coragem e sua impetuosidade, sua
força e sua rapidez nos combates podiam ser comparadas à violência e à velocidade
do raio; nada podia lhes resistir e nem se opor ao seu avanço: todos os povos,
à sua passagem, eram arrastados como uma presa fácil. Vários generais romanos,
enviados para a Gália Cisalpina, a fim de governar e defender as possessões de
Roma, com poderosos exércitos, foram vergonhosamente levados de vencida por
eles (1). E foi a covardia demonstrada por estes comandantes, ante os
primeiros ataques dos bárbaros, que os levou a marcharem sobre Roma,
encorajados pela facilidade de suas vitórias sobre todos os generais por eles
enfrentados, e pelas riquezas imensas de que se tinham apoderado. Decidiram
não se estabelecer em nenhum lugar antes de destruir Roma e saquear a Itália,

XX, Os
romanos, a quem a notícia de tal resolução chegava de todos os lados, chamaram
Mário para conduzir esta guerra, e o nomearam cônsul pela segunda vez, embora
as leis proibissem a eleição de pessoas ausentes e estabelecesse um certo prazo
entre dois consulados exercidos por um mesmo magistrado. Alguns cidadãos, para
se oporem à sua eleição, alegaram estas leis; mas o povo os repeliu. Não era a
primeira vez, dizia-se, que as leis cediam diante da utilidade pública; e o
motivo para   a   derrogação   de   tais   leis,   nesta   circunstância, não era menos urgente do que aquele que havia
levado os seus antepassados a nomearem, contra as leis (1), Cipião, para as
funções de cônsul; e quando o elegeram, não recearam de nenhum modo a ruína de
sua cidade: eles não tinham em vista senão destruir Cartago.. O povo, diante
destes argumentos, confirmou a nomeação de Mário.

(1)   Tácito expôs com
precisão e eloqüência estas incursões dos cimbros e suas vitórias.

 

XXL
Mário transferiu o seu exército da
África para a Itália, e, a l.9
de janeiro (2), dia em que começa o ano romano, tomou posse do consulado.
Entrou como triunfador em Roma e proporcionou aos moradores da cidade um
espetáculo que jamais esperavam ter: o rei Jugurta cativo. Ninguém teria
ousado prever o fim da guerra enquanto vivesse este príncipe, tal a sua
habilidade em se amoldar às variações da fortuna, tais a sua coragem e astúcia!
Conta-se que, durante a marcha triunfal, ele perdeu os sentidos, e, terminados
os festejos, foi levado para uma prisão, onde os lictores, ansiosos por obterem
despojos, arrancaram-lhe as pontas das duas orelhas a fim de ficar com os anéis
de ouro que trazia. Após ter sido atirado a um canto do calabouço, disse,
sorrindo, apesar de estar com os sentidos ainda perturbados: "Por
Hércules, como são frias as vossas estufas!"    Depois de lutar seis dias
inteiros com a fome, durante os quais conservou sempre a esperança e o desejo
de continuar a viver, encontrou, finalmente, numa morte miserável, a justa
punição para as maldades que cometera em vida. No cortejo triunfal, foram transportados, ao que se conta, três mil e sete libras de ouro e cinco mil e
setecentas de prata, e, além disso, moedas de ambos esses metais no valor de
dezessete mil e vinte e oito dracmas.

  (1)   As leis prescreviam a idade de 42 anos para o
consulado. Cipião foi nomeado cônsul antes dos 30 anos. (2)   No ano 650, de
Roma.

 

XXII, Após este triunfo,
Mário reuniu o Senado, e, seja por distração, seja por abuso insolente, entrou
na sala com suas vestes de triunfador. Percebendo, contudo, a indignação de
todo o Senado, retirou-se; e, depois de vestir a toga consular, voltou ao seu
lugar. Ao partir em seguida para a guerra, a sua maior preocupação foi
exercitar as suas tropas, o que fazia mesmo durante a marcha; acostumou-as a
todas as espécies de corridas e a percorrerem longos trechos de caminho;
obrigou-as a carregarem a sua bagagem e a prepararem a sua alimentação. Assim é
que, muito tempo depois, os soldados que gostavam do trabalho e executavam
pacientemente e em silêncio tudo o que lhes era ordenado, eram chamado-? os
mulos de Mário". Há pessoas, todavia, que apresentam uma origem diferente
para este dito: dizem que, no cerco de Numân-cia, tendo Cipião querido
inspecionar, não somente as armas e os cavalos de seus soldados, mas também os
seus carros e os seus mulos, a fim de verificar se estavam em boas condições para continuar a .prestar
serviços, Mário levou-lhe seu cavalo, do qual êle próprio cuidava,
apresentando-se por isso muito bem nutrido, assim como seu macho, o qual, pela
sua nediez, força e mansidão, deixava longe todos os outros mulos do exército.
O general, encantado com o aspecto apresentado pelos animais de Mário, referiu-se
depois várias vezes ao fato, e assim se tornou uma espécie de rifão dizer-se,
com referência a um homem laborioso, assíduo e paciente no trabalho, e de quem
se queria zombar, ser êle um mulo de Mário.

XXIII. Ao que me parece, foi
para Mário um grande favor da fortuna o fato de os bárbaros, numa espécie de
refluxo, terem decidido em primeiro lugar espraiar-se pela Espanha: este retardamento
deu-lhe o tempo necessário para exercitar ainda mais os seus soldados e
incutir-lhes ânimo e coragem; e, o que era mais importante, de ensinar-lhes a
conhecer seu general. A sua severidade no comando, o seu rigor inflexível nas
punições, logo que eles aprenderam a obedecer e a não mais faltar ao seu dever,
pareceram-lhes justas e salutares. Depois de conviverem algum tempo com êle,
viram que a sua cólera e os seus arrebatamentcs, a aspereza de sua voz, o ar
feroz de seu rosto, não deviam ser temidos por eles e sim pelo inimigo. Mas
nada lhes agradava tanto como a sua retidão nos julgamentos, e cita-se,  a
propósito,  um exemplo  notável     Havia, entre os oficiais, um seu sobrinho, chamado Caio
Lúcio, o qual não era tido como um homem mau, mas que tinha um vício: o de se
apaixonar pelos jovens bonitos. Êle se enamorou de um rapaz chamado Trebônio,
que pertencia à sua companhia, e, após solicitar em vão, por várias vezes, os
seus favores, decidiu, finalmente, uma noite, mandar buscá-lo por um de seu
servidores. O jovem, que não podia desobedecer ao oficial, dirigiu-se à sua
tenda. Ali, como Caio Lúcio tentasse violentá-lo, desembainhou sua espada e
matou-o. Mário não se encontrava no acampamento, e, após seu regresso, intimou Trebônio
a comparecer perante seu tribunal. Apresentaram-se várias pessoas para
acusá-lo e nenhuma para defendê-lo. Tomou, então, o jovem, a palavra, com
confiança, e, depois de expor perante Mário o que se tinha passado, enumerou
diversas testemunhas de suas firmes e reiteradas recusas às freqüentes
solicitações de Lúcio e das ofertas consideráveis que lhe tinham sido feitas,
mas que, no entanto, não o haviam tentado a abandonar a sua honra. Mário, cheio
de admiração pela sua atitude, após louvá-lo, mandou buscar uma daquelas coroas
com que os romanos costumavam recompensar os grandes atos de coragem no
decorrer dos combates, e colocou-a êle próprio sobre a cabeça de Trebônio, pela
sua ação virtuosa numa época em que eram necessários grandes exemplos.

XXIV. Este julgamento, que logo depois se tornou conhecido de todos, em Roma,
serviu-lhe de muito para obter o seu terceiro consulado. Aliás, a volta dos
bárbaros estava sendo esperada para a primavera, e os soldados não estavam
dispostos a combater sob o comando de outro general que não Mário. Entretanto,
os bárbaros não apareceram tão cedo quanto se supusera, e o terceiro consulado
de Mário (1) chegou ao seu termo sem que tivessem aparecido. Ao aproximar-se a
época da eleição, a morte do outro cônsul (2)
obrigou Mário a deixar o comando do exército a Mânio Acílio e seguir para Roma.
Vários romanos, dos mais conceituados disputavam o consulado; mas Lúcio
Saturnino, o tribuno que gozava então de maior prestígio popular, tendo sido
corrompido por Mário, pôs-se a falar em todas as assembléias, a fim de
convencer os cidadãos de que deviam elegê-lo cônsul pela quarta vez, E como
Mário simulasse não desejar a sua reeleição, e chegasse mesmo a dizer que
recusaria o cargo se o povo a ele o reconduzisse, Saturnino acusava-o de trair
a pátria, por não querer, diante de um perigo tão grande, aceitar o comando do
exército. Via-se perfeitamente que se tratava de uma simulação, na qual
Saturnino desempenhava muito grosseiramente o seu papel; mas o povo. sentindo
que naquela conjuntura necessitava a nação da capacidade e da boa estrela de
Mário na guerra, elegeu-o cônsul pela quarta vez (1), dando-lhe por companheiro
Catulo Lutácio, homem estimado pelos nobres e que era também considerado pelo
povo.

 

(1)     No ano 651, de Roma.

(2)    
Aur élio  Orestes,  colega  de 
Mário.

 

XXV. Mário, informado de que
bárbaros se aproximavam, atravessou de novo, rapidamente, os Alpes; e após
estabelecer o seu acampamento perto do rio Ródano, fortificou-o e supriu-o com
tal abundância de víveres que jamais uma escassez de provisões poderia forçá-lo
a combater quando isso não lhe oferecesse vantagem ou ainda não tivesse chegado
o momento propício, Mas como era preciso fazer seguir por mar todas as
provisões, com desperdício de tempo e de dinheiro, tratou de encontrar um meio
de transporte fácil e rápido. As marés haviam enchido com grande quantidade de
limo e de areia a embocadura do Ródano; as suas margens estavam igualmente
cobertas por uma vasa esspêssa, nelas depositada pelas ondas, o que tornava a
entrada do rio tão difícil quanto perigosa aos grandes navios de carga.
Mário, considerando tal coisa, decidiu utilizar c seu exército no período em
que estava inativo, na abertura de um amplo canal, pelo qual desviou uma boa
parte da água da torrente, e que levou até um ponto da costa seguro e
cômodo.   O canal era bastante profundo para permitir a passagem de grandes
navios e a embocadura, junto ao mar, estava ao abrigo dos ventos e do choque
das vagas, Este canal ou fosso tem ainda hoje. o nome de Canal de Mário (1).

 

(1)   No ano 652, de Roma.

 

XXVI. Os bárbaros
dividiram-se em dois exércitos para dirigir-se- à Itália: o constituído pelos
cimbros ganhou a Alta Germânia, a fim de, através da Nórica, forçar as
passagens defendidas por Catulo; e o outro, formado pelos teutões e ambrões,
passou pela Ligúria, ao longo da costa, e marchou contra Mário. Os cimbros, que
tinham um longo caminho a percorrer, retardaram a sua partida, por muito tempo;
mas ou teutões e os ambrões partiram logo, e após transpor o espaço que os
separava dos romanos, surgiram diante de Mário. Era um número infinito de
bárbaros, de aspecto medonho, e cujas vozes e gritos não se assemelhavam aos
dos outros homens. Ocuparam, para estabelecer o seu acampamento, uma imensa
extensão de terreno; e logo em seguida, puseram-se a provocar Mário e a
desafiá-lo para a batalha. O general romano, que não se deixou impressionar por
esses desafios, reteve os soldados em seu acampamento, e dirigiu severas reprimendas
àqueles que ostentavam uma audácia inoportuna e, não dando atenção’ senão à sua
impa ciência e à sua cólera, queriam a todo custo sair a campo para combater. Êle qualificou-os como traidores
da pátria, dizendo: "Não se trata aqui de combater pela nossa glória
particular, nem de alcançar vitórias para nós, mas de dissipar esta nuvem de
tempestade, carregada de raios, a fim de que ela não vá espalhasse por toda a
Itália".

(1)    Restam vestígios
do  Canal  de Mário  no   lugar  denoinl nado   Foz.     O   canal  
encontra-se   agora   obstruído,   e   é   chamai In Braço-Morto.

 

XXVII. Esta
linguagem era por êle usada particularmente com os seus oficiais; quanto aos
soldados, colocava-os, uns após outros, sobre as forti-ficações do
acampamento, a fim de contemplarem os inimigos e se acostumarem com suas
fisionomias, .seus gestos, sua maneira de andar e suas vozes, que eram
estranhas e selvagens, e também para ficarem conhecendo as suas armas e o seu
modo de manejá-las. E tornou-os, assim, familiarizados, pelo hábito, com o que
à primeira vista lhe parecera tão terrível, pois êle sabia que a
novidade leva os homens, por um erro de julgamento, a imaginarem mais horríveis
e mais espantosas que na realidade são as coisas que se receiam; e, ao
contrário, o hábito anula, mesmo em relação àquelas verdadeiramente temíveis,
grande parte do terror que inspiram. E isto fci confirmado pela experiência: o
fato de verem todos os dias os bárbaros, não somente diminuiu pouco a pouco o
medo que inspiravam aos soldados romanos, como, aguçando a sua cólera, as
altivas ameaças e as insuportáveis bravatas do inimigo, inflamaram a sua
coragem e despertaram neles um ardente desejo de combater.   Pois os bárbaros,
não contentes de pilhar e devastar os arredores, iam insultá-los, até o seu
acampamento, com uma audácia e uma insolência tão revoltantes, que, indignados,
ante a sua inação, eles puseram-se a formular queixas as quais, afinal, foram
ter aos ouvidos de Mário.

XXVIII.        "Que
covardia, diziam eles, Mário descobriu em nós, para nos impedir de combater, para
nos manter sob a guarda e a chave de porteiros
como se fôssemos mulheres? Ousemos rncstrar-lhe que somos homens livres, e
vamos perguntar-lhe se êle está esperando outros soldados, que não nós,
para combater em defesa da Itália, e se decidiu apenas utilizar-nos como
simples trabalhadores, para abrir fossos, drenar atoleiros ou desviar o curso
de
rios. Pois foi somente nisso- que êle nos manteve em grande atividade até
agora, e essas são as belas obras que executou em seus dois consulados, e delas
pretende se jactar certamente em Roma. Receará ele a sorte de Carbão e Cipião, que foram derrotados pelo inimigo? Êle não deve recear tal coisa; pois é
um comandante muito mais valoroso do que aqueles dois generais, e seu exército
é muito mais poderoso.
Entretanto, seja como fôr, mais vale perder tentando-se fazer alguma coisa, do
que permanecer na ociosidade, enquanto nossos amigos e aliados são destruídos e
saqueados",

XXIX,        Mário,
que ouvia com satisfação estas queixas e recriminações, procurava tranqüilizá-los
e reconfortá-los, assegurando-lhes que de nenhum modo menosprezava suas qualidades; e explicou-lhe que,
advertido por certas profecias e oráculos dos deuses, decidira aguardar o tempo
e o lugar propícios à vitória. Mário conduzia sempre consigo, fazendo-a
transportar numa grande liteira, uma mulher da Síria, chamada Marta, que
possuía, segundo se afirmava, o dom da profecia. Êle tratava-a com o maior respeito,
e jamais oferecia sacrifícios sem a sua ordem. Marta dirigira-se primeiramente
ao Senado, a fim de predizer-lhe as coisas futuras; mas os senadores não
quiseram ouvi-la e mandaram mesmo expulsá-la do edifício. Dirigiu-se ela,
então, às mulheres, a quem forneceu algumas provas de seus conhecimentos acerca
das coisas do futuro; persuadiu, em particular, a esposa de Mário, do acerto de
suas predições, num dia em que se sentou aos seus pés, durante um combate de
gladiadores, anunciando-lhe quem seria o vencedor. A mulher de Mário
encaminhou-a depois .10 marido, que passou logo a admirá-la e resolveu trazê-la
sempre consigo. Quando se dirigia aos sacrifícios, ela vestia um longo manto
de púrpura dupla (1), preso com fivelas, tendo numa das mãos uma lança efeitada
com bandeirolas, festões e grinaldas cie flores. Esta farsa fêz com que muita
gente duvidasse  da  sinceridade  de  Mário  quando  afirmava acreditar na
ciência profética dessa mulher, e admitiam que êle fingisse acreditar nela, a
fim de tirar partido de sua velhacaria.

 

(1)
Com um manto de púrpura tingido duas vezes, o que era, naquela época, uma coisa
magnificente. A púrpura de Tiro, tingida duas vezes, era vendida por mil
dinheiros. V. Plínio, IX, 39.

 

XXX. Todavia,
Alexandre, o Mindense, conta uma história de abutres verdadeiramente’admirável.
Diz êle que duas destas aves apareciam regularmente no acampamento de Mário nas
vésperas de suas vitórias e que elas seguiam constantemente o seu exército.
Eram reconhecidas por colares de bronze que soldados nelas haviam colccado, um
dia em que as pegaram e depois as soltaram. Desde então os abutres ficaram
conhecendo os soldados, e pareciam saudá-los com seus gritos; os militares, por
sua vez, não ocultavam a sua satisfação quando os viam, pois estavam certos de
que eles vinham anunciar-lhes êxito no próximo encontro. Registraram-se então
vários sinais e presságios, a maioria dos quais nada anunciava de
extraordinário. Comunicaram, contudo, de Ameria e Todi, cidades italianas, que,
durante a noite, haviam surgido no céu lanças e escudos ardentes (1), os quais,
a princípio separados uns dos outros, começaram a se chocar em seguida,
tomando as disposições e efetuando os mesmos movimentos executados por
exércitos em combate; finalmente, uns cederam e os outros se puseram a
persegui-los, tomando todos a direção do poente.   Nessa mesma época, chegou, da cidade de Pessinunte (2), Batabaces,
grande sacerdote da mãe dos deuses, o qual declarou ter-lhe a deusa anunciado,
do fundo de seu santuário, que a vitória nesta guerra caberia aos romanos. O
Senado, dando crédito a essa predição, ordenou que se edi-ficasse um templo à
divindade, por ter ela anunciado a vitória. Batabaces quis apresentar-se também
perante o povo, numa assembléia, para repetir-lhe a mesma promessa; mas o
tribuno Aulo Pompeu impediu-o de fazer uso da palavra, tratando-o de impostor,
chegando mesmo a pô-lo para fora da tribuna. Foi sobretudo esta violência que
fêz muita gente acreditar na predição do grande sacerdote; pois, apenas de
volta à sua casa, após a assembléia, êle foi acometido de febre alta, morrendo
no sétimo dia, acontecimento este que se tornou conhecido de toda a cidade.

XXXI. Entrementes, os teutões; vendo que Mário permanecia tranqüilo em seu
acampamento, tentaram um assalto; mas, recebidos por uma chuva de dardos,
arremessados dos pontos fortificados, pelos romanos, e que mataram muitos
soldados, resolveram prosseguir em seu caminho, certos de que atravessariam os
Alpes sem maiores obstáculos. Após preparar a bagagem, marcharam ao longo do
acampamento dos romanos. O tempo que levaram para passar demonstrou como era prodigioso
ò seu número.    Ao que se conta, desfilaram durante seis dias consecutivos diante das fortificações de Mário;
e, ao passar perto dos romanos, perguntavam-lhes, zombando, se não tinham algum
recado para suas mulheres, pois que estariam em breve junto delas. Depois de
passarem todos, e de se encontrarem a uma certa distância, Mário também
suspendeu acampamento, e pôs-se nas suas pegadas, Detinha-se sempre perto
deles, escolhendo para acampar posições favoráveis, as quais fortificava, a fim
de passar a noite tranqüilamente e em segurança. E continuando assim a sua marcha, os dois exércitos chegaram à cidade de Aix (3), de onde pouco caminho lhes
restava a fazer para atingir os sepés dos Alpes. Mário decidiu dar combate aos
bárbaros nesse lugar.

XXXII.
Escolheu uma posição muito vantajosa,
mas na qual a água não era abundante; fê-lo, ao que se afirma, de propósito, a
fim de estimular ainda mais a coragem de seus soldados. Como a maior parte
destes se queixou, dizendo que ia sofrer sede cruel. Mário, apentando-lhes com
a mão um rio que banhava o acampamento dos bárbaros, disse-lhes: "É ali
que tereis de obter água à custa de vosso sangue". "Por que, então-,
não nos levais já, para ali, enquanto o sangue molha ainda as nossas
veias?", responderam os soldados. E Mário, com brandura; "É preciso,
antes fortificar o nosso acampamento".   Os soldados, embora
descontentes, obedeceram; mas cs serventes do exército, não tendo água nem para
êle nem para seus animais, desceram em grande número para o rio, com as
bilhas, armados, uns com machados ou machadinhas, outros com espadas ou lanças,
pois que esperavam ter de combater para obter o líquido. Foram, com efeito,
atacados pelos bárbaros, os quais não apareceram a princípio senão em pequeno
número, pois que a maioria estava se banhando ou tomando sua refeição após o
banho, O lugar era cheio de fontes de água quente; e uma parte dos bárbaros,
atraídos pela beleza do sítio e pela doçura do banho, não pensavam em outra
coisa senão em divertir-se e comer bem, quando foram surpreendidos pelo ruído
causado pelos que já combatiam, e puseram-se então a correr para o local da luta.

(1) É
evidente que o fenômeno meteorológico então observado nessas duas cidades da
Umbria não era senão uma aurora boreal.

(2)    Cidades da
Galácia, famosa pelo culto a Cibela, a qual é representada em várias
medalhas dessa localidade.

(3)    Os latinos
denominavam-na Aquae Sextiae,  em virtude das águas termais existentes nas
proximidades.

 

XXXIII. Diante do que
ocorria, não teria sido possível a Mário conter os seus soldados, que receavam
pela sorte de seus criados. Por outro lado, os mais belicosos dentre os
bárbaros, aqueles que tinham dizimado os exércitos de Mânlio e de Cipião (eram
os ambrões, os quais perfaziam sozinhos o total de trinta mil homens) apressaram-se em tomar as suas armas. Estavam
com os corpos pesados, de tanto  comer; no entanto, o vinho que tinham
bebido, tornando-os mais alegres, aumentara a sua audácia. Assim, avançaram, e
não em desordem e com o arrebatamento dos combatentes era fúria, ou no meio de
gritos mal articulados; ao contrário, marchavam todos com passo cadenciado, pelo ruído que faziam com suas
armas; e, seja. para intimidar o inimigo, seja para se animarem mutuamente,
eles marchavam repetindo seguidamente o seu próprio nome; "Ambrões,
ambrões, ambrões”.

XXXIV. Os primeiros, dentre
os italianos, que avançaram contra eles foram os ligúrios, que são os
habitantes da região de Gênova, os quais ouviram e reconheceram os seus gritos;
e, como diziam que aquele era o nome verdadeiro de toda a sua nação, eles
responderam aos bárbaros com o mesmos grito, que foi assim repetido inúmeras
vezes nos dois exércitos, antes de se chocarem. Como os oficiais juntassem os
seus gritos aos dos soldados, de ambos os lados, e como todos procurassem
exceder uns aos outros com a altura de suas vozes, tais clamores, assim
multiplicados, aguçaram e inflamaram ainda mais a coragem dos combatentes. Mas
os ambrões, ao atravessar o rio, romperam a ordenação de suas fileiras, e não
tiveram tempo de restabelecê-la quando os ligúrios atacaram vigorosamente a sua
vanguarda, dando início ao combate. Os romanos, acorreram rapidamente para
apoiar os ligúrios, caindo, de posições elevadas, sobre os bárbaros; e
investiram com tal violência que estes foram obrigados a fugir. Os ambrões, em
sua maioria, precípitando-se uns sobre os outros, foram mortos às margens do
rio, cujo leito se encheu de sangue e de cadáveres. Aqueles que conseguiram
atravessar o rio não tiveram a audácia de se organizar para enfrentarem de novo
os romanos, e estes os perseguiram e mataram até o seu acampamento em seus
carros. As mulheres dos bárbaros saíram ao seu encontro, empunhando espadas e
machados, e, rangendo os dentes de raiva e de dor, desferiram golpes tanto nos
fugitivos quanto nos perseguidores: nos primeiros por serem traidores, e nos
segundos por serem inimigos. Elas se lançaram depois no meio dos combatentes, e
procuraram arrancar aos romanos os seus escudos e espadas, com as mãos; e os
seus corpos foram sendo aos poucos despedaçados, sem que, até à morte,
perdessem a indomável coragem. Foi assim que, segundo se conta, se desenrolou
a primeira batalha ao longo do rio, a qual foi travada mais devido ao acaso de
que a uma decisão dos comandantes.

XXXV. Os romanos, após
dizimarem a maior parte dos ambrões, voltaram às suas posições quando a noite
já caía; mas o exército não soltou, como era de se esperar após tal êxito,
gritos de alegria e de vitória. Longe de pensarem em beber em suas tendas, de
comer todos juntos em sinal de regozijo, os soldados não se permitiram nem
mesmo o refrigério ansiado por todos os que participam de uma luta bem
sucedida: a doçura de um sono reparador. Ao contrário, passaram toda a noite no
meio de grande medo e perturbação, e isto porque o seu acampamento não estava
ainda nem fechado e nem fortificado. Havia milhares de bárbaros que não tinham
entrado em combate; e os ambrões que
haviam conseguido escapar se juntaram a eles, E, todos juntos, puseram-se a
soltar, durante toda a noite, gritos terríveis, que não se assemelhavam a
queixas ou gemidos de homens, mas a uívos e rugidos de animais ferozes,
entremeados de ameaças e de impropérios. E estes gritos reboavam pelas
montanhas vizinhas e no vale percorrido pelo rio, prolongando-se o ruído
medonho por toda a planície. Os romanos estavam apavorados, e até mesmo. Mário
mostrava-se impressionado, esperando todos para aquela noite uma batalha, a
qual teria se desenrolado no meio de grande desordem; mas os bárbaros não saíram
de seu acampamento, nem. nessa noite, nem no dia seguinte, não tendo feito
outra coisa, nesse espaço de tempo, senão se prepararem para o combate.

XXXVI. Entrementes, sabendo
Mário que acima do acampamento dos bárbaros havia depressões muito profundas e
vales cobertos de florestas, para ali enviou Marcelo com três mil homens,
recomendando-lhe que mantivesse estes silenciosos e emboscados, até o momento
em que os bárbaros se empenhassem em combate com êle, Mário, momento esse em
que deveriam atacá-los pela retaguarda. Ordenou ao resto de suas tropas que
tomassem logo a sua refeição e que repousassem em seguida. No dia seguinte, ao alvorecer, êle as dispôs em ordem de batalha diante das
fortificaçoes e enviou a cavalaria à planície, a fim de atrair q inimigo, para escaramuças, Os teutões,
vendo os cavaleiros romanos, não esperaram que eles atingissem o sopé da
colina, onde poderiam combater sem desvantagem, num terreno plano. Frementes de
cólera, armaram-se com precipitação, e foram atacar o inimigo na encosta.
Mário ordenou então a todos os cavaleiros, por intermédio dos oficiais, que
detivessem a sua marcha, e que esperassem até que os teutões estivessem ao
alcance de seus dardos, quando então deveriam arremessá-los; em seguida, após
desembainhar suas espadas, deveriam ir ao seu encontro, e atacá-los vigorosamente,
enfrentando-os com os seus escudos. Como o terreno era em declive, êle previra
que os golpes a serem desferidos pelos bárbaros não teriam vigor, e a ordenação
cerrada de suas fileiras não se poderia manter; e, não podendo firmar-se no
terreno, seriam facilmente repelidos.

XXXVII. Mário, tão destro no
manejo das armas quanto qualquer outro homem de seu exército, e superior a
todos em audácia, era o primeiro a executar as ordens que dava. Os bárbaros,
contidos pelos romanos, após se esforçarem em vão para atingir as alturas, e
atacados depois vivamente, recuaram, descendo a encosta. As primeiras fileiras,
de ambos os lados, começavam a se empenhar em batalha, na planície, quando,
subitamente, ouviram-se grandes gritos, vindos da retaguarda dos bárbaros, na
qual passaram a reinar a confusão e a desordem. Era Marcelo que tinha escolhido
o momento favorável: mal ouvira o ruído do primeiro ataque do lugar
onde se encontrava, e, pondo a sua tropa em movimento, caiu impetuosamente
sobre o inimigo, soltando, êle e seus soldados, gritos estridentes; e, atacando
as fileiras da retaguarda, dizimou-as. Este ataque imprevisto, obrigando os que
estavam mais perto a se voltarem para sustentar os outros, desorganizou
inteiramente o exército dos bárbaros. Atacados vigorosamente pela
frente e pela retaguarda, eles não puderam resistir a esta dupla ofensiva; e,
derrotados, puseram-se abertamente em fuga. Os romanos, que deram imediatamente início à perseguição, mataram ou aprisionaram mais de cem mil adversários.
Apoderaram-se, além disso, dos carros, das tendas e de toda a bagagem dos
bárbaros, decidindo fazer presente dessa presa a Mário, através de um comum
consentimento, sem qualquer exceção, a não. ser o que tivesse sido porventura
roubado ou pilhado pelo inimigo. E, não obstante tratar-se de um presente
magnífico e de vulto, pareceu não estar à altura do serviço que o general
acabava de prestar à pátria, livrando-a, através da habilidade e capacidade
reveladas no decorrer desta batalha e de toda a guerra, de um tão grande
perigo, pelo que todos se sentiam satisfeitos. Todavia, certos historiadores
não convém em que os despojos dos bárbaros tenham sido dados a Mário, e nem em
que tenha havido um grande número de mortos, como dissemos; dizem no entanto,
que, depois desta batalha, os marselheses cercaram
as suas vinhas com muros feitos com os ossos dos mortos, e que os corpos,
desfeitos pelas chuvas que cairam durante o inverno, tornaram a terra tão
fértil, e a penetraram tão profundamente, que no verão seguinte produziu uma
quantidade prodigiosa de frutos de todas as espécies (1). Este fato veio
demonstrar a procedência das palavras de Arquíloco, segundo as quais nada
fertiliza tanto a terra como os corpos que nela apodrecem. Diz-se também, com
muita verossimilhança, que as grandes batalhas são quase sempre seguidas de
chuvas abundantes, seja porque um deus benevolente envia dos céus água pura
para lavar a terra manchada e poluída pelo sangue humano, seja porque o ar, que
se altera facilmente e experimenta as maiores modificações em conseqüência das
mais ligeiras causas, se condense devido aos vapores úmidos e pesados que se
exalam da decomposição de um grande número de cadáveres   e do sangue
derramado.

(1)    Este fato se
repetiu em 1746 nas planícies de Fontenoy, após a famosa batalha de que haviam
sido teatro no ano anterior.

 

XXXVIII. Após
a batalha, Mário mandou escolher, entre as armas e os despojos dos bárbaros, os
mais belos, os melhor conservados e cs mais adequados a realçar o brilho das
comemorações de seu triunfo; em seguida, ordenou que todo o resto fosse
colocado sobre uma fogueira, oferecendo assim um magnífico sacrifício aos
deuses. Todo o exército cercou a fogueira, ostentando os soldados coroas de louro. Êle
próprio, trajando um manto de púrpura, segundo o costume dos romanos, em
cerimônias semelhantes, tendo numa das mãos uma tocha ardente, ia atear fogo à
fogueira, quando se avistaram ao longe alguns amigos seus, que vinham a cavalo,
em veloz disparada, Fêz-se subitamente um grande silêncio entre os presentes,
pois todos queriam saber quais as novas que traziam os cavaleiros. Logo que
estes chegaram perto de Mário, desceram dos cavalos, e apressaram-se em
abraçá-lo e cumprimentá-lo, anunciando-lhe ao mesmo tempo que êle tinha sido
eleito cônsul pela quinta vez. Entregaram-lhe em seguida as cartas contendo a
notícia de sua nomeação, enviadas de Roma. O alvoroço causado por essa notícia
levou ao cúmulo a alegria que decorria de sua grande vitória. Todo o exército
se pôs a externar o seu contentamento através de gritos de triunfo, os quais os
soldados faziam, acompanhar com o estrépito guerreiro de suas armas; e os
oficiais colocaram na cabeça de Mário novas coroas de louro, após o que, êle
ateou fogo à fogueira, e completou o sacrifício,

XXXIX, Mas a potência que
jamais permite aos homens gozarem tranqüilamente e simplesmente a alegria do
êxito conquistado, que lança tanta variedade na vida humana, através de
vicissitudes contínuas de bem e de mal, chame-se ela fortuna, vingança do
destino, ou então a necessidade natural das coisas terrestres, fêz chegar a
Mário poucos das depois tristes notícias, de Catulo, seu colega, cujo
infortúnio constituiu para Roma novo motivo de terror, e que foi como o aparecimento
de uma nuvem carregada num céu claro e sereno, anunciando nova tormenta.
Catulo, que tinha sido enviado para defender, contra os Cimbros, a passagem
dos Alpes, julgando não lhe ser possível defender os desfila-deiros, pois para
isso seria preciso dividir seu exército em várias partes, o que o
enfraqueceria demasiado, voltou à Itália, e, após atingir o Átese, (1),
construiu dos dois lados deste rio boas fortiíicações, a fim de impedir o seu
cruzamento, bem como uma ponte, a qual lhe permitiria correr em socorro das
praças situadas além do rio, se porventura os bárbaros, após transporem
montanhas, as ameaçassem. Estes bárbaros desprezavam a tal ponto os seus
inimigos, e os insultavam tão abertamente que, sem nenhuma necessidade, e
somente para alardear a sua audácia e ostentar a sua força, expunham-se
inteiramente nus à neve,
escalavam as montanhas através do gelo acumulado; e, chegados ao cume,
sentaram-se em seus escudos, e desusavam ao longo dos rochedos escarpados, no
meio de abismes aterradores.

(1)    Presentemente o rio Âdige.

XL. Finalmente, eles transferiram o seu acampamento para
perto dos romanos, e, depois de examinarem qual a melhor maneira de atravessar
o rio,   resolveram   obstruí-lo   em   determinado   ponto.

Arrasando, como outrora os gigantes, os
cômoros das imediações, desarraigando as árvores, removendo enormes rochedos e
grandes massas de terra, eles tudo levavam até o rio, para estreitar e
estrangular a torrente. Atiraram também, num ponto situado acima da ponte
construída pelos romanos, grandes troncos de madeira. Estes, arrastados pelas
águas, iam de encontro à ponte e abalavam os seus fundamentos. A maior parte
dos soldados romanos, amedrontada, pôs-se a abandonar o grande acampamento,
retirando-se. Catulo conduziu-se como um perfeito general, que prefere à sua
própria glória a de seus concidadãos. Quando viu que não lhe era possível
persuadir seus soldados a ficarem, e que, cedendo ao medo, se retiravam, êle
próprio ordenou ao portador da insígnia da águia que marchasse; e correndo até
as primeiras fileiras, que já se achavam em movimento, colocou-se à sua
frente, preferindo que a vergonha desta retirada recaísse sobre êle e não sobre
a pátria, e que os soldados tivessem o ar, não de quem se põe em fuga, mas de
quem acompanha o seu general. Os bárbaros apoderaram-se da fortificação que
Catulo tinha construído além do rio, aprisionando toda a sua guarnição. Tomados
de admiração pelos soldados romanos, que a tinham defendido com a maior
bravura, e que haviam exposto corajosamente suas vidas pela pátria, eles os
deixaram partir, mediante condições honrosas, depois de jurarem observar
lealmente o seu compromisso sobre o touro de bronze dos bárbaros. Este touro foi capturado
após a derrota que os bárbaros vieram a sofrer, e foi levado, ao que se conta,
à casa de Catulo, como primícias da vitória.

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