Das Principais Vantagens da Deseducação para a Coletividade e para o Indivíduo

Das Principais Vantagens da Deseducação para a Coletividade e para o Indivíduo
THIAGO FELIPE SEBBEN

 

 

Introdução

A proposta desse texto: mostrar as
principais vantagens da deseducação para a coletividade e para o indivíduo, de
modo a valorizá-la como instrumento que permita a afirmação da vida em seu mais
alto grau de importância, incentivando a implantação dessa forma assistemática
de educação. Tal proposta justifica-se pelo entendimento de que a vida digna é
o valor máximo do humano e que qualquer forma de organização e sistematização
social – incluindo suas macroestruturas, como é o caso da educação – que
subleve esse valor é sintoma da decadência humana que assola a cultura
ocidental. Ora, esclarecido o “o quê” e o “porque”, resta saber o “como”. E
aqui adentro no campo filosófico-artístico: o aforismo. Forma da linguagem que
permite a interação entre o objetivo e o subjetivo, entre a filosofia e a
psicologia, entre o racionalmente-construído e o artisticamente-fabricado; o
aforismo tem espaço para o devaneio do autor que enseja imaginações nos
leitores, bem como para conceitos objetivos que estabelecem critérios e
medidas. A opção por tal forma de se fazer conhecimento se dá, certamente, em
consonância com a proposta de experimentar o pensamento, de criar o novo, mesmo
que, num primeiro momento, seja apenas criação teórica.

 

O que é “vantagem”?

Antes de prosseguir, uma pausa –
importante pausa, que nos leva ao estabelecimento de um critério inicial do que
pode se considerar uma “vantagem” e o que não pode. Ora, a vantagem sempre surge
num dado momento da realidade. Isso é justamente a “situação” na qual surge a
“vantagem”, seu plano de existência. É como se existisse um plano de fundo, um
cenário, e dali extraíssemos uma cena na qual se manifesta a vantagem. E ela
possui seus atributos, seus elementos de composição – variáveis especificamente
conforme a situação: o que ela é, para quem ela opera, e mais,
genealogicamente, qual seu sentido e valor. Pensar, então, na situação – como
plano de fundo – e no ajuste dos elementos da “vantagem” – como composição da
mesma – no caso específico da deseducação – ou seja, para que se evidencie as
vantagens da deseducação -, seria criar um critério que tornasse possível a
análise “valor da educação tradicional x valor da deseducação”. A criação dessa
lupa – o critério de “vantagem” – através da qual olhamos para a relação das
formas de educação é a maneira mais eficaz de se afirmar as principais
vantagens da deseducação. Imagine a seguinte situação: a realidade dualística
do mundo enquanto negação da vida na cultura ocidental – na medida em que
valoriza mais a razão especulativa do que a vida como instrumento de sabedoria
-, isso sendo considerado a decadência – pois afirma valores anti-vitais -,
todos os elementos da cultura ocidental se derivam dessa visão de mundo
corrompida – a moral, o cristianismo, a lógica, as ciências positivas, a
filosofia tradicional. Nessa situação, o que seria vantajoso? A vantagem seria
a destruição dos valores anti-vitais e a afirmação dos valores da vida – a
vitória da atividade x reatividade, do original x imitação. Ela operaria em
favor da deseducação que é, justamente, a macroestrutura social da educação
regulada em favor dos valores da vida – a educação pelo e para o ócio. Seu
sentido seria o de uma coletividade que possuísse igualdades nos campos onde
isso fosse necessário – campos político e econômico – e diferenças nos campos
onde isso fosse inevitável – campos filosófico e artístico. O valor dessa
vantagem seria a criação de uma coletividade onde fosse possível e opcional o
vir-a-ser individual, onde a vida se manifestasse como infinitas
possibilidades, combinações e ajustes de forças possíveis; como natureza
multicolorida impossível de ser descrita pelos símbolos conhecidos do
inventário humano, a não ser pelos mais superiores artistas em suas obras
magníficas. Porém, não é menos importante deixar claro que isso que foi
descrito só é “vantagem” – ou seja, uma qualidade do que está adiante ou é
superior – porque a vida é o que consideramos como sendo superior para buscar
conhecimento para… a própria vida!

 

Educando para a Felicidade

A educação encarada como
instrumento de (trans)formação individual e coletiva. Essa instituição, que
transmite valores e molda a compreensão da própria realidade, tradicionalmente
vem sendo utilizada para fins degradantes da vida. O principal deles: formar
para o trabalho. Tanto tecnicamente, ensinando-se o utilitarismo dos
instrumentos de trabalho, como também no modo de viver, através da disciplina
do caráter, a educação tradicional visa formar indivíduos capazes de sobreviver
graças ao seu trabalho. Não que esse não seja papel da educação: proporcionar
ao indivíduo capacidades para a sobrevivência parece ser um papel da educação,
no entanto, o que não parece se enxergar é que essa mesma educação mais parece
uma prisão de espíritos, em que aqueles que almejam a liberdade de pensar,
sentir e fazer suas próprias vontades ficam presos pelos grilhões da moral
petrificada e da cultura de massas. Prova cabal disso são as próprias relações
trabalhistas que, de modo geral, se estabelecem no sistema de vida ocidental: a
escravidão física substituída historicamente pela escravidão psicológica, em
que um indivíduo chega a dispor parte de seu tempo semanal para fazer
atividades que muitas vezes não gostaria de fazer, simplesmente porque as
atividades que ele gosta e sente prazer em fazer – que provavelmente coincidem
com as atividades que ele faz melhor – não lhe proporcionam condições
financeiras de sobrevivência ao modo que deseja. E mais: aquilo que ele deseja
é também fruto de uma avaliação balizada pelos valores da cultura de massa, que
coloca como positivo o consumo desenfreado dos bens. Fica claro que é um
processo de retro-alimentação do sistema muito eficaz: forma-se para produzir e
também para consumir o que é produzido. Mas um olhar atento sobre essa situação
revela um notório erro de organização social: o indivíduo citado não está sendo
aproveitado plenamente pela coletividade em suas habilidades, certamente estará
infeliz e tendendo a estados psicológicos terríveis – como a depressão, a
insônia e o estresse, situações que só deprimem e esvaziam de colorido a
própria vida. Exposto isso, pergunto: como uma coletividade pode ser feliz com
essa organização que parece ignorar os infelizes? Felicidade é certamente algo
subjetivo, no entanto, é também certo que está ligada a algo prazeroso, e o
prazer podemos estimar fisiologicamente em cada ser humano. Existem hormônios
que são liberados naturalmente pelas nossas glândulas em situações de prazer, e
à medida que esses hormônios causam seus efeitos no corpo, esse prazer tende a
aumentar. Talvez a isso se pudesse chamar de uma situação de alegria, mas ainda
assim, várias situações repetidas de alegria – mas não o estado permanente, o
que considero impossível, dada às outras naturalidades fisiológicas de nosso
corpo – poderia ser a felicidade. Então a felicidade advém da experiência de
situações constantes de prazer em nossas vidas, o que ainda não ajuda muito,
visto que ainda assim a felicidade permanece no campo da subjetividade, uma vez
que as experiências que dão prazer variam de pessoa para pessoa. Parece claro,
então, que não adianta a coletividade perder seu tempo tentando padronizar a
felicidade das pessoas com bens de consumo propagados pela cultura de massa e
valores morais tradicionais e estáticos através de uma educação equipada para
propagar essa fórmula. Não sei se foi um mendigo ou um doutor que disse: “não
existe fórmula da felicidade”. Mas quem disse não importa, porque o que foi
dito é perceptível a qualquer ser humano com um mínimo de discernimento entre
seu modo de vida e o do outro.

 

Poder + Liberdade = Ócio

Se não adianta a coletividade
perder tempo na criação ilusória de uma felicidade igual para todos, onde então
investir o tempo para que se tenha uma felicidade coletiva real, fruto da
felicidade de cada ser humano? Na vida digna. Esse modo de vida é mais nobre do
que meramente o sobreviver, pois a pessoa experimenta o ócio. O ócio é o
próprio sentido da vida e seu entendimento enquanto categoria de “vida digna”
revela sua importância. É vida digna porque o ócio possui valor, enquanto
momento do tempo no qual o ser humano é realmente livre para fazer aquilo que
quer. Não confundir o ócio enquanto oposição ao trabalho: a pessoa pode até
querer trabalhar em seu ócio, mas se o fizer, o fará porque quis, não porque
foi obrigado – por questões de sobrevivência no sistema capitalista -, sendo o
trabalho, dessa forma, também uma atividade de ócio. Sobre a vontade, Nietzsche
nos fala que, instintivamente, o que o ser humano quer é tornar-se mais forte e
mais vivo. Dedicando-se à auto-superação criativa e, como conseqüência de um
processo contínuo de auto-superação, o ser humano vem a tornar-se quem ele é.
Através desse fenômeno o individuo obtém prazer, alegria e, em última instância
– caso essa auto-superação criativa seja constante ao longo do tempo – também a
felicidade. Isso é o que Nietzsche chama de vontade de poder, ou seja, o ser
humano possui naturalmente a vontade de poder fazer o que quiser. E isso eu
chamo de liberdade. Ora, todo ser humano quer ser livre. Quando Sartre fala que
somos condenados a ser livres, ele esquece que plenamente livres são aqueles
que possuem condições de ter uma vida digna, desfrutando do ócio, em que a existência
é guiada pelas próprias vontades. Todo ser humano é condenado a ser livre sim,
Sartre, mas não essa liberdade balizada pela moral decadente do trabalho e pela
cultura de massa, à qual denuncio e renuncio em minha existência. Ao
valorizar-se positivamente o trabalho – e chega-se ao ponto de, com a
associação da ética protestante e do espírito capitalista, moralizá-lo – é
negado o acesso gradual de toda a humanidade à vida digna. Fica claro, então,
que o trabalho e a educação que educa em função dele são aparatos sociais que
negam a própria vida. A forma para valorizar novamente a vida é a libertação
gradual do trabalho – através da utilização da tecnologia para isso – e a
educação pelo e para o ócio, para que quando os indivíduos tiverem acesso ao
ócio saibam o que fazer com ele. Essa educação já foi denominada, em outros
idos, de deseducação.

 

Um despertar para o Ócio e a Deseducação

O ócio é magnífico: valoriza a
vida de forma nobre, proporcionando, além da vida, a dignidade: a “vida digna”.
A experimentação do ócio: um verdadeiro degustar o mundo, a realidade, as
interpretações; um frutificar a consciência; um criar-se a si próprio; um
momento no qual o que é desejado é estar em consonância com as próprias
vontades e que essas vontades sejam as vontades tipicamente naturais e que
afirmem a própria existência. Se chamarmos os momentos de nossas vidas nos
quais temos a autonomia de expressar nossas vontades livremente de momentos de
ócio, de vida digna, então é certo que só é feliz quem possui esses momentos.
Não que todos que tenham ócio sejam felizes, isso é para poucos, pouquíssimos,
em verdade! No entanto, todas as pessoas que são felizes o são porque vivem
como querem, vivem conforme suas vontades, vivem no ócio. Portanto, é
necessário que a humanidade adquira a consciência da importância da vida digna
para a vida e para a felicidade múltipla. Se ela prestar atenção, verá que
existem condições para que essa condição seja maximizada, multiplicada: a
tecnologia. Se ela for aplicada gradualmente de modo a substituir o trabalho
humano pelo trabalho da máquina, em pouco tempo teríamos jornadas de trabalho
inferiores a 4 horas/dia, conforme os estudos de Bertrand Russel, e aí o tempo
livre para experimentar o ócio seria grande. Porém, isso ainda não é ócio, apenas
tempo livre – como dito. O ócio só surge quando surge também a maximização da
igualdade econômica, o que poderia acontecer através da implantação de uma
solução política conhecida como “renda básica de cidadania”, aliada ao espírito
cooperativista. Trata-se de criação de um fundo no qual a renda é distribuída
igualmente entre todos os cidadãos envolvidos, sem distinções. Em nível global
e otimizado, seria como se toda a produção da humanidade fosse distribuída
igualmente entre todos os cidadãos. Isso poderia acontecer, ainda, de forma
fracionada, através da conversão das empresas em cooperativas. Logicamente, trata-se aqui apenas de uma idéia, de um esboço, no entanto
afirmo convictamente que o caminho a seguir para valorização da vida é esse. Mas
aí surge a questão: como implantar essa visão dentro de uma cultura decadente
como a ocidental? A resposta: a deseducação. Mas o que é isso afinal de contas,
como funciona, qual o valor da deseducação?

 

Uma espiada em Summerhill

É chegado o momento de olhar para
escolas libertárias, como é o caso de Summerhill. Lá as crianças vão para as
lições quando querem e não por obrigação – a presença -, como é o caso das
escolas tradicionais. No tempo em que as crianças de Summerhill não estão nas
lições, estão experimentando a realidade conforme interesse próprio: brincam,
dançam, constroem, jogam, fazem travessuras, inventam coisas. A criatividade e
a curiosidade, que são as principais características das crianças, se
manifestam livremente. As crianças aprendem quando querem independentemente do
ensino que recebam. Em Summerhill não existe preocupação para formar
trabalhadores para serem absorvidos pelo mercado de trabalho: lá forma-se para
a vida e para a busca da felicidade. Como a felicidade é subjetiva, então que cada
um tenha as melhores condições de vida possíveis de buscar essa subjetividade. Certamente
que essas melhores condições são quando as pessoas têm liberdade de serem elas
mesmas, com o mínimo de coerção e disciplina, com o mínimo de medo e ansiedade.
Os membros de Summerhill, desde alunos das mais variadas idades até professores
e funcionários, se reúnem semanalmente em assembléia para deliberar sobre os
problemas que amadureceram durante esse espaço de tempo. Nessas assembléias
todos possuem o poder de pedir a palavra e argumentar livremente: é o debate
sendo travado, como era na democracia ateniense, por exemplo. Isso faz com que
a escola se adapte ao aluno e não o contrário. Eis alguns princípios da
deseducação experimentados em Summerhill.

 

Ateando fogo na educação tradicional

O temor pelo castigo: é isso que
queremos ensinar às nossas crianças? Se a resposta a essa pergunta for não,
então abandonemos nossos modelos de ensino que são aplicados atualmente, porque
não são esses modelos que vão trazer à tona as vontades mais subjetivas na
trilha que cada um toma rumo à felicidade. Iludido está aquele que acredita na
felicidade vendida pela mídia, felicidade que é vontade de consumo e
concretização dessa vontade. Que desabem todos os pilares que sustentam essa
educação voltada para o trabalho e para o consumo: eduquemos para que cada um
desenvolva sua própria maneira de ser feliz. Vista sob esse aspecto, Summerhill
possui vários casos de sucesso, de grandiosos e notáveis seres humanos. Houve o
caso em que o garoto se formou sem ao menos saber ler, mas tornou-se um
excelente e feliz mecânico. Enquanto as crianças das escolas tradicionais
estavam aprendendo a ler na sala de aula, ele estava aprimorando seus
conhecimentos em mecânica na oficina. Teve um outro que se tornou o melhor camera-man
de uma produtora de filmes: enquanto seus colegas pediam folga, ele ia
trabalhar, pois gostava do que fazia. Só fazia por isso: porque gostava, lhe
dava prazer, sentia alegria. Logo se vê que essa pedagogia libertária, que valoriza
e respeita a vontade de cada um, leva à formação de pessoas que buscam
vir-a-ser quem elas são, agindo conforme suas próprias vontades, expressando-se
de maneira mais autêntica e original. Uma pessoa que tem esse conhecimento e
consegue discernir entre as vontades que lhe dá prazer e as que não –
naturalmente optando pelas primeiras – fatalmente estará mais capacitada a
atingir seu estado de felicidade subjetivo. É esse o valor da deseducação, como
o valor de Summerhill também: através de uma organização coletiva que
proporcione a liberdade máxima da busca pela felicidade, com tolerância a ousadias,
com a plasticidade da moral, criar um ambiente em que seja possível e desejável
a pessoa que molda a si própria na medida em que suas vontades o levem a fazê-lo.
A educação que proporcione o conhecimento para quem quer – e todos os curiosos
por natureza haverão de querer. A educação que educa para que cada um aja
conforme suas próprias vontades – e, ao agir assim, experimente o ócio. A
educação que ensina a conhecer para a vida, na medida em que a própria vida
pede mais conhecimento.

 

Uma cultura de grandes homens: os Super-Homens

Qual é a importância da
deseducação para a coletividade? Ora, enquanto modelo pouco sistemático de
educação – ou libertário -, a deseducação proporciona à pessoa que está nela
submersa uma maior capacidade de decisão, uma maior autonomia de expressar suas
vontades. Sendo essas vontades expressas como aquilo que a pessoa gosta de
fazer e, considerando que existe grande chance da pessoa gostar de fazer aquilo
que ela se sai melhor, é considerável a possibilidade da deseducação entregar à
coletividade indivíduos em suas melhores condições individuais. Alexander
Neill, fundador de Summerhill e grande experimentador da deseducação, costumava
dizer que “criadores aprendem o que desejam aprender para ter os instrumentos
que o seu poder de inventar e o seu gênio exigem”. Quando essas pessoas chegam
ao estágio de desenvolvimento da alteridade, ou seja, quando elas naturalmente
deixam de lado os anseios do ego, buscam se posicionar no coletivo de modo a
utilizar suas criações da melhor maneira possível. E aí todos desfrutam dos
resultados que isso pode trazer. Essa é a cultura que forma grandes homens ou,
para utilizar o jargão nietzscheano, forma Super-Homens!

 

A multiplicação das diferenças entre os indivíduos

A principal vantagem da
deseducação enquanto maneira de transmissão do conhecimento, do saber, é a
criação de uma via de mão dupla no processo ensino-aprendizagem – isso tanto na
esfera do indivíduo como na esfera do coletivo. Essa via estabelece-se quando
notamos que na deseducação não existe emissor e receptor do conhecimento – como
existe no modelo tradicional de ensino: o emissor representado na figura do “professor”
e o receptor na figura do “aluno”. O que existe é um cenário social fomentado
pelo tempo livre e pela noção de ócio e, nesse cenário, fica permitido a livre
troca de informações, conhecimentos e saberes entre os indivíduos, na medida em
que eles próprios queiram fazer isso. Dessa forma, a deseducação não se presta
a ser apenas uma troca de informações técnicas que permitem o trabalho – como é
a educação tradicional. A deseducação é a multiplicação das diferenças entre os
indivíduos, onde cada um ganha a possibilidade de vir-a-ser quem se é através
da expressão livre de suas vontades. Compreender o vir-a-ser cosmologicamente é
compreender a “transformação” como processo vital do fenômeno vida. Dessa
forma, compreende-se também que a consciência de cada um, que é formada através
de uma interpretação constante da realidade, acaba sendo algo plástico,
mutável, flexível por excelência. Com a educação tradicional, que visa a
formação de um determinado “tipo ideal” através da transmissão de selecionados
valores – os da fraqueza, do rebanho, os anti-vitais, anti-naturais, decadentes
-, diminui-se a possibilidade da consciência ser essa coisa plástica, visto que
a consciência acaba sendo construída por critérios e avaliações padronizados –
certa interpretação de mundo “verdadeira”. A inserção do indivíduo numa cultura
com esse tipo de educação só pode resultar na massificação do indivíduo,
resultando também na apatia – as pessoas têm medo de ser quem elas são. E aí se
encontra a necessidade de mecanismos sociais e psicológicos de fuga, como a
valorização do “parecer que tem” e do próprio “ter”, em lugar do “vir-a-ser”. Resta
perguntar: que tipo de coletividade pode existir sendo ela é constituída de um
conjunto de indivíduos descaracterizados, desumanizados? Invoco aqui, uma
imagem – talvez remetendo a certa composição artística do rock: num muro
construído com vários tijolos iguais, começam a surgir rachaduras. Essas
rachaduras, ao mesmo tempo em que diferenciam os tijolos, rompem gradualmente
com o muro. Para quem percebe nessa imagem uma coletividade ruindo em torno das
diferenças individuais, a supressão dessa coletividade – o muro – é inevitável,
a não ser que desejemos continuar sendo rebanho dos valores tradicionais. Aí se
arranja uma massa – algum tipo de ilusão coletiva, como o consumismo, por
exemplo – para disfarçar as rachaduras no muro e mantê-lo em pé. Caso contrário – o desejo seja fortalecer os valores vitais, dos fortes, criativos -, aí
surge a possibilidade de aproveitar cada rachadura nos tijolos para fazer do
muro algo ainda mais original.

 

A loucura da Deseducação

A loucura da auto-determinação, a
loucura do “torna-te aquilo que tu és”, a loucura do “faça o que tu queres pois
é tudo da lei”: a loucura acompanha a deseducação. Isso ocorre porque a
deseducação não é a busca da sabedoria, mas sim o encontro de si próprio, a
busca da felicidade subjetiva. Ela não se baliza por um determinado tipo normal
de indivíduo; ela parte do princípio que cada humano é único e, como tal,
anormal, louco. Em verdade a loucura é, por definição, aquilo que é anormal,
estando, dessa forma, em consonância com uma coletividade formada pela
multiplicidade individual. O diferente e a tolerância para com esse diferente
revela, senão, a maior característica do ser humano: o reconhecimento de outro
ser humano. A partir daí tem-se a supressão do normal, do padrão, do tipo
ideal. Quem toma lugar agora é o indivíduo anormal – aquele que moldou a si
próprio, como o escultor que modela a escultura –, em certa condição de
normalidade: o normal é ser anormal, diferente, resultado de transformação
constante – através da auto-superação criativa – guiada pela loucura. Mas veja
bem: o que importa aqui não é discutir a questão de se o “normal” ainda existe
ou se ele deixou de existir – como bem poderiam questionar alguns filósofos do
entendimento tradicional. O interesse é deixar notável que, a compreensão e
aceitação do indivíduo diferente eleva o “anormal” à um estado aceitável – na
medida em que a sua própria loucura o distingue, bem como entendendo que essa loucura
é resultado da transformação constante rumo ao tornar-se aquilo que se é. A
proposta aqui é deixar claro que a deseducação, ao incentivar a loucura, está
resgatando a possibilidade de cada indivíduo ser único – isso porque na cultura
de massas que estamos inseridos, cultura esta que busca padronizar o indivíduo
dentro de uma compreensão inerte da vida e da própria realidade, é possível
encontrar a visão da não-existência do indivíduo (como Adorno, por exemplo).

 

O poder de poder

Mas a principal vantagem da
deseducação para o indivíduo é lhe proporcionar um conjunto de valores mínimos
necessários para a convivência em coletividade, bem como deixar a mercê de suas
próprias vontades o desenvolvimento de suas habilidades e capacidades. Isso se
dá precisamente porque, quando é dada ao indivíduo chance dele fazer aquilo que
sente vontade, ele fará mais frequentemente aquilo que faz de melhor, pois isso
lhe dá mais poder e lhe faz bem. Trata-se da auto-determinação, da expressão
das próprias vontades, do agir conforme a vontade. Isso é vivenciar a “vida
digna”, é experimentar o ócio, e o ócio é o próprio poder – o poder de fazer
aquilo que se tem vontade ou, em outras palavras, o poder de poder. Nesse
entendimento, o ócio, ao mesmo tempo que é poder, é também liberdade, e aqui se
constitui no melhor estado que um indivíduo pode gozar ao longo de sua vida.
Gozando do ócio, o indivíduo naturalmente criará meios coletivos para que esse
estado seja mantido, e aí frutificam os valores morais e a cultura necessária para
tanto. Seria ingenuidade tentar arriscar qualquer valor moral e qualquer
formato de cultura para que esse estágio seja atingido e mantido, visto que
isso pode variar de sociedade para sociedade. No entanto, cabe arriscar algumas
diretrizes iniciais, conforme a situação que existe no presente. Para isso, é
necessário evidenciar o processo de formação da característica da alteridade
nas pessoas, ou seja, quando a pessoa começa a olhar para seus semelhantes e
reconhecer neles pessoas que deveriam estar com condições de vida digna, de
ócio. Na educação tradicional, a formação da alteridade se dá de maneira
forçada – através da disciplina e da coerção –, muitas vezes atropelando as
necessidades egocêntricas naturais da existência humana. Resultado: essa pessoa
se tornará altera artificialmente e, nas situações que exijam um julgamento do
que mais importa para ela, tomará decisões egoístas. Já na deseducação, a
formação da alteridade se dá de maneira natural, respeitando o ritmo que cada
pessoa tem para desenvolver seus interesses coletivos. Talvez isso até demore
mais a acontecer, no entanto, quando for obtida essa condição – uma vez visto
que, se a pessoa vive em coletividade, ela acabará por se envolver nesse meio
inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde -, a pessoa terá se tornada altera
naturalmente e, quando isso for colocado à prova, o agir com alteridade
acarretará também numa satisfação do ego. É a condição única necessária para
que a busca pela felicidade individual seja também a busca pela felicidade coletiva.
É a chave dos gregos para, a partir do eudaemonion, obter o agathon.

 

A supressão do Estado pelo Ócio

De onde provém o poder do Estado,
cuja meta está além do exame e do egoísmo do indivíduo? Locke e Rousseau
defendem a tese de que é o contrato social que permite o poder do Estado.
Diferentemente desses dois, Nietzsche conclui que é a violência que legitima e
possibilita o Estado, na medida em que o ideal cristão/ascético e a moral
domesticam o ser humano, submetendo-o a um processo de aprendizagem e cultivo
dos valores tradicionais. Isso leva a crer que a maior violência do Estado
encontra-se na escola e nos métodos tradicionais de ensino, como forma de
propagação dos citados valores. Porém, a meta aqui não é pensar “com” Nietzsche,
mas sim “através” dele. Fazer isso nos remete à deseducação. Essa refinada
forma de formação dos indivíduos, que em verdade é transformação constante de
todos os indivíduos ao mesmo tempo – enorme pulsar de vida – permite a
supressão do Estado através da instauração dos valores vitais, naturais do ser
humano – em contraposição aos valores anti-vitais, anti-naturais, que são os
valores tradicionais. Mas aí, surge uma preocupação na cabeça daqueles que
pensam na noção de contrato social: quem irá gerir as desavenças sociais? A
supressão do Estado não poderia gerar uma sociedade minada pela violência
coletiva, o caos extremo, a barbárie? É necessário reconhecer que isso poderia
acontecer – afinal não somos videntes do futuro -, mas a tarefa do pensador é
minimizar essa possibilidade, visto que a violência é atitude que coloca em
cheque a vida de outro ser e, se essa é a sociedade que coloca a vida como
valor primordial, seria desconexo pensar numa sociedade em que fosse permitida
a violência gratuita. A solução é pensar e desejar a sociedade do igual e do
diferente. Igual nos campos onde a igualdade é meta, diferente nos campos onde
a diferença permanece intacta, tangendo o impossível. Igual no poder político
individual, no acesso ao ócio, à cultura, na possibilidade de criar a si
próprio. Diferente nas formas individuais de interpretar a realidade – isso soa
como um pleonasmo, visto que uma interpretação da realidade é sempre subjetiva,
logo, individual -, na consciência de cada um, nos modos de vir-a-ser, no
estilo; enfim, que cada indivíduo seja uma gama única de habilidades e maneiras
de agir. E como essa sociedade do igual e do diferente se coloca como solução
do problema da violência generalizada que poderia existir numa sociedade
anárquica? Para resolver essa questão é necessário notar que a maior parcela da
violência que poderia acontecer nesse cenário, seria uma violência em busca de
interesses econômicos e políticos individuais – ou seja, uma luta pela
maximização da igualdade de condições de vida. Porém, essa luta não seria mais
necessária, afinal de contas, com a supressão do valor do trabalho e exaltação
do valor do ócio – com a tecnologia colocada em seu devido lugar, quer seja,
libertar o ser humano do trabalho – as macroestruturas existiriam em prol do
ócio e isso representaria a igualdade econômica e política. Econômica na medida
em que a economia ocupa-se com o estudo das maneiras de se produzir mais víveres
em menos tempo, bem como garantir a distribuição e o acesso a esses víveres por
todos os humanos, libertando gradualmente os indivíduos para fazerem aquilo que
eles querem – ou seja, a economia existe para promover o ócio. E política na
medida em que os indivíduos poderão exercer o debate livre, sem medo de
repressão por autoridade alguma pelo fato de expressar opiniões diferentes – o
indivíduo é soberano -, bem como através da livre associação com outros
indivíduos através do espírito cooperativista, no sentido de algum interesse em
comum que os una politicamente. O Estado seria suprimido e exorcizado da história,
o medo pela anarquia destrutiva seria aniquilada: eis o ócio exercendo sua
força. Ora, para tudo isso o primeiro passo é a implantação de uma educação no
sentido da deseducação, como forma de incluir esses valores na cultura – repito:
os valores vitais, naturais. E vejam bem se isso não é uma grande vantagem da
deseducação para a coletividade: a supressão do Estado, da autoridade.

 

Cultura x Estado

O entendimento da realidade como
embate de forças pode proporcionar um instrumento vital ao filósofo: a experimentação
do pensamento. Isso se dá, precisamente, quando se olha para um embate de
forças e percebe-se que o interessante não é ver a força vencedora, mas sim
perceber a melhor regulagem desse embate – conforme o sentido que quer se dar.
Cabe notar – sobre o sentido – que ele é caminho por onde se trilha, e não o
fim ao que se chega, porque pensar em um fim é desconhecer a cosmovisão do
vir-a-ser. Ao se pensar num “sentido” e não em um “fim”, o pensamento adquire
movimento, pois agora ele aceita a hipótese da transformação durante o caminho
– não sendo absolutizado através de um “fim ideal”. É necessário observar,
ainda, que o “sentido” possui uma tendência considerada “natural” e que ela
pode ser potencializada se assim for desejável. Essa tendência natural foi
identificada como sendo a auto-superação criativa, isso porque todo ser vivo
quer superar-se, quer mais vida. A proposta aqui é justamente colocar o valor
da vida como central para a humanidade – a naturalidade dos embates de força.
Então, sobre o embate da Cultura x Estado, a pergunta é: qual a melhor
regulagem dentre essas duas forças seria a melhor para a afirmação da vida
através do fomento aos tipos superiores de seres humanos? Ora, a resposta a
essa pergunta nos leva a descartar o Estado e ficar somente com a Cultura. Qual
o valor do Estado enquanto instituição que cristaliza valores em leis enquanto
que esses valores são criados dentro da Cultura? É como se existisse um plano
originário de valores – a cultura – e outro plano reflexivo de valores,
refletindo os valores do plano originário – o Estado através das leis.
Destruído o Estado, alguns podem pensar que seja necessário planejar um
mecanismo que seja eficiente na transmissão dos valores através das gerações
para manutenção da moral e, com isso, da possibilidade do convívio social.
Porém, esse mecanismo já existe – basta ser posto em prática: é a deseducação.
Ela é justamente a percepção que não há necessidade do citado mecanismo
“transmissor de valores”: a deseducação é o fomento para que cada um crie seus
próprios valores. Ela é a compreensão de que a vida é transformação constante e
de que os valores também poderiam se comportar assim – num vir-a-ser eterno.
Destruída a necessidade do citado mecanismo, então, o melhor dentro da perspectiva
de afirmação da vida e fomento aos tipos superiores de humanos, seria o estado
anárquico – sem governo e sem educação padronizada. Tal cenário permitiria que
a cultura fosse o plano em que toda a criatividade, a originalidade individual,
a espontaneidade coletiva e a difusão dos valores acontecessem. A Cultura é o
multiplicador dos tipos superiores por excelência: basta coloca-la nesse
sentido. E aqui não se trata de um vencedor no embate Cultura x Estado, mas sim
na regulagem da força-cultura ao máximo e da força-estado ao mínimo.

 

A supressão da Moral pelo Ócio

Partindo-se da seguinte questão:
“o que permite o convívio em sociedade?”, podemos inferir a resposta como sendo
a moral: os valores compreendidos em forma de leis ou de tradições culturais,
transmitidos através de gerações, os quais são desejáveis para a formação de um
“tipo ideal” de indivíduo e pelos quais esse mesmo indivíduo é julgado pela sua
conduta. Essa tábua de valores absoluta possui um problema: por ser considerada
verdadeira e melhor, ela não é colocada em questão – na realidade esquece-se de
encarar os valores que estão sendo transmitidos dentro de uma sociedade. Porém,
esses valores devem ser colocados em favor da vida, da afirmação dela. E isso
seria considerar a criação e disseminação de valores de forma espontânea e
difusa na sociedade. Não é o que se observa com a prática do sistema moral: os
valores não são criados, eles são apenas reproduzidos. Já com o ócio, a
multiplicidade de valores será tanto mais elevada quanto mais humanos criativos
e com vontade de auto-superação tiverem por aí. E, naturalmente, esses
indivíduos assumirão uma posição de respeito – pelos que com seus valores
concordarem, ou seja, por aqueles que possuem instinto reativo e não conseguem
ou não querem criar seus próprios valores – dentro da coletividade. Esses são
os líderes, os criadores, os grandes homens: os transvaloradores de todos os
valores, tal qual Nietzsche gostaria que fossem chamados. Não que seja
necessário a criação de um cargo estatal com esse nome e essa função, a ser
ocupado por esses indivíduos: isso aconteceria num estado anárquico. Mas que
valor possui esse ócio: destruidor da Moral, supressor do Estado, colocador do
Trabalho e da Tecnologia em seus devidos lugares, valorizando o que existe de
natural na vida e, o mais importante, semeando a Cultura dos grandes homens!

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