Filosofia Renascentista

filósofo renascença

NOÇÕES DE FILOSOFIA – Padre Leonel Franca (1918).

CAPITULO IV

QUARTO PERÍODO

ARTIGO I – RENASCENÇA

93. FILOSOFIA DA RENASCENÇA — Os ataques contra a filosofia das escolas alastraram-se por toda a Europa, assumindo a feição de uma verdadeira ofensiva geral. O movimento de idéias, conhecido pelo nome de Renascença (80) e caracterizado na literatura e nas artes por um esmerado cultivo da forma e por uma admiração exageradamente entusiasta da antigüidade paga, apresenta-se em filosofia como uma reação hostil, cega e violenta contra as tendências medievais. Por toda a parte, os filósofos, mediocridades, na maioria, de pequena envergadura, não fazem senão impugnar, criticar e destruir as antigas doutrinas, sem vingar construir uma síntese duradoura. A desorientação geral do pensamento é manifesta. Uns deprimem sem critério a autoridade de Aristóteles, outros sobremaneira a elevam. Estes exaltam a fé a ponto de descrerem da razão, aqueles divinizam a razão, renegando a fé; alguns, enfim, para conciliarem os desvios da inteligência com as exigências da ortodoxia recorrem à esdrúxula teoria das duas verdades (81). Em tudo há falta de unidade, exagero, excesso (82).

Para facilitar o estudo desta quadra agitada, dividiremos em quatro grupos principais os filósofos que nela floresceram: humanistas e helenizantes, que reuniremos num parágrafo, naturalistas e juristas. O cetismo que apareceu no fim da Renascença será estudado no último parágrafo.

(80) O termo Renascença não indica, como alguns parecem querer insinuar, a renascença da inteligência e dos estudos; significa, apenas, a renascença das influências literárias e artísticas da antigüidade paga.

(81) Por sumamente perniciosa à religião e multo em voga neste tempo foi a teoria das duas verdades condenada pelo VI Concilio de Latrão (1512): Cumque verum vero minime contradicat, omnem aasertionem veritati ülumínatae jidei contrariam omnino falsam esse definimus.

(82) "En réalité, cette époque médiocre ne compte aucun homme de génie que l’on puisse mettre en parallèle avec les grande philosophes de l’antiquité, du Moyen Age et des temps modernes: elle n’a produit aucun monument durable, et, si on la Juge par ses oeuvres, 11 y a des motifs d’être sévère pour elle". V. Cousin. (83) Fit. Bouillier, Notions d’histoire de la philosophie, p. 135.

§ 1.° — Humanistas e Helenizantes

94. HUMANISTAS — Os humanistas, de preferência, filólogos e literatos, combateram a escolástica em nome do bom gosto artístico. A linguagem sóbria e singela dos doutores medievais destoa–lhes aos ouvidos afinados pelos períodos numerosos de Cícero. A dialética de Aristóteles querem substituir as instituições retóricas de Túlio e de Quintiliano. Afigura-se incompreensível a esses refinados cultores da forma que sob frases tão barbarissonantes se pudesse ocultar um pensamento profundo e robusto.

Entre os humanistas antiescolásticos são dignos de menção: Lourenço Valla (1407-1457), autor das Dialecticae disputationes contra aristotelicos; Erasmo (1467-1536), que se diverte em acerar epigramas contra a escolástica, num latim elegante; Pedro de la Ramée (Petrus Ramus, 1515-1572), que aos 21 anos chegou a sustentar em tese pública não se encontrar em Aristóteles uma só proposição verdadeira. Pereceu na noite de S. Bartolomeu às mãos de peripaté-ticos fanáticos. Sua reforma filosófica concerne, sobretudo, à lógica. Mas "il jaut bien reconnaître aujourd’hui que ses attaques contra la logique, la physique et la métaphysique d’Aristote sont plus pas-sionnées que profondes, qu’il n’a rien laissé qui put prendre place de se qu’il attaquait et que sa réforme est plutôt littéraire et morale que philosophique (83).

95. HELENIZANTES — Sob o nome de helenizantes compreendemos todos os que procuraram repristinar, em sua forma primitiva, alguns’ dos sistemas da antigüidade.

O êxodo dos sábios gregos vindos do Oriente, sobretudo depois da queda de Constantinopla (1453), suscitou, na Itália, universal entusiasmo pela cultura clássica da Hélade. Com a forma antiga re-vivesceram também as antigas idéias e todos os astros da filosofia grega, ainda os de 2.a e 3.’ grandeza tiveram então os seus satélites.

O platonismo, implantado pelo grego Jorge Gemistos (Plethon, 1355-1450), reviveu em Florença sob a proteção dos Medicis. Na capital toscana ensinaram também Marsilio Ficino (1433-1499), que traduziu em latim elegante os diálogos de Platão e Pico della Mi-randola (1463-1494), que blasonava de poder disputar de omni re scibili, tido por seus contemporâneos como um prodígio de memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas!

O platonismo florentino é mais um neoplatonismo desfigurado do que a exposição genuína das doutrinas de Platão, em quem seus modernos discípulos mais admiravam o artista que o pensador.

O Cardeal Bessarione (1403-1472), mais sensato e moderado, esforça-se por harmonizar Platão e Aristóteles.

O aristotelismo teve também seus adeptos. Estes, porém, menosprezando a interpretação escolástica, inspiraram-se em Alexandre Afrodísio e Averroes. Daí dois grupos de peripatéticos: os ale-xandristas dominantes em Bolonha e representados por Pedro Pomponazzi (1462-1524) e Julio Cesar della Scalla (Scaligero, 1484–1558) e os averroistas superiores em Pádua, onde ensinaram Alexandre Achillini (1463-1518), Augustino Niphus (1473-1546) e Zimara (1460-1532).

Pelas suas doutrinas espúrias, pela aversão ao progresso das ciências experimentais (34) e pelo servilismo intelectual em seguir a autoridade de Aristóteles foram os peripatéticos da Renascença dos que mais comprometeram a causa do aristotelismo puro e, portanto, da escolástica, mais tarde, na sua totalidade, injustamente envolvida no desprezo por eles bem merecido.

O estoicismo encontrou um repristinador na Bélgica em Justo Lipsio (1547-1606) e o epicurismo, temperado por idéias cristãs, outro, mais tarde, em França, na pessoa do sacerdote Gassendi (1592-1655), adversário das doutrinas de Descartes, seu contemporâneo.

Até a cabala (85) nesta época de fervoroso e inconsiderado entusiasmo pela antigüidade, teve seus cultores e admiradores. Eram quase todos médicos os que assim por meio das ciências ocultas buscavam desvendar os mistérios da natureza. Entre os novos caba-listas são dignos de memória: João Reuchlin (1445-1522), Agripa de Nettesheim (1487-1535), discípulo do precedente, Paracelso (1493-1541) e Jerônimo Cardano (1501-1571).

(84) De Cremonini, aristotéllco paganizante e de Melanchton. luterano, narra-se que recusaram olhar ao telescópio, não fosse caso devessem renunciar às teorias físicas de Aristóteles. Destes, com razão, lamentava-se Galileu "que preferiam negar obstinadamente o que viam no céu da natureza, a introduzir qualquer modificação no céu de Aristóteles". Nesta oposição às ciências experimentais nascentes assinalaram-se também quase todos os chefes da Reforma. Lutero ridiculariza a teoria de Copérnico, considerando-a como vã invocação (Initia physices). Melanchton trata-a de absurda e ímpia, contrária às Escrituras, afirmando ainda que os magistrados eram obrigados a proibi-la. Para esquivar-se às importunações e acintes dos seus correligionários, os teólogos protestantes de Tubinga, houve Kepler de deixar a Alemanha e estabelecer-se em Praga, sob os auspícios do Imperador católico. No entanto, certos historiadores só parecem conhecer o decreto da Congregação romana de 1616 contra Gallileu, para fazer dele um lugar comum de rançosas e estafadíssimas declamações contra a Inquisição e o catolicismo.

(85) A cabala — Kabbalah, tradição — é uma doutrina secreta dos judeus, conservada e transmitida pela tradição. Sua origem remonta, segundo eles, a Adão ou Abraão Moisés deixou-a exarada obscuramente no Pentateuco, onde deve ser lida com o auxilio de uma arte especial — arte cabalística — aue hão passa de uma engenhosa combinação de números e letras. Assim, por ex., do fato de começarem os nomes de David e Messias com as letras dem contidas no nome de Adam inferem que a alma do primeiro homem transmigrou para David e para o Messias. As doutrinas teóricas da cabala, escritas mais tarde nos dois livros Sepher Iezirah (livro da criação) e Sepher Hazzohar (livro da luz) resolvem-se num panteísmo evolucionlsta muito semelhante ao neoplatonismo no qual, por Isso, quiseram alguns filiá-los. Outros pensam que neoplatonismo e cabala se originam duma fonte comum — alguma filosofia oriental mais antiga.

 

§ 2.° — Naturalistas

96. A estas tentativas baldadas de rejuvenescer filosofias envelhecidas, vem unir-se uma outra corrente de reacionários que tentam uma construção original, baseada na observação da natureza. Estas novas idéias vêm à luz principalmente na Itália e seus representantes são:

BERNARDINO TELESIO (1508-1588), que se dedica ao estudo das ciências naturais, combatendo as teorias físicas de Aristóteles e procurando explicar todos os fenômenos da natureza por meio de duas forças — calor e frio — princípios ativos que êle opõe à matéria e forma dos peripatéticos. Sua física é, em última análise, um empirismo naturalista.

TOMÁS CAMPANELA (1568-1639), dominicano, continuador do sensismo de Telésio, acrescenta aos trabalhos físicos de seu predecessor uma política ou teoria ideal do estado, análoga à "Republica" de Platão, e cujos princípios fantásticos são expostos na Civitas Solis. Apesar do seu sensismo, demonstra a existência de Deus na obra Atheismus triumphatus.

Tumultuaria e aventurosa em muitos pontos, a obra de Campanela encerra não poucas idéias aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias teorias, atribuídas depois a Descartes e Bacon.

Muitos dos naturalistas da Renascença, mesclam, de freqüente, aos fatos observados, teorias astrológicas, cabalísticas, mágicas e al-quimistas. Esta predileção pelas ciências secretas e pelo ocultismo aparece mais pronunciada em:

Theofrasto de Hohenheim, mais conhecido com o nome de Pa-racelso, teósofo e iluminista que tentou reformar a medicina e nas suas pesquisas sobre a pedra filosofal fêz algumas descobertas químicas; João Batista Van Helmont (1577-1644), que pretendeu haver descoberto a panacéia universal e depois de professar vários erros retratou-se, morrendo como bom católico.

GIORDANO BRUNO (1548-1600) faz parte dos naturalistas italianos, mas distingue-se dos precedentes por suas idéias panteístas. Enquanto Telésio e Campanela salvam a distinção entre o finito e o infinito, Bruno identifica a divindade com a substância do universo. Todos os fenômenos não passam de uma manifestação, de uma externação desta força única, alma do mundo, imanente na matéria e com ela identificada (David de Dinant) .

Pessoalmente, Giordano Bruno, ex-frade dominicano, foi uma alma tempestuosa, um espírito turbulento, que viajou por quase toda a Europa, malquistando-se com todos. Seu estilo é extravagante e indecoroso, descendo não raro ao calão vulgar (86). Delatado à Inquisição, foi, depois de um processo de 7 anos, condenado e executado em Roma (1600).

Dele disse Hegel: Bruno tem no seu caráter um não sei que de bacante.

(86) Assim, por exemplo, chama aos doutores católicos "somari dalle grosse labbra e mascelle pieni de sovraumana aslnitá e pazzia".

§ 3.° — Juristas. Filosofia social

97. A revolução profunda nos costumes e nas instituições políticas dos estados europeus e o conhecimento mais exato das formas de governo da antigüidade clássica deram na Renascença novo e vigoroso impulso aos estudos de direito social.

Na ITÁLIA, Nicolau Machiavelli (1467-1527), secretário e historiador da república florentina, expôs na obra Il Principe (1513) uma teoria, segundo a qual o Estado é o bem soberano a que se devem sacrificar todas as coisas e em cuja conservação, desprezadas as considerações de ordem moral, se podem, licitamente, empregar todos os meios (87). É a entronização do deus-estado e a proclamação impudente de que o fim justo legitima o emprego de todos os meios.

Na INGLATERRA, S. Tomás More ou Morus (1480-1535) Grande Chanceler do Reino, na conhecida obra De optimo reipublicae statu, deque nova insula Utopia, bosquejou o plano de um estado ideal no gênero da República de Platão, imitado no Civitas Solis de Campa-nela. Morus morreu mártir da fé, sacrificado ao despotismo cismá-tico de Henrique VIII.

Na ALEMANHA, João Althusius (1557-1638), na sua Política methodice digesta, atque exemplis sacris et profanis Ilustrata, defendeu a soberania inalienável do povo e fundou a origem da sociedade num pacto tácito ou explícito (contrato social) ditado pelas exigências da nossa natureza social e inspirado pelo sentimento de mútua simpatia. Pouco antes, Melanchton (1497-1565) havia ensinado a teoria do direito divino dos reis, pressurosamente acolhida pelos príncipes e soberanos protestantes e vitoriosamente impugnada pelos publicistas católicos, nomeadamente por Suarez e Belarmino.

O que, porém, mais se distinguiu nesta ordem de estudos foi Hugo Grócio ou de Groot (1583-1645), holandês, que além de poesias sagradas e vários trabalhos de teologia e exegese religiosa, escreveu o célebre tratado De jure belli et pacis (1625).

Segundo Grócio, existe uma lei natural, expressão da vontade suprema do Criador, manifestada pelo estudo racional da natureza humana. Sobre esta base imutável e universal se funda todo o direito positivo. A sociedade origina-se espontaneamente da natureza social do homem, em virtude dum contrato primitivo, implícito ou explícito. As relações internacionais são regidas por disposições decorrentes imediatamente do direito natural.

Grócio, ao que parece, foi um protestante bem intencionado que trabalhou em reconduzir os seus correligionários ao seio da Igreja católica, na qual veio a falecer. Conheceu as doutrinas escolásticas e as obras de Suarez a quem tributa louvores excepcionais. Por muitos é tido como o fundador do direito internacional moderno. O título é exagerado. Porque, como bem observou Gonzalez (88), não se encontra em Grócio questão importante que já não houvesse sido amplamente tratada por S. Tomaz, Vitória, Molina, Soto e Suarez. O seu merecimento foi reunir estas questões esparsas num corpo de doutrina, codificando em sistema completo as principais teorias da filosofia social.

(87) "Perché dove si delibera al tutto della salute della pátria, non vi debbe cadere alcuna considerazione nè di giusto nè d’Inglusto, nè di pietoso nè dl crudele, nè di laudabile, nè de ignominioso anzi posposto ogni altro rispetto segulre al tutto quel paitito che gli salvi e mantengale la liberta". Opere, t V., p. 166-67.

(88) Gonzalez, Histoire de la Philosophie, t. III, paragr. XXII.

§ 4.° — Ceticismo. Conclusão

98. CETICISMO — Anunciando a bancarrota da filosofia da Renascença, veio o ceticismo pôr termo a este período turbulento de transição. Como conseqüência das contradições de sistemas vacilantes e inconsistentes e prelúdio de uma nova era já o encontramos nos sofistas do primeiro período da filosofia grega. Os que na aurora dos tempos modernos mais refletem este estado mental de dúvida e ansiedade são: Miguel de Montaigne (1533-1592) que segue as pisadas de Pirro, Pedro Charron (1541-1603 ( e Francisco Sanchez (1552-1623), português, autor do livro De multum nobili et prima universali scientia quod nihil scitur.

Mais tarde, Pascal e Daniel Huet revelam também demasiada desconfiança no poder natural da razão. Insistindo nas contradições dos sistemas filosóficos, deprimem sobremaneira a inteligência para erigir a fé, em fonte única de certeza (fideísmo).

99. CONCLUSÃO — O movimento intelectual da Renascença, útil talvez às letras e às artes (89), à ciência e à filosofia, foi funesto; à ciência, porque envolveu o estudo e a observação da natureza nos labirintos da astrologia, alquimia, cabala, magia e ocultismo; à filosofia, porque interrompendo bruscamente a continuidade do pensamento filosófico privou a idade seguinte dos trabalhos dos antigos pensadores, cujas doutrinas adaptadas às novas circunstâncias e reformadas nos pontos em desarmonia com as descobertas recentes poderiam ter evitado desvios fatais na história do pensamento.

No fim do século XVI, o estado deplorável a que por toda a parte chegara a especulação filosófica clamava insistentemente por uma reforma.

Ε a reforma veio. No campo dos estudos experimentais Copérnico, Kepler, Newton, Torricelli e, sobretudo, Galileu enveredaram a ciência pelo seu verdadeiro caminho. No campo especulativo, Bacon e Descartes, posto com orientação diferente, inauguraram uma nova época na história da filosofia.

BIBLIOGRAFIA

— R. F. Arnold. Die Kultur der Renaissance, Leipzig, 1914; — F. Oloiatx, L’anima dell’umanesimo e del rinascimento. Milano, 1924; — E. Tpoilo, Bernardino Telesio, Modena, 1911: — G. Gentile. Β. Telesio. Bari, 1921; — Blanchet, Campanella, Paris, 1920; — M. Rossi, T. Campanella, metafísico. Firenze, 1921; — Previti, Giordano Bruno e i suoi temni, Prato, 1887; — Ε. Troilo, La filosofia di Giordano Bruno, Torino. 1907: — P. Mesnard, L’essor de la philosophie politique au XVI siècle, Paris, 1936.

(89) A Renascença, opina Augusto Comte, foi "uma alteração notávelvemente qualificada de regeneração das belas artes, e, que a muitos respeitos, constituiu mais que tudo uma tendência retrógrada, visto inspirar uma admiração muito servil e exclusiva das obras primas da antigüidade, pertencentes a um sistema de sociabilidade inteiramente diverso". Course de Philosophie positive, t. VI, p. 173. Por um crítico eminente, assim foi julgada a influência da Renascença: "La Renaissance en Franca ne fut qu’une invasion; elle s’imposait, elle n’était pas acceptée par les artistes; son résultat le plus clair fut d’éloigner chaque jour davantage la masse de la population du domaine des arts; au contraire, pendant la période brillante du Moyen-Age, l’art pénètre les masses Jusque dans les couches inférieures". Viollet-le-duc, Entretiens sur l’architecture, p. 1.

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