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Continued from: Invasões e Guerras na Idade Média - História da Civilização

Os prenuncios da Reforma

O espetáculo nada tinha de edificante, com essa dualidade pontificai. Experimentou-se regular a pendência. Diz-se que, tendo as faculdades da Universidade de Paris solicitado sugestões a respeite, receberam 10 000 comunicados, recomendando acima de tudo um concílio ecumênico. O concílio de Pisa (1409) não logrou entretanto harmonizar as facções apesar de depor os dois papas e eleger um terceiro: o resultado foi apenas haver três papas em vez de dois. O concílio de Constança foi mais afortunado no seu intento de restabelecer a unidade católica, conseguindo eleger Martinho V, italiano (1417). A paz só voltou porém definitivamente com a eleição de Nicolau V em 1449, tendo a Igreja sofrido tanto na sua disciplina com semelhante divisão que entraram a aparecer os pruridos de reforme religiosa sobretudo suscitados pelos costumes do clero, corrompido pelo fausto e pela depravação.

Pedro Álvares Cabral
Retrato do livro Barão e Donas

Observação náutica do século XVI
Gravura de J. Stradanus

 

Infante dom Henrique
O Infante dom Henrique consulta seus cosmógrafos e mareantes sobre o rumo futuro. Quadro de Sousa Lopes.

Wycliffe

Na Inglaterra Wycliffe (1324-1387), professor de Oxford, preconizou no século XIV quanto o protestantismo trouxe no século XVI, tradu zido a Bíblia para inglês e atacando a supremacia dos papas, a transubstanciação, o culto dos santos, a confissão auricular e os votos monásticos. A reação foi cruel, passando no Parlamento uma tal (1401), que estatuía a pena da fogueira para as pessoas que fôs-sem reconhecidas culpadas de heresia pelos tribunais eclesiásticos, ficando assim oficialmente estabelecida semelhante punição para as dissidências religiosas.

João Huss

As mesmas idéias foram pregadas na Alemanha por João Huss, sacerdote e reitor da Universidade de Praga, o qual, julgado pelo concílio de Constança e não querendo retratar-se, foi, não obstante o salvo-conduto imperial de que se munira, queimado vivo em 1415. Igualmente o foi no ano imediato seu discípulo Jerônimo de Praga, abrindo-se a cruzada, que durou 15 anos, contra esses heréticos que tinham pegado em armas.

Era já o levantamento das inteligências contra os abusos e desvios dos homens que mal serviam a uma instituição representativa de uma doutrina sublime, mas que, pelos erros cometidos na sua aplicação, mostrava necessidade de purificar-se e deste modo recobrar novo alento. Em concílios como o de Basiléia, em 1431, a oposição entre papa e prelados foi tal que nada se pôde resolver no tocante às heresias. A indisciplina comprometia o futuro tanto da instituição como da religião.

A rivalidade franco-inglêsa. Tendência para a unificação política

Na Idade Média teve início uma rivalidade política que foi responsável por muito sangue derramado no Ocidente europeu: a da França e da Inglaterra, esta pretendendo ser potência continental, aquela unificar seus domínios e ambas mais tarde estabelecerem um império colonial que outorgasse o caduceu comercial. A tendência centralizadora é de resto característica da segunda fase da Idade Média, menos na Alemanha, onde a ficção do império romano permitiu que se robustecesse o sistema feudal através das muitas lutas por ele acarretadas, pela falta até o século XVIII de um núcleo con quistador e forte dentro dessa sociedade; e também na Itália, onde o instinto nacional teve que lutar durante séculos contra o esfacêlo político que aquele mesmo império produzira.

Fac Símile de uma edição de John Huss
Fac Símile de uma edição de John Huss

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Movimentos centrípeto e centrífugo na Alemanha e na Itália

Em ambos estes países o sentimento particularista robusteceu-ao ponto de parecer tornar-se essencial mas a língua comum e a cultura intelectual foram agindo desde então no sentido da conver gência espiritual e portanto da formação de uma consciência patrio tica. Na Alemanha os Minnesaenger não foram além dos seus Lieder ou canções de amor, mas a Itália produziu, afora os acabados sonetos líricos de Petrarca (1304-1374), que foi o primeiro dos humanis tas admiradores da cultura clássica, a Divina Comédia de Dante (1265-1321), na qual palpita toda a alma medieval com suas crise de uma ardente espiritualidade.

Petrarca e Dante

Dante era gibelino, isto é, partidário da autoridade imperial alemã na península itálica, como garantia da ordem pública: por isso foi até expulso de Florença em 1301. Desta ou daquela forma estava em jogo a unidade política, pelo que a Itália inteira comunga nesse poema. Praticamente mesmo houve mais de uma tentativa de união das cidades e Estados da península nos séculos de maior confusão. A mais romântica foi a de Rienzi, tribuno de Roma em 1347, quando o papado se achava em Avinhão e os sequazes dos nobres se batiam nas ruas da velha metrópole, fazendo valhacouto das suas ruínas.

Dante e Vergílio perseguidos por demônios no inferno. Desenho de Boticelli.
Dante e Vergílio perseguidos por demônios no inferno. Desenho de Boticelli.

Rienzi tribuno de Roma

Rienzi reviveu as tradições dos Gracos, revoltando a plebe contra as tropelias dos patrícios. A república romana tornou-se com êle à frente uma realidade, imperando a ordem e a segurança e chegando a renascer o entusiasmo democrático. Rienzi, ajudado por Petrarca, procurou induzir os governos da península itálica a se fundirem numa grande república, una e livre; mas sua própria grandeza o traiu e assaltou-o a vaidade, morrendo às mãos da população que o aclamara, excomungado pelo papa e combatido pelos nobres.

A comunidade florentina e os Médicis

Florença oferece o resumo típico da evolução de uma comunida-de italiana. Dilacerada entre partidários do papa e do imperador, origiu-se em república democrática pela expulsão dos gibelinos em 1258. O poder executivo era exercido pela Senhoria, conselho formado pelos representantes não nobres de cada profissão, depois de estabelecida a igualdade entre as profissões liberais (artes maiores) o as profissões mecânicas (artes menores). A Senhoria elegia o gon-faloneiro supremo, que exercia o comando. Esta dignidade caiu afinal, após contínuas revoluções, nas mãos do banqueiro Silvestre de Médicis (1378), cujos descendentes não mais se desprenderam do cargo, antes substituíram a república florentina pelo grão-ducado da Toscana (1569), confirmado pelo papa Pio V.

Savonarola

Os Médicis foram grandes protetores das artes e das letras e aumentaram o domínio de Florença, submetendo Pisa, adquirindo Li-vorno dos genoveses, sustentando guerras felizes e desmanchando conspirações infelizes. No fim do século XV, Savonarola, dominicano ardente, pretendeu pôr cobro às dissenções políticas da Itália derrubando os Médicis, e reformar os costumes do clero, mas tão austero e severo se mostrou, que foi queimado como herético com aplauso do povo.

Tiranos e condottieri

Da mesma forma que os Médicis em Florença, os Visconti e depois os Sforza em Milão, os Scala em Verona e Mantua, os Este em Ferrara e Módena, tornaram a autoridade executiva, hereditária nas suas famílias, autoridade tanto mais absoluta quanto mais anárquica fora a situação da qual ela saiu. Na impossibilidade de obter quem as governasse com isenção dentro das facções que se digladiavam no seu seio, as comunidades contratavam às vezes um chefe estrangeiro — um podestà — para vir governá-las temporariamente com honestidade e imparcialidade pelo menos relativas. Outras vezes as comunidades engajavam bandos mercenários às ordens de condottieri e compostos de aventureiros sem fé nem lei para combaterem por elas. Entre França e Inglaterra já era porém uma luta de nações.

Os feudos do rei de Inglaterra em França

Guilherme o Conquistador, mesmo depois de rei de Inglaterra, continuou, como duque da Normandia, a ser no continente vassalo do rei de França, e este apanágio da dinastia inglesa aumentou consideravelmente quando subiu ao trono o primeiro dos Plantagenets, Henrique II, conde d’Anjou (1154-1189), bisneto de Guilherme e que desposara Eleonor da Aquitânia, esposa divorciada de Luís VII de França. Da metade ocidental da França ficou assim o rei de Inglaterra senhor feudal; mas não tardou que Filipe Augusto conseguisse arrancar em seu proveito a Normandia, o Maine e outras partes da França setentrional. Para isto se valeu, depois de morto Ricardo Coração de Leão num cerco em França, da recusa de seu irmão e sucessor, loão Sem Terra (1199-1216), de comparecer perante seus pares para responder pela grave acusação do assassinato de seu sobrinho e herdeiro legítimo da coroa, Artur da Bretanha.

O destino británico

Historiadores há que julgam ter sido uma fortuna para a Inglaterra aquele despejo, pois que ela corria o risco de ficar com um papel secundário no continente, ao lado do que lhe reservava a imensidade dos mares, associado com a sua prudente política de favorecer as lutas do continente, de forma a combater sempre o predomínio excessivo de qualquer nação.

A Magna Carta

No reinado de João Sem Terra passou-se um acontecimento da maior relevância para a história das liberdades britânicas, de fato para a evolução do direito constitucional. Foi a concessão da Magna Carta, que os barões e o clero compeliram o indigno e pérfido monarca a assinar, garantindo as franquias existentes, entre outras a de se não pagar o resgate do serviço militar senão por ordem do conselho do reino, o que acabava com o arbitrário em matéria de impostos e de subsídios, e a de não se poder ser privado da liberdade nem dos bens senão por julgamento legal ou pela lei do país, nunca pelo capricho das autoridades.

A Câmara dos Comuns

Nem sempre a Magna Carta foi respeitada, mas foi sempre invocada como salvaguarda e neste caso com êxito. No reinado do filho e sucessor de João, Henrique III (1216-1272), organizou-se de fato a Câmara dos Comuns em vez do grande conselho composto de nobres e de bispos, que representavam o elemento normando, o qual se assenhoreara dos feudos e dos benefícios eclesiásticos, espoliando metódica e completamente os saxões. Refugiaram-se estes nos bosques e nos brejos, vivendo bastante tempo como outlaws (fora da lei) à moda do legendário Robin Hood, na frase de um escritor.

O regime parlamentar

O rei violara os compromissos paternos e os próprios, e a guerra rompera entre êle e seus súditos, que o derrotaram e aprisionaram. Simão de Montfort, conde de Leicester, filho do vencedor dos Albigenses, e cunhado do rei, foi o chefe da revolta e, em nome de Henrique III, convocou os barões, bispos e abades, salvo os do partido real, e também, por intermédio dos xerifes ou bailios dos condados, dois cavaleiros pela totalidade e dois burgueses por cidade de cada condado para deliberarem juntos sobre os negócios do reino. Assim nasceu o Parlamento britânico em 1265.

A princípio os burgueses só podiam discutir as questões de impostos, mas gradualmente obtiveram o direito de total discussão. O chamado Parlamento modelo foi constitucionalmente convocado trinta anos depois, em 1295. Em 1341, ao começar a guerra dos Cem Anos, a representação nacional dividiu-se em duas câmaras: a dos Lordes, formada pelos barões e prelados, e a dos Comuns, formada pelos cavaleiros e burgueses, eleitos pelas aglomerações rurais e urbanas. Não era uma organização que se pudesse qualificar de democrática, pois até o século passado o povo não preponderava; mas exercia fiscalização sobre a autoridade real, pois que aprovava ou recusava os subsídios pedidos cada ano pelo rei.

Escreve um historiador francês que assim se apresentaram nos fins da Idade Média, ou melhor dito, se esboçaram duas concepções políticas diferentes: a monárquica, proveniente da tradição romana de autoridade, e o regime parlamentar, tentativa de regulação das ins-tituições primitivas da Germânia a fim de conservar as liberdades individuais no quadro de um Estado regular. A antiguidade não co-nhecera o regime representativo na modalidade com que então se manifestava.

O absolutismo e o feudalismo na Inglaterra

Guilherme da Normandia, que era um espírito enérgico, estabele-cera na Inglaterra uma monarquia absoluta visto como na própria repartição dos feudos ele se reservara o quinhão do leão e, por meio dos xerifes, instalados nos vários castelos reais, tornava presente em todo o país sua autoridade soberana. O feudalismo leigo e a Igreja dispunham porém ainda de demasiado poder para permitirem uma tal centralização, de resto enfraquecida pelas discórdias dinásticas, de que se aproveitaram os senhores para obterem até castelos reais. A nobreza inglesa, grande e pequena (lordes e squi-res), foi mesmo mais do que qualquer outra territorial, no sentido de explorar suas terras com a ajuda dos saxões que, volvendo à vida normal e participando do cultivo do solo, se foram fundindo com os normandos.

A classe rural e o clero

Essa classe rural desempenhou um papel notável no progresso político do país, fadada como era para o governo pela sua independência de meios e de caráter. A coroa não a pôde submeter. Henrique II quisera, como seu bisavô o Conquistador, impor as prerrogativas do trono, mas seu destino resultou trágico. O clero resistiu-lhe em nome da superioridade do poder espiritual, do qual recebera a realeza normanda a investidura. Tomás à Becket, arcebispo primaz de Cantuária, foi por esse motivo exilado e depois assassinado, mas o monarca teve de fazer penitência, ajoelhado sobre o túmulo da vítima e flagelado pelos monges da abadia. Henrique II morreu desgraçadamente, com os filhos rebelados contra êle, e seu cadáver foi ultrajado pelos seus servidores. João Sem Terra por sua vez foi não só humilhado pelos barões como pelo legado papal.

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