A ascendência da democracia e do nacionalismo na Europa – (1830-1914)

EDWARD   McNALL   BURNS
PROFESSOR DE  HISTÓRIA  DA  RUTGERS  UNIVERSITY
HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
Volume II
Tradução de LOURIVAL GOMES MACHADO, LOURDES SANTOS MACHADO e LEONEL VALLANDRO

Capítulo 24

A ascendência da democracia e do
nacionalismo

(1830-1914)

Após as revoluções de 1830, muitas nações
do mundo ocidental experimentaram um renascimento da democracia.    Na Europa,
a Grã-Bretanha tomou a dianteira, mas a França, a Alemanha, a Suíça, a
Holanda,  a  Bélgica e a  Itália não  lhe  ficavam muito atrás.  Por último,
até a Espanha, a Turquia      e os reinos balcânicos adotaram pelo menos certas
formas de governo democrático. O que interessava à maioria desses países era a
democracia governamental e política, tipificada pelos parlamentos, pelo
sufrágio universal masculino e pelo governo de gabinete. Somente ao
aproximar-se o fim do período foi que se começou a pensar a sério na democracia
social ou econômica. Havia o temor natural de que ela constituísse uma grave
ameaça para a posição da aristocracia hereditária ou obrigasse os tubarões da
indústria a devolver uma parte das suas riquezas em proveito dos
desfavorecidos.

Para compreender o verdadeiro sentido da democracia é
preciso considerar-lhe as origens históricas. Como ideal político, ela se
enraíza na  filosofia de  Rousseau.    Foi,  acima  de tudo, a doutrina
rousseauniana da soberania absoluta  da  maioria,   combinada   com  a  
deificaçao   do   homem  comum  por  ele  e  por  outros   românticos, que nos
deu o ideal expresso pelo anexim: "a voz do povo é a voz de Deus".   
É isto, principalmente, o que a democracia política tem significado: que cabe à
maioria do povo o direito de falar pela nação inteira e que, na formação dessa
maioria, todos os cidadãos devem ter igualdade de voto. A maquinaria do estado
democrático inclui, portanto, o sufrágio universal, eleições frequentes, o
devido controle popular sobre os funcionários do governo e outras coisas
semelhantes. Para que essa maquinaria funcione com eficiência, os cidadãos
devem ter o direito de organizar partidos políticos e de escolher cada um
livremente o seu partido. A liberdade de palavra e a liberdade da imprensa
também são consideradas elementos essenciais do ideal democrático. Mas a nenhum
desses direitos se confere um caráter absoluto e nenhum deles é colocado fora
do controle da maioria. É verdade que se fossem completamente aniquilados a
democracia cessaria de existir; mas a maioria pode indubitavelmente
restringi-los em caso de perigo evidente e imediato para a segurança pública.
Destarte, tem sido prática habitual dos governos democráticos proibir os
discursos que advoguem em público a revolução pela violência e fechar os
jornais que defendam doutrinas tidas como particularmente perigosas. Hoje em dia,
muitas pessoas eminentes que se consideram bons democratas exigem que se negue
a liberdade de expressão pública aos fascistas e comunistas. Na realidade, a
democracia nao requer outra coisa senão que sejam toleradas todas as ideias não
acompanhadas pela ameaça de violência e que as minorias pacíficas não sejam
obstadas nos seus esforços para converter-se em maioria. O ideal político que
afirma o direito absoluto do cidadão a falar, escrever e viver como bem lhe
aprouver, enquanto isso não for lesivo aos seus vizinhos, não é a democracia
mas o individualismo.

O progresso da democracia entre 1830 e
1914 foi acompanhado por um vigoroso desenvolvimento do nacionalismo e dos seus
derivados, o imperialismo e a luta pelo poder entre as nações.    O  
nacionalismo   pode   ser   definido  como um programa ou ideal baseado na
consciência de nacionalidade. Essa consciência ou sentimento de nacionalidade
depende de vários fatores. Um povo pode considerar-se uma nação devido a
particularidades de raça, língua, religião ou cultura. Na maioria dos casos,
porém, os fatôres da unificação dos diversos grupos são uma história comum e
aspirações comuns quanto ao futuro, ou a crença num destino comum. Só elementos
dessa sorte podem justificar a existência da Bélgica, da Suíça e dos Estados
Unidos como nações, já que em todos os três existem importantes diferenças de
língua, de religião ou de ambas — para não falar das diferenças de fundo
étnico. Embora o nacionalismo tenha sido a certos respeitos uma força benéfica,
em especial nos primeiros tempos, quando não raro assumia a forma de lutas pela
liber-dade, de um modo geral ele foi e continua sendo uma influência
perniciosa, particularmente quando se expressa sob as formas do chauvinismo, do
militarismo e das ambições de conquistar e dominar.

O nacionalismo foi, incontestavelmente, uma das forças
mais poderosas que moldaram a história do mundo ocidental entre 1830 e 1914. De
sentimento vago que era nos primeiros séculos da era moderna, acabou por se
converter num verdadeiro culto. Para milhões de iludidos ele se tornou mais
forte do que a religião, sobrepujando o cristianismo no seu apelo aos
sentimentos e ao espírito de sacrifício por uma causa sagrada. Morria-se pela
honra da bandeira com a mesma alegria com que os mártires haviam dado a vida
pela glória da Cruz. Embora coexistindo amiúde com a democracia e o
liberalismo, o nacionalismo militante era mais poderoso que qualquer dos dois e
muitas vezes contrariava ou sufocava a ambos. Fomentado pelo ideal de
fraternidade da Revolução Francesa, o nacionalismo evoluiu através de duas
fases. De 1800 a cerca de 1848, pouco mais foi do que uma lealdade sentimental
a um grupo cultural e linguístico e um anelo de libertar-se da opressão
estrangeira. Depois de 1848 converteu-se num movimento ativo. em prol da
grandeza nacional e do direito de cada povo unido por laços culturais e étnicos
a decidir dos seus próprios destinos. Suas manifestações mais extremas tomaram
a forma de um culto exaltado do poder político e de uma devoção servil a doutrinas
de superioridade racial e a falsos conceitos de honra nacional. Sob tais
formas, era virtualmente sinônimo do chauvinismo, essa espécie de patriotismo
vanglorioso que se expressa pela  sentença:  "Minha pátria,  com  razão 
ou  sem  ela."

1.   A   EVOLUÇÃO   DA   DEMOCRACIA   NA   GRÃ-BRETANHA

A   evolução   da   democracia   na   Grã-Bretanha  
compreende   três aspectos  fundamentais:  a extensão  do  sufrágio,  o 
desenvolvimento do  sistema  de  governo  de  gabinete   e  a  ascensão
gradual   da   Camara   dos   Comuns   à   supremacia.      

Antes de 1832, o sistema de votação e representação na
Inglaterra era extremamente pouco democrático. Somente em pouquíssimos burgos  
(círculos eleitorais) podia a maioria dos cidadãos exercer o direito do
voto.    Nas zonas rurais esse privilégio se limitava a um punhado de
proprietários mais ricos.    De um total de cerca de 650 membros da  Câmara
dos  Comuns, apenas um terço  podia-se  dizer eleito na verdadeira  acepção  
da  palavra.    Os   restantes  eram   indicados  por magnatas locais ou
escolhidos por grupelhos de grandes proprietários ou por membros de
corporações  favorecidas.    Em alguns casos os mandatos eram abertamente
vendidos ou alugados por um certo número de anos.    O pior era que a
distribuição  das deputações  fora desequilibrada pela migração  para  os 
centros  industriais   do  norte. Enquanto muitas das novas cidades, como
Birmingham e Manchester, com mais de 100.000 habitantes cada uma, não tinham
absolutamente nenhuma representação, aldeias quase despovoadas do sul
continuavam a enviar nada menos de dois ou três deputados à Câmara dos Comuns.
Uma dessas aldeias, Old Sarum, era uma colina deserta; outra, Dunwich,
desaparecera sob as águas do mar; mesmo assim, tanto uma como a outra eram
ainda representadas no Parlamento, graças à notável capacidade inglesa de
alimentar uma ficção muito tempo depois de terem desaparecido os fatos que a
justificam.

A
despeito da enfatuada assertiva do duque de Wellington, de que o   sistema 
político   acima  descrito  era   "perfeitamente   satisfatório",
havia grande agitação contra ele.    Não só o povo comum mas também a classe
média estavam profundamente desgostosos com um regime em que o   poder   era, 
por  assim   dizer,  um  monopólio   da aristocracia agrária. Entusiasmados com
o sucesso da Revolução de julho de 1830 na França, os whigs ingleses, sob a
chefia de Lord John Russell e do conde Grey, iniciaram um movimento em prol da
reforma eleitoral. Foram muito auxiliados em seus esforços por um grupo de
radicais sob a liderança de Francis Place, um alfaiate autodidata que fizera
fortuna graças à sua astúcia, consagrando-se depois às causas progressistas.
Como o Duque de Wellington, primeiro ministro na ocasião, não quisesse ceder na
questão da reforma, Place induziu os seus partidários a suspender o pagamento
de impostos e a retirar todo o dinheiro que tinham depositado nos bancos.
Espalhou cartazes por todo o país, com a legenda: "Para acabar com o
Duque, neguemos-lhe o nosso Ouro." Quando a corrida ao Banco da Inglaterra
ameaçou tornar-se séria, Wellington renunciou. O Conde Grey formou então um
novo gabinete e o  famoso  Projeto  de Reforma de 1832  converteu-se  em 
lei.    Embora  tivesse  um   caráter  excessivamente  moderado  para  as 
pretensões  de  muitos   radicais,   constituía ainda   assim   um   avanço  
notável.    Conferia   o   direito   de   voto   à maioria dos homens adultos
da classe média e a quase todos os pequenos proprietários e rendeiros rurais;
continuavam, porém, excluídas   do   sufrágio   as   imensas   legiões   de  
trabalhadores   agrícolas   e industriais.    A proporção  dos eleitores  subiu
de cerca de um para cem  habitantes   a  um  para  32.    Além   disso,  o 
projeto   introduzia algumas   reformas   profundas   na   representação.   
As   aldeias   com menos de 2.000 habitantes perderam o direito de eleger
deputados à Câmara dos Comuns, enquanto as cidades um pouco maiores tiveram a
sua representação reduzida à metade. As cadeiras que assim ficaram livres nos
Comuns foram distribuídas entre as grandes cidades industriais do norte.

O "Reform Act" de 1832
estabeleceu definitivamente a supremacia da classe média.   Nas eleições que
logo se seguiram, os whigs, que começavam então a chamar-se
"liberais", obtiveram maioria na Câmara dos Comuns.    Os tories, daí
por diante mais conhecidos como conservadores", também começaram a
cortejar a classe capitalista. Resultou daí uma onda de atos parlamentares
nitidamente favoráveis aos interesses burgueses. Um deles concedia mais amplas
franquias nas eleições locais, capacitando a classe média a assumir o governo
dos burgos. Um segundo destinava verbas à manutenção de escolas por sociedades
privadas, a fim de dar educação aos filhos dos pobres. Um outro, a célebre Poor
Law (Lei da Pobreza) de 1834, abolia a assistência pública salvo para’ os
doentes e velhos, e dispunha que todos os pobres fisicamente capazes fossem
obrigados a ganhar o seu sustento nos asilos (workhouses) a que eram
recolhidos. Esta lei se baseava na teoria de que o próprio indivíduo é culpado
da sua pobreza e, consequentemente, os pobres devem ser forçados a trabalhar
como punição da sua indolência. O coroamento de todo esse período de legislação
burguesa foi a revogação, em 1846, das Leis dos Cereais. Eram estas uma forma
de tarifas protetoras que beneficiavam os proprietários de terras. Tais como
foram revisadas em 1822, estabeleciam que nenhum grão estrangeiro podia ser
importado, a menos que o preço do trigo inglês se elevasse a 70 ou mais xelins
por quarter (290 litros). Se o preço ultrapassasse este nível, permitia-se a
entrada do trigo estrangeiro, mas sob pesada tarifa. O resultado era acarretar
pingues lucros aos proprietários rurais ingleses e manter o preço do pão num nível
excessivamente elevado. Havia mais de vinte anos que os capitalistas
industriais reclamavam a abolição dessas tarifas, baseando-se em dois
argumentos : elas os obrigavam a pagar salários mais altos e limitavam a venda
de produtos manufaturados ingleses no exterior. Só em 1846, porém, foi que
lograram o seu intento. A revogação das Leis de Cereais encaminhou a Inglaterra
para uma política de livre-câmbio que continuou em vigor até depois da Primeira
Guerra Mundial.

Nenhuma dessas conquistas, que  concorriam para 
firmar a  supremacia da classe média, trouxe grandes benefícios imediatos  ao
proletariado. As jornadas de trabalho, nas fábricas, eram ainda
despropositadamente longas e, a despeito da rápida   expansão   da  indústria, 
a  prosperidade crescente continuava a ser interrompida por períodos de
crise.   Além disso, o Parlamento era surdo a todos os reclamos das classes
inferiores por uma participação nas franquias eleitorais. O grande estadista
liberal, Lord John Russell, declarou positivamente que as reformas concedidas
em 1832 eram as últimas. Em face de tal resistência, muitos trabalhadores
urbanos chegaram à conclusão de que a única esperança de melhoria era lutar
pela completa democratização do governo britânico. Alistaram-se, pois, com
grande entusiasmo sob a bandeira do cartismo, um movimento organizado em 1838 e
a cuja frente se achavam Feargus O’Connor e William Lovett. O cartismo derivava
o seu nome da célebre Carta do Povo, um programa constante de seis pontos: 1) o
sufrágio universal masculino; 2) igualdade de direitos eleitorais; 3) o voto
secreto; 4) legislaturas anuais; 5) abolição do censo eleitoral (requisitos de
propriedade) para os membros da Câmara dos Comuns; e 6) remuneração das funções
parlamentares. Conquanto alguns cartistas preconizassem o uso da violência, a
maioria limitou as suas atividades a demonstrações em massa e ao encaminhamento
de petições ao Parlamento. Em 1848, sob o estímulo da Revolução de Fevereiro da
França, os líderes prepararam-se para um esforço gigantesco. Uma procissão de
500.000 operários devia dirigir-se às câmaras do Parlamento a fim de apresentar
uma petição-monstro e forçar os parlamentares, pelo medo, a conceder reformas.
As classes governantes foram tomadas de pânico. O velho e pugnaz Duque de Wellington
foi novamente chamado a comandar as tropas. Além das tropas regulares, foi-lhe
dada uma força especial de 170.000 agentes da força pública — um dos quais era
o dúbio sobrinho de Napoleão, que dentro em breve se tornaria imperador da
França. Mas no dia marcado para a demonstração (10 de abril de 1848) chovia a
cântaros. Em lugar do meio milhão de operários que deviam marchar na parada
compareceu apenas a décima parte desse número. Quando a petição foi apresentada
ao Parlamento, verificou-se que continha menos de metade dos propalados seis
milhões de assinaturas, inclusive alguns evidentemente fictícios, como
"Wellington", "a Rainha" e "o Primeiro Ministro".

Embora o cartismo houvesse fracassado, o espírito
representado por ele continuou a viver; e é significativo que todos os seis
pontos, com a  única  excecão  da  exigência  de legislaturas anuais,  
tenham   sido   posteriormente   incorporados à constituição britânica. Nos
anos que se seguiram ao fiasco de 1848 as forças da democracia revigoraram-se pouco
a pouco e, sob a orientação de chefes mais práticos, realizaram consideráveis
progressos. Em 1858 obteve-se do governo conservador de Lord Derby a abolição
do censo eleitoral para os candidatos à Câmara dos Comuns. Em 1866, o movimento
democrático ganhara tal impulso que os líderes de ambos os partidos porfiavam
em solicitar o seu apoio. Resultou daí o Reform Act de 1867, que o conservador
Disraeli  fez passar no Parlamento  depois que os  libe
rais da velha
geração haviam recusado, no ano anterior, acompanhar Gladstone na promulgação
de um projeto mais moderado. Essa reforma conferia o direito de votar a todos
os homens moradores das cidades que tivessem residência própria, sem levar em
consideração o valor desta, e também a todos os que pagassem um aluguel não
inferior a dez libras anuais. Uma vez que só os mais pobres trabalhadores
industriais não eram capazes de preencher tais condições, a massa do
proletariado ficava automaticamente capacitada a votar. Em 1884 os liberais,
por sua vez, ampliaram ainda mais o direito do voto. O Reform Act desse ano, o
terceiro na grande série de reformas eleitorais, foi patrocinado por Gladstone.
Seu principal dispositivo consistia em estender ao campo as vantagens até então
gozadas pelos habitantes das cidades, conferindo destarte o direito de voto à
quase totalidade dos trabalhadores agrícolas.

A democratização do sistema eleitoral britânico só se
completou em 1918. É verdade que durante o século XIX se havia concedido o
sufrágio às três classes principais de cidadãos: à classe média pela Lei de
1832, aos trabalhadores A Lei de industriais pela Lei de 1867 e aos
trabalhadores rurais pela Lei de 1884. No entanto, a Grã-Bretanha ainda não
tinha o sufrágio universal masculino. Após deflagrar a Primeira Guerra Mundial,
ainda havia cerca de dois milhões de homens adultos que, por uma razão ou
outra, estavam impossibilitados de votar. Alguns eram trabalhadores sem
domicílio fixo; outros eram demasiadamente pobres para preencher sequer os
requisitos mínimos estabelecidos pelos segundo e terceiro Reform Acts. Por
outro lado, havia cerca de 500.000 homens ricos que ainda conservavam o
privilégio do voto plural. Em 1918 foi feita por fim uma séria tentativa para
remediar o mais flagrante desses males. Pela lei chamada "de Representação
Popular" aboliram-se virtualmente todos os antigos requisitos de
propriedade para votar. Daí por diante os cidadãos britânicos depositariam o
seu sufrágio nas urnas, não como proprietários ou ocupantes de prédios de tal
ou tal valor, mas simplesmente como cidadãos. A única exceção a essa regra era
o privilégio de um segundo voto concedido aos graduados universitários e a
qualquer pessoa que ocupasse um prédio, para fins de negócio, em outro distrito
que não o de sua residência. Deve-se salientar, finalmente, que a Lei de 1918
concedia o direito de voto a todas as mulheres de mais de 30 anos que
possuíssem propriedades ou fossem esposas de proprietários. Somente uma década
depois a idade limite foi reduzida a 21 anos, a mesma que para os homens. Mesmo,
porém, antes da adoção do chamado "flapper vote" (voto das moças),
quase 40% do total dos habitantes da Grã-Bretanha estavam habilitados a votar
nas eleições nacionais, em confronto com os 3% aproximados de  1831.

O  segundo  fator principal  da evolução  da
democracia na Grã-Bretanha foi o desenvolvimento do sistema de governo de
gabinete. Sem esse fato, a Inglaterra poderia muito bem ter continuado a ser
simplesmente uma  monarquia limitada.   É preciso entender que o gabinete não é
um mero conselho de ministros, mas o órgão soberano do governo. É uma comissão
do Parlamento, responsável perante a Câmara dos Comuns, que exerce a suprema
autoridade legislativa e executiva em nome do rei. Não só resolve todas as
questões de política geral, mas é dele que se origina quase toda a legislação;
e, enquanto permanece no poder, determina quais os projetos de lei que devem
ser aprovados. Se for derrotado na Câmara dos Comuns em alguma questão
fundamental, terá de renunciar imediatamente ou de "apelar para o povo"
— isto é, dissolver o Parlamento e convocar uma nova eleição para consultar a
opinião dos eleitores. Em outras palavras, o gabinete tem a inteira
responsabilidade da direção dos negócios públicos, submetendo-se unicamente à
vontade do povo e dos seus representantes na Câmara dos Comuns. Quando os
ingleses falam no "governo de Sua Majestade", o que têm em mente é o
gabinete. Quando o partido que se acha no poder perde uma eleição e, com ela, o
controle sobre a Câmara dos Comuns, o líder do partido da oposição forma
imediatamente um novo gabinete. Enquanto aguarda a sua vez de tornar-se
primeiro ministro, percebe honorários como chefe da Leal Oposição de Sua
Majestade.

Como quase todos sabem, o sistema de gabinete resultou
de uma lenta evolução de precedentes.    Não se origina de nenhum estatuto ou
carta  fundamental e até hoje baseia-se  únicamente no costume.    Sua história
não remonta além da Revolução Gloriosa.   Houve, é verdade, um chamado gabinete
no reinado de Carlos II, mas não passava de um corpo de conselheiros. Só depois
de suplantada a supremacia do rei pela do Parlamento foi que se estabeleceu o
princípio de que os principais ministros de coroa deviam ser responsáveis
perante o poder legislativo. Quando Guilherme e Maria subiram ao trono em 1689,
acederam à exigência de que os conselheiros escolhidos por eles fossem do
agrado da legislatura. Durante algum tempo escolheram os seus ministros em
ambos os partidos maiores, mas como se tornasse mais premente a necessidade de
manter relações harmoniosas com o Parlamento, restringiram gradualmente a sua
escolha ao partido que estivesse em maioria. Desse modo foi estabelecido o
precedente de que todos os principais ministros deviam merecer a confiança do
grupo dominante no Parlamento. O gabinete, porém, não era ainda um órgão
poderoso. Só se tornou tal no reinado de  Jorge   I   (1714-27).    Era  Jorge 
um botuso príncipe  do   estado alemão de Hanôver, o qual, como não falasse nem
entendesse a língua inglesa, resolveu confiar aos seus ministres todo o trabalho
do governo. Jamais compareceu às reuniões do gabinete e permitiu que esse órgão
passasse para a direção de Sir Robert Walpole. Embora sempre tivesse recusado o
título, Walpole foi na verdade o primeiro chefe de gabinete no sentido moderno.
Foi o primeiro a exercer a dupla função de primeiro ministro e de líder do
partido majoritário na Câmara dos Comuns. Instalou o seu quartel-general no n.°
10 da Downing Street, que até hoje continua a ser a residência oficial dos
primeiros ministros britânicos. Ao sofrer, em 1742, uma derrota na Câmara dos
Comuns, resignou o cargo imediatamente, não obstante ainda merecer a inteira
confiança do rei.

Tal foi a evolução inicial do sistema de gabinete.
Conquanto a maioria dos precedentes em que se baseia já tivesse sido
estabelecida nos meados do século XVIII, ainda tinha um caminho espinhoso a
percorrer. Alguns membros do Parlamento antipatizavam com o sistema, que
parecia implicar numa cessão parcial da supremacia parlamentar. Durante o
turbulento reinado de Jorge III houve uma tentativa para acabar com o governo
de gabinete e voltar aos tempos em que os ministros eram responsáveis perante o
rei. Ainda que geralmente bem intencionado, Jorge não era muito inteligente e
não compreendia que a era da soberania real havia passado. Tampouco, aliás,
compreendiam muitos de seus súditos a implantação de um sistema em que o
monarca nada mais fazia do que reinar, enquanto os seus ministros governavam o
país como chefes do partido que detinha a maioria das cadeiras na Câmara dos Comuns.
Só pelos meados do século XIX foi o sistema de gabinete universalmente aceito
ou compreendido plenamente como parte integrante da constituição britânica. O
seu funcionamento foi pela primeira vez descrito em termos claros por Walter
Bagehot no seu livro English Constitution, publicado em 1867. Em época mais
recente acrescentou-se certo número de novos precedentes, sendo o principal
deles o que estabelece que, no caso de ser o gabinete derrotado na Câmara dos
Comuns, o primeiro ministro e os seus colegas têm a opção entre renunciar
imediatamente e apelar para o país num grande referendum nacional.

Não foi menos importante na evolução da democracia
política na Grã-Bretanha a transformação da Câmara dos Comuns no ramo mais
poderoso do Parlamento. Até o século XVIII a Câmara dos Pares, composta de
nobres hereditários e dos príncipes da igreja, gozou de uma dignidade e
influência muito maior. O primeiro passo no sentido de estabelecer a supremacia
da câmara representativa foi dado no governo de Walpole, ao adotar-se o
princípio de que o gabinete seria  responsável exclusivamente perante os 
Comuns.    No  começo do século XIX firmou-se o precedente de dar à câmara
baixa a palavra final em assuntos financeiros.    Os Pares, no entanto,
dispunham ainda de enorme poder.    Possuíam o direito do veto à legislação em
geral e os únicos freios que os impediam de usar e abusar dele eram o temor ao
ressentimento  público  e a  autoridade  do  primeiro ministro,  que  podia 
ameaçá-los,  numa  emergência, com a criação de  novos  pares.    Além  disso,
como a câmara alta formava invariavelmente um baluarte dos tories, os planos
favoritos dos gabinetes liberais eram não raro frustrados. A situação alcançou
um ponto crítico ém 1909, quando os Pares rejeitaram o orçamento preparado por
David Lloyd George, chanceler do Tesouro (isto é, ministro das finanças) e
secundado pelo gabinete Asquith. O primeiro ministro dissolveu o Parlamento e
apelou para o eleitorado. Embora o seu partido não tivesse obtido senão uma
modesta vitória, convenceu-se de que a nação estava a seu favor e começou a
preparar um projeto de lei para cortar as asas à Câmara dos Pares. Essa lei,
conhecida como o Parliament Act de 1911, foi finalmente aprovada mercê da
ameaça de inundar a câmara alta com uma maioria de pares liberais. O Parliament
Act estabelecia que os projetos de leis financeiras entrassem em vigor um mês
depois de passar na Câmara dos Comuns, quer fossem aprovados pelos Pares, quer
não; quanto à demais legislação, a câmara alta tinha somente um veto
suspensivo: os projetos ordinários que fossem aprovados pelos Comuns em três
sessões consecutivas tornavam-se leis ao cabo de dois anos, a despeito da
oposição do outro ramo do legislativo. Pode-se, pois, afirmar com segurança que
a câmara eleita pelo povo tornou-se a partir de então, para todos os fins
práticos, o verdadeiro órgão legislativo da Grã-Bretanha.

2. DEMOCRACIA   E   NACIONALISMO   NA   FRANÇA

 

Após a tentativa  frustrada  de  instalar,  no 
segundo período  da grande Revolução, um regime de igualdade, a França até 1875
fez poucos progressos no sentido da implantação de um governo   democrático. É 
certo  que  o  reinado  de Luís Filipe, inaugurado após a Revolução de julho de
1830, foi muito mais liberal que o de seu predecessor, Carlos X, mas ainda
estava longe de re-presentar o governo das massas. Luís Filipe guiava-se pela
burguesia e ignorava sistematicamente o proletariado.  O censo  eleitoral  foi
na verdade  reduzido,  mas  ainda assim somente 200.000 franceses tinham o direito
de votar. Quando os líderes das massas apelaram para o primeiro ministro Guizot
a fim de que o voto fosse liberalizado, ele respondeu cinicamente: "fiquem
ricos". Pelas alturas de 1848, o rei e os seus ministros haviam provocado
a aversão de tantos cidadãos franceses que estes estavam prontos a enfrentar os
riscos de uma nova revolução para derrubar a monarquia.

A revolução francesa de 1848 é conhecida como
Revolução de Fevereiro. Suas causas foram múltiplas. Uma delas era a exigência
de um governo mais democrático, por parte da imensa maioria do povo. Outra era
o sentimento de revolta causado pela corrupção de Luís Filipe e dos seus
íntimos; convictos, como Luís XV em tempos idos, de que o dilúvio não tardaria
a vir, tratavam de enriquecer o mais depressa possível à custa do povo. Uma
terceira causa foi o descontentamento dos católicos com a atitude visivelmente
anticlerical do "rei-cidadão", que nomeara primeiro ministro o
protestante Guizot e permitira que este mostrasse parcialidade contra as escolas
católicas. Outra causa ainda foi a disseminação do socialismo no seio do
proletariado industrial. Durante os meses de privações da crise que se iniciou
em 1847, muitos trabalhadores tinham-se convertido ao socialismo de Louis
Blanc, com o seu projeto de instalação de oficinas nacionais para dar emprego e
prosperidade a todos. Mas a Revolução de Fevereiro foi também um fruto do
nacionalismo, fator que estava destinado a suplantar todos os demais. Como
"rei da burguesia", Luís Filipe colocava os negócios em primeiro
plano. Os seus principais defensores capitalistas estavam decididos a não
permitir que a França se envolvesse em qualquer guerra capaz de ameaçar-lhes o
comércio ou os investimentos. Recusaram, por isso, ceder aos clamores dos que
exigiam uma intervenção em favor dos poloneses contra a Rússia ou dos italianos
contra a Áustria. Isto enfureceu os patriotas franceses que sonhavam com a
glória nacional e com a restauração da França na posição de líder entre as
potências européias.

Por volta de  1847 o governo  de Luís
Filipe havia alienado as simpatias da quase totalidade dos  seus  súditos,
salvo uma pequena minoria de ricos.    A oposição mais decidida, porém, vinha
dos socialistas e dos patriotas, tanto republicanos como monarquistas. Em 1847 esses
grupos organizaram uma campanha de demonstrações-monstros e de banquetes
políticos, destinada a inculcar no espírito do rei a necessidade de reforma.
Como o governo se alarmasse e proibisse uma demonstração programada para o dia
22 de fevereiro de 1848, levantaram-se barricadas nas ruas e dois dias depois
Luís Filipe era obrigado a abdicar. Um governo provisório, composto de 
republicanos   e   socialistas,   assumiu  o  controle   do  estado   e  em
abril realizaram-se eleições para uma Assembléia Constituinte. Os resultados do
sufrágio decepcionaram os socialistas, pois que os reacionários e os partidos
da classe média tinham-se coligado para proteger os interesses da propriedade
privada. Furiosos e desiludidos, os radicais de Paris tornaram a insurgir-se.
Durante três terríveis dias, em junho, travaram-se lutas sangrentas nos bairros
pobres da capital. Finalmente foi esmagada a insurreição, os seus chefes
fuzilados e 4.000 rebeldes deportados para as colônias. A maioria burguesa da
Assembléia Constituinte pôde então redigir, sem mais contratempos, um projeto
de constituição para a Segunda República. O documento, em sua forma definitiva,
era parcialmente copiado da constituição norte-americana. Continha uma
declaração de direitos, adotava o sufrágio universal masculino e a separação
dos poderes. À testa do executivo achava-se um presidente eleito pelo povo para
um período de quatro anos; o povo devia eleger também uma Assembleia
Legislativa formada por uma só câmara. Finda a sua tarefa, os autores da constituição
marcaram a data de 10 de dezembro de 1848 para a primeira eleição presidencial.

Quatro candidatos concorreram a essa
eleição: um republicano moderado, um socialista, um católico e um homem que
tinha uma promessa para todos — Luís Napoleão Bonaparte. Mais de sete milhões
de votos foram depositados nas urnas; deste total, o republicano moderado
recebeu cerca de 1.500.000, o socialista 370.000, o católico 17.000, e os
restantes — quase 5.500.000 — foram dados a Luís Napoleão. Quem era esse homem
que gozava de tão pasmosa popularidade, chegando a conquistar quase três vezes
mais votos que todos os outros candidatos reunidos? Luís Napoleão Bonaparte
(1808-73) era sobrinho de Napoleão e filho de Luís Bonaparte, que durante
alguns anos fora rei da Holanda. Após a queda do tio, Luís Napoleão marchou
para o exílio, vivendo principalmente na Alemanha e na Suíça. Regressou à
França depois da Revolução de Julho de 1830 e foi preso ao cabo de alguns anos
por haver tentado provocar uma insurreição em Bolonha. Em 1846, porém, fugiu
para a Inglaterra, onde foi generosamente suprido de dinheiro pelos
reacionários tanto ingleses como franceses. No verão de 1848, a situação na
França era tal que ele compreendeu que podia voltar sem perigo. Efetivamente,
foi recebido de braços abertos por homens de todas as classes. Os conservadores
buscavam um salvador que lhes protegesse as propriedades contra os ataques dos
radicais. Os proletários tinham-se deixado seduzir pelo ouropel dos planos de
prosperidade expostos no seu livro A extinção do pauperismo e pelo fato de ele
ter-se correspondido com Louis Blanc e com Proudhon, o anarquista. Entre essas
duas classes havia uma grande multidão de patriotas e entusiastas, para quem o
simples nome   de   Napoleão   era   um   símbolo  incomparável   de  glória 
e   de grandeza. Foi principalmente a essa multidão que o sobrinho do Corso
deveu o seu extraordinário triunfo. Na expressão de um velho camponês:
"Como deixar de votar nesse homem, eu que tive o nariz gelado na Rússia?"

Alimentando sonhos grandiosos de emular o tio, Luís
Napoleão não se contentou por muito tempo em ser simples presidente da França.
Começou desde logo a usar da sua posição a fim de preparar o caminho para outra
mais elevada. Conquistou o apoio dos católicos permitindo-lhes recuperar o
controle sobre as escolas e enviando uma expedição à Itália para restabelecer o
poder temporal do papa na Itália. Deu lambujens aos trabalhadores e à
burguesia, sob a forma de pensões de velhice e de leis para incrementar os
negócios. Em 1851 ofereceu-se-lhe a primeira grande oportunidade de desfechar
um golpe na república, A Assembléia, dominada pela burguesia, havia aprovado
uma lei que limitava de cerca de um terço o sufrágio. Luís Napoleão percebeu o
ensejo de fazer-se passar por um campeão dos direitos das massas. Como os
legisladores negassem obediência à sua ordem de restaurar o sufrágio universal,
dissolveu a Assembléia, proclamou-se ditador temporário e convidou o povo a
conceder-lhe o direito de redigir uma nova constituição. No plebiscito
realizado a 21 de dezembro de 1851, foi autorizado por uma maioria esmagadora
(7.500.000 contra 640.000 votos) a proceder como entendesse. A nova
constituição, posta em vigor no mês de janeiro seguinte, convertia o presidente
num ditador de fato. Com a sua magistratura prolongada para dez anos, tinha o
poder exclusivo de propor leis, declarar a guerra e firmar a paz. O corpo
legislativo era nominalmente conservado, mas não podia apresentar nem emendar
projetos de leis, nem mesmo modificar qualquer cláusula do orçamento.
Entretanto, o pequeno César ainda não se deu por satisfeito. Nada era capaz de
contentá-lo, senão a dignidade imperial que havia aureolado o seu famoso tio.
Volvido exatamente um ano, Luís Bonaparte convocou um novo plebiscito e, com a
aprovação de 95% do eleitorado, assumiu o título de Napoleão III, imperador dos
franceses. As massas crédulas não tardariam a ver aonde as ia conduzir a
adoração de um nome mágico e o culto de uma aparatosa lenda.

O segundo império francês durou de dezembro de 1852 a
setem-bro de 1870.    O seu fundador e preservador governou por métodos
semelhantes aos dos demais césares, antes e depois dele. Estimulou uma
grandiosa prosperidade drenando  pântanos,  construindo  estradas,  melhorando
portos, subsidiando ferrovias e abrindo uma imponente rede de bulevares  em 
Paris.    Cultivou  a  estima  das  classes  inferiores  declamando  frases
revolucionárias e arquitetando planos pseudo-socialistas, como o auxílio do
governo às cooperativas de consumo e uma variedade de formas de seguro para os
trabalhadores. Ao mesmo tempo, tomou todas as medidas para não ser incomodado
pelos radicais. Submeteu a imprensa a uma rigorosa vigilância e controlou as
eleições pagando as despesas dos candidatos oficiais e exigindo dos outros um
juramento de fidelidade ao imperador. Tampouco deixou de aproveitar as
oportunidades de abrilhantar o seu regime com uma política exterior agressiva.
Anexou a Argélia e estabeleceu um protetorado sobre a Indochina. Em 1854, sob o
pretexto de proteger os monges católicos da Turquia, lançou-se à Guerra da
Criméia com a Rússia. Apoiado pela Grã-Bretanha, pela Turquia e, durante algum
tempo, também pela Sardenha, conseguiu sair vitorioso do conflito. Apesar de
ter derramado, em dois anos de luta, o sangue de 75.000 soldados
franceses, pôde ainda gozar os aplausos da multidão e tomar atitudes de árbitro
dos destinos da Europa.

Já em 1860 o esplendor da fama de
Napoleão tinha começado a ofuscar-se.    O   primeiro   golpe   sério   ao  
seu   prestígio   resultou   da sórdida   aventura   de   1858  na   Itália.   
Nessa  data havia ele formado uma aliança com os nacionalistas italianos  
para  ajudá-los  a   expulsar   os  austríacos, mas ao perceber   que  os  
seus  aliados   pretendiam consolidar toda a península num estado nacional e
destruir o poder temporal do papa, desertou-os imediatamente. Com isso afastou
as simpatias de milhares dos seus adeptos mais liberais, que o acusaram de ter
abandonado um brioso povo à opressão austríaca. Em 1862 Napoleão interveio no
México. Enviou um exército para fundar um império naquele país e ofereceu o
trono ao Arquiduque Maximiliano da Áustria. Mas, ao terminar a guerra civil
americana, o governo dos Estados Unidos obrigou as tropas francesas a
retirar-se e pouco depois Maximiliano era capturado e fuzilado pelos mexicanos.
Em consequência dessa aventura trágica e brutal, a oposição a Napoleão
recrudesceu fortemente. Após as eleições de 1869, pareceu-lhe necessário fazer
algumas concessões. Concordou, daí por diante, em tornar os seus ministros
responsáveis perante o legislativo, em permitir a venda pública de jornais e em
abandonar a política de subsidiar os candidatos oficiais às eleições. Em 1870
resolveu fazer uma tentativa de recuperar o seu prestígio mediante um golpe de
audácia na política externa. O governo da Espanha acabava de ser deposto e os
revolucionários ofereceram a coroa ao príncipe Leopoldo de Hohenzollern, primo
do rei da Prússia. Simulando ver nesse fato um perigo para a França, Napoleão
informou o rei prussiano de que consideraria como casus belli a ascensão
de um príncipe Hohenzollern ao trono da Espanha. Muito sensatamente, o príncipe
Leopoldo recusou a coroa; isso teria satisfeito qualquer   um,   mas   não  
satisfez   Napoleão,   que   estava   decidido   a cercar-se de glória mediante
uma humilhação brutal imposta à Prússia. Exigiu, pois, do rei Guilherme I o
compromisso de jamais permitir que um membro da sua família se apresentasse
como candidato ao trono da Espanha. Mais adiante veremos como Bismarck torceu a
recusa de Guilherme de maneira a precipitar uma guerra entre a Prússia e a
França. Basta dizer aqui que a França foi fragorosamente derrotada numa
campanha que durou apenas algumas semanas. Após a batalha de Sedan (2 de
setembro de 1870) o próprio Napoleão foi feito prisioneiro, e dois dias depois
o seu governo era posto abaixo por um grupo de republicanos em Paris.

Com o colapso do Segundo Império, organizou-se um
governo provisório para dirigir o país até que fosse elaborada a nova
constituição. Em fevereiro de 1871 realizaram-se eleições para uma assembléia
nacional constituinte, sendo escolhidos 500 monarquistas e apenas 200
republicanos. Explica-se isto pelo fato de terem os republicanos, durante a
campanha eleitoral, insistido na continuação da guerra, enquanto os
monarquistas a consideravam definitivamente perdida, só restando à França
negociar com o inimigo as condições mais favoráveis possíveis. Isso não quer
dizer que a maioria do povo francês preferisse a monarquia, mas sim que
almejava a paz. Por sorte, os monarquistas achavam-se irremediavelmente
divididos. Nem bem a Assembléia Nacional se reuniu, cindiram-se em três facções
irreconciliáveis. Os menos numerosos eram os imperialistas, descoroçoados
adeptos de Napoleão III, que se apegavam à tênue esperança de que o seu governo
pudesse ser restaurado. Acirradamente opostos a eles e uns aos outros, havia os
legitimistas e os orleanistas. Os primeiros exigiam que a coroa fosse dada ao
neto de Carlos X, ao passo que os segundos apoiavam as pretensões do neto de
Luís Filipe. A furiosa discórdia entre os monarquistas adiou por quase quatro
anos a decisão definitiva quanto à forma permanente a ser assumida pelo governo
francês. Por fim, os orleanistas preferiram solidarizar-se com os republicanos
a permitir que os legitimistas triunfassem, e em janeiro de 1875 a Assembléia
Nacional aprovou a primeira de uma série de leis constitucionais que
reconheciam a forma republicana do governo. Foi esse o verdadeiro início da
Terceira República na França.

A constituição da Terceira República
consistiu em três leis orgânicas adotadas em 1875 pela Assembléia Nacional.
Embora emendas e precedentes houvessem determinado algumas mudanças,  conservou
a  sua  forma essencial até a    dissolução oficial da   Terceira República, 
em 9 de julho  de  1940.    O governo  estabelecido por essa constituição
figurava entre os mais democráticos do mundo.    Havia um   Parlamento,  com 
uma  câmara  baixa  eleita  por   sufrágio  universal  masculino,  e  um  presidente 
eleito  pelo   Parlamento.    O   característico principal era, no entanto, o
sistema de gabinete, copiado em grande parte do da Inglaterra.    Os poderes
mais importantes do governo   eram   exercidos   por   um   ministério  
responsável   perante   o Parlamento.    O  presidente representava a  figura
mais apagada  que é  possível  encontrar  entre  os  chefes  de  estado.    Se 
bem  que   um político dinâmico pudesse exercer, nesse cargo, uma influência
considerável,   em   especial   na   orientação   das   relações  
estrangeiras,   o presidente da França em geral  era pouco mais que um
governante titular.    Todos os seus atos oficiais deviam ser subscritos — isto
é, aprovados — por um membro do gabinete.    Havia, por outro lado, várias diferenças
importantes entre o sistema de gabinete francês e o britânico.    Enquanto na
Inglaterra o gabinete inclui somente os ministros principais e alguns outros
que o primeiro ministro possa designar, na França ministério e gabinete eram
uma e a mesma coisa. Esse ministério ou gabinete era responsável não só perante
a câmara baixa, ou Câmara dos Deputados, mas também perante o Senado, eleito
indiretamente  pelo  povo;  na   Inglaterra,  o  gabinete   fica  submetido
exclusivamente à Câmara dos Comuns.    A mais importante diferença consistia 
em   não   ter   o   primeiro  ministro   francês   autoridade efetiva para
dissolver o  Parlamento.    É verdade que a constituição escrita lhe conferia
originalmente tal autoridade, mas  foi mais tarde anulada por certos
precedentes. Significava isso que os membros da legislatura podiam derrubar os
gabinetes à vontade, sem incorrer no risco de ter de se apresentar à
reeleição.    No caso de serem derrotados em qualquer das câmaras, o primeiro
ministro e os seus colegas não   tinham   alternativa   senão   renunciar.    
Com   a   possível   exceção da  multiplicidade  de  partidos,   nada 
contribuía  tanto  para  a  instabilidade  do  sistema  francês.    Acontecia
por vezes  que  os gabinetes eram incapazes de conservar o apoio da maioria do
Parlamento durante mais de poucas semanas ou mesmo de alguns dias.    Ainda que
frequentemente  se   deplorasse   tal   instabilidade,   era  na   realidade  
o fruto de uma reação natural do povo  francês em face dos regimes ditatoriais
anteriores.

Mesmo depois de adotada a constituição
republicana de  1875, a vitória da democracia não  foi de modo algum completa
na França. Durante alguns anos a república teve de lutar com elementos  
reacionários  resolvidos  a  restaurar  uma forma    qualquer    de   
governo    autocrático.    Entre 1887 e 1889, enfrentou uma perigosa crise com
o episódio Boulanger. Era Georges Boulanger um general do exército e antigo
ministro da guerra   que   alimentava   ambições   napoleônicas.    Apelando  
para   o orgulho ferido dos patriotas  franceses, clamava por uma guerra de
desforra contra a Alemanha, no que era entusiasticamente aplaudido. Tomou como
cavalo de batalha certos escândalos recém-descobertos do regime republicano, e
graças a isso subiu no conceito dos monarquistas, bem assim como dos católicos
conservadores que odiavam os republicanos por causa do seu programa
anticlerical. Dentro em pouco era o homem mais popular da França. Por toda a
parte as multidões aclamavam o seu ”bravo general", crentes de que um
novo Bonaparte havia surgido no seu seio. Lisonjeado e estimulado por esses
aplausos, Boulanger resolveu apelar para as urnas como prova mais tangível do
apoio nacional. Apresentou-se à eleição para a Câmara de Deputados em todos os
distritos onde podia ser admitido e venceu, por margens consideráveis, dez
vezes seguidas no espaço de seis meses. Em janeiro de 1889 coroou essa série de
vitórias conseguindo uma maioria esmagadora em Paris, onde prevaleciam os
radicais. Parecia que agora nada obstaria à sua ascensão ao poder como ditador
militar. Mas, felizmente para a república, esse ídolo adorado pelo populacho e
pelas senhoras nos salões tinha frágeis pés de barro. Quando o governo, por
fim, se encheu de coragem e mandou prendê-lo como culpado de conspiração,
Boulanger fugiu ingloriamente para a Bélgica. Dois anos depois, meteu uma bala
nos miolos diante da sepultura da amante.

O ignominioso colapso do movimento
boulangista não pôs fim às tentativas de desacreditar a república. Na década de
1890 os reacionários adotaram o anti-semitismo como pretexto para a consecução
dos seus objetivos. O fato de certos banqueiros judeus terem sido envolvidos
recentemente em negócios escandalosos com políticos deu margem aos monarquistas
para acusar o governo de estar contaminado pela corrupção, apontando como
principais culpados os gananciosos judeus. Os católicos eram levados a crer que
os políticos judeus tinham ditado a legislação anticlerical do regime republicano.
Com tais acusações pairando no ar, não é de estranhar que o anti-semitismo
acabasse por inflamar-se numa explosão violenta. Em 1894 um capitão de
artilharia judeu chamado Alfred Dreyfus foi acusado, por uma camarilha de
oficiais monarquistas, de ter vendido segredos militares à Alemanha. Levado a
conselho de guerra, foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo (Guiana
Francesa). A princípio a condenação foi aceita como merecida punição de um
traidor, mas em 1897 o Coronel Picquart, chefe recém-nomeado do Serviço
Secreto, declarou ter chegado à conclusão de que os documentos em que se
baseava a sentença condenatória tinham sido falsificados. Iniciou-se um
movimento em favor de uma revisão do processo, revisão que o Ministério da
Guerra apressou-se a recusar. Dentro em pouco, toda a nação se achava dividida
entre amigos e adversários do desventurado capitão. Ao lado de  Dreyfus estavam
os republicanos radicais, os socialistas, as pessoas de tendências liberais e
humanitárias e figuras eminentes da literatura como Emile Zola e Anatole
France. Os antidreyfusistas incluíam os monarquistas, os clericais, os
anti-semitas, os militares, um número considerável de operários conservadores e
de sinceros mas iludidos patriotas. Dreyfus foi finalmente posto em liberdade
por uma ordem do executivo em 1899, sendo seis anos mais tarde isentado de toda
culpa pelo Supremo Tribunal e reintegrado no exército, onde o aguardava a
promoção imediata ao posto de major e uma insígnia da Legião de Honra. O efeito
do caso Dreyfus foi desmantelar por completo o movimento monarquista na França.
A partir de então, os adeptos desse movimento foram gradualmente reduzidos à
insignificância política, como simples "punhado de velhas nozes a
entrechocar-se dentro de um saco".

Conforme já demos a entender, o caso
Dreyfus não foi senão um dos episódios de uma luta mais vasta em torno da
questão da igreja e  do  Estado.    Desde o  começo  da  sua  história  a
Terceira República havia revelado um pendor anti-clerical.    Seus  
fundadores   não   eram   necessariamente ateus, mas acreditavam que uma igreja
poderosa, com a ambição de estender a sua influência política e social,
constituía uma ameaça para o governo republicano. Os objetivos dos
anticlericais eram obstar a essa influência, reduzir os privilégios econômicos
da igreja católica e destruir a ascendência que o clero havia conquistado sobre
a educação. As raízes do anticlericalismo estendiam-se em várias direções. Em
parte, ele resultava da Revolução Industrial, pois esta favorecia os interesses
materialistas e intensificava a luta entre a burguesia e o antigo regime, com o
qual se costumava identificar a igreja. Era também, em certa medida, um fruto
do desenvolvimento da ciência e das filosofias cépticas e liberais,
frequentemente empregadas como armas para combater o conservantismo religioso.
Mas a causa principal da sua difusão foi, por certo, o impulso tomado pelo
nacionalismo militante. Não só a igreja católica tinha forçosamente tendências
internacionalistas, mas os papas, ainda na década de 1860, afirmavam os seus
direitos ao poder temporal e fulminavam anátemas contra os governantes que
pretendessem criar estados onipotentes. Por toda parte onde o nacionalismo se
tornasse poderoso, os clericais quase infalivelmente passavam a ser considerados 
como  os grandes  inimigos.

Na França, o anticlericalismo alcançou o
apogeu da sua fúria entre 1875 e 1914. A grande maioria dos líderes da
Terceira República eram hostis à Igreja e não podiam deixar de sê-lo, pois a
hierarquia católica ajudava os monarquistas em todas as oportunidades. Os
clericais conspiraram com os monarquistas no apoio dado a Boulanger, e ainda
mais ativamente com os militaristas e os anti-semitas na tentativa de
desacreditar a república durante o caso Dreyfus.   Mas afinal rebentou-lhes a
bomba na mão.   O resultado do caso Dreyfus não só foi o dobre de finados do
monarquismo mas também suscitou um ataque furioso a igreja. Em 1901 o governo
fez passar a Lei das Associações, que proibia a existência, na França, de
qualquer ordem religiosa não autorizada pelo estado. Em 1904 seguiu-se outra
lei que vedava o ensino, tanto nas escolas públicas como nas particulares, a
todos os membros das ordens religiosas. Finalmente, em 1905 foi aprovada a Lei
de Separação, que, como o nome indica, dissolvia a união entre a igreja e o
estado. Pela primeira vez desde 1801, os adeptos de todos os credos eram
colocados em pé de igualdade. Daí por diante o clero católico deixaria de
receber vencimentos do tesouro público. Embora algumas dessas medidas tenham
sido levemente modificadas nestes últimos anos, o clericalismo continua, para a
maioria dos franceses, envolto numa densa nuvem de suspeita.

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