A Cidade Perdida
Jerônimo Monteiro
Fonte: Editora Ibrasa, 1948
EXPLICAÇÃO INDISPENSÁVEL
TANTO SÁLVIO COMO EU ESTAMOS CERTOS DE QUE ENTRE
os ocasionais
leitores deste livro há de se encontrar algum atlante. É a esse provável leitor
que vão especialmente dedicadas estas linhas.
Nada devem
recear os atlantes que habitam ainda o coração do Brasil. O que se revela de
seu segredo neste livro será tomado pelo leitor comum como desbragada fantasia.
Ninguém vai acreditar no que está escrito lá pelas últimas páginas, de tão
inverossímil que parece, embora seja a perfeita expressão da verdade. Por isso,
a nossa indiscrição não causará nenhum transtorno e nem instigará indesejáveis
visitas a Atlantis-a-Eterna. Sabemos que nenhuma visita conseguiria se
aproximar além do ponto permitido pelos guardas dos postos avançados. Sem a permissão
do Grande Sacerdote, jamais conseguiriam chegar até onde chegamos.
Além disso, queremos dizer que, revelando o que descobrimos nesta
maravilhosa viagem, estamos nos desin-cumbindo de uma clara imposição do
Destino. Estamos certos de que o Primeiro Orientador espera que o façamos,
embora tudo pareça indicar o contrário.
Ademais…
gostaríamos de ter ficado para sempre em Atlantis-a-Eterna. Não pudemos. Mas
pretendemos voltar e tudo faremos para o conseguir. É verdade que Sálvio está
muito mudado, dirigindo um jornal radiofónico e todo entregue a negócios de
imóveis. Mas não importa. Qualquer coisa me diz que iremos terminar os nossos
dias de vida naquele lugar maravilhoso, ao lado de Quincas e de Vanila.
Sálvio tem-me dito que não conseguiremos nem chegar ao primeiro Posto Avançado.
Mas não importa. Tentaremos. Eu sei que vale a pena!
CAPITULO 1
"PARTIREMOS AMANHÃ"
ACORDEI COM AQUELAS BATIDAS PORTES NA JANELA. NÃO
eram ainda
cinco horas! Tive intenção de não fazer caso, mas como as batidas continuassem,
tive mesmo que abrir a porta e dei com a reluzente careca cor de rosa de
Sálvio.
— Partiremos amanhã! — cumprimentou ele. E sem
dúvida, era esse um esquisito começo de dia.
— Entre. Vamos ver. . . Como é que disse?
Partiremos amanhã? Para onde?
—
Aqui está o roteiro. Tudo
calculado, tudo em ordem.
—
Espere. Sente-se aí,
enquanto me arrumo.
A irrupção de Sálvio àquela hora da manhã e a esmagadora notícia de que
iríamos partir no dia seguinte j alteraram, de certo modo, o meu ponto de
vista.
Quando voltei à sala, êíe comparava um roteiro feito a lápis, com o
grande mapa do Brasil que está pendurado à parede por cima da minha mesa. Olhei
também.
E subitamente tudo aquilo — a viagem, as inscrições rupestres, os
símbolos, a kabala hebraica, o Templo do Sol, o imenso sertão — tudo aquilo se
me afigurou tão inatingível, tão problemático, tão remoto, que me invadiu uma
onda de desânimo.
— Sálvio.. . você não acha que é asneira ?
— O que? Este mapa?
— O mapa, não. Tudo. A viagem, o Templo do
Sol… Sálvio olhou-me com espanto e dúvida.
— Que é isso? Que houve com você?
— Nada. Mas raciocine. Pense um pouco… Esse
imenso sertão!.. . Florestas, pântanos, rios, perigos de toda espécie!
— Venceremos tudo, Jeremias!
— Bem… Vamos que seja assim. E você espera
seriamente encontrar, lá no inferno, o Templo do Sol?
— Tenho certeza absoluta. Há um Templo do Sol
situado entre os rios Xingu e Tapajós, entre os paralelos 5 e 10 e quase sobre
o meridiano 55 Oeste de Greenwich. Tenho certeza!
— Espere… Se houvesse qualquer coisa realmente
notável lá onde você diz, já a teriam descoberto. Centenas de exploradores têm
percorrido o nosso sertão em todos os sentidos.
— Não é bem assim. Os exploradores têm apenas
percorrido alguns dos grandes rios do interior do Brasil, sem jamais penetrar
muito longe pelas margens. E entre o Tapajós e o Xingu há um mundo, onde
caberiam folgadamente vários Estados europeus. Nenhum explorador percorreu essa
imensa extensão de terra. Ou você pensa que sim?
— Então, você me está ajudando. Se exploradores
experimentados, habituados aos rigores das selvas, não puderam explorar esse
mundo, como iremos nós fazê-lo? E, ainda mais, como poderemos ir dar com o
Templo perdido nessa vastidão?
— Nós o faremos. Porque vamos com roteiro certo
e indicações seguras.
— Ora! Você tem a coragem de chamar
"indicações seguras" a esses arabescos que encontramos e sobre cuja
origem ignoramos tudo?
— Perfeitamente. Eu creio. Tenho confiança
absoluta nas indicações que possuímos.
— Você está entusiasmado demais.
— Não estou. Tenho sérios motivos para crer, e, além
disso, você sabe que possuo certos conhecimentos. . .
— Ora. . . Que conhecimentos?
Pareceu-me
que Sálvio ia perder a paciência Mas controlou-se, e, depois de rápido
suspiro, prosseguiu:
—
Jeremias não posso entrar em detalhes. Sou depositário de segredos que a
posição que ocupo me impede de revelar. Mas você precisa ter confiança em mim. Afinal, eu participarei da sua sorte, você não irá sozinho. Por que, então, eu haveria
de o induzir a praticar loucuras ? Ouça: A tradição das religiões ocultas de que
os iniciados têm conhecimento ensina que existe um Templo oculto no mais
recôndito recesso da América do Sul. . . Eu não queria e não devia dizer-lhe
isto, mas enfim… — depois de longa pausa, e como que impelido por uma força
interior, Sálvio continuou: — Nesse templo estão guardados os tesouros dos
antigos sacerdotes do Culto Solar. Até os enfeites sagrados usados por eles na
hora do sacrifício, como braceletes, peitorais, cintos e vários apetrechos, a
maioria em oricalco, aí estão. Não se esqueça de que, logo após a descoberta do
Brasil, foram vistos alguns aborígenes com enfeites desse género, segundo
afirma Clemente Brander-burger na sua "Nova Gazeta da Terra do
Brasil", em 1515.
— Ora, Sálvio. Você.. .
— Espere. A mesma tradição, que conheço muito
bem, e que é o meu principal ponto de apoio, afirma o seguinte: "O CAMINHO
PARA O TEMPLO SÓ SERÁ ENCONTRADO POR AQUELE QUE DECIFRAR O
MISTÉRIO."
— Não. É por isso mesmo. Francamente, é muito
mistério. Não vejo nada claro. É só isso: triângulos, círculos,
"runas", "mamtrams" "lótus de mil pétalas",
decifrações .. . Não!
Foi então que, pela segunda vez, vi Sálvio exaltar-se.
— Cale a boca, ignorante! Você nada vê, nada sente, nada entende e nada sabe. Mas tem que acreditar em mim, porque eu entendo, vejo e sei.
— Pois então, vá sozinho. Eu,
positivamente, não vou!.
Sálvio ergueu-se dum pulo. Sua careca estava violácea e seus olhos pareciam
querer saltar sobre mim. Fulminou-me com um olhar e uma palavra:
— IDIOTA!
Recostei
a cabeça no espaldar da poltrona e fechei os olhos. Ouvi seus passos pesados
afastarem-se. A porta bateu com força. Depois, foi o portão que bateu e se
abriu novamente, em recuo, rangendo.
Eram seis horas.
***
O
dia estava lindo, e a lembrança de ir até à cidade não era má. Na praça do
Patriarca era convidativa a escadaria da galeria subterrânea. E, quando eu
chegava em baixo, coincidia estar chegando, também, o ônibus de Santo Amaro. Ia
partir vazio. Pulei dentro dele. Parece aventura andar num ônibus vazio em São Paulo.
O
meu pensamento era ir até Santo Amaro e almoçar junto à represa, mas quando
passava por Brooklin, lembrei-me do Mateus, e saltei. Era gostoso caminhar sem
pressa pela estrada em direção do Morumbi. O ar da manhã estava fresco. Da
terra subia agradável cheiro inclassificável. Os pássaros piavam, e operários
cruzavam comigo, apressados. Eles decerto não tinham, como eu, um problema
idiota na cabeça. Não pensavam em penetrar sertões desconhecidos à procura de
incríveis Templos do Sol…
As
poças de água lamacenta eram lindas na sua tranquilidade de expectativa. O
matagal que marginava a estrada, intrincado e sujo, era ridícula sugestão das
matas virgens que me acenavam de longe. Apanhei morangos silvestres que me
souberam maravilhosamente bem, e olhei admirado os joiás côr de fogo que
enfeitavam o verde escuro da folhagem.
Quando apareceu a ponte que atravessa o rio, a casa de Mateus estava
perto. A sebe que a rodeia é baixa. As janelas estão todas abertas, o que
indica que ninguém mais dorme lá dentro. Dois garotos, sujos, brincam no monte
de areia que sobrou da construção, e lá no fundo do quintal, Mateus, com calças
velhas e rasgadas e calçando tamancos, está arrumando o arame de estender
roupa.
Decerto, Mateus também não se preocupa com misteriosos Templos do Sol, e
não pensa em impossíveis viagens pelo sertão central do Brasil.
Dei um berro:
— Olá! Mateus!
Ele voltou-se vivamente e sua
cara riu toda.
— Jeremias!
A esta hora! Entre! — E para dentro:
— Mariquinha, arrume um café para o compadre Jeremias !
E depois, limpando as mãos nas
calças esfarrapadas:
— Mas que diabo foi isso? Você às sete da manhã
aqui neste fim de mundo! Que é que anda fazendo pelo mato a uma hora destas?
— Passei uma noite atribulada. Queria me
distrair um pouco, respirar ar puro. . . Acho que estou envenenado.
— Álcool, já sei.. .
—
Não, meu caro. Pior do que
isso. Ideias!
— Ah. . . então, fêz muito bem. Depois do café
vamos ao rio_ pescar uns acarás para o almoço. Venha.
D.
Mariquinha, mineira bonita, um tanto estragada pela vida, acabava de preparar o
café na pequena cozinha, com os quatro filhos menores embaraçando-lhe os
passos, reclamando e discutindo. Tomamos o café em canequinhas de lata. Na casa
de Mateus tudo é de lata. As panelas são de latas de banha; as canecas, latas
de leite condensação; os pratos, latas de marmelada. É um paraíso primitivo e
bom, com a natureza emboscada em todos os cantos: nele próprio, na sua boa
companheira, nos cinco irrequietos filhos, nos escassos móveis e na alegria
saudável que polvilha tudo. Mateus é um rapaz que aprendeu a viver a vida com
simplicidade e sem desejos desmedidos — como esse de procurar Templos do Sol. .
.
Do degrau da soleira só se viam as árvores do terreno vizinho, o grande
céu azul e o morro do Morumbi, que cansava a vista numa subida estafante.
— Mateus,
me diga uma coisa. Você acredita que haja
no centro do Brasil algum vestígio de civilizações antigas ?
A pergunta estava tão fora de qualquer cogitação do
velho amigo, que ele não a entendeu bem.
— Como é? Civilizações de onde?
— Pergunto se você acredita que possa haver
vestígios de um passado grandioso, com civilizações e grandes povos lá no meio
das matas do Brasil.
— Ah! Naturalmente! Decerto que os índios que
foram encontrados aqui devem ter um passado.
— Sei. Mas que espécie de passado?
— Um passado civilizado, é claro. Se eles não
tivessem possuído uma grande civilização não estariam no estado em que foram
encontrados.
— Ora essa! Que ideia absurda a sua!
— Mas é claro! Só quem já teve uma civilização
muito grande e artificial é que pode acabar sendo o que são os nossos índios. Ê
preciso cansar-se de tudo na vida, do luxo, das festas, dos artifícios, para se
chegar a compreender bem as delícias da vida simples junto à Natureza., . E os
nossos índios já passaram por tudo isso. Eis porque eles não ”topam" a
nossa civilização, por mais que a gente os queira "civilizar". Nós
estamos é arruinando a vida deles, matando-os, destruindo-os. Se fôssemos
humanos e inteligentes; se soubéssemos respeitar os direitos alheios —
deixaríamos esses homens viver em paz a vida que melhor lhes aprouvesse. Mas
não. Teimamos em obrigá-los a adotar o nosso artificial e deletério sistema de
vida. ..
Interrompi-o, espantado:
— É assim que você pensa, Mateus?
— Naturalmente. Quem compreende a vida, tem que
pensar assim. Você não vai me dizer que esta sordidez em que vivemos, esta
trama intrincada de maldade, inveja, injustiça, crueldade e ódios — é a vida
para que fomos criados…
— Está bem, Mateus. Vamos pescar.
O rio Pinheiros foi desviado do seu antigo curso. Agora, o braço, meio
estagnado, move-se lentamente demais para merecer o nome de rio, e está preso
entre profundos barrancos. Na água serena e turva há grande quantidade de
acarás, e o acará torradinho é muito gostoso.
CAPÍTULO 2
"ESTE
MUNDO NÃO É DO MEU CONHECIMENTO!"
P ESCAR E, COM CERTEZA, A MAIS AGRADÁVEL DAS OCUPAções. Talvez por ser o melhor pretexto para se
permanecer à margem de um rio, embebido o pescador no suave fluido da natureza.
Quanto a mim, não há estado de irritação capaz de resistir a duas ou três horas
de pescaria em manhã ensolarada. Já tínhamos duas dúzias de acarás
enfiadas no cipó, quando Mateus voltou ao assunto: Mas o que é que houve,
Jeremias?
—
Você conhece o Sálvio?
— Aquele seu amigo careca que anda metido numa
religião esquisita?
Esse
mesmo, Ele quer que eu o acompanhe não sei para onde, a fim de descobrir um
Templo do Sol, e os restos de antiga civilização, que, diz ele, deve ter
existido no Brasil em séculos passados.
—
Maravilhoso! E você não
quer ir?
— Nem sei. .. E o pior é que eu é que tenho a
culpa de tudo… Esta madrugada, ele foi me acordar para dizer que devemos
partir amanhã, que já tem o roteiro pronto e
não sei que mais…
—
E você…
Não respondi. Um galho que derivava girando, levou-me
o olhar para longe. Só quando ele desapareceu na curva é que voltei ao assunto:
— Você se recorda de um tio meu, chamado Adolfo,
que foi para as Guianas há uns dez anos?
— Sim. Você me falou dele. Que é que tem com isso?
— Bem… é uma história muito longa. Tio Adolfo morreu na Venezuela,
há um ano, e eu recebi uma velha mala que ele deixou. Dentro dela, com outras
bugigangas,
vinha um pedaço de grade de ferro batido, muito antiga, e de desenho realmente
curioso. Nunca fiz conta daquilo. Ao contrário, sem compreender que motivo
poderia ter levado meu tio a guardar pedaços de ferro velho, por várias vezes
estive tentado a atirar fora a grade. Um dia, porém, tudo mudou com respeito ao
"ferro velho". Foi o seguinte: encontrei-me com Sálvio na cidade,
depois de muito tempo sem nos vermos. Você sabe. Conversa vai, conversa vem,
falamos no tempo em que trabalhamos juntos na Sorocabana, recordamos os
companheiros que nos deixaram saudades e, afinal, Sálvio carregou-me para o
quarto onde mora, lá para os lados do Paraíso. No quarto dele só havia livros.
Livros por todos os cantos, nas estantes, dentro do guarda-roupa, em cima das
mesas e em pilhados no chão. E o interessante é que os livros dele são daqueles
que a gente vê, pega, apalpa, folheia e não quer largar mais. Todos estavam
indicando que Sálvio tem espírito investigador, dedicado a estudos pitorescos,
apaixonantes e talvez. . . estranhos. Bem sei que nem todos aprovam o gênero de
especulações a que Sálvio se entrega, mas ele é sincero. Alguns espíritos menos
arejados talvez; até nutram certo receio perante suas preocupações e suas
ideias. Mas esses são tolos. Na verdade, não há nada de misterioso ou perigoso
na especialidade que Sálvio abraçou. Eu sabia, já, certas coisas, mas só nesse
dia é que pude compreender melhor o nosso amigo, e percebi, então, quão totalmente
alheios a tudo quanto eu já pensara eram os estudos a que ele se dedicava. É
incrível como neste mundo há coisas importantes das quais nunca suspeitamos
sequer e que, no entanto, enchem a vida de multidões!
Mateus ouvira o meu longo discurso sem se manifestar, mas, nesse
momento, deu um aparte bem ilustrativo.
— Bem sei. Suponhamos uma pessoa que goste de
flores. Ela ficará encantada diante de um lindo jardim florido. Um dia, alguém
lhe apresenta um exemplar de "cattleya labiata". Com certeza, essa
pessoa ficará espantada diante das magníficas flores de vinte centímetros de
diâmetro. Depois, esse alguém lhe dirá: isto é uma orquídea, uma "cattleya
labiata" do Norte do Brasil. As orquídeas são plantas extraordinárias, que
muita gente chama, erradamente, de parasitas. Elas não sugam a seiva das
árvores onde vivem. Podem prosperar sobre pedras, ou em vasos de xaxim, que,
evidentemente, não têm seiva alguma para oferecei*. Vivem graças aos
microrganismos que em suas raízes transformam os elementos do ar e da água em
matéria assimilável. Têm um género de vida completamente diferente do de todos
os outros vegetais conhecidos e armazenam nos pseudobulbos reservas de energia
para resistir aos maus períodos. Não é um mundo novo para aquela pessoa que ama
as rosas e os cravos?
— Evidentemente, Mateus. É exatamente o que
quero dizer a respeito de Sálvio e dos seus livros e estudos. Eu,
positivamente, não conhecia aquilo. Ele possuía, dentro de seu quarto, um mundo
completamente novo para mim. Algumas horas de convivência no seu quarto
sossegado fizeram com que o conhecesse melhor do que em vinte anos de
coleguismo e conversa de mesas de bar. Mas você quer ver o mais interessante?
Apanhei, de entre os seus livros, um volume não sei de que autor, que tratava
dos selvagens do Brasil. Era fartamente ilustrado. Ora, os nossos indígenas
sempre mereceram a minha mais comovida simpatia, embora eu não tivesse tido
oportunidade de ‘ os conhecer melhor. Examinando, muito interessado, as
gravuras, parei diante de uma delas e disse:
— Veja,
Sálvio! É evidente! Não pode haver dúvida alguma! Os nossos índios são
descendentes dos orientais, dos mongóis… veja! Veja isto!
Em
vez de olhar a página do livro, Sálvio olhou-me sorrindo paternalmente e disse:
— E por que não podia ser o contrário,
Jeremias?
Essas poucas palavras, ditas por uns lábios sorridentes,
na quietude silenciosa
do quarto, enquanto a chuva caía insistente lá fora — foram como uma catapulta
que se põe em movimento.
— O contrário? O contrário, como?
— Sim. Simplesmente o contrário. Por que não hão
de os mongóis, os orientais e o resto dos homens ser descendentes dos nossos
indígenas, ou melhor, um ramo colateral da raça ameríndia?
— Ora, Sálvio. . . parece brincadeira. Eu tenho
lido alguma coisa a esse respeito. Sei que os chineses são bem mais antigos do
que os guaranis…
—
Mas por que são mais
antigos?
— Porque tudo o prova. A sua história milenar, a
sua tradição…
— Os nossos índios podem ter uma história que,
de tão milenar, se perdeu na noite dos tempos. A dos chineses é tão nova que
ainda pode ser perfeitamente lembrada.. .
— Ora… e as inscrições rupestres.. . você sabe
que nas rochas do interior do Brasil se encontraram inscrições que indicam a
visita feita ao Brasil por povos de outras terras, antes de 1500. Decerto,
alguns desses visitantes é que deram origem aos nossos indígenas.. .
— E, se assim fosse, por que não teriam eles
continuado as civilizações de suas pátrias, civilizações tão grandes que
permitiram a travessia do oceano e deram origem a uma escrita… ?
— Bem. . . Quer dizer que eles regrediram, e
esqueceram tudo. . . com exceção de alguns, que, fixando-se na orla do
Pacífico, conseguiram progredir, como os Astecas, Toltecas, Incas, etc.
Durante minha fala, Sálvio conservara o sorriso nos lábios e me olhava
com ar de paternal condescendência, como quem olha um menino que, com um
canivete e uma tora de peroba, trabalha na certeza de que vai fabricar um
violino.
Protestei:
— De que ri? Não foi isso mesmo?
— Jeremias — começou Sálvio pausadamente, sem
alterar a voz, como era seu costume falar — você vai ouvir umas coisas que lhe
quero dizer. Talvez seja maçante, mas você precisa ouvir para não tornar a
dizer tolices e para ajudar a repor as coisas nos seus devidos lugares. Você
acaba de dizer o que todo mundo diz e todo mundo aceita, porque foi divulgado
com foros de veracidade científica. Mas, como todos os que repetem o que ouvem,
não usou o cérebro, não tentou raciocinar. Diga uma coisa: você sabe, por
acaso, que o nosso Brasil está situado no "continente mais antigo do mundo"?
— Sim. .. tanto que Conan Doyle, quando quis
arranjar um cenário adequado para a sua história do "Mundo Perdido",
com animais antediluvianos ainda vivos, escolheu o planalto central do Brasil.
— Isso é fantasia, Jeremias. É claro que Conan
Doyle sabia de alguma coisa, mas a verdade científica, meu caro Jeremias, é que
o planalto central do Brasil é formado pelas rochas pertencentes ao período
chamado, em geologia, "de transição"; rochas que não foram cobertas
por nenhuma formação mais recente.
—
Mas… isso…
— Espere. Não há, em nenhum outro ponto do nosso
planeta, tão grande extensão de terreno que ofereça igual aspecto. E essas
rochas de transição assim, à flor da terra, provam, simplesmente, que o
planalto central do Brasil já emergira das águas havia muitos e muitos séculos
quando outras partes começaram a surgir e secar ao ar. Decerto, você sabe que
as rochas se formam pelos depósitos sedimentares que se vão acumulando no fundo
das águas.. .
—
Bem. Mas. . .
— Cale-se! Agora, está falando a Ciência! O solo
da maior parte do nosso país é constituído de rocha primitiva, arcaica. No
planalto central aflora, por todos os cantos, o "cristalino", rocha
que constitui os legítimos alicerces do globo. No Amazonas afloram rochas do
período permeano e até o siluriano, o mais antigo dos terrenos paleozóicos, foi
assinalado nos saltos de vários rios do Amazonas e do Pará. Isto confirma o que
eu já disse: que esta parte do globo estava já exposta ao ar, e, talvez,
coberta de vegetação primitiva, enquanto as outras partes, ainda mergulhadas na
água, continuavam recebendo novas camadas de sedimento e que, milénios mais
tarde, emergindo, formariam os outros continentes, o "velho mundo"
etc, mas, na verdade, os novos continentes, de constituição geológica mais
recente do que a do solo brasileiro. Pense bem sobre isto, e não esqueça nunca:
se a nossa terra surgiu das águas milénios antes das outras, deve, também, ter
recebido a semente da vida milénios antes delas. Foi um adiantamento que
tomamos e que ninguém nos poderá mais tirar.
— Espere. Isso é história antiga demais. Que é
que tem que ver com os chineses e os mongóis?
— Chegaremos lá. Como vê, o "novo
mundo" que Colombo e Cabral descobriram era, precisamente, o mais
antigo dos mundos e, como o demonstrou Le Plongeon, depois de onze anos de
conscienciosas pesquisas — era também o berço da raça humana e, portanto, o
berço da civilização, pois que, nascendo primeiro aqui o homem aqui deve ter
evoluído primeiro.
—
Bem.. .
—
Isso, Jeremias. Bem! Muito bem,
até! Você compreenderá tudo claramente, dentro em breve. Até poucos anos atrás, os cientistas acreditavam que o "homo" tivesse
aparecido só no período quaternário, enquanto desapareciam os animais
monstruosos que se convencionou chamar "antediluvianos", e que seriam
próprios do terciário. Eles teriam morrido durante a Idade Glacial que
aniquilara todos os vegetais de que se nutriam. Pois bem, você sabe que os
períodos geológicos se contam por milhões de anos.
— Mas o aparecimento do homem no quaternário é
um fato provado. Quatrefages…
— Provado, não. É, apenas, um fato
"sustentado". Ouça isto: Homens de reconhecida probidade científica,
como Peter Lund, Aníbal Matos, Pedberg, Morton, Ame-ghino, Hrdlicka, e outros,
pesquisando com critério em diferentes pontos da América do Sul, encontraram
vestígios insofismáveis da existência de uma civilização muito, mas muito,
anterior às famosas civilizações chinesa, egípcia, persa, romana ou qualquer
outra das já estudadas e pesquisadas pelo homem. E, o que é mais significativo,
provaram que o homem já existia na América do Sul pelo menos ao fim do período
terciário. Isto é: o homem já vivia no nosso continente alguns milhões de
anos antes da época em que se acreditava tivesse ele surgido. Compreende
isso, Jeremias? É muitíssimo importante! Na Lagoa Santa, nas Furnas de São
Leopoldo, no Estado de Minas Gerais, encontraram-se oitenta esqueletos do
"homo americanus" de mistura com ossadas de grandes herbívoros que só
existiram pela época Terciária. Quer dizer, até que se prove o contrário, que
esses homens e esses animais foram contemporâneos e, portanto, o "homo americanus"
é terciário! Mas há mais, ainda, ouça: o gliptodonte viveu na era
Terciária e era um monstruoso animal, couraçado como o tatu dos nossos dias.
Pois foram encontradas, aqui, na América do Sul, carapaças de glip-todontes
cobertas com traços e arabescos evidentemente feitos por mão humana, e embaixo
de uma dessas carapaças encontraram o esqueleto de um dos primitivos habitantes
da América. Isto tudo, em terrenos da era Terciária. É concludente,
indiscutível.
Como
você pode imaginar, eu estava esmagado com essas revelações. Exclamei:
— Isso
é que é sabedoria! Estou positivamente aturdido. Esse mundo não é do meu
conhecimento!
— Acredito, É natural. E, agora, raciocinemos um
pouco. Se o homem apareceu na América antes de aparecer em qualquer outro
lugar, porque aqui se encontravam as condições necessárias ao seu aparecimento,
temos que em outros continentes apareceram as condições necessárias à vida
humana. É lógico, portanto, que o homem seguiu com o tempo. Só milhares de
anos mais tarde é que acreditar que o seu processo evolutivo normal
pros-americano se passasse para esses lugares, e que, aqui no seu berço natal,
mercê da evolução cumprida, já estivesse a caminho da civilização, enquanto raças
diferentes, inteiramente selvagens, apareciam nos diversos pontos do mundo…
—
Tem razão. Isto é
bastante claro…
— Mas ainda há mais. Nas camadas inferiores do
quaternário, aqui na América, foram encontradas cabeças de javali
artisticamente lavradas, como cita Perez Verdía. É fácil tirar a conclusão. Se
nos primeiros tempos do quaternário o homem era capaz de se entregar a
manifestações artísticas, é que já possuía milhares de anos de evolução, não é
claro?
— Sim. É bem claro. Estou compreendendo admiravelmente.
Como se abrem novos horizontes!
—
Agora, vejamos outro aspecto da
mesma questão. Todos os pesquisadores da arqueologia sul-americana verificaram
que existem, de norte a sul do continente, testemunhos de todo gênero, deixados
por uma civilização desaparecida, como sejam: ruínas de templos, palácios,
pirâmides, hipogeus, túmulos, monumentos de estilo original, cujas linhas
arquitetônicas não se parecem com as dos monumentos egípcios ou greco-romanos.
Aqui em São Paulo, no antigo município de Batalha, fizeram-se ricas descobertas
arqueológicas. É conhecida a célebre "esfinge" do Paraná. Em Boa Vista, no Rio Grande do Sul, foram descobertas as bases de uma construção monumental. Há
ídolos zoomorfos è antropomorfos na Serra de Sincorá. Há ruínas de uma cidade
monumental na Bahia. E há, além de tudo, inscrições rupestres, petróglifos,
símbolos e sinais antiquíssimos gravados em milhares de rochas, por todo o
interior do Brasil.
— Mas, espere! Se tudo isso é verdade, por que a
ciência oficial teima em considerar o Oriente como berço do homem e das
civilizações?
— Ora… Porque, para o comodismo nacional é
mais fácil declarar que uma forma estranha na pedra é simples "capricho da
Natureza", do que organizar exaustivas e custosas pesquisas bem dirigidas.
E porque, uma vez estabelecido que o Oriente, a Ásia, foi o berço da
humanidade, a ciência dificilmente quererá voltar atrás, e será preciso imenso
trabalho para induzi-la a isso. Ora, como aqui não nos incomodamos
absolutamente com tais problemas, vai tudo no melhor dos mundos e se afasta a
trabalheira enfadonha de abandonar o que está feito para se recomeçar sobre
novas bases. Acredito, no entanto, que apesar de toda a resistência e do
profundo letargo do interesse nacional, a verdade vai abrindo caminho, porque
as provas se acumulam de tal maneira que, dentro de alguns anos, todo o mundo
terá que se curvar à evidência. Talvez os nossos sábios resolvam, também, tomar
a coisa mais a sério…
Durante
alguns minutos nos mantivemos em silêncio. Eu pensava naquilo tudo — um mundo novo, vibrante, apaixonante, repleto do perfume místico do passado, de um passado
longínquo, tão longínquo que a imaginação vacila ao localizá-lo em qualquer
época ao longo do tempo. Depois, reatei o fio da conversa:
— Sálvio, você falou, ainda há pouco, em
inscrições rupestres, petróglifos e símbolos…
—
É verdade. Pelo interior do
Brasil, especialmente no Nordeste, nos arredores de Natal, encontram-se pedras
gravadas com símbolos estranhos. O interessante é que muitos desses símbolos,
embora feitos há milénios — os nossos selvagens não só não os sabem decifrar,
como não têm memória alguma sobre eles e também não fazem nada semelhante — são
muito parecidos com os que se encontram nas escritas sagradas de vários povos
dos chamados "antigos", da Ásia, da África; e muitos deles se
assemelham, mesmo extraordinariamente, a signos de kabala hebraica. São comuns,
por exemplo, nas inscrições rupestres do Brasil, os caracteres rúnicos.
—
Rúnicos?
— "Runa" é o vocábulo que significa
"homem", e a kabala ó inclui até hoje.
— Isto traz em si possibilidades grandiosas! —
exclamei, percebendo, num relance, a tremenda importância daquela observação.
— Sem dúvida. E vejo que você está começando a
apreender o fundo da coisa…
— Sim. Estou entrevendo algo de grande importância,
muito empolgante, mas sinto-me incapaz de pensar sozinho. .. Você… que é
que pensa de tudo isso, afinal?
— O que eu penso é muito simples, Jeremias, mas,
no atual estado dos conhecimentos estabelecidos, poderá parecer loucura. Só o
conto a você porque somos amigos, e, mesmo que lhe pareça absurdo, você não vai
me matar…
— Diga logo. Esse preâmbulo me faz esperar algo
muito importante.
—
Você ouvirá e julgará. Penso que
no planalto central do Brasil deve ter-se desenvolvido, em épocas muito
primitivas, uma civilização, que seria o ponto de partida para todas as
decantadas civilizações do mundo. Daqui teriam saído os homens que, fundando a
Atlântida, se tornariam os mais famosos e misteriosos seres da nossa raça. Da
Atlântida eles se teriam passado para a África, com os elementos que deram
nascimento à decantada civilização egípcia. A civilização sul-americana, como
todas as outras, devia ter-se baseado num princípio religioso, e este só podia
ser o culto solar, porque nada impressionou tão profundamente o homem primitivo
como o sol, porque bem logo ele aprendeu a reconhecer que é do sol que nos vem
toda a vida. E a tradição nos ensina que os templos do sol eram, comumente,
subterrâneos… Afinal, o melhor é parar por aqui. Isto não passa de
imaginação.
Eu estava ficando perturbado, porque me lembrava de uma coisa.
— Estou me lembrando…
— De quê?
— É a respeito de símbolos. Tenho algo que
talvez seja importante.
— Você tem?
— Tenho.
— Mas tem o quê?
— É um trabalho em ferro batido que recebi da
Venezuela, numa mala que meu tio me mandou, um tio que foi para as Guianas há
muitos anos.
Sálvio mexeu-se nervosamente na cadeira.
— Espere. Você diz que tem um trabalho em ferro
batido… que espécie de trabalho? Que tem que ver com o que estivemos
conversando?
— Não sei precisamente. Mas são uns desenhos…
Um círculo, uma cruz… creio que tem também um sol e me-ia lua…
Sálvio
quase pulou. Mas tratou de se dominar e, já sereno, falou:
—
Pode ser que você esteja enganado, Jeremias, è que esse trabalho não tenha
valor algum. Mas também pode ser que suceda exatamente o contrário. Preciso ver
isso. Preciso ver com urgência!
* * *
Mateus
ouvira a minha longa narração em silêncio e pescando conscienciosamente. Era
como se eu tivesse estado falando sozinho e, na realidade, falara para mim
mesmo como num sonho, recordando com prazer as minúcias daquele primeiro
encontro com Sálvio depois de dez anos de ausência.
— E
depois? — perguntou ele quando viu que o meu
silêncio se tornara longo demais.
— Depois?
Sálvio fez questão de ver a grade de ferro naquela noite mesmo. Já era
madrugada quando chegamos à minha casa. Logo que viu o pedaço de ferro ficou
louco. Atirou-se a ele e, até romper o dia, esteve debruçado sobre a mesa,
interpretando, estudando, falando sozinho. Eu adormeci de cansaço, mas ele me
acordou, quase às nove horas, dizendo:
—
Jeremias. Isto é o maior achado de todos os tempos. Posso levar comigo, para
estudar melhor?
Concordei logo. Eu queria era deitar-me, descansar. Isso foi há dois
dias. E hoje pela manhã ele me apareceu em casa,
ás cinco horas, berrando: "Partiremos amanhã!"
—
Partirão para onde?
—
Sei lá! Quantos peixes
você pescou?
— Perdi a conta. Mas já temos demais. Vamos
embora, que a Mariquinha ainda tem que prepará-los para o nosso almoço.
Os acarás estavam deliciosos.
Depois
do almoço, voltamos para a cidade. Mateus dirigiu-se para a Repartição onde
trabalha e eu, em singular disposição de espírito, dirigi-me à casa de Sálvio.