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CAPITULO 18

SERÁ UM ATLANTE?

T IVEMOS GRANDE DIFICULDADE EM SUBIR A SERRA ESCAlavrada. Sálvio estava
enfraquecendo, apesar de toda a sua coragem, e eu devo, a bem da verdade, dizer
o mesmo de mim, embora me fosse fácil inventar uma porção de coisas a meu
respeito… Mas Quincas… esse sim! Era o mesmo valente guia que já outras
vezes nos salvara com a sua singular energia. Animava-nos. Subia vagarosamente
e obrigava-nos a fazer o mesmo, embora estivéssemos quase sem nada para comer,
e, portanto, tivéssemos pressa de chegar ao "fim". Se tínhamos
bastante água, acontecia o contrário com a comida. De todos os frutos e raízes
que havíamos colhido na floresta antes de descer para o vale dos escombros, só
nos restavam algumas raízes que, além de serem poucas, tinham péssimo gosto e
eram muito fibrosas. De tanta coisa boa que tivéramos a princípio, só nos
sobrava o pior. Tanto é verdade que o mal dura mais que o bem.

Foi
durante essa subida que nos lembramos novamente dos nossos invisíveis
perseguidores, que haviam dado frequentes sinais da sua presença desde que
saíramos do cemitério subterrâneo até à entrada no vale dos escombros. Quem
seriam? Quais seriam as suas intenções? E por que não se teriam manifestado
novamente?


Eu acho — disse Sálvio — que eles tentaram nos fazer desistir da viagem, sem
querer empregar violência… e, agora, depois de entrarmos no vale dos
escombros, decerto acharam que não seria mais preciso intervir porque nos destruiríamos
sozinhos… Mas enganam-se!

– Talvez você tenha razão — opinei. — Mas acho muito
melhor assim. Já temos muitas preocupações para que ainda por cima tenhamos que
pensar em perseguições e perseguidores…

Era
ao entardecer e estávamos sentados sobre um bloco de granito, na imensa solidão
circundante. Antes de nos estendermos para dormir, atiramos fora os
restos de frutas que ainda carregávamos, e fizemos um amarrado com as raízes fibrosas,
depois de comer um punhado cada um.

Dois dias
depois, porém, vimos, com espanto, que também as raízes fibrosas se haviam
estragado. Desenvolvera-se nelas intensa fermentação. Quincas, no dia anterior,
tinha-as mergulhado na água por algum tempo para torná-las mais
macias. Talvez isso as inutilizasse.

Miramos tudo, um pouco antes do meio-dia, quando já entávamos a pequena
distância do alto da serra. Passamos, então, terríveis momentos. O futuro nos
parecia trágico. Como havíamos de fazer, num ermo daqueles, sem possibilidades
de alimentação? Voltar? Lembrei-me com saudade daquele "varanus" que
víramos lá para trás e pareceu-me que, assado, ele daria um excelente
petisco… Estão vendo como é a natureza humana?

O que tínhamos a fazer era, unicamente, caminhar, caminhar sem
descanso, pois que o deserto tinha que acabar algures.

À tarde chegamos ao alto da serra.

Do outro lado. . . erguia-se outra montanha, além de um vale pouco
profundo, por onde corria um fio d’água.

Eu
e Sálvio deixamo-nos cair, desolados, ali mesmo. Quincas obrigou-nos a ficar
novamente de pé:


Não! Nada disso! Nada de desânimo! São apenas quatro horas e poderemos chegar
lá embaixo antes da noite.. . Vamos! Cada metro que andemos é um metro ganho na
corrida com a morte!

Não foi possível resistir. Pusemo-nos, novamente, a caminho para o
fundo do vale, e o fizemos cambaleando. Deitamo-nos, afinal, ao lado do corgo,
e, apesar da fome, dormimos. Agora é que descobrimos porque nos momentos mais
críticos Quincas nos obrigava a fazer maiores esforços e andar mais: era
porque, além de nos fazer ganhar tempo, nos cansava de tal maneira que
dormiríamos bem, apesar da fome e da sede.

Dizem por aí e escrevem também, que a gente pode aguentar melhor a fome
do que a sede. Pode ser, mas, no dia seguinte, quando quisemos reiniciar a
caminhada para subir a montanha que tínhamos pela frente, sentíamo-nos de tal
maneira fracos que isso não foi possível.

Terríveis dores me roíam o estômago; a cabeça me doía de modo pavoroso
e as pernas bambeavam. Recusei-me a seguir. Sálvio quis bancar o valente e deu
alguns passos, para cair mais adiante. Quincas insistiu, gritou, xingou–nos.
Só faltou nos bater. Mas ficamos ali, estupidamente, como crianças teimosas.
Nada nos interessava senão cultivar as dores que sentíamos.

Quincas fechou carranca e sentou-se a certa distância, olhando desolado
para o alto do morro.

Sálvio
fitava um daqueles arbustos ressequidos e retorcidos que cresciam no deserto.
De repente, disse:

Ah… se essa árvore tivesse folhas, eu as comeria!

Eu
olhei também, e tive uma inspiração. Levantei-me e curvado, apertando o
estômago com ambas as mãos, ar-rastei-me até o arbusto. Com o nariz perto do
seu caule, senti que me vinha água à boca. Lancei a mão a um galho e parti-o.
Era como um talo de couve. Vi, com espanto, que esse estranho arbusto das
rochas, apesar de seu aspecto requeimado, era suculento! Levei o pedaço à boca
e mordi-o.

—    Você está louco! — falou Sálvio com voz rouca.
— Deixe isso! Pode ser venenoso!

—    Sei lá! — respondi com a boca cheia, babando e
mastigando a polpa do galho. — É gostoso!

No
minuto seguinte, os dois estavam ao meu lado e mastigavam gulosamente punhados
dos galhos secos!

Engraçado!
O homem é engraçado! Aquilo, para dizer a verdade, com licença da palavra, era
uma porcaria! Os galhos tinham muito sumo, mas não tinham gosto de coisa
alguma! Eram levemente adstringentes e deixavam um bagaço semelhante ao da cana
de açúcar. Pois essa "coisa" nos soube deliciosamente! Depois de
comer o arbusto inteiro ficamos reconfortados.

Assim,
pudemos continuar. Avançamos à escalada da montanha como se fôssemos a um
passeio higiénico. É verdade que, comparada à montanha já vencida, esta era
pequena. Mas, de qualquer modo, era uma montanha e subir montanha só é
exercício agradável para os que nasceram com o coração de alpinistas.

No dia seguinte à tarde, estávamos no cimo, e então, descortinou-se
ante os nossos olhos o panorama que tanto almejávamos!

Ao
longe, a partir das faldas da montanha, estendia-se verdejante e intérmina
floresta!

Esperávamos dormir maravilhosamente, pois que tínhamos, agora, bom
material para sonhos côr-de-rosa…

Mas,
tão incompreensíveis são os caprichos da biologia humana, que essa foi a pior
noite que tivemos. Tive pesadelos, acordei mil vezes e vi meus companheiros
também inquietos e insones. E o pior é que tivemos, pela manhã, despertar nada
invejável.

O
sol já se tinha erguido quando abri os olhos, e a primeira coisa que vi foi um
homem, de pé, a pequena distância. No primeiro instante, pensei que fosse um
dos meus companheiros, e ia chamá-lo, quando percebi que estava vestido de
maneira estranha: uma espécie de túnica, apertada à cintura por cinto
rebrilhante. Por baixo usava calção, como vi mais tarde. As pernas estavam nuas
e os pés calçados com sandálias de grossa sola e presas aos pés por tiras de
couro. Estava meio de costas.

-— Olá! — gritei.

O
homem voltou-se lentamente para mim, e então, vi-lhe o rosto, de nobres traços
e de côr acobreada. Lembrava, remotamente, as figuras dos baixos-relevos do
corredor subterrâneo.

Apenas
olhou. Não disse uma palavra. Depois, voltou-se e ficou na posição primitiva. Então,
chamei meus companheiros. Eles acordaram, vieram para o meu lado e os três
ficamos sentados no chão, olhando o estranho visitante. Quincas, apontando o
homem, perguntou a meia-voz:

— Quem é?

— Não
sei — respondi, no mesmo tom. — Sálvio que o descubra.

Pusemo-nos
de pé e o homem virou-se para nós, mas não falou; ficou olhando curiosamente,
um e outro. Sálvio tomou a palavra:

— Então, senhor.. . senhor.. . Quem é?

Achei
a pergunta razoavelmente idiota. Pareceu-me que ele é que tinha o direito de
nos arguir. Mas Sálvio fê-la, e pronto!

O
nosso homem é que não se impressionou absolutamente. Pronunciou uma breve
sílaba e estendeu o braço em direção à floresta, lá embaixo. Depois, começou
a andar.

— Decerto quer
que o sigamos — disse Sálvio. —
Vamos.

Seguimo-lo.
Ele andava com passo seguro, elástico, elegante e nós trotávamos atrás.

—    Vocês repararam? — perguntei. — Repararam como
ele se parece com os homens das esculturas daquele cemitério ?

—    É isso mesmo! — exclamou Sálvio entusiasmado.
— Eu estava querendo me lembrar onde vira caras iguais a essa… é isso mesmo!

—   
Será um atlante? —
perguntou Quincas?

—    Bem. . . isto está parecendo um sonho, um
romance. . . Mas creio que tenho que responder afirmativamente. Esse homem deve
ser um descendente direto dos atlantes… Bem vêem que não tem muita semelhança
com os indígenas que estamos acostumados a ver…

Eu, então, senti o "estalo" de Vieira, e
despejei:

—    Mas Sálvio, se ele não se parece com os nossos
indígenas, como é que estes podem ser descendentes dos atlantes, como você tem
sustentado?

—    E continuo a dizer o mesmo. Os nossos
selvagens são descendentes dos atlantes. Apenas, colocados em situações
diversas, obrigados a lutar com dificuldades e tendo que viver em clima e
ambientes discordantes, e talvez, também, por outras causas que não conhecemos,
nem suspeitamos — desviaram-se da vida primitiva e se tornaram selvagens,
adotando novos hábitos, iniciando vida diferente. Perdidos pelas selvas,
espalhados pelo continente durante séculos e séculos, sofreram profundas
alterações. Alguns, como os incas, em terreno propício, continuaram as
tradições de seus ancestrais (vocês devem saber que quando Pizarro chegou a
Cruzco, esta era uma cidade sagrada, onde se adorava o Sol, e que vivia numa
civilização puramente atlântida); outros, em contato com a selva brutal,
corridos de um lado para outro, por grupos dispersos e diante da necessidade de
lutar hora a hora por tudo — perderam a civilização e a sabedoria de seus
antepassados, transfor-mando-se nos selvagens atrasados que conhecemos. No entanto,
acredito que haja vários centros pelo interior ido continente, e talvez mesmo
no Brasil, que conservam vestígios desse passado grandioso… pelo menos,
espero que assim seja…

—    Bem… acredito, então, que estamos terminando
a nossa jornada…

—    Naturalmente. Esse deve ser um atlante que nos
vai levar ao ponto final…

—    Pois eu acho que agora é que estamos chegando
ao começo — opinou Quincas.

—    Por quê?

—    Ora, Jeremias… Esse cavalheiro que vai aí na
frente não me inspira confiança alguma. Ao contrário. Creio que nos vai dar
muito trabalho.

—    Não creio.

—    Por quê?

—    Não sei. Pressentimento.

—    Pois veremos os seus pressentimentos…
Continuávamos a caminhar regularmente atrás do nosso

guia. E ele não
andava ao acaso, mas seguia um caminho bem aplainado que poderia nos ter
passado despercebido. Por isso, progredíamos rapidamente. Pelo meio-dia
quisemos parar para comer alguma coisa. Tentamos fazer o nosso guia compreender
isso, mas inutilmente. Pelo menos, ele nos empurrou para a frente, emitindo
monossílabos incompreensíveis.

—    Isto vai mal! — disse eu, começando a
zangar-me. — Será que esse idiota não percebe que precisamos comer ?

—    Não sabemos o que ele percebe, Jeremias, mas o
certo é que precisamos ter paciência. Arranquemos alguns galhos dos arbustos e
vamos comendo enquanto caminhamos.

Assim
fizemos, e comemos grande número de galhos daquele arbusto suculento e
insípido. Pouco depois, porém, vimos que tínhamos agido como tolos. Bem dizia
sempre Sálvio: "Saber esperar é ser sábio".

Meia
hora mais tarde, o atlante se deteve diante de uma pedra branca em forma de
marco quilométrico, monólito que ostentava uma inscrição por baixo da qual
havia uma cavidade onde o homem enfiou a mão para retirá-la segurando um
embrulho feito com grandes folhas verdes e frescas. Sentou-se no chão, de
pernas cruzadas, desembrulhou o pacote e tirou de dentro dele alguns belos
pedaços de carne assada!

Teimosamente,
tínhamos enchido o estômago com a polpa fibrosa do arbusto, mas mesmo assim, à
vista daquele acepipe, ficamos deslumbrados, e nos sentimos capazes de começar
de novo.

O homem fêz um gesto que não admitia dúvida.
Em qualquer parte do mundo, queria dizer: — Sirvam-se! Se nos servimos!…

Declaro que essa foi a carne mais gostosa que já provei em toda
a minha vida… e chega.

Terminada a refeição e quando já caminhávamos novamente, satisfeitos,
achando tudo maravilhoso — tanto as nossas
sensações
são filhas do estômago — Sálvio falou: – Estão
vendo? Ê civilizado! É humano!

E até Quincas concordou.

Agora,
a floresta estava próxima, e o terreno ia mudando de aspecto.
A rocha viva já não aparecia tão uniformemente, mas pisávamos largos trechos cobertos de terra. I li arbustos que nos haviam salvo a vida, lá atrás, desapareceram, e em
seu lugar surgiam da terra outras plantas, linde raquíticas, mas "plantas
verdes"! Apertando o passo, chegamos à orla da floresta ao anoitecer. O
nosso guia parou, olhou para todos os lados, interrogativamente, como se esperasse
ver ali alguma coisa que não estava. Depois, colocando as mãos em volta da
boca, emitiu um grito agudo e trêmulo. Um minuto depois, surgiam entre as
árvores seis vultos, todos semelhantes, tanto nos trajes
como na fisionomia, e todos armados de arco e flecha. Dois deles traziam ao
ombro… as nossas boleadeiras!

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