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CAPITULO 20

JEREMIAS ABANDONA OS AMIGOS

A MÃO FORTE
DE QUINCAS AMPARARA-ME A TEMPO. Não fosse ele, eu teria rolado lá para baixo, indo me juntar às ossadas
e aos corpos em decomposição. Quando me passou a vertigem, já reposto e com plena compreensão do que representava aquele ossário revelador, voltei-me para
Sálvio:

— Agora
você tem mais desculpas para apresentar,
Sálvio ? Este não é o lugar que nos convém.

— Eu também me sinto mal… — disse Quincas.

— Compreendo
o que vocês sentem. Mas… não há
razão para termos medo.

Meu
espírito deu um salto, para se atirar sobre Sálvio como um animal selvagem.


Que! ? Depois daquele galpão com os troncos… depois daquele depósito de
cadáveres… depois daquele altar manchado de sangue seco… Você diz que não
há razão para medo? Mas você já pensou no que significa tudo isso, Sálvio?

—    Já pensei. Lá embaixo ainda há alguns
cadáveres cujas feições ainda se podem reconhecer… são de selvagens. ..

—    Sim. E que tem isso? Será você da mesma
têmpera de Pizarro e seus homens, que cortavam em pedaços os indígenas para os
dar de comer a seus cães?

—    
Não se exalte, Jeremias. Bem sabe
que ninguém como eu respeita os selvagens brasileiros. Mas compreenda… coloque-se
na situação dos atlantes… Por diversas vezes os selvagens devem ter tentado
atacar o Posto. Assaltaram, provocaram guerra, foram vencidos e mortos ou
executados.

—    Isso tanto pode ser, como não ser verdade. De
qualquer modo, eles podem nos considerar também selvagens intrusos, e fazer
conosco o que fizeram com aqueles que lá estão apodrecendo.

—    Você é teimoso, Jeremias. Sabe muito bem que
se eles nos quisessem matar já o teriam feito. Tiveram dezenas de excelentes
oportunidades para isso. Somos três, e eles são centenas. Que os poderia
impedir ? Além do mais, conversei com o velho. Antes da conversa, pode ser que
eu concordasse com você. Mas, depois, não. Eles sabem perfeitamente que não
viemos com fins suspeitos ou perigosos…

—    Pois eu não me fio. Não posso ter confiança em
gente que acorrenta os seus semelhantes como se fossem animais e os atira dum
barranco abaixo, como se fossem sacos de cisco.

—    Hei-de conversar novamente com o velho, para
saber o que significam esses cadáveres. Vamos voltar para o Posto.

—   
Eu não volto.

—   
Não volta? Para onde vai,
então?

— Não sei. Prefiro morrer duma flechada em plena selva, ou ser vítima
de uma onça. Fugirei. Não fico aqui.

—    Você está louco, Jeremias! Você não pode
fugir… Primeiro, já sabe o que custa andar por aí… a floresta, o deserto…
as serras.. . Você não tem armas. Como conseguirá alimento?

—    Comerei daqueles arbustos secos…

—    Não há daqueles arbustos secos em todo
lugar…

—    Eu me arranjarei. Tenho confiança na minha boa
estrela.

—    Você não durará três dias, solto nessa selva.

—    Não faz mal. Não sei se durarei dois dias
aqui.

—   Escute, Jeremias, seja sensato. Suponhamos que, por um
milagre, você consiga voltar, e chegar a Goiás, e a São Paulo. Mas me diga uma
coisa: Que é que viemos fazer aqui?

—   Sei lá! Você é que deve saber disso.

—   Sei-o, e você o sabe também, como Quincas não o
ignora. Viemos em busca dos vestígios de uma antiga civilização. Viemos
procurar provas de que o Brasil, que é o continente mais antigo do globo, foi,
também, o berço da mais antiga raça humana. Viemos procurar provas que nos
habilitem a afirmar que a humanidade é originária da América do Sul… Viemos
procurar provar que os atlantes, a primeira raça humana, aqui apareceram, aqui
evoluíram, aqui se fizeram homens, daqui partiram para fundar a Atlântida, para
daí, então, ir fundar, na África, na Ásia, as civilizações mais recentes, cujos
vestígios são claros e que seriam tomadas como as primeiras civilizações
.. . Viemos…

—   Ora bolas! Isso são ideias suas, pessoais, tolas!

—   Minhas? Minhas, diz você? — Sálvio empalideceu. —
Francamente! Eu ainda não o conhecia, Jeremias! Agora é que estou vendo quem
você é…

—  
Pois sou assim mesmo.

Sálvio fazia violentos esforços para se acalmar, para não perder o
domínio.

—   Diga-me uma coisa, Jeremias: Você foi obrigado a vir?
Não concordou comigo, entusiasmado? Não veio aqui para descobrir, comigo, os
restos de uma antiga civilização ?

—  
Não. Eu não sabia de nada
disto.

 

—   Não?! — berrou Sálvio. — Quer dizer que estou
ficando louco?

—   Você sempre foi louco. Só um louco tomaria esta
iniciativa.

—   Mas por que é que você veio? — perguntou
Quincas, enquanto Sálvio, nervosíssimo, andava de cá para lá.

—   
Vim pela aventura. Para conhecer
o interior do Brasil. Nunca pensei que passássemos do Tocantins. No ponto a que chegaram as coisas, nada mais me interessa. Quero voltar.

Sálvio estacou na minha frente. Estava pálido, seus olhos
brilhavam e suas mãos tremiam.

– Idiota! Estúpido!

– Idiota
é você!…

– Chega! — berrou Quincas interpondo-se. — Chega! Fora de
si, Sálvio berrava:

— Temos feito uma ótima viagem, uma viagem
realmente esplêndida. Tudo nos tem corrido às mil maravilhas. Vencemos todas
as dificuldades e conseguimos o que jamais
alguém conseguiu e o que talvez
jamais alguém consiga para o futuro. E você tem coragem de
renunciar…de querer voltar… Você
já viu alguma coisa assim, Quincas?

– Nem sei o que dizer. Acho que Jeremias foi mordido por
algum inseto venenoso. Na verdade, tudo tem corrido melhor do que eu esperava.
Tenho feito excursões menores e mil vezes mais perigosas. Parece, até, que
estamos sendo protegidos por forças ocultas…

Falem
o que quiserem. Eu sei o que devo fazer. Não quero continuar. Vocês dois
preferem ficar e ser vítimas desses
malditos brutos. Pois fiquem. Eu
volto.

— É uma estupidez.

— Pois seja. E vocês não vão
impedir que eu parta.. .

— Mas já se viu um
animal igual a este? explodiu Sálvio.
— Já se viu? Sabe de uma coisa, Jeremias? Isso é covardia!

—   Idiota! Vou voltar daqui mesmo!

—   Vá para o diabo que o carregue!

—   Vá para o inferno você, seu inventor de asneiras!
Estou farto de você, das suas teorias idiotas, dos seus atlantes de meia-pataca
e de tudo isto!

Sálvio deve ter
enlouquecido de repente, porque deu um salto se atirou sobre mim. Mas eu não
queria brigar. Corri e fugi do seu alcance. Enquanto corria, ouvi a voz de
Quincas acalmando-o e Sálvio, possesso, proferindo pesados palavrões contra
mim. Pouco depois, penetrei na floresta e
não ouvi mais nada.

Durante mais de três horas caminhei sempre para a frente. O calor
abafadiço da selva fazia-me suar abundantemente. Eu ia, porém, cheio de
indignação e sentia–me capaz de chegar ao fim do mundo.

Depois, comecei a tropeçar e a me enredar nos cipós. Veio a fome. Não
comia desde a manhã. Procurei raízes e frutos da mata, como vira Quincas fazer
tantas vezes. Mas não encontrei coisa alguma que servisse para comer. Com toda
certeza, naquela maldita mata não havia nada comestível…

Continuei a caminhar, cansado, molhado de suor, com uma crescente
angústia me invadindo o coração. E que fome!

Mais
tarde, quando já estava ficando desesperado, vi uma grande árvore carregada de
cachos de uns frutozinhos de côr amarelo-rosado. Senti crescer água na boca, e
resolvi subir à árvore. Era um exercício difícil, que eu não tentara ainda até
então. Depois de várias tentativas, rasguei a roupa, mas teimei. Consegui,
afinal, de pura raiva, chegar até uma certa altura. Estendi a mão para o cacho
mais próximo, e quando a ponta de meus dedos já o tocavam, partiu-se o galho
seco em que eu me agarrara, e caí de dois metros de altura. Fiquei com o ombro
magoado e reapareceram todas as dores resultantes da surra anterior. Furioso,
sentei-me no chão e fiquei olhando para cima, estupidamente, contemplando os
frutos que me pareciam cada vez mais apetitosos. Eram bonitos, tinham um brilho
opaco extraordinariamente atraente. Deviam ser muito nutritivos.

Senti,
de repente, que me seria absolutamente necessário comer alguns daqueles frutos,
a qualquer preço. Era uma necessidade imperiosa, total!

Comecei
a procurar, furiosamente, uma vara para com ela derrubar alguns cachos. Não
encontrei nada. Tentei arrancar os galhos mais próximos de umas pequenas
árvores. Esfalfei-me torcendo-os, puxando-os, mas inutilmente. Eram de uma
fibra indestrutível. Eles cediam, estalavam, mas não se partiam. Fiquei rodeado
de galhos assim, torcidos, desfolhados, vergados, lascados como fraturas expostas, mas
teimosamente inamovíveis.

Lembrei-me então de derrubar os
frutos com pedras.

Consegui
arrancar, de um pequeno barranco próximo, alguns terrões, e comecei desordenado
bombardeio contra os provocadores e apetitosos frutozinhos amarelo-rosados.
Durante muito tempo me entreguei estupidamente a esse humilhante exercício.
Imundo, rasgado, coberto de suor lamacento, atirava os terrões que se desfaziam
contra os galhos, cada vez com menos forças. Fiquei com o pescoço doendo e os
braços quase deslocados. O braço esquerdo doia-me terrivelmente, por causa do
tombo. Quase chorava de raiva.

De
repente, caiu um cacho. Dei um grito e precipitei-me para o lugar onde caíra.
Era uma moita de espinhos e de alto capim-baioneta. Afocinhei abjetamente, como
um animal à procura de pasto, e sofregamente procurei o cacho. Afinal,
triunfante, ferido, mais imundo do que nunca, saí da moita com um cacho
reluzente na mão. Então, tinha vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Como era
lindo o frutozinho que destaquei do cacho! Pouco menor que uma mexerica, macio,
agradável ao tacto! Esfreguei-o num pedaço de roupa menos sujo e levei-o à
boca, partindo-o ao meio numa dentada.

Cuspi imediatamente. Brrr! que porcaria!

Nunca
tive na boca coisa mais horrível! O tal fruto era hediondo! Positivamente
repugnante!

Atirei
com raiva o cacho contra o tronco da árvore e ele ali se esborrachou com um
ruído desagradável, como se tivesse emitido uma risada seca e sarcástica. Olhei
furiosamente os lindos cachos que pendiam dos galhos, e xinguei a árvore de
nomes horrorosos! Depois, continuei a andar, esgotado, com um péssimo gosto na
boca e cuspindo saliva grossa, abundante e amarga.

A
raiva e a decepção fizeram-me esquecer da fome por algum tempo. Mas, depois,
ela voltou, imperiosa, e recomecei a procurar frutos ou raízes, escalavrando as
mãos. Em lamentável estado de estupefação e impotência, tive de compreender que
encontrar na mata o que comer é uma arte que demanda conhecimentos seguros.
Depois de fazer esta importante descoberta, fui atacado de violento cansaço e
desânimo. Comecei a suspeitar que a fuga empreendida era rematada tolice. Nada
conseguiria, sozinho na mata. Mas o resto de orgulho impeliu-me para a frente.
Continuei a andar, e, em breve, me arrastava miseravelmente entre os vetustos
troncos.

Andei o dia todo.

Ao escurecer, olhei em torno, à procura de um lugar para dormir. E vi,
então, qualquer coisa familiar à minha esquerda. Era um galho retorcido, atormentado,
com as fibras do lenho expostas ao ar. Mais longe havia outros, no mesmo
estado. Olhei para cima. Ao lusco-fusco, os cachos de frutozinhos
amarelo-rosados estavam imóveis, esperando a noite. Encontrava-me embaixo da
maldita fruteira de frutos repugnantes! Lá estavam os cachos lindos,
apetitosos! E, no entanto, dentro daquela linda casca, só havia fel!

Meu coração batia, descompassado. Apertava os punhos com força, num
paroxismo de raiva. Durante todo o dia eu andara, e não fizera senão dar uma grande
volta, ou círculo sobre círculo! Pus-me a andar de novo. Era quase noite. Eu
tropeçava, caía, levantava-me e caminhava com força, raivoso, com vontade de
chorar, chorar de ódio — ódio dos atlantes, de Sálvio, de Quincas, dos
selvagens, da pré-hístória, dos frutozinhos amargos e de mim!

De repente, o chão estalou debaixo dos meus pés. Afundei violentamente,
no meio de galhos e de barulho ensurdecedor, nas trevas. Minha cabeça bateu em
qualquer coisa dura. E sentí-me como se alguém soprasse minha alma de dentro
para fora…

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