CAPITULO 25
O PRIMEIRO
ORIENTADOR
VOLTA AO TEMA
NO DIA SEGUINTE, PELA MANHA, ANDAMOS PELO PARQUE,
em meio a
várias dezenas de atlantes. Aquele ritual da manhã era curioso. O parque enchia-se
de homens e mulheres de várias idades e era como se todos fossem crianças soltas
em liberdade de recreio. Corriam, pulavam; positivamente, brincavam! Chamavam-se
aos gritos, riam muito. Alguns passeavam solitários e pensativos, sob as
graciosas árvores; outros ficavam sentados sobre a grama ou nos
bancos de pedra,
A cena era cinematográfica. Desprendia-se dela tal atmosfera de felicidade
e descuido que a gente esquecia a idade e sentia no peito, novamente, o coração
infantil.
Nós éramos solicitados por estranhos ímpetos. Tínhamos vontade de
correr e pular pelo gramado, mas éramos, ao mesmo tempo, retidos por um
escrúpulo compreensível. No entanto, eles nos deixavam num à vontade natural,
como se fôssemos velhos amigos.
As mulheres vestiam túnicas esvoaçantes, e tinham os cabelos negros
arrumados em forma de coroa. Não eram belezas, mas tinham um encanto tão
natural, tão espontâneo e saudável que a gente as achava logo formosas — tão
incerto é o conceito de beleza.
Dentro de algum tempo, uma hora, talvez, os grupos começaram a
diminuir. Pouco a pouco, homens e mulheres iam desaparecendo, caminhando sem
pressa, felizes, rindo e conversando animadamente.
Ficamos, afinal, só nós três no parque, imóveis e mudos, contemplando o
cenário vazio. Em meus ouvidos ressoava ainda a alacridade daquelas criaturas.
Sálvio permanecia de olhos fixos num ponto vago, e Quincas sorria,
feliz.
— Que
bonito! — foi o comentário ingénuo e instintivo
do nosso guia e, agora, dileto companheiro.
Olhei para ele, e depois para Sálvio, no momento em que este,
suspirando, dizia, pensativo:
— Eles descobriram a
felicidade…
* * *
Depois de termos comido algumas frutas no "salão de
refeição", voltamos ao nosso quarto e encontramos ali à nossa espera
aquele homem que nos recebera no dia anterior. Depois de algumas palavras, ele
nos anunciou, solenemente, que o Primeiro Orientador queria falar conosco.
Tomamos
o caminho que tínhamos feito durante a noite. Subimos o mesmo corredor e as
mesmas escadas, mas, antes de chegar à plataforma sobre o abismo, o atlante
abriu uma porta e seguimos um corredor à esquerda. Chegamos logo a outra porta
que estava entreaberta. O atlante empurrou-a e deu-nos passagem.
Era uma cela de pedra, do tamanho de um quarto comum. Sentado, olhando
para fora pela ampla janela, estava um velho de longa cabeleira e longa barba
branca. Quando se voltou para nós, vimos que sua idade devia ser considerável,
mas de sua fisionomia transpirava bondade e franqueza — e isto me lembrou que
não vira ainda em pessoa alguma daquele povo as características tão comuns no
nosso mundo, dos temperamentos impacientes, cruéis, egoístas. Todos tinham
aquele ar de franqueza e lealdade que inspirava, logo, ilimitada confiança.
O atlante que nos trouxera deixou-nos, voltando, e a porta foi
novamente encostada.
O
velho observou-nos durante alguns momentos, sem nada dizer. Depois, recostou-se
mais e começou a falar. Sua palavra era calma e simples:
–
Não sei se deva lamentá-los ou felicitá-los por terem chegado até aqui.. .
Decerto, perderam-se nalguma floresta e vieram por acaso…
— Não
senhor — contestou Sálvio, que era naturalmente o mais indicado para falar por nós. — Viemos deliberadamente
procurar o Templo do Sol.
— Sabiam então da sua existência?
— Não sabíamos mas aventuramo-nos e, durante a
viagem, nossas esperanças aumentaram e se transformaram em certeza.
— Que esperavam encontrar?
— Esperávamos, apenas, encontrar provas de que o
Brasil foi o berço da humanidade e da civilização, através doe atlantes. Não
esperávamos, porém, encontrar os próprios atlantes, vivos…
— Mas qual é o interesse em saber que o Brasil
foi o borco da humanidade?
— O interesse pela verdade. A ciência, monopolizada
por alguns sábios europeus, insiste em afirmar que o berco da civilização teria
sido a África e o da humanidade a Ásia. Manifesta completo desprezo pelo Brasil
e pela América, nesta questão.
— Bem. Mas qual é a vantagem, em se estabelecer
esse ponto?
— A vantagem é esclarecer os problemas da
História.
O ancião sorriu.
— Duvida? — perguntou Sálvio.
—. Naturalmente que duvido.
— Por quê?
— Por quê? Eu sei que vocês só se movem por
vaidade. A verdade é secundária, e só se respeita quando coincide com os desejos.
O que vocês procuram são sinais de superioridade em relação aos outros povos…
Parou de falar e fitou-nos. Eu ia me irritar. Decerto, ele era uma
dessas pessoas que pensam monopolizar a sabedoria. Mas o velho continuou:
—-
No estado em que vocês se encontram não há nenhum interesse imediato em
saber-se dessas coisas. Se vivessem em paz e se compreendessem uns aos outros;
se tivessem os seus principais problemas resolvidos — então poderiam pesquisar
por amor à verdade. Mas não é assim, e tudo o que fazem tem um segundo motivo,
uma intenção oculta e é para conseguir vantagens. Vocês não vivem. Lutam como
se cada um dos povos de língua diferente, e às vezes de língua semelhante,
fosse constituído de uma espécie diferente de animais ferozes que é preciso
destruir a todo o custo. Vantagem! Vantagem pessoal e vantagem coletiva — eis a
ideia fixa! Nada fizeram até hoje para conseguir harmonia e paz, senão
discursos. Discursos e planos inexequíveis, traçados pelas nações mais fortes
com o intuito secreto de manter as outras sob o seu domínio, embora
aparentemente assim não seja. Esquecem-se sempre de uma coisa importante: onde
há vencedores, há vencidos; como a paz nunca é assinada em termos justos, o
vencido continua vencido e se prepara incansavelmente para ser vencedor algum
dia, não importa quando. As lições de ódio são transmitidas de pais a filhos,
no lar e na escola, de geração em geração…
— Bem
sabemos disso — interrompi, irritado — mas
não podemos reformar o mundo.
O velho olhou-me e, com voz pausada, continuou:
— É
verdade. Nem vocês, nem nós. Agora é tarde para isso. O ódio é uma floresta
plantada na alma universal e tem raízes demasiado profundas. A humanidade
caminhará, pelo caminho da ruína, até total destruição. Mas isto é uma lição e
tem que servir a alguém. Por isso estamos nós aqui, vendo e aprendendo e
ensinando aos nossos dêscendentes algumas noções fundamentais de vida que os hão
de fazer viver em paz num mundo melhor.
Ri-me francamente:
— Noções? Mas noções todos nós temos, senhor Primeiro
Orientador. Conhecemos as boas regras da Justiça, da Bondade…
— Não acredito. Mas embora assim fosse, isso só
provaria que conhecer as boas normas não adianta. É preciso vivê-las e
aplicá-las. O simples conhecimento da Justiça não faz ninguém justo. Seria
preferível que os homens não conhecessem regra alguma e vivessem em lealdade e
harmonia.
— E
quem conseguirá esse milagre? — perguntou
Sálvio.
— No mundo em que vocês vivem, isso será
impossível. Vocês praticam o mal deliberadamente, sabendo o que fazem e procurando
enganar aos outros e a vocês mesmos. Os homens de governo, sem exceção, cuidam
unicamente de fortalecer sua posição no poder, e estender os tentáculos o mais
longe possível, embora à custa de crimes, injustiças e desumanidades. Governar
já não significa coisa alguma senão "dominar". E os dominados sabem
disso e não procuram evitá-lo senão por palavras inúteis. Nada poderá mais
incutir no espírito dos homens de hoje as mais simples noções de uma vida digna
e limpa.
—
Quer dizer que estamos
perdidos?
—
Exatamente. Estão
perdidos.
— Como vai ser então? — perguntou Sálvio.
—
Nós temos um livro — falou pausadamente o ancião — que nos guia há milhares de
anos. Por ele temos conduzido a nossa vida, e graças a ele temos vivido em
perfeita paz, cultivando a semente de onde há de surgir a humanidade do futuro.
Através dos séculos tem sido o nosso guia e o nosso profeta.
— Que diz o seu livro sobre o nosso mundo?
— O que eu já lhe disse. Que não há salvação.
Nós, os atlantes, fundaremos a futura civilização — a civilização definitiva,
onde se aproveitarão todas as grandes lições do passado.
— Sabe que estamos em guerra? — perguntou de
repente Quincas. — Alemanha, Japão e Itália contra os
outros. São os totalitários fascistas e
nazistas contra as Democracias. .. O velho soriu — Ingênuos! Esses nomes nada
significam. Todos os governos que vocês têm são totalitários e fascistas. O
poder dominou definitivamente os homens através de minorias de atrevidos
aventureiros, que monopolizam as indústrias, os armamentos e o dinheiro. Estão
em guerra… e quando não o estiveram? Sempre o homem matando o homem, porque a
sua política é tão arbitrária, nefasta e desumana que tende inevitavelmente a
explodir em guerras periódicas. O que vocês chamam de paz não é senão um
período confuso de esgotamento material e cansaço moral, durante o qual se
preparam ativamente para a guerra seguinte…
Depois de uns momentos de pausa,
ele continuou:
— São tão néscios que se julgam senhores de todas as
forças e acreditam ter dominado a própria Natureza! Durante a guerra, tomam-se
de furor assassino, matam-se aos milhões e destroem tudo impiedosamente. Nada
mais tem valor. No entanto, conseguido o armistício, pelo total domínio do povo
destruído, toda aquela coragem, aquele fervor desaparecem, e não são capazes de
fazer a única coisa sensata: destruir todos os instrumentos mortíferos e
guerreiros! Querem, sempre, ó geniais covardes, a "paz armada"! E
então, só então, quando os campos e as cidades estão juncados de destroços e de
cadáveres de crianças trucidadas — invocam os tais preceitos de justiça,
igualdade, humanidade…
— Realmente… é uma loucura! — murmurou Sálvio.
— Vocês fabricaram uma engrenagem de loucura, e foram
tomados por ela. Não se deterão, a menos que destruam a engrenagem.. . mas não
a destruirão nunca.
— Qual é a causa disso?
— A Cobiça! Ela perdeu os homens. O desejo desenfreado de lucros, cada
vez maiores, cega os homens. Vocês se lançaram numa corrida desesperada para a
conquista do luxo, do conforto, dos bens materiais, da riqueza, esquecidos de
que a carne não vive, quem vive é o espírito. Jamais houve no seu mundo tão
descontrolado desejo de dominar e gozar, como agora. E talvez, também, em época
alguma, houvesse tantos milhões de criaturas sofrendo fome, miséria e frio. A
guerra que vocês fazem não é como a guerra "normal", que atira o
tigre contra o leão, o lobo contra o cachorro. É, ao contrário, uma ação
cuidadosamente preparada pela minoria dominante, que com ela auferirá grandes
lucros e vantagens. As minorias alimentam a guerra com a carne, o sangue e os
sonhos daqueles mesmos a quem exploram, prendem e atormentam durante a paz. Mas
não será isto bastante claro? É durante as guerras que se acumulam grandes
fortunas, mas as grandes fortunas nunca são para aqueles que se arrastam nas trincheiras,
que respiram os gases deletérios e são atacados de disenteria e se abrigam,
para atirar, atrás de montes de cadáveres apodrecidos. Esses, quando conseguem
voltar, andarão, depois, à procura de emprego, pobres enjeitados da vida,
inutilizados e tontos. Reparem que as nações mais imperialistas e cínicas
procuram dar aos seus soldados de todas as categorias, na frente de batalha, o
máximo conforto, o melhor alimento… É preciso iludi-los, alimentá-los e
conservá–los, porque eles são "máquinas de fazer dinheiro"…
O velho interrompeu-se de novo. Olhava-nos, como a observar o efeito de
suas palavras. Eu começava a acreditar que estávamos diante de um perigoso
desequilibrado.
— E
fora da guerra é o mesmo — continuou ele — Ninguém mais tolera a modéstia e a
simplicidade. Ninguém compreende que a verdadeira função do homem é
"viver". Todos: pobres, remediados, ricos e milionários correm
desenfreadamente atrás de três coisas: dinheiro, dinheiro e dinheiro. Sempre
mais dinheiro! E, se observarem bem, verão que todos os meios servem. Se o
homem se envenena, enfrenta perigos e arrisca a vida para enriquecer — como há
de respeitar os direitos e a vida do seu próximo? Eis o que vocês fizeram do
mundo!
Eu estava farto daquela conversa. Queria ir embora. Sálvio, porém, e
até Quincas, pareciam fascinados. E o velho continuou a falar. Depois contou
como a Atlântida tinha sido destruída por um desequilíbrio, ao surgir, num
grande movimento telúrico, a cordilheira dos Andes. Como os atlantes se haviam
espalhado pela América do Sul, pela África, dando origem aos outros povos. Como
depois da invasão de estranhos povos, terrivelmente selvagens, que dominaram as
cidades da África e fundaram cidades na Europa, um grupo seleto de Atlantes
tinham voltado ao ponto de partida, o coração do Brasil, trazendo o seu Livro,
o Oráculo e a semente da Ideia. E aqui tinham ficado, à espera…
— E aqui estamos até agora, e aqui ficaremos ainda quem
sabe ainda por quantos séculos… daqui irradiará a civilização, para tomar
conta de um mundo novo. Tudo se fará lentamente, sem lutas nem choques. Levará
milénios, talvez, mas valerá a pena, porque será a única oportunidade, para a
humanidade, de assumir o seu verdadeiro papel sobre a terra.
— Quer dizer que os senhores são atlantes legítimos?
—
É claro. Os que aqui se
estabeleceram, há milhares de anos, eram os maiores, os mais sábios e perfeitos
homens da nossa raça. Trouxeram consigo o Oráculo e a Ideia que há de criar a
humanidade perfeita. Nós somos seus descendentes, continuamos a sua obra, e os nossos
descendentes assim continuarão, sem esmorecer. Sabemos que somos a humanidade em marcha. Sabemos para o que viemos. Sabemos que o Tempo não tem limites, e, por isso, não
temos pressa…
—
CAPITULO 26
VANILA
ESTÁVAMOS OUTRA VEZ NO
PARQUE, DEPOIS DE TERMOS
passado uma parte da noite
discutindo as palavras do Prime iro Orientador. Eu não estava de acordo com ele,
mas tinha que o respeitar, porque era a expressão do pensamento de um povo.
Mas achávamos-nos deslocados naquele ambiente. Não podíamos compreender
a vida daquele modo. Se não era possível enriquecer e progredir, que se podia
fazer? Onde Oitava o estímulo?
Eram
quase sete horas e grande número de atlantes enchia o parque. Em grupos, eles
folgavam, riam, corriam e gritavam, cheios de vida e de um prazer infantil que
dava inveja.
Foi numa dessas correrias que uma pequena
veio, de reponte, cair de joelhos diante do nosso banco. Levantou-se antes que
pudéssemos ajudá-la. Por um momento, olhou–nos, sorrindo. Depois., sentou-se
na relva à nossa frente e falou:
— São os brasileiros, não?
— Somos. Chegamos há poucos dias…
— Sei. Sabemos
de tudo. Viemos acompanhando a viagens desde que vocês chegaram ao Xingu.
— Somos os
primeiros estranhos a chegar aqui ? — perguntou Quincas.
— Não.
Já chegaram outros. Os últimos foram dois homens, há muitos anos, quando eu era
ainda menina. Um era velho e o outro, moço. Chegaram quase mortos. Os nossos
companheiros tiveram que os carregar desde o rio Iriri…
Quincas
teve um lampejo no olhar. Fitou a moça e perguntou, com voz mal segura:
— Como se chamavam?
— O velho chamava-se José…
— … e o moço, Leandro — continuou Quincas. — José era
meu pai… Onde está ele ?
— Leandro vive do outro lado do
rochedo. José morreu.
Quincas abateu-se. Sua fisionomia mudou visivelmente, enchendo-se de rugas.
Ficamos em silêncio. Quincas esforçou-se para serenar.
— Posso ver a sepultura de meu pai? — perguntou.
— Não temos sepulturas. Os mortos são cremados.
Quincas permaneceu absorto em sua dor, e Sálvio tomou a palestra,
perguntando se podíamos falar com Leandro.
— Naturalmente
que podem. Quando quiserem… ele vive no Bairro Leste.
— Todos os mortos são cremados? —
perguntei.
— Todos. Não há espaço para cemitérios.
— Mas nós vimos um cemitério subterrâneo…
— Ah! Também temos um, dentro da montanha. Mas
destina-se exclusivamente aos Orientadores. Esses são conservados para sempre.
— Embalsamados? — perguntou Sálvio.
— Ao morrer, substitui-se o sangue de suas veias por um
líquido oleoso. Depois, extraem-se algumas vísceras, e defuma-se o cadáver com
fumaça de certas ervas e óleos aromáticos. Em seguida é encerrado numa gaveta
que se fecha hermeticamente. Duram assim eternamente.
Quincas
parecia surdo e alheio a tudo. Seu ar pensativo e triste penalizava-me.
— Não há razão
para você ficar triste, Quincas. Se seu pai tivesse morrido na selva, longe de
todo socorro, ou nas mãos dos selvagens, entre sofrimentos, seria terrível. Mas
ele morreu aqui, entre estas boas pessoas, cercado de amigos e de atenções…
— É certo — disse a moça. — Foi tratado com
todo o carinho, como se fosse um dos nossos. E, agora, venham. Vamos brincar.
Não
quisemos. Não nos sentíamos ainda suficientemente Integrados naquela vida e
parecia-nos ridículo sair a correr polo gramado. Ela resolveu ficar conosco.
—
Que pretendem fazer? —
perguntou.
— Não sabemos — respondeu Sálvio. — Nem sabemos ainda
quanto tempo ficaremos aqui…
— Quanto tempo ficarão? Ora essa… ficarão para sempre!
Daqui ninguém sai, especialmente estrangeiros.
—
Ninguém sai? Nem os
atlantes?
— Bem. Alguns saem. Os que são escolhidos todos os anos
para desempenhar missões lá fora… Temos milhares de companheiros espalhados
por todos os países.
Aí
estava uma revelação positivamente espantosa. Incrédulo, perguntei:
—
Como é? Há atlantes
espalhados por todos os países?
— Sim. Em todos. Temos atlantes que são engenheiros, médicos, técnicos de toda espécie, formados em famosas universidades do seu
mundo. Alguns são, até, pessoas de i importância na administração, nas letras e
na ciência, mes-1 mo no Brasil.
— Mas isso é assombroso! Parece fantasia!
— Por quê? Tem algo de impossível?
— Impossível, não. Mas é assombroso. Custa a acreditar.
— Mas é claro! A gente precisa saber o que vocês fazem,
como pensam, como governam, e, para isso, temos que estar em contacto com
vocês, e esse é o meio mais natural.
— De tudo quanto vimos e ouvimos aqui — disse Sálvio —
isso é o mais impressionante. Ouça…
A
moça, porém, já não nos ouvia. Segurara as mãos de Quincas:
— Você está muito triste, Quincas. Isso não serve de
nada. Venha comigo, que vou lhe mostrar algumas coisas
bonitas do nosso parque…
Ela levantou-se e puxou-o pelas mãos. Quincas deixou–se
levar e, pouco depois, ambos desapareciam entre grupos de atlantes, para o lado do bosque de acácias.
— E esta ? — perguntou Sálvio
passando a mão pela careca. — Que
é que me diz, Jeremias?
— Que é que posso dizer? Isto é espantoso. Estamos diante de um povo que sabe o que faz, tem uma
diretríz definida e parece governado pelas verdadeiras leis naturais do
homem…
— Felizmente para o mundo, Jeremias. Felizmente para a
espécie humana. Isto é uma grande esperança, porque, na verdade, lá o nosso mundo está pervertido, desmoralizado e
nada se poderá esperar de bom.
— Mas imagine isso, Sálvio…
atlantes espalhados pela terra, em todas as grandes cidades, observando,
trabalhando… Imagine, atlantes
no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre, Belo Horizonte… em todas as capitais,
indo e vindo como se fossem bons brasileiros..,
— E não o são, Jeremias ? Mais
brasileiros do que quaisquer
outros!
— Sim. Mas falo de outro ponto de
vista. Você compreende. É uma
coisa inacreditável! Isto prova que estamos lidando
com um povo realmente bem organizado. Faz-me acreditar em tudo mais do que
aquilo que ouvi ontem, do Primeiro Orientador… Diga-me uma coisa,
Sálvio, que é que você pensa, sinceramente, disto?
— Penso que eles têm razão. Admiro, acima de tudo, a inquebrantável fé que têm no futuro. Aqui estão
há centenas de séculos, dispostos a esperar outras centenas, até que chegue o momento que aguardam. Repare que
nenhum deles pensa em si próprio, mas todos trabalham para um fim comum que não beneficiará a nenhum dos que
vivem neste momento. Trabalham para o
Mundo, para a Humanidade, para aqueles que hão-de nascer quem sabe
quando!
Sálvio
calou-se e seu olhar introverteu-se, perdendo-se no futuro, muito distante, quando toda a humanidade seria feliz…
Meu
pensamento saltou para acontecimentos mais recentes. Pensei na moça que levara
Quincas, Era bonita e gentil, alegre e saudável como só se encontravam ali.
Cheia de vida e com cérebro claro e arejado.
— Onde andarão aqueles dois? — perguntei.
— Devem andar por aí. O pessoal já está se retirando. ..
daqui a pouco eles aparecem.
— Ela é bonita.
— Você achou? Eu não gostei. Não me pareceu bem mulher.
A gente sente-se, desde logo, à vontade demais com ela. Não gosto. E parece que
todas as mulheres atlantes são assim.
— Ora… pois eu achei-a muitíssimo feminina. É que
estas moças têm saúde perfeita, e pensam claramente demais. Não estamos
acostumados.
— Pode ser. Mas não me agradam.
— De outra vez, traga uma companheira.
—
"De outra vez"?
Você pensa que sairemos daqui?
— É claro! Pretenderá você ficar?
— Eu não. Mas eles pretendem que fiquemos, e não sei
como poderíamos escapar. Aliás, você deve compreender que a segurança deles
exige que não possamos voltar para, a nossa terra.
— Ora… poderemos muito bem guardar segredo. E ninguém
me obrigará a ficar.
— Pois sim… guardar segredo… Então eu não conheço
você, Jeremias? Se voltarmos, a primeira coisa que você vai
fazer, quando chegarmos, será escrever um livro a respeito…
—
Não escreverei nada.
—
Vá falando… eu bem
sei… Olhe. Aí vêm eles…
Os
dois vinham vindo, lentamente, entretidos em animada conversa. Chegando perto
de nós, a moça tomou ambas as mãos de Quincas, olhou-o bem nos olhos, sorrindo
e disse:
—
Não falte amanhã,
Quincas…
—
Não faltarei, Vanila.
— E vocês venham também — disse ela sorrindo. E
despediu-se. Saiu correndo e pouco depois desaparecia atrás de uma ponta de
rocha. Quincas acompanhou-a com olhos felizes. E murmurou:
— Encantadora!
— Está sendo conquistado, hein, Quincas ? — perguntei,
zombeteiro.
— Não. Nada demais. Uma boa amiguinha…
— Bem — suspirou Sálvio. — Vamos comer as nossas frutas.
* * *
Foi
um dia monótono. Quincas parecia no mundo da lua, animado como eu ainda não o
vira. Sálvio resolvera fazer piadas — as piadas mais sem graça do mundo e eu
sentia irritação surda e incompreensível. Eles interpretaram ma] a minha
irritação e Sálvio resolveu fazer-me alvo das suas infames graçolas. Se
pensavam que eu cobiçava Vanila, estavam muito enganados! Quincas que ficasse
com ela — se era o que pretendia!…
Ninguém
nos procurou durante o dia todo. Pouco depois de anoitecer, Vanila irrompeu no
nosso quarto, como se fizesse parte da família. Esteve por muito tempo
conversando sobre vários assuntos, e admirou-se quando soube que não nos haviam
dado uma ocupação que nos ajudasse a passar as horas.
Depois
de termos conversado por largo tempo, Vanila convidou-nos para irmos ao parque,
que estava um luar maravilhoso.
Fomos.
Realmente,
a noite era excepcionalmente clara e bonita. O parque parecia um jardim de
sonho, banhado pela luz argêntea da lua. Sentamo-nos num dos bancos e
divisamos, ao longo da muralha, outros bancos ocupados por pessoas aos pares.
Vultos claros se moviam também entre as árvores, em passos lentos. Percebemos,
em breve, que nós dois, Sálvio e eu, estávamos sobrando. A coisa não era
conosco, e sim com aquele diabo
de goiano que viera para nos guiar..
. Quisemos levantar-nos, mas Vanila não nos deixou. Começou a explicar como
estavam divididos os bairros residenciais.
— Neste núcleo só moram os casados e suas
famílias — explicou ela — e os filhos até 20 anos. Vocês, quando se caarem,
virão para aqui, também…
— Vai demorar! — disse eu, rindo.
guerra prosseguia,
terrivelmente cruel. Os russos entravam violentamente na
Alemanha. Os americanos, depois de atravessar a Holanda, também combatiam em
solo alemão. Ingleses e americanos começavam a despencar sobre a Alemanha, do
alto dos Apeninos. O Japão estava sendo bombardeado pelos americanos, desde
bases em ilhas do Pacífico e de porta-aviões. Guerra, morticínio, destruição,
sangue… como se todos os homens não fossem irmãos e como se não
vivessem todos em busca de um mesmo fim: a felicidade!