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CAPITULO 23

UM ATLANTE FALA SOBRE O MUNDO
MODERNO

-SEJAM BEM-VINDOS!

A voz vinha de
dentro, das trevas. A pronúncia tinha estranho acento. Em seguida, um atlante
surgiu das sombras do imenso portal. Assemelhava-se aos que já conhecíamos.
Fisionomia acentuadamente decidida, tez bronzeada, grande nariz aquilino. —
Bem-vindos a Atlantis, a Eterna.

—    O mesmo nome! — murmurou Sálvio, fascinado. —
O nome antigo.

—    O mesmo nome, o mesmo povo, os mesmos costumes
— falou o atlanta num sorriso bondoso. Entrem.

Voltamo-nos, porém, a um chamado de Quincas.

— Venham ver. . .

Fomos. Sálvio arregalou os olhos.

—    Céu! O símbolo, Jeremias! O símbolo!

—    Sim! — consegui exclamar, fascinado também. —
A "pedra"… O grande círculo sobre o triângulo… o lótus de mil
pétalas… as runas… o sol e a lua!…

E
ali ficamos os três, embasbacados, olhando o miraculoso símbolo que nos
trouxera desde São Paulo, agora ali perfeitamente reproduzido em gravação na
rocha, ao lado da monumental entrada. Era estonteante, dava vertigens. Quantos
milhares de quilómetros — de intransponíveis quilómetros! — separavam
aqueles dois símbolos! Um, em São Paulo, dentro da velha arca vinda das Guianas ou da Venezuela, e o outro aqui, no centro do sertão, quase na fronteira
entre o Pará e o Amazonas, juntos a uma porta que dava para o mistério! Tão
separados, e, no entanto, tão unidos!

O atlante olhava-nos sorridente.

— Conhecem? — perguntou ele.


Conhecemos — respondeu Sálvio. — Isso é que nos trouxe até aqui. Foi a primeira
revelação. Um pedaço de grade de ferro que o tio de Jeremias trouxe das
Guianas, ou da Venezuela, não sabemos.

— Nem
de uma, nem de outra. Do Peru. Do grande
Templo do Sol no Peru. A grade do altar dos sacrifícios.
Há muitos anos ela foi destruída e despedaçada.

Era
um farrapo de história que fazia reviver grandes dramas sombrios. Mas o atlante
não queria contar a história.

— Entrem.

Seguimo-lo através da porta. Não era porta. Era túnel. Para que os
leitores possam fazer ideia do local, vamos tentar explicar aquela construção.
De longe, víamos o grande cone de rocha como se fosse uma peça única e lisa.
Mas, na verdade, ele era rodeado por uma muralha, também de granito. A
conformação das crateras lunares pode dar ideia aproximada da estrutura. Entre
o cone propriamente dito e a muralha que o envolvia ininterruptamente havia um
espaço amplo, de um quilómetro, talvez, coberto de vegetação. A porta que
acabávamos de transpor era o túnel que atravessava a muralha, túnel longo e
tortuoso. Creio que aquela porta podia ser fechada de modo a vedar qualquer
entrada no recinto, porque escalar a muralha seria impossível.

Jamais
o homem pudera dispor de tão inexpugnável fortaleza.

—    Por que tantas precauções? — indaguei.

—    
Porque não confiamos nos homens
que povoam o mundo de onde vêm. Sofrem da fúria da conquista. Querem conquistar
tudo. Até o que não precisam, até o que não
podem conservar. E é essencial
que nós possamos viver em absoluta
tranquilidade e segurança. O nosso sistema é simples e eficiente. Só poderão
chegar aos nossos Postos Avançados aqueles a quem quisermos deixar passar.
Mesmo sem a nossa intervenção, os que se aventuram nessas florestas são logo
vitimados, pelos selvagens, pelas febres, pela fome, pelas serpentes, por
milhares de perigos. Mas os que conseguem escapar de tudo isso não passarão dos
Postos Avançados, sem o nosso consentimento. Evitamos, assim, a visita de
importunos que trariam atrás de si outras visitas, mais importunas
ainda. Somos intransigentes, pois que temos uma missão a cumprir no futuro, e
havemos de cumpri-la.

—  
Que missão é essa?

—   É humana e divina, e só se efetuará quando surgirem
Cartas circunstâncias, quando a atual civilização tiver destruído tudo quanto
no mundo existe de respeitável e de luimano — o que não demorará muito, porque
o homem enlouqueceu de puro orgulho. Então, entraremos em cena, com novas bases
de vida. Até lá, não podemos ser perturbados, e não perturbaremos ninguém.
Deixamos que os homens se entredevorem à vontade em nome de direitos e de
poderes que eles não entendem nem dominam.

—  
Mas pode vir um exército
e…

—  
Impossível. Totalmente
impossível.

—   Mas há outros meios. A civilização vai avançando, as
cidades se estendem, vão conquistando os desertos e as matas, e qualquer dia
estarão próximos deste lugar. Então…

O atlante riu gostosamente.

— Que
sonho, meu amigo! Que sonho! Só de quem se entusiasmou com os progressos da
técnica moderna e se esqueceu de tudo o mais… A civilização de que o senhor fala
jamais chegará até qualquer dos nossos Postos Avançados. Não terá tempo. Na
verdade, ela já está em adiantado processo de decomposição. Pensa que está viva
e forte, mas engana-se. Está ôca e apodrecida. Só tem casca. Daqui por diante
os homens lutarão barbaramente para conservar o que têm, e essa mesma luta será
um processo de destruição, tanto mais que, empenhados nela a fundo, não poderão
progredir. Regredirão segura e paulatinamente, até o fim. Seria magnífico se
eles pudessem voltar ao estado de selvagens. Mas não o poderão. Agarrar-se-ão
desesperadamente aos restos de um conforto fictício e fatal e, para o
conservar, matar-se-ão impiedosamente. Os dois últimos homens seriam capazes de
lutar até a morte pela posse de um aparelho de barbear… — Depois de curto
silêncio, continuou: — As guerras se sucederão sem interrupção. Depois de cada
guerra haverá desordem, roubos, fome, guerras civis. Enquanto alguns países
estiverem assim lutando, outros estarão tratando de alimentar essa luta e essa
desordem, para os dominar. Depois, os países que se conservaram fortes lutarão
entre si para disputar a posse das vítimas, e as vítimas serão arrastadas à
luta, de um e de outro lado — tudo isto em nome da humanidade, da bondade, da
justiça, do direito — notem bem. Ao fim de cada guerra, haverá países certos de
terem alcançado vitória esmagadora, e estabelecerão as normas da futura paz,
para garantia da qual só eles, vencedores, deverão permanecer fortes e armados.
Na realidade, não conseguiram senão destruir mais um bocado do mundo e terão
anexado aos seus próprios e árduos problemas muitos outros problemas referentes
aos povos sob sua dependência que devem organizar e defender. Estes povos um
dia se revoltarão, se levantarão para destruir por sua vez. Sempre foi assim,
mas o perigo está em que as armas que se inventam são cada vez piores e mais
destruidoras, daí a aniquilação final inevitável. Os homens viverão assim,
empregando toda a sua indústria, toda a sua inteligência, todo o seu poder no
afã de se defender de ataques, de se preparar para outras guerras, de impedir
que outros pratiquem invasões. E todos os dias perderão terreno, e cada dia
serão mais intransigentes, mais animais, menos humanos.

O rumo que a vossa civilização tomou é o rumo da
ruína. Nada mais poderá fazer o Moloch parar, porque a grande mola que o move é
a Cobiça… Os homens do seu mundo
prometem, falam, fazem planos — sem a mínima intenção de cumprir suas
promessas. Os seus homens de governo estão de tal maneira escravizados aos
industriais e argentários e às forças armadas, que só governam tendo em vista o
interesse deste e apenas quando coincide o interesse do povo com os daqueles é
que fazem algo acertado. A Cobiça perdeu os homens, meus amigos.

—   E os senhores, têm algum remédio contra a cobiça?

—   Temos. Todos o têm ou o conhecem. O que falta é a
coragem de o aplicar.

 

—   E qual é esse remédio? O atlante sorriu.

—   Como perderam de vista as verdades mais simples!

—   Que verdades?

Ele sorriu mais uma vez, fez
ligeira mesura e disse:

— Meu dever é trazê-los até aqui.

Sem o perceber, enquanto ele falava, tínhamos atravessado o jardim
interno, penetrado no rochedo central, por um longo túnel e estávamos agora
numa sala de dimensões normais, mobiliada confortavelmente, como qualquer sala
sem luxo. Boas poltronas, uma mesa.

—   Sentem-se e esperem um pouco. Sentamo-nos, e ele saiu
sem dizer mais nada.

—   Então, Jeremias? Que diz disso tudo?

—   Nada posso dizer. Esse homem impressiona a gente.

—   A verdade dita com simplicidade sempre impressiona. Não
sei se ele tem razão… — murmurou Quincas.

 

—   E eu creio que tem… Acredito no que ele diz e também
penso que aqui pode estar a semente de uma nova humanidade, mais coerente e
mais "humana" — respondeu Sálvio.

—  
Pode ser… Eu…

—   
Ouça, Quincas, — continuou
Sálvio. — Estou sentindo uma impressão estranha e nova. Agora, depois que esse
homem falou, dizendo claramente coisas que todos nós sentimos mas não temos
coragem de declarar, agora compreendo que estamos, realmente, no fim da nossa
orgulhosa civilização. Os sinais estão todos lá, evidentes: a devassidão, a
imoralidade, o despudor, a ânsia de rapinagem, o desprezo pelos humildes —
sinais que acompanham sempre a degenerescência provocada pelo
"clímax" da civilização. Creio que estamos começando a descer o outro
lado da montanha. Outro sinal é a constituição dos governos absolutistas, é o
domínio cada vez maior da força. As democracias atuais são farsas, e não têm
mais campo. Elas quererão reagir, lutarão, mas se transformarão, sem o sentir,
em ditaduras também. Quer dizer: estamos vivendo uma época de violências. Daí,
os grandes exércitos, as grandes polícias, a escravização do povo. Este reagirá
a princípio, mas se adaptará com o correr dos anos, e cada país será, então, um
rebanho de escravos trabalhando sob domínio dos "representantes da
lei": fuzis, baionetas, metralhadoras e bombas atómicas… e dominando
tudo — o orgulho, a volúpia do poder e do mando, o domínio absoluto. Isto leva
os homens à loucura, ao desvairamento e ao crime — sempre em nome da
"honra da pátria"!

— Você se adaptou muito depressa! Está falando como
eles. Até parece que o atlante lhe deu a palavra…

Sálvio
olhou-me de modo particular, percuciente e bondoso, e murmurou, lentamente:

— E por que não seria eu, também, um atlante
?…
Quase dei um pulo, e foi como que se uma cortina se

tivesse
descarrado de repente. Compreendi, num relance, uma porção de coisas que até
então me eram inexplicáveis. Sálvio estava sereno, perfeitamente senhor de si,
como se se encontrasse no seu elemento natural. Não sei o que lhe ia dizer,
porque um homem entrou:

— Sejam
bem-vindos a Atlântis, a Eterna! — cumprimentou ele com agradável sorriso. Era
uma criatura sim pática, como, aliás, todos os atlantes que tínhamos visto até
então. Sentou-se e, como se nos conhecesse há muito tempo, começou a conversar
conosco sobre diversos assuntos, a viagem, a vida nas grandes cidades
brasileiras. Em verdade, ele conversava com Sálvio. Quincas e
eu éramos meros espectadores. Durante algum tempo, estive alheio à conversa,
absorvido em pensamentos próprios diferentes. Depois, voltei ao cenário, e
prestei atenção.

—   É natural que assim seja — dizia o atlante — porque
somos a raça mais antiga do universo. A nossa língua é a língua-máter. A nossa
grafia hoje está evoluída, mas ela se compunha de certo número de sinais que
deram origem aos sinais gráficos de todos os alfabetos do mundo. Por isso,
todos eles se assemelham aos nossos. Os caracteres sabianos, por exemplo, têm
40 formas idênticas às dos nossos; os megalíticos, 23; os ibéricos, 16; os
cretenses, 15; os gregos, 14. Com este mesmo número vêm os sumerianos,
etruscos, pré-históricos do Egito, fenícios, púnicos, sinaíticos, oghânicos da
Irlanda e rúnicos da Escandinávia.

—   Isso quer dizer — falou Sálvio — que a escrita
pré–histórica do Brasil constitui o resto de uma escrita antiquíssima e
universal, a mãe de todas as escritas atuais

—   Claro, meu amigo! E todos aqueles que conhecem a
sagrada ciência do Verbo e do Ritmo estão aptos a penetrar a magia misteriosa
das palavras.

—   Magia das palavras? — perguntei. — Mas que tem isso
que ver com os caracteres antigos do Brasil?

 

—   A pergunta seria embaraçosa para aquele a quem a
Ciência do Verbo fosse estranha… Meu amigo, o homem não inventou lei alguma.
Todos os fenómenos, compreensíveis ou não, repousam em leis das quais muito
poucas são hoje definidas e estudadas. Mas há uma lei básica cujo conhecimento
permite ao homem o domínio das forças sutis da natureza. É a lei que rege o
fenómeno da Palavra, lei intimamente ligada aos fenómenos da sonometria,
crono-metria… enfim, a própria Lei Matemática do Cosmos…

—   Um momento — interrompi. — Não consigo compreender o
rumo desta conversa. Parece-me confusa e sem lógica…

O atlante olhou-me com ar de paternal tolerância. Depois, como que em
monólogo, continuou:

— Oh mistério dos mistérios! Oh drama humano da incompreensão! Há
quantos séculos o homem, na sua vida diária, a cada momento, prostitui a
Palavra — instrumento mágico por excelência e sem o qual as mais elevadas
operações do pensamento jamais atingiriam o mundo sensível! A palavra põe em
jogo forças que o mundo não conhece e provoca reações de cuja existência ele
nem sequer suspeita! Como nasceu a escrita ? Oh, inefável mistério da
concepção! Ensina a nossa velhíssima tradição que, para representar
graficamente cada um dos sons da nossa língua, os augures empregaram sinais que
correspondiam a cada uma das posições que o homem assume nos atos principais da
vida. Cada sinal corresponde a um som determinado e corresponde, também, a um
modo de exprimir a própria vida. Como sabem, os atlantes se espalharam por todo
o mundo, e as condições de vida que encontraram em vários pontos do globo foram
alterando a base de cultura que lhes era própria, modificando a mentalidade e,
portanto, a linguagem escrita e falada. Não é, pois, ilógica nem confusa a
nossa conversa… Aqui no Brasil, por exemplo, pátria de origem do primeiro
homem e da primeira civilização — a terra que mais cedo assistiu à evolução do
homem, porque é a terra mais antiga do mundo — aqui mesmo temos frisantes
exemplos da força das palavras…

—    Aqui? — perguntei, mais para dizer alguma
coisa.

—    Sim. A palavra "Brasil", por
exemplo.. . Há quantos milhares de anos ela designa esta parte do mundo!
Quiseram impor-lhe outros nomes, mas nada pôde vencer a força do primitivo,
porque a ele está ligado o próprio destino da terra. Era Brasil, e ficou
Brasil. E será Brasil, enquanto houver sobre a terra um homem capaz de
pronunciar um nome…

Por um momento ficamos calados. Fitávamos o atlante, como se ele fosse
um prestidigitador prestes a nos assombrar com alguma habilidade fenomenal.
Serenamente, continuou :

— E a palavra América? Pensam acaso que se deve ao
nome daquele navegador? Não. Nem ele se chamava Américo, e sim Alberrico. Ele é
que modificou seu nome por vaidade. América, com pequena modificação, foi
sempre o nome de todo o continente… Amerríqua, era como nós, os atlantes, o
chamávamos há muitos milhares de anos — "amerríqua", "lugar onde
sopram livremente os ventos"… Houve silêncio mais longo. Eu parecia
sonhar. E ouvi a voz de Sálvio, clara, vibrante:

— Tudo isso é maravilhoso e
intuitivo.

Quincas, com os olhos arregalados, iluminados por uma chama de
entusiasmo, estourou de repente:

— Caramba! Isto é formidável!

Aquela
burlesca, mas entusiástica, exclamação pusera fim à entrevista. O atlante
levantou-se, sorrindo, deu-nos algumas informações e terminou:

— Amanhã,
depois do exercício matinal no parque, virei
buscá-los para apresentá-los ao Primeiro Orientador.

Depois
de ter saído o atlante, Quincas declarou que estava com fome:

—    É sempre assim. Quando ouço alguém falar
muito, fico com uma fome louca.

—    Mas que é que você diz do homem, Quincas?

—    Ora.. . os homens são todos iguais. Quem está
por cima é quem sabe tudo e tem razão. . .

E com essa estarrecedora opinião, saímos pelo longo corredor,
dirigimo-nos ao refeitório. Não havia porta. O corredor desembocava numa grande
sala circular iluminada por muitas janelas. Espalhadas em volta havia mesas de
pedra de tampo levemente côncavo. Sobre quase todas se encontrava grande
quantidade de frutas, algumas das quais eu não conhecia. Na parede, por baixo
das janelas, havia pequenas portas, como portas de fornos. Abrimos algumas. Por
trás de cada uma delas havia uma cavidade e, na cavidade, uma bandeja enorme,
com pedaços de carne assada.

Como
nos dissera o atlante, esse era o regime dos habitantes: frutas e carne assada.
Não havia horário de refeições. Cada um comia quando lhe apetecia. Já nos
havíamos habituado àquele regime de carne e frutas, e, por isso, comemos com
satisfação. Depois, voltamos pelo longo corredor, e diante de nossa porta, paramos. Havia nela uma inscrição:

 

 

"SÁLVIO, JEREMIAS, QUINCAS

HÓSPEDES DE HONRA DE

ATLÂNTIS — A ETERNA"

 

 

CAPITULO 24

O TEMPLO DO SOL

DURANTE 0 RESTO DO DIA NINGUÉM NOS PERTURBOU E desfrutamos de completa liberdade. Íamos e
vínhamos pelos corredores; fomos ao parque que já atravessáramos naquela manhã;
encontramos muitos atlantes, e todos nos cumprimentavam, ou, pelo menos, assim
pensamos, porque nos dirigiam a palavra "Geomá!" Pela tardinha, fomos
re-pousar em nosso quarto. Sentíamos grande bem-estar, como se a própria atmosfera
que respirávamos fosse qualquer coisa boa e repousante.. . Estranhamente,
"sentíamos" que ali só havia bondade e boas intenções. Não sei como
explicar isto, mas creio que deve haver muitas pessoas que o saibam.

Anoiteceu, e adormecemos suavemente. Estávamos, em verdade,
cansadíssimos, pela caminhada e pelas emoções daquele dia cheio de mistério.

* * *

Acordei devagarinho, despertado pelos sons plangentes o opressivos que
pareciam estar ressoando há muito tempo dentro do meu crânio. Reconheci-os.
Eram os sinos que plangiam, naquelas mesmas notas longas e aveludadas que já
ouvíamos, na noite anterior, na encosta da montanha.

Durante
algum tempo ouvi, imóvel, os sons fascinantes. Depois, sentei-me e uma voz
chegou até meus ouvidos, baixa e cuidadosa:

—    Está ouvindo, Jeremias?

—    Estou. E você?

Decerto ele não reparou na tolice
da pergunta.

—    Estou também, há muito tempo.

—    E o Quincas?

—    Deve estar dormindo.

—    Quem é que pode dormir? — perguntou Quincas.

—    Que será isso? — continuou pouco depois.

—    Deve ser a procissão das tochas…

—    Será que eles fazem isso todas as noites?

—    Seria absurdo. Talvez tenhamos chegado num
momento especial.

O luar penetrava pelas duas grandes janelas — um luar maravilhoso. Essa
pálida claridade e o som distante dos sinos davam ao ambiente um sabor de
irrealidade que perturbava e acabou por me incomodar.

—    Vamos ver a procissão?

—    Vamos. Vem também, Quincas?

— Claro. Que é que eu ficaria
fazendo aqui?
Caminhamos pelo corredor, para o lado do parque. Mas

percebemos que
o som dos sinos ia-se tornando menos distinto. No parque, caminhamos de um lado
para outro, estranhas sombras inquietas, indecisas ao luar, e acabamos voltando
ao corredor. Caminhamos para o lado da sala de refeições, notamos que se ia
ouvindo melhor.

— Deve ser para os fundos — observou Quincas.

No salão de refeições demos com uma porta aberta em frente àquela do
corredor. E era evidente que os sons se ouviam agora mais nitidamente.

Avançamos
sôfregos, certos de que além daquela porta havia algo para ver. Era um longo
corredor, escuro e curvo. Quando iniciávamos a caminhada no interior daquele
túnel chegou até nossos ouvidos, pela segunda vez, aquela litania plangente. As
estranhas palavras, compostas de vogais apenas, flutuavam no espaço com
singular doçura, em grande extensão e profundidade.

O
corredor subia sensivelmente, sempre em curva, para inesperada altura. Novo
corredor, sempre volteando para

a esquerda,
mais plano. E agora, os sons que ouvíamos era música. Música dolente, estranha,
de notas lentas e trémulas, que se demoravam no ar, como se ficassem agarradas
a ele e com preguiça de se esvair. Seriam sinos ou órgãos? E a litania de
vogais ondeava rio espaço, deslizando ao lado das fascinantes notas do
desconhecido instrumento.

De repente, o corredor terminou e vimo-nos diante do céu, um céu claro,
recamado de estrelas. Estávamos numa plataforma estendida sobre o abismo.

E o abismo…


no fundo, a uns trinta metros, ou mais, estávamos vendo a perfeita reprodução
da placa de barro do coronel Marcondes. As quatro conchas dos anfiteatros
cheias de assentos e multidão de atlantes já ali se encontrava. Por uma
abertura negra penetrava a procissão, cada um empunhando a sua tocha. Não é
possível descrever quão deslumbrante e irreal era aquilo. Centenas de tochas
iluminavam o vasto espaço em forma de cruz de braços curtos. Mais tochas
entravam pela abertura e os seus portadores, tontamente, iam tomar lugar nas
conchas, segundo uma ordem que não podíamos compreender ainda. E aquela
multidão cantava e a música subia serenamente na noite. Estávamos deslumbrados,
fascinados sobre a plataforma. E, de repente, Sálvio murmurou:

— O Templo do Sol!

Os
seus olhos cintilavam, e ele estava, em verdade, transfigurado. Não era o
Sálvio, o meu amigo de vinte anos; era outra criatura, um ser que surgia
naquele momento, que nascia com as notas plangentes dos sinos, com a litania
adormecedora de mil vozes. Apertando-me o braço perguntou :

— Que dia é hoje?

— 18 de março.. . por quê ?

Senti
que Sálvio estremecia. E foi com voz estranhamente suave e profunda que
murmurou:

— Equinócio
do Outono!… E, depois de uma pausa,
como que para responder ao meu olhar interrogador, acrescentou: — É neste dia que os atlantes celebram o
grande Ritual Humano e Solar…

Parece que só então percebi quanto era real, significativa
e séria, aquela cena que se desenrolava
lá embaixo.

A procissão acabara de entrar. Todos estavam agora sentados, vultos imóveis e negros sob o palor do
luar, sinistros à cintilação irregular de milhares de tochas. O canto prolongava-se em nota interminável e o som
estava parado, preso às anfratuosidades da rocha.

Depois, o silêncio caiu, súbito, sobre o templo,
encheu-o e subiu até nós,
opressivo como u’a mão que estrangula.

Diante das conchas havia um espaço vazio; espécie
de arena, em cujo centro se
erguia uma mesa de pedra lisa. Diante dela via-se uma grande cruz,
aparentemente de pedra também. Era
impressionante aquele espetáculo, agora,
sob o silêncio e a imobilidade. Só as tochas palpitavam.

E então, de uma
porta que devia ficar por baixo da plataforma onde estávamos, começaram a sair,
em procissão, vultos cor de cinza, que,
lentamente, de mãos atrás das costas e cabeça baixa, rodeavam o altar e
iam formar grupos uniformes diante das quatro conchas do anfiteatro em torno da
coluna. Outros, que chegaram após curto intervalo, rodearam o altar de pedra.
Depois, num silêncio que pareceu maior e
mais pesado, entrou a impressionante figura do Grande Sacerdote, envolta
em ampla e flutuante roupagem branca. Em
passos lentos chegou ao altar, parou, apanhou de cima dele uma grande
espada reluzente que só então vimos. Desceu
as escadas, e sempre em passo lento, dirigiu-se
à coluna do nascente. Empertigou-se, ergueu a cabeça e os braços, a grande
espada rebrilhante apontada para o céu. Irrompeu, de súbito, da multidão, um
cicio que se ergueu, rolou abafado, monstruoso, e cessou de repente. O
Grande Sacerdote dirigiu-se à coluna fronteira e a cena se repetiu. Depois,
repetiu-se ainda nas duas outras colunas. E
então, o Grande Sacerdote, em passos majestosos, voltou ao altar do
centro. Colocou-se de frente para a cruz e
permaneceu erecto, imóvel, a mão direita com a espada erguida para o
alto, a esquerda para a frente. Parecia uma estátua tão pétrea como o próprio altar. Assim
permaneceu por espaço de tempo que me pareceu interminável. Depois, a espada
desceu e sua ponta tocou o altar. No menino instante, a voz cristalina do
Grande Sacerdote elevou-se no grande silêncio:

— "Vem,
ó Santa Palavra! Vem, ó Nome Sagrado!
Nome Sagrado da Força Suprema! Vem, Energia Sublime,
suprema Dádiva do Altíssimo!"

Meu
Deus! Que força! Que terrível força havia naquela invocação! A rocha, o ar,
tudo pareceu reagir e estremecer no contacto da prece misteriosa!

Vimos,
então, com imenso espanto, a Sacerdotiza nua, levantar-se dos pés da grande
cruz e caminhar com passos elásticos para a frente do altar. Levantou ambos os
braços para o céu, ergueu o rosto e iniciou uma prece, as primeiras palavras
estranhas e misteriosas de um cântico macio e

envolvente:

— "Panphage..
. Hagios… Chaire!…
Ischurion..Abraxas… Abroton… Pangenetor.. . Athanaton…Hagios! Hagios!
Hagios!"

E a multidão das tochas repetiu
num potente coro:

— Hagios! Hagios! Hagios!

Seguiu-se, então, a litania langorosa: "I..
.A.. .0…"] que prosseguiu, acompanhando os sons dos sinos que de’ novo
encheram o céu e a terra. Durante algum tempo ou-viu-se a litania, que cessou,
afinal, numa nota longa e triste. Imediatamente depois, ergueu-se novo cântico,
entoado por uma única voz. Era o Grande Sacerdote que cantava o louvor do
Grande Nome. Foi rápido e, uma vez terminado, ele se dirigiu aos seus
discípulos, com voz potente que penetrava a rocha:

— Vinde a mim!

E
os discípulos assim o fizeram. Deixaram seus lugares junto às quatro colunas e
convergiram em massa para o altar. A sacerdotiza estava abatida aos pés da
cruz, forma indefinível e encantadora.

Tendo em volta de si
os discípulos vestidos de cinzento, o Grande Sacerdote voltou-se solenemente
para cada uma das quatro colunas que simbolizavam os
quatro pontos car-diais, e quatro vezes pronunciou o nome profundamente
sagrado:

— "IEOUA!"

Abençoou os discípulos, soprou nos olhos dos mais próximos e exclamou:

— "Eu
sou a fonte eterna, manancial da doce ambrósia
da qual brota a vida"…

A Sacerdotiza ergueu-se num movimento elástico, e executou uma dança
maravilhosa em torno do altar, uma dança de silêncio e de ritmo fascinante.
Quando ela parou no seu lugar, o Grande Sacerdote tomou do cálice que estava
sobre o altar, abençoou-o e apresentou-o à multidão em torno, dizendo :

— "Eu sou o Caminho, a Verdade, a Vida!"

E toda aquela multidão, erguendo para o céu as tochas, recitou em
uníssono a grande prece:

— "Escuta,
Pai de tudo o que foi criado, Luz Divina, Grande Deidade! Tu, causa infinita de
tudo o que existe, dá vida a este teu povo! Dá vida àqueles que nos seguem e nos
ouvem, visíveis ou invisíveis — para que todos possamos participar do Reino da
Justiça, pois que cumprimos
a LEI!"

A multidão silenciou. A sacerdotiza de novo executou a sua dança
mística, desta vez percorrendo todo o espaço e detendo-se diante de cada uma
das conchas onde estava o povo. Quando voltou ao seu lugar, o Grande Sacerdote
ergueu os braços e recitou a prece final:

— "Oh
tu, beleza imaculada! Tu, que dás o bálsamo para todas as chagas e que alentas
o fogo que alimenta a vida!
Tu, que dás a vida, permite que reconheça em ti a minha própria vida e a vida
do meu povo! Eu conheço o teu mistério, o sagrado mistério que te envolve. Sei
que foste dada ao mundo para tornar infinitas as coisas finitas e limitadas!
Tua cabeça, ó Cruz, ergue-se majestosa para oéu e simboliza a vida! Teu pé,
como uma lança, está cravado na terra, para que ajudes, em seu impulso
volitívo, todas as criaturas! Tu és o Símbolo da Vida Eterna, óCruz!

 

E o silêncio recaiu. Agora era um silêncio opressivo, esmagador, cheio
de terríveis promessas! Todas aquelas faces,
voltadas para o céu, pareciam esperar um milagre.

O
Grande Sacerdote, imóvel, com os dois braços e o rosto erguidos para o alto, o
corpo inclinado para trás, parecia ter-se transformado em estátua de branco
mármore.

Meu coração
diminuiu dentro do peito. Que teria acontecido? Teria toda aquela gente se
transformado em pedra, como as vítimas do rei da Thessália?

Mas
eis que súbito tudo se ilumina de extraordinária luz. Olhei para cima, e — oh,
maravilha das maravilhas! Vi a bola de fogo, a "mãe do ouro", que das
alturas descia sobre o anfiteatro. Terrível medo me invadiu e instintivamente
ia recuar, mas um pulso de ferro me reteve. E eu tive
que ver! A bola de fogo desceu sobre o altar, e, silenciosamente, se desfez em
línguas, jactos, chamas e lençóis ígneos, envolvendo, num bando de fogo, o
Grande Sacerdote, a Sacerdotiza, os discípulos, salpicando ainda a multidão
imóvel! |

E o Grande Sacerdote, com os braços abertos em crua sob o banho
luminoso, exclamou em místico transporte:


"Recebei o santo sinal sobre o vosso pescoço, sobre os vossos lábios,
sobre o vosso coração — para que os torneis os Herdeiros da Luz!"

A
bola de fogo se desfizera completamente. Mas o Grande Sacerdote permaneceu
hirto, sorridente e feliz. Os sinos recomeçaram a tocar e a multidão recomeçou
sua plangente litania; as vozes se ergueram pouco a pouco, até encher o espaço.
E, lentamente, a procissão recomeçou. Cada um se foi levantando e encaminhando
para a porta negra. As tochas movimentavam-se devagar, uma após outra
desaparecendo sob a abóbada.

Meia
hora depois ainda estávamos ali, petrificados, contemplando o grande anfiteatro
vazio de povo, mas onde o Grande Sacerdote, a Sacerdotiza e os discípulos
continuavam,
imóveis, perante o altar. O Grande Sacerdote estava ainda com os braços abertos em cruz e a face voltada
para o céu.

A angustiosa magia foi rompida pela voz de
Sálvio, que segredou:

— Vamos. Eles precisam ficar a
sós.

Olhei ainda e
vi a espada reluzir uma última vez sobre o altar. Num relâmpago de lucidez,
percebi, sobre a pedra do altar, manchas escuras; no centro havia um
orifício…

Sálvio, porém, me arrastava, e eu
estava emudecido.

 

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