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CAPÍTULO 10

VESTÍGIOS DE UM MUNDO MORTO

E‘m Palma, Quincas
teve de visitar muita gente e responder
a inúmeras perguntas. Todos queriam saber por onde andara, que fizera, se
ganhara muito dinheiro, que ia fazer agora, e mais uma porção de coisas desse
género. Estivemos na cidade durante três dias, descansando. Oá animais
precisavam de trato e Lalau tinha que curar a ferida que fizera num pé, logo ao
sair de Veadeiros, e que vinha piorando dia a dia.

Palma não tem mais que meia dúzia de ruas. As casas são quase todas de
tijolos e nós admiramos os imensos quintais que possuem, cheios de jaqueiras,
mangueiras e abacateiros — mas são todas muito antigas, o que dá à cidade
triste aspecto de ruína. No rio Paranã, que serve de banheiro à população, há
dois lugares reservados: um para homens, outro para mulheres, este um pouco
acima do primeiro. As águas são mornas. É um gosto a gente alcançar a nado os
baixios de areia cobertos de seixos que pontilham o leito do grande rio.

À
partida, a nossa pequena expedição se dividiu em duas. Sálvio, Quincas e eu iríamos pelo rio, em canoa, conduzindo alguns fardos de coisas
necessárias. Lalau e Tobias iriam por terra. Devíamos reencontrar-nos no
córrego da "Pedra Riscada" — aquele tal que deixou Leandro
"louco"

ficando
combinado que quem chegasse primeiro esperaria pelos outros. A distância a
percorrer até ao córrego da Pedra Riscada era, mais ou menos, de 250
quilómetros, o que seria fácil, rio abaixo.

NÓS três nos revezávamos nos remos, dos quais nos servíamos mais para
dirigir a embarcação do que para a impelir. Um quilómetro mais ou menos para
baixo (as distâncias têm que ser todas "mais ou menos", porque esta gônte
não tem muita noção de distância, e "quilómetro" nada significa para
ela, que mede tudo em léguas e estas mesmo são "mais ou menos"
elásticas…) passamos pela embocadura do rio da Palma, que entra violentamente
pelo Paraná, formando rebojos perigosos. Daí em diante, o Paraná muda de nome:
passa a chamar-se Paranatinga. Mais cinco quilómetros e começaram as
corredeiras. Apertado entre altas margens de rocha, o rio espuma, espadana o
esbraveja, estourando como animal enfurecido. Suei frio. Não esperava
atravessar inteiro aquele inferno, e mil vezes me arrependi de não ter ido por
terra, com Lalau e Tobias. Felizmente, a canoa não foi "torpedeada",
como (Mes diziam, referindo-se ao encontro com as pedras que é quase sempre
fatal. Graças à perícia de Quincas, atravessamos incólumes o perigoso passo, e
chegamos a Porto Feliciano ao anoitecer. Estávamos esgotados de cansaço e comoção,
mas inteiros.

Na
madrugada seguinte continuamos a viagem, rio abaixo, encontrando frequentes
corredeiras, sempre perigosas. Mais abaixo, na margem esquerda, desemboca o
Maranhão, e, daí em diante, viajamos em pleno Tocantins.

As
margens do Tocantins têm grandes extensões de praia de areia branca onde,
segundo diz o Quincas, há abundância de tartarugas.

Ao fim desse segundo dia de viagem chegamos à embocadura do córrego de
Santa Cruz.

—   Aí para dentro — disse Quincas, apontando para o
córrego — há uma pedra com sinais gravados.

—   Você sabe onde ela fica? — perguntou Sálvio, já
entusiasmado.

—   Fica lá para cima. Eu nunca a vi. Só ouvi
falar. Nem sei se existe, mesmo.

—   Temos que ver isso de perto, Quincas.

—   Pois vamos. Mas só amanhã cedo. Hoje já é muito tarde.

Na manhã seguinte, assim que clareou o dia, começamos a subir o
córrego. Deteve-nos uma cachoeira, uns cinco quilómetros acima da embocadura. O
rio despenhava-se lá de cima com grande estrondo. Amarramos o barco e pulamos
para terra.

O terreno é de rocha eruptiva, e a vegetação raquítica. As rochas
assumem aspecto inesperado, formas caprichosas e fantásticas em torno do platô
de onde o rio se lança abaixo. As águas se espraiam no leito de pedra, sem
chegar aos joelhos da gente. Seguimo-las algum tempo e chegamos assim a um
local curioso, formação rochosa que seria alarmante para espíritos
desprevenidos. Era um semicírculo, vasto anfiteatro que, embora arruinado pelo
tempo, parecia preparado para receber grande assembleia. Quando examinamos a
estranha estrutura, nosso espanto cresceu. Numerosos assentos estavam escavados
no anfiteatro de rocha! E pareceu-nos, ainda, que aquela concha crivada de
assentos fizera parte, primitivamente, de uma estrutura maior, talvez circular.
Ao centro abria-se um túnel, pelo qual passava o regato que se ia despenhar
mais adiante. Apesar dos estragos do tempo, podiam-se perceber sinais de
trabalho na pedra. Aquilo devia ter sido uma obra grandiosa. Depois de
percorrer o monumento, afastando as ervas que o cobriam, olhando tudo
curiosamente, estremecendo, lançando exclamações, Sálvio parou diante de mim e
disse com voz trémula:

—  
Jeremias! Estamos pisando
um lugar sagrado!

—  
Você está certo disso?

—   Sem dúvida. Esse é o lugar onde o povo se
reunia para realizar alguma cerimonia religiosa! Por aqui deve ter havido um
altar!

Foi
só lançar um olhar em redor para encontrar os vestígios do altar. A certa
distância do anfiteatro, bem em frente ao centro dele, vimos, no leito do rio,
os restos de um grande pilar em forma de cruz, de pedra e solidamente lixado à rocha. Que haveria, antigamente,
sobre aquele Sólido pilar? Um altar, uma plataforma, ou um púlpito? Quem o
poderia saber? E como teria sido destruído? Por alguma violenta enchente? Por
mãos humanas? Por algum cataclisma? Jamais encontraríamos a resposta para essas
perguntas e para muitas outras que surgiam a cada Instante.

Mas
ali estava ele, solidamente cimentado ao solo com a água rumorejando em torno… Que seres teriam talhado, ajustado e cimentado aquelas pedras? E em que época? Para
que fim? Quantos séculos havia que a água rolava assim sobre o pilar,
indiferente, corroendo-o lentamente?

Do lugar onde estávamos, com os pés mergulhados na água, junto ao
alicerce derruído, olhamos o anfiteatro. .O aspecto majestoso fêz-nos perceber
que somente um povo dotado de singular sentimento de grandeza poderia ter
realizado semelhante obra. O riacho, passando pelo túnel de pedra, vinha em linha
reta até ao pilar, e continuava, indo despenhar-se, lá adiante.

Examinando novamente o anfiteatro, compreendemos que os seus
construtores haviam aproveitado uma singular formação rochosa (ocorreu-nos que
poderia ter sido uma cratera) para talhá-la em forma de arquibancadas. A parte
posterior do anfiteatro era de rocha bruta, sem trabalho algum a não ser ao
centro, sobre o túnel que dava passagem ao riacho. Haviam polido aí um grande
retângulo de rocha, de uns três metros quadrados, como uma folha de livro; esse
retângulo estava coberto de inscrições em caracteres brasílicos e,
aparentemente, em desordem. Encimava a inscrição um triângulo, tendo uma cruz
no vértice superior. Tanto eu como Sálvio fomos tomados de angústia olhando
aquilo. Não podíamos decifrar a inscrição, mas sentíamos que ela nos daria a
explicação de todo o mistério. Copiamos cuidadosamente todos os sinais, na
ordem em que estavam e respeitando as distâncias relativas. Mais tarde,
conseguimos decifrá-los, ou assim pensamos. Reproduzimos aqui os signos, tais
como os vimos, e a significação que tão trabalhosamente lhes demos. Os leitores
poderão avaliar, por aí, como teríamos ficado impressionados diante deles, lá
longe, no seio da mata, sob o grande céu azul, diante daquele paredão de rocha
de imemorável idade.. .

Custava-nos
imenso deixar o local. Ele exercia sobre o nosso espírito estranha fascinação.
Evolava-se dali uma atmosfera, de tão vetusta solenidade que estávamos como que
magnetizados.

E Sálvio teve uma ideia:

— Se sobre este pilar havia uma construção que foi arrastada pela
correnteza, os pedaços devem estar atirados lá embaixo, sob a cachoeira.

Compreendemos.
Demos a volta e descemos do platô, chegando, pouco depois, ao local onde caía a
água que se despenhava do alto. Envolvidos pela poeira líquida, tiramos a roupa
e metemo-nos, os três, na água, começando as pesquisas junto à margem. Embaixo
da queda havia um buraco profundo e perigoso. Mesmo Quincas, que era um grande
nadador, não se atreveu a meter-se ali. Mas foi ao aproximar-se o mais possível
do poço que ele fêz um achado. Chamou-nos, e forcejou, meio enfiado na água.
Sálvio, querendo correr para perto dele, caiu; já ia sendo arrastado, quando o
segurei um braço. Firmando-se novamente, perguntou:

—   
Que é, Quincas?

—   
Alguma coisa. É pesado.

Pusemo-nos
os dois a ajudá-lo e, depois de imenso trabalho, extraímos do lodo do fundo uma
curiosa peça de pedra. Era um frontão, cuidadosamente lavrado, pesadíssimo.
Para o colocar na margem fizemos esforços quase sobreumanos. Vimos, afinal, um
pedaço de frontão, mutilado, corroído, coberto de limo. E depois de o limpar
cuidadosamente, ficamos mais que pagos pelo grande trabalho. Ao centro, entre
delicadas aplicações de pedra, havia uma placa de metal que, pela conservação e
o brilho que logo adquiriu, nos pareceu à primeira vista ouro. Mais tarde concluímos que devia ser oricalco, o misterioso metal tão usado
na América, ainda ao tempo da descoberta. Nessa placa, gravada em caracteres
que Sálvio pôde interpretar com facilidade, havia esta inscrição:

"CRONOS,
DE ATLANTIS"

Meu
amigo quase desfaleceu. Desmesuradamente abertos, seus olhos ficaram fixos na
placa durante alguns -minutos. Depois, murmurou, com cara de louco:

— Vejam! Olhem! Cronos! Cronos de Atlantis! Estou ficando doido!

— Eu também acho — opinei.

Sálvio
pronunciava palavras desarticuladas, dava uns passos, acariciava a placa com as
pontas dos dedos e passava as mãos pela calva arroxeada.

— Esperem! Tenho medo de enlouquecer!… Tudo se
poderá esclarecer!

Parecia
desvairado. Quincas assustou-se. Segurou-o pelos braços fortemente e berrou:

—    Sr. Sálvio! Sr. Sálvio! Que é isso!? Que é que
está sentindo ?

—    Largue-me!.. . berrou ele arrancando-se
brutalmente das mãos de Quincas. — Largue-me! — E, imediatamente, mais calmo,
começou a falar com maior clareza: — Cronos de Atlantis… já estou me
recordando… Foi Henrique Schliemann, no século passado… Ele descobriu, na
Ásia Menor, junto aos Dardanelos, quando fazia escavações para encontrar Tróia,
um vaso com essa mesma inscrição: "Cronos, de Atlantis!" Depois,
encontraram-se medalhas e moedas, com a inscrição mais completa: "Do Rei
Cronos, de Atlantis". E mais tarde, aqui na América, creio que foi no
Chile, encontraram-se vasos, estatuetas, medalhas e moedas exatamente iguais
àquelas da Ásia Menor. E, agora, subitamente, aqui, em pleno coração do
Brasil… Isto! Esta maravilha! E nós! Nós, justamente, entre milhões de
homens, é que viemos dar com isto! É de enlouquecer!

Calou-se,
e durante alguns momentos, permaneceu imóvel, de olhos semicerrados, fitando a
placa, com um sorriso parado nos lábios. De repente, agarrou-me brutalmente
pelos braços e exclamou:

— Cronos, Jeremias! Cronos foi um rei de Atlantis que viveu há, pelo
menos, 100 mil anos! 100 mil! Sabe o que quer dizer isto? Sabe?

* * *

A tarde ia morrendo. O vento deixara de soprar. Estava tudo tão
perfeitamente imóvel que a gente sentia a pausa pesar sobre a própria vida. E
nós três, nus, na margem do regato, imóvel também, diante do frontão partido,
diante da placa de oricalco que continha a estranha inscrição … Pedra lavrada
havia cem milhares de anos, por dedos humanos há cem mil anos desaparecidos, e
que assim vinha do fundo das idades acenar-nos com a ponta de um mistério
decerto para sempre indecifrável!

A
natureza, quieta, indiferente, contemplava-nos. E a placa de oricalco, velha de
mil séculos, bradava: CRONOS, DE ATLANTIS!

CAPÍTULO 11

OS SELVAGENS LOUROS

NOSSA CANOA DESCEU O RIO SANTA CRUZ RAPIDAMENTE

e foi logo agarrada
pela correnteza do Tocantins. O achado daquele frontão nos deixara
positivamente esmagados. Mesmo Quincas, que decerto não podia avaliar
perfeitamente o que significava aquela placa de oricalco — estava em deplorável
estado de nervos, como se tivesse levado uma surra. Nenhum de nós tinha vontade
d© falar. Sálvio, ao meu lado, estava com o queixo apoiado na mão e o olhar
fixo. Os remos moviam-se compassadamente e o seu chapinhar na água era o único
som de vida que nos chegava aos ouvidos. Eu contemplava as águas serenas do
rio, mas não as via. Via um estranho povo, envolvido em amplas túnicas, calçado
de sandálias, movendo-se pela plataforma de rocha, subindo para os assentos de
pedra do anfiteatro … As figuras nunca terminavam de subir, e meu espírito
rodava em volta da cena como falena em volta da luz, refazendo sempre o mesmo
círculo.

Quando,
pelo meio-dia, a voz de Quincas ressoou, pa-receu-me estranha e longínqua:

— Este é o córrego da Pedra Riscada.

Ninguém
lhe respondeu. Quincas apontava um riacho que desembocava no Tocantins. Riacho
que, em São Paulo, seria um rio respeitável.. . Quincas parou a canoa na praia.

— A Pedra Riscada é logo ali — acrescentou.

— Vamos
vê-la — murmurou Sálvio, erguendo-se lentamente.

Amarrado o barco, saltamos e subimos pela margem do regato. íamos por
ir, como se nada mais tivesse importância, depois daquele achado miraculoso que
por si só valeria a viagem.

A Pedra Riscada era uma grande laje, ligeiramente inclinada, e gravada
em toda a sua extensão, com desenhos geométricos, círculos e sinais que
reproduzimos integralmente para que o leitor possa fazer idéia exata da mesma.

Não
fosse Sálvio quem é e, certamente, o nosso trabalho estaria perdido daí por
diante. Para mim, a inscrição não tinha valor algum. Não se tratava de
petróglifos, nem ideogramas, e tampouco de hieróglifos. Eram simplesmente
sinais, grande série e círculos de vários tamanhos, dispostos em aparente
desordem. Que poderia ser aquilo? Por mim, teria simplesmente seguido a viagem,
sem lhes dar importância. Enquanto contemplávamos a laje, Quin-cas falou:

—    O Sr. Leandro esteve um dia inteiro aqui.

—    E esteve também onde estivemos ontem? —
perguntou Sálvio.

—    Não, nem eu nunca ouvi falar daquilo. Mas
aqui-, paramos, e o sr. Leandro ficou muito interessado, fêz uma porção de
cálculos, e resolveu mudar o rumo da viagem. Quando saímos de Palmas, a
intenção dele era seguir até Porto Nacional. Mas, depois de estudar esta pedra,
ele mudou de idéia. Deixamos a canoa aqui e seguimos por terra.

Durante o silêncio que se seguia, Sálvio estudou atentamente a
"pedra riscada". Depois, murmurou, começando a interessar-se:

—    Dir-se-ia um rumo indicado por meio de
estrelas… mas parece que falta qualquer coisa.. . Quincas!

—    Pronto.

— Que é que o sr. Leandro fêz, depois de estudar esta pedra ?

 

— Não
sei. Ficou muito contente. Depois, resolveu abandonar o Tocantins e ir por
terra direito ao Araguaia.

—   Sim. Mas eu sinto que isto não está certo. Falta
qualquer coisa. Vejo dois sinais que não têm razão de estar ao lado das
estrelas.. . a não ser que tenham significação especial. Não há dúvida de que
esses sinais representam estrelas, e, se não me engano, trata-se do signo de
Aries, ou Carneiro. Poderia interpretá-lo como querendo nos aconselhar
brandura, teimosia, força de vontade, persistência. Mas, para que são aqueles
dois sinais em forma de ferradura, junto àquelas duas estrelas?

—   Parecem poltronas — sugeri eu.

Sálvio deu-me uma palmada nas costas, já
animado.

—   Eureka! Justamente, Jeremias! Poltronas! Vamos interpretá-los,
então, como "assentos", ou "lugar onde se descansa"…

—   E daí?

—   Bem… poderíamos imaginar que quando essas duas
estrelas passarem por determinado lugar do firmamento, algo se deve fazer…

—   Obscuro, Sálvio.

—   Nada obscuro, Jeremias. Creio que deveríamos saber em
que momento essas duas estrelas passam pela casa respectiva, no Zodíaco. Você
sabe que o Zodíaco é dividido em 12 casas… 1

 

—    Não sabia. Mas quando será isso?

—    Já direi. Depois de alguns cálculos simples.

—    Bem. E depois?

—    Acredito que, descoberto isso, deveremos
esperar a passagem das estrelas pela casa, e, então, seguiremos no rumo
indicado.

—    Ora! Leandro não esperou nada disso!

—    
Quem sabe? Poderemos imaginar
várias hipóteses: ou ele não se lembrou de interpretar assim estes sinais, e
não ligou o Zodíaco a eles; ou fêz isto mesmo que eu fiz, e se encontrava
exatamente no momento adequado e prosseguiu; ou interpretou tudo corretamente,
e, impaciente, partiu sem esperar o momento oportuno. Não se esqueça de que ele não regressou. Não sabemos o que conseguiu, nem se vive ou
está morto.

—   Você quererá dizer que ele não conseguiu bom êxito por
ter desprezado estes sinais?

—   Quem sabe? Não podemos desprezar coisa alguma nesta
aventura. Lidamos com conhecimentos que estão fora do nosso controle. Os nossos
antepassados dispunham de sabedoria e de forças com as quais nem sonhamos. Para
quase todos nós a magia é agora objeto de desprezo, mas nem sempre foi assim.
No passado, ela era algo muito importante e exerceu influência decisiva sobre
os destinos da humanidade. Na maioria, os sábios do passado longínquo não eram
senão magos, e da magia derivaram as ciências modernas, através da Alquimia, da
Astrologia… Se houve progresso por parte da ciência, isso se deve
exclusivamente à magia dos nossos antepassados. E nem sequer podemos dizer que
a magia não era ciência, pois que desconhecemos tudo a seu respeito e sabemos
somente o que a lenda nos transmitiu.

Eu
tinha que me curvar. Sálvio entendia dessas coisas e eu não entendia. O melhor
era deixá-lo fazer.

Acampamos
ao lado da Pedra Riscada, onde armamos a grande tenda. Enquanto Sálvio se
engolfava, nos seus cálculos, eu e Quincas resolvemos bater o mato em volta,
caçando. Quando voltamos, com um veado e uma capivara, ao anoitecer, Sálvio
declarou:

—   Teremos que ficar aqui acampados durante doze dias.

—   Doze dias, Sálvio?! É muito!

Sálvio
pôs-se a explicar a razão da espera. Mas era complicada demais, e desisti de
entender. Lembro-me só de que ele achou ainda que estávamos com muita sorte.

—   Chegamos aqui na época apropriada, por pura sorte. Se
demorássemos mais 15 dias a chegar, teríamos que esperar durante um ano, até
que os astros se achassem novamente em conjunção.

—   E Leandro, Sálvio?

—   Talvez ele tenha chegado atrasado, ou adiantado, ou
também, no momento exato. Quem sabe?

— Pode ser, ainda, que não tenha interpretado os símbolos, não é?


Quem sabe, Jeremias! Quanto a nós, para fazermos as coisas bem feitas, devemos
sair deste ponto daqui a doze dias.

Portanto, dispusemos tudo para o longo acampamento.

Três dias mais tarde chegaram Tobias e Lalau com as seis mulas. Vinha
com eles o estafeta cio correio, que haviam encontrado na estrada. É um pobre
diabo que caminha duzentos quilómetros a pé e outros duzentos para regressar,
conduzindo a correspondência. Ele passou o resto do dia e toda a noite conosco,
contando-nos a sua miserável vida. No dia seguinte, bem cedo, partia. Levava a
tiracolo a mala de correspondência ao lado do bornal, onde transporta pedaços
de carne seca e farinha — único alimento para um mês de viagem a pé.

Nos
dias seguintes caçamos ainda e fizemos uma boa provisão de carne que Tobias
preparou no fumeiro. As mulas fartaram-se de comer e descansar.

Passaram-se
os doze dias. Os astros cumpriram o seu dever e pela madrugada do décimo
terceiro, partimos atravessando para a margem oeste do Tocantins. Ali deixamos
a canoa, bem abrigada, e recomeçamos a palmilhar a floresta. Havíamos
modificado o plano inicial da viagem, pois Sálvío dizia que devíamos obedecer
às indicações da Pedra Riscada. Tínhamos, agora, que marchar mais de seiscentos
quilómetros para noroeste, até alcançar o Araguaia cerca da ponta norte da Ilha
do Bananal. Nossa intenção era atravessar o Araguaia nesse ponto e penetrar no
Estado do Pará, seguindo pela fronteira desse Estado com o de Mato Grosso. Sem
Quincas, estaríamos todos perdidos. Quincas era um camarada realmente extraordinário,
mateiro até às últimas fibras. Conhecia o mato, era inteligente, tinha presença
de espírito e nenhum segredo da selva lhe era desconhecido. Seu instinto de
orientação, infalível. Quando eu não sabia absolutamente em que direção ficava
o morro que acabava de deixar, ele o sabia sempre com exata precisão. Aliás,
Sálvio se orientava igualmente bem, outro tanto sucedendo com Lalau e Tobias, velhos
viajantes daqueles ermos. As mulas caminhavam com segurança, evitando
atoleiros e lugares perigosos. Só eu me sentia miseravelmente desorientado
naquele inferno verde. Se me deixassem sozinho, daria mil voltas em torno do
mesmo ponto. Também, não sei me orientar nem num edifício. Depois de
entrar nele, nunca sei de que lado é a frente…

* * *

Marchávamos, agora, ao encontro da Serra dos Chavantes, por um terreno
coberto de luxuriante vegetação. Numerosos pântanos se estendiam à nossa
frente, sob a floresta espessa, o que nos obrigava a frequentes rodeios.
Atravessávamos constantemente, a vau, córregos, riachos e lagoas.
Encontrávamos, também, largos trechos de terreno descoberto, seco e pedregoso.

Foi no oitavo dia de viagem depois de deixarmos o Tocantins, que nos
defrontamos com imensa lagoa semeada de ilhotas. Pareceu-nos que, nas margens e
nas ilhas, alguém estabelecera viveiros de aves de todas a,s espécies. Víamos,
de onde estávamos, milhares de asas agitando-se. Se um ornitologista fizesse
parte do nosso grupo, teria a maior emoção de sua vida, vendo reunidas ao
alcance da mão dezenas de espécies de aves diferentes — grandes per-naltas
brancos, juburus pensativos, garças graciosas, pelicanos papudos, seriemas
cismarentas, galinholas, patos, e tantas outras! Era um espetáculo
maravilhoso! Por longo tempo, ficamos embevecidos na contemplação daquele
viveiro natural no seio da mata. Despertou-nos súbito bater de asas à nossa
direita. Um bando de aves levantou vôo com gritos estridentes. Pouco depois,
milhares de aves subiam aos ares, batendo as asas, gritando, voando em
círculos sobre a lagoa.

— Índios! — murmurou Quincas.

Estremeci.
Sálvio volveu para mim os olhos inquietos. Quincas, Lalau e Tobias
apertaram as coronhas das espingardas que haviam retirado dos fardos, e
firmaram-se melhor nas selas.

— Não elevemos atirar — disse Quincas. — Não devemos atirar em
hipótese alguma, a não ser que sejamos atacados violentamente. Se formos
prudentes, não haverá perigo.

E, desmontando, Quincas encaminhou-se resolutamente pura o ponto de
onde havia levantado voo o primeiro grupo de aves. Seguimo-lo, depois de prender
as mulas em árvores próximas. Antes que alcançássemos o grupo de
palmeiras onde ele se internara, Quincas reapareceu, seguido de perto por três
estranhas personagens. Duas vinham armadas de arco e flecha, e a terceira
arrastava respeitável tacape que, como vimos depois, trazia encaixada na
extremidade aguda pedra. Quincas falava com eles e apontava-nos, Os três
pararam e fitaram-nos de sobrecenho carregado, soltando monossílabos e
sacudindo a cabeça. Eram grotescos esses três selvagens nus, de pele bronzeo-averme-1
liada. Davam impressão de estupidez e ferocidade, de forra bruta, mas não de
agilidade e destreza. Pouco depois, formavam, selvagens e exploradores, um só
grupo. Eu desconfiava e temia. Quincas, porém, falou:

—   Está tudo em ordem. Eles moram na Ilha do Bananal. irão conosco até lá. Em troca, daremos um facão a cada um.

—   Não haverá perigo de traição? — perguntei.

—   Não. Podemos ter confiança.

—   Sempre ouvi dizer que esses índios são ferozes.

—   São mesmo, quando os enfurecem com ataques inúteis.
Aliás, eu, que conheço toda a bugrada desta zona, posso lhes dizer que a
maioria dos índios é mansa, cordata o não tem desejo de guerrear com os
brancos. Os índios Babem, porém que não podem confiar nos brancos, porque
estes, sempre que os vêem, começam por atirar sobre files, Mas os índios têm
uma espécie de sentido que os avisa do perigo e os põe de sobreaviso quando os
visitantes têm más intenções. Podemos confiar nestes. Sabem que não temos
intenções malévolas.

– Não é preciso falar mais — disse Sálvio — confiamos em você, Quincas.

Realmente, era o melhor que tínhamos a fazer. O acertado era ouvi-lo e
obedecer às suas sugestões.

Começava a escurecer. As tendas foram armadas rapidamente, e as redes
suspensas, porque o tempo não estava muito firme. Os três índios desapareceram
no mato e a noite se passou sem novidade.

Quando rompeu, o sol já nos encontrou a caminho, guiados pelos três
silvícolas, que caminhavam a pé na nossa frente, o corpo ligeiramente curvado
para diante, passo rápido, cadenciado e leve. As cabeças dos três moviam-se
continuamente para um e outro lado, em constante vigilância. Passavam entre os
ramos tão habilmente que não faziam rumor algum e mal os moviam. Esgueiravam-se
por entre emaranhados de cipós e arbustos, que nós tínhamos de cortar com facões.

Na
vertente da serra dos Chavantes, os três índios foram inestimáveis guias. Sem
eles, teríamos que perder muito tempo procurando caminhos praticáveis, evitando
banhados. Eles seguiam sem hesitação, por uma trilha que não percebíamos mas
que, evidentemente, existia e era clara para seus olhos. Não precisamos
atravessar nenhum pântano enquanto os tivemos como guias. Observei que,
caminhando, não trocavam palavra. Seguiam em silêncio, um atrás do outro.

Vi um deles flechar uma ave em pleno voo e ir buscá-la sem titubear no
meio da macega espessa. Trouxe-a, depe-nou-a e ali mesmo fez fogo e assou a
ave. Não era hora de almoço, mas os índios não ligam para isso. Comem quando
têm oportunidade. A ave foi dividida em três pedaços, cada um apanhou o seu e
continuaram a caminhar enquanto arrancavam bocados às dentadas. Soube, depois,
que os indígenas comem continuamente, havendo alimento e não estando ocupados
em qualquer tarefa que os impeça de o fazer. Também, não havendo alimentos ou
estando empenhados em alguma ocupação muito séria, são capazes de passar três
ou quatro dias em completo jejum. Aliás, o jejum entre eles é usado e com
diversas virtudes. Usam-no para curar quase todas as doenças. Desde que se ache
indisposto, o indígena deixa de comer completamente e só bebe água morna, até
que se ache inteiramente bom.

Passados
dez dias do encontro da lagoa, chegamos ao Araguaia, alguns quilómetros acima
da ponta norte da Ilha do Bananal. Quincas calculara a viagem em 20 dias, no
mínimo.

Depois
de acamparmos, os três meteram-se pelo mato e desapareceram, dizendo que
esperássemos. Passada uma hora, reapareceram pilotando uma enorme canoa. Sálvio
eu, Lalau e Tobias embarcamos. Quincas iria por terra, com as mulas, para nos
encontrar à altura da ponta norte da Ilha.

Descemos o Araguaia, e, nesse mesmo dia, ao entardecer, encostávamos,
diante da ilha, onde esperamos por Quincas, que não demorou muito. Surgiu-nos
ainda com o sol de fora. Atravessamos todos, então, para a margem fronteira.
Ali, cada um dos índios recebeu a sua faca de mato, o que os deixou exultantes
de satisfação. Depois, voltaram à sua canoa. Quincas ainda os convidou para nos
guiar até o Xingu, mas eles se recusaram terminantemente. Não iriam por coisa
alguma, visto como não estavam em boa harmonia com os tapirapés e caiapós e só
se arriscariam a entrar em seus territórios em grandes bandos bem armados.

Novamente sós, na manhã seguinte iniciamos a marcha pelo território
paraense, rumo ao vale da fronteira que divide as serras do Roncador e dos
Gradaús.

O
itinerário era o seguinte: seguir uma linha paralela à fronteira de Mato Grosso
e Pará, até chegar ao Xingu. Descer por este rio seiscentos quilómetros e,
tomando por terra, seguir para oeste até encontrar o rio Iríri, atravessá-lo e,
seguindo o mesmo rumo oeste alcançar o rio Curuá — nosso objetivo final, de
acordo com as conclusões a que chegara Sálvio por meio de seus cálculos
mágicos.

Durante
os dois primeiros dias atravessamos imenso prado semeado, aqui e ali, de
pequenos bosques.

Na
madrugada do terceiro dia tivemos o mais angustioso despertar de toda a viagem
até então: estávamos cercados de selvagens e Quincas disse que eram tapirapés.
— estavam nus, mas muito bem armados, como se andassem em tarefa guerreira.
Tinham aspecto desagradável e exalavam cheiro característico mais desagradável
ainda. Fi-zeram-nos levantar, juntar à pressa tudo o que tínhamos. Depois,
rodearam-nos e obrigaram-nos a caminhar para onde eles queriam. Comecei a
duvidar seriamente das teorias pacifistas de Quincas, tanto mais que as nossas
seis mulas, ao que parece, haviam sido mortas por eles. Talvez não conhecessem
esses animais e os julgassem perigosos, mas, de qualquer modo, tive vontade de
fazer barulho por causa disso. Quincas dissuadiu-me:

— Seria loucura, "seu" Jeremias. Eles não sabem o que fizeram.
Se reclamarmos, vão pensar que estamos com disposição de guerrear, e
enfurecem-se. Enfurecidos, são como
animais selvagens. Deixem correr. Daqui por diante as mulas de pouco nos iriam
servir.

Enquanto Quincas tecia estas ponderações, os tapirapés faziam grande
algazarra, empurravam-nos para que andássemos mais depressa. Não compreendiam
que nós não sabíamos andar pela selva como eles o faziam. Todas as nossas
bagagens iam nos ombros de meia dúzia deles, mas acredito que com a intenção de
ficar com eles e não para nos livrar do peso. De repente, um deles deu com o
tacape no ombro de Sálvio. Sálvio gritou e cambaleou. Eu saltei sobre o
selvagem e acertei-lhe um murro num dos olhos com uma presteza de que não me
julgava capaz. Sangrando, o índio que caíra sentado levantou-se e pulou para
mim. Esquivei-me e ele bateu com a cabeça num tronco de árvore com tanta
infelicidade que pareceu ter perdido os sentidos. No mesmo instante, Quincas
pulava sobre mim.

—    Você está louco, Jeremias! Está louco! Eles
nos matarão !

—    Deixe-me, Quincas! Esses imundos selvagens…

— Cale-se!
Sálvio interveio:

—    Quincas tem razão, Jeremias. Fique quieto.
Eles não sentem as coisas como nós as
sentimos.. . Precisamos não os atacar, não dar sinal de raiva.. .

—    E deixar que eles nos amassem com os tacapes ?
Ora, Sálvio!

Seja como fôr, os selvagens encararam a coisa de maneira diferente
daquela que Quincas esperava. Tangeram–nos novamente para diante, e um deles
ficou ao lado do companheiro ferido. Estou absolutamente convencido de que se
tornaram mais delicados daí por diante. Penso que o único modo de ensinar
cortesia aos selvagens é abrir-lhes as cabeças.

Assim
caminhamos o dia todo, sem outro incidente. Já caíra a noite quando chegamos à
aldeia, Apesar de estarmos esgotados de cansaço e de fome, mantivemos atitude
superior e enérgica.

As
cabanas dos índios estavam dispostas pelo terreno, sem ordem, aos grupos, sob
árvores, em volta do grande terreno limpo de vegetação, mas cheio de detritos
de toda espécie: ossos, carcaças meio apodrecidas, frutos estragados, jacas não
terminados, pedaços de troncos e galhos de árvores. No centro do terreiro havia
um grande galpão coberto de palha, e fechado parcialmente numa das
extremidades. Era a "casa dos homens", na qual as mulheres não podiam
entrar sob pretexto algum.

Quando
chegamos, houve grande algazarra. Mulheres e crianças nuas nos rodearam,
falando como gralhas. As mulheres me pareciam todas velhas, desleixadas, pouco
limpas, com os longos cabelos negros desgrenhados e untados, exalando cheiro
detestável, os imensos seios pendentes e as pernas arqueadas. Algumas traziam
ao peito crianças que se agarravam como carrapatos. Os pequenos que andavam
pelo chão eram sujos, magros e todos ostentavam enormes ventres. Alguns roíam
pedaços de ossos, como animaizinhos. Mas pareciam sadios e alegres, vivos e
ágeis. No que todos eram indiscutivelmente de primeira força, homens, mulheres
e crianças, era na gritaria, na algazarra que sabiam fazer a primor. Depois,
mãos pouco limpas, de grossas unhas enegrecidas, se estenderam para nós, a fim
de nos apalpar. Mas repelimos essas carícias indesejáveis, embora sem
violência. Estávamos dispostos a não deixar que eles entrassem em liberdade
excessiva co-nosco.

De repente, a algazarra cessou. Mulheres e crianças se afastaram
rapidamente. Os homens abriram alas, para deixar passar um enorme selvagem,
troncudo, excessivamente enfeitado de penas multicores e trazendo na mão um
formidável tacape. Enfiado no braço trazia, também, o maior arco que já vi até
hoje. Seu rosto pintado de negro e vermelho era bestial e os pequenos olhos
amendoados brilhavam sinistramente. Quando sorriu, vi que tinha os dentes
pontudos. Ele se entregava ainda ao antigo costume de limar os dentes com
pedaços de pedras. É essa uma operação tão dolorosa que só mesmo homens
selvagens ao último ponto a podem praticar. Quando chegou diante de nós o
importante personagem voltou-se subitamente e erguendo o tacape deu uma ordem,
em grito gutural. Imediatamente, como atingidas por descargas elétricas, as
mulheres e as crianças que ainda tinham ficado por ali se rasparam e sumiram
por trás das choças e em volta de nós ficou um grande espaço. Aquele que
comandara o bando na floresta permaneceu diante do grande cacique. Entre os
dois estabeleceu-se logo animado diálogo, de sons guturais, acompanhado de
muitos gestos. Ao fim de longo tempo, o chefe do bando da floresta afastou-se e
foi ter com os outros. O homenzarrão então dirigiu-se a Quincas, em tom solene,
e empolando o peito. Quincas respondeu–lhe, no mesmo tom, como se estivesse
declamando um discurso. Eu estava com uma vontade doida de rir. Durante mais de
uma hora os dois ficaram batendo papo. Escurecera. Já haviam acendido várias
fogueiras no grande terreiro, quando o homenzarrão encostou a testa na testa do
nosso companheiro. Em seguida os dois fizeram uma profunda curvatura,
retirando-se o homenzarrão tão majestosamente como chegara. E ficamos em
liberdade.

Só mais tarde é que soubemos o que se passara durante a longa e
grotesca conferência. O fato de termos sido aprisionados pelos índios era
normal. Eles aprisionavam qualquer pessoa que encontrassem e não pertencesse a
sua tríbo. O cacique, aquele homenzarrão que aparentava tanta importância,
pensara que éramos conquistadores, que vínhamos para lhes preparar uma cilada a
mando dos chavantes, ou por conta dos brancos para tomar posse das terras.
Quincas, porém, soube convencê-lo de que nada disso era verdade, mas que, ao
contrário, queríamos ir }>ara diante, até ao rio Xingu, e mais para a frente
ainda. Ele ficou de conversar conosco na manhã seguinte, para resolver sobre a
nossa sorte.

Não dormimos muito mal sobre a palha, numa choça que Lalau e Tobias
limparam o melhor possível.

Mal
havia despontado o sol, vieram-nos buscar, para ir à "casa dos
homens", onde já nos esperavam o cacique e mais alguns homens importantes
da tribo. Sálvio, que ia ao regato lavar-se quando nos chamaram, estava sem
camisa. E assim que o cacique deu com os olhos no "muirakitã",
tremeu, e, perdendo a imperial compostura, levan-tou-ae, chegou-se ao meu calvo
amigo e quase encostou o nariz na pedra verde, para olhá-la melhor. Estava
positi-, vãmente apavorado. Voltou-se para Quincas e disse precipitadamente
meia dúzia de palavras. Quincas foi saindo, pedindo-nos:

—   
Venham, venham…
Depressa.

—    Que aconteceu, Quincas ? — perguntou Sálvio.
Parece que o homenzinho se assustou com isto.. . isto…

—    Não sei o que houve. Mas ele disse que
poderemos partir quando quisermos. Pediu que saíssemos porque tinha assunto
muito importante para tratar com os seus companheiros.

Rindo, Sálvio afastou-se na direção do regato. E pouco depois, quando
estávamos reunidos, apresentaram-se dois índios, moços e fortes, que nos
fizeram mesuras oferecendo-nos grandes pedaços de carne assada.

Comemos e, durante a comida, Quincas conversou com eles.

Soubemos,
então, que os dois estavam destacados, pelo cacique (a quem chamavam Piaia)
para nos acompanhar até o Xingu. Era uma sorte, tanto mais que eles
carregariam a maior parte da nossa bagagem.

Sentimos,
também, que a nossa partida estava sendo apressada. Realmente, deixamos a
aldeia cerca das dez horas da manhã, escoltados pelos dois índios.

Não
é fácil acompanhar os tapirapés em sua caminhada pela mata. Estão no seu
elemento natural. Movem-se com agilidade incrível, por mais pesados que
pareçam; pulam, desviam-se rapidamente, evitam galhos e cipós, e prosseguem
sempre. Já nós, nos embaraçávamos frequentemente nas lianas, nos galhos,
pisávamos a terra fofa que cobria mundéus — e nos cansávamos terrivelmente, ao
passo que eles pareciam nem sentir a caminhada.

Seguíamos em fila de um, e procurávamos repetir os movimentos do índio
que nos ia à frente. O outro índio caminhava aparentemente ao acaso. Ora ia à
frente, ora atrás, ora à esquerda e ora à direita. Às vezes desaparecia durante
muito tempo, e, quando assim acontecia, correspondia-se com o companheiro por
meio de sons que imitavam o canto de algum pássaro. Ao reaparecer, às vezes
dizia ao outro índio algumas palavras em voz baixa.

Ora,
numa dessas vezes em que ele se demorou muito, ouvimos ruído suspeito no mato.
Depois, vozes humanas. Alguém berrava frases inarticuladas. O nosso guia índio
fêz-nos sinal para ficarmos quietos, e pulou para o mato, desaparecendo sem
fazer barulho. Momentos após, estalou um enorme berreiro acompanhado de ruídos
estranhos.


Vamos ver — disse Quincas. — Parece que estão brigando.

Metemo-nos no
mato, e logo demos com o mais inesperado dos espetáculos: numa clareira, os
nossos dois guias batiam-se com outro selvagem. Mas que selvagem! Era branco e
tinha os cabelos louros. Lembrou-me um "viking" das lendas
escandinavas, e era tão feroz como aqueles o tinham sido. Os três lutavam com
seus tacapes. Apenas, a massa usada pelo louro era maior e mais pesada que as
outras duas juntas. Os três lutavam com inexcedível agilidade. Os tacapes
cantavam no ar, e eles gritavam diabolicamente. Receamos que os nossos dois
guias matassem o louro e pedimos a Quincas que os fizesse parar. Quincas
berrou, mas não conseguiu nada. Os três continuavam a malhar, como se fosse
aquela uma obrigação indeclinável. O louro defendia-se e atacava valentemente.
Era um ser estranho, nu. A pele era morena, queimada pelo sol, mas os cabelos
muitos longos lhe caíam pelas costas largas. Sobrancelhas e bigodes, também
louros e eriçados. Era enorme e extraordinariamente forte. Menos ágil que os
dois tapirapés, levava alguma vantagem porque descrevia, com seu enorme tacape,
molinetes terríveis, capazes de esmagar tudo que surgisse em frente. Brandia-o com tamanha violência que só a fenomenal agilidade desenvolvida pelos dois
adversários os livrava da morte. Quando aqueles cacetes se entrechocavam no ar,
soavam cavamente. E, ao mesmo tempo em que desenvolviam o singular combate, os
três gritavam e se xingavam valentemente, como se isso fizesse parte
indispensável da luta.

Nós cinco ali continuávamos parados a pequena distância, impotentes,
contemplando o combate que só poderia terminar com sangue e morte.

De repente, um dos tapirapés rolou pelo chão, e o sangue espadanou em volta. Quando o corpo se imobilizou ao lado de uma moita, não vimos senão u’a massa sangrenta
dos ombros para cima. E no chão começou a crescer rapidamente uma poça rubra.

Os
outros dois, no entanto, continuaram a combater, como se nada tivesse acontecido.
No minuto seguinte vi distintamente o tacape do gigante louro cair sobre o
ombro do tapirapé. Não recordo como senti o ruído dos ossos esmagados, mas foi
coisa medonha. O tapirapé fêz uma careta horrível e ficou rígido, de pé,
imóvel. O louro, aproveitando a oportunidade, descarregou-lhe o tacape na
cabeça, de cima para baixo. A cabeça desapareceu literalmente, e de sob o
tacape que se enterrara no corpo do pobre índio espalhava-se qualquer coisa
como morangos com creme esmagados. As pernas do tapirapé vergaram e o corpo
desabou.

O
grande selvagem louro sorriu enorme sorriso que lhe deixou à mostra os dentes
amarelos e pontudos. Colocou sobre os ombros o tacape ensanguentado e caminhou
sorridente para nós. Tobias, cheio de susto, apontou-lhe a garrucha e gritou:
"Pare!" O selvagem, porém, com o sorriso imobilizado na face,
continuou a caminhar. Ouvi Quincas gritar a Tobias que não atirasse. Mas no
mesmo instante o tiro partia. O selvagem louro deu um pulo, segurando o
estômago com as duas mãos, berrando feito louco. Depois, torceu-se sobre si
mesmo, e, dobrando as pernas, rolou para o chão, como um tronco abatido.

Quincas, furioso como eu nunca o vira, atirou-se sobre Tobias e deu-lhe
algumas fortes bofetadas. Tobias empurrou-o, e Quincas cambaleou, tropeçando e
afastando-se. Nesse momento — nós nem tínhamos ainda compreendido bem o que se
passara, — ouviu-se uma algazarra no mato, e logo um terrível som cavo, e
Tobias era atirado longe enquanto soltava um urro de animal abatido. Corremos,
e quando o rodeamos, ele já estava morto. Em seu peito estava enterrado
profundamente um machado de pedra que lhe afundara toda a caixa toráxica. O
sangue saía grosso, muito escuro, em enormes borbotões.

E
foi então que caiu sobre nós o bando de selvagens louros. Eles deviam ter
assistido a tudo, desde o início, empoleirados nas árvores próximas, porque
saltavam delas como macacos, rodeando-nos. Eram uns trinta, ou mais e cada um
deles era a reprodução do outro. Todos iguais. Altura acima da normal, muito
fortes, torsos enormes, braços compridos, peludos, de longos cabelos, longas
barbas emaranhadas, longos bigodes — tudo louro, de um louro queimado. Traziam
machados de pedra encastoados em fortes cabos de madeira. Da cinta de couro que
lhes cingia os rins, pendiam outras armas, que deviam ser punhais de bambu.
Estavam nus, não tinham tatuagem nem pintura, nem enfeite algum. Apenas aquele
cinto de couro e as armas. Urravam como animais e seus pequenos olhos azuis
refletiam ferocidade.

Rodearam-nos
pulando, berrando, brandindo seus pesados machados — e juro que nesse momento
considerei encerrada para sempre a nossa aventura. Se aqueles diabos ruivos se
lembrassem de manejar seus machados, com certeza as nossas armas não teriam
tido tempo de entrar nu luta. Mas eles não se lembraram. Rodearam-nos e
impeliram-nos brutalmente para a frente. Usaram, sim, seus punhais de bambu. Eu
e os outros sentimos, por várias vezes, as pontas agudas cotucarem-nos a pele.
E não passou disso. Tinhamos que andar, andar de qualquer maneira, aos trancos,
por lugares onde não havia caminho. E se andamos!… Nenhum obstáculo nos fazia
parar! Eles vinham aos guinchos, correndo, parando, subindo às árvores, pulando
para o chão — como verdadeiros macacos.

Quando escureceu, notamos que a vivacidade deles diminuía
consideravelmente. Tornavam-se inquietos à medida que a noite se aproximava. Já
não corriam. Caminhavam

o mais juntos possíveis, olhando
ansiosamente para todos os lados. Em seus olhos havia medo. Quando a noite dêsceu,
pararam, reunidos em blocos, e discutiram com voz alterada. Em seguida,
apressados, juntaram um monte de galhos e, fazendo fogo laboriosamente com dois
pedaços de pau, acenderam grande fogueira.

A paisagem, a fogueira e os estranhos selvagens louros — tudo tomou o
aspecto irreal de um conto de fadas, à claridade bailante das chamas. Eles
pareciam ter-nos esquecido completamente. Sentaram-se o mais perto que puderam
da fogueira, quase amontoados, de tão juntos. Falavam pouco e em voz baixa. Por
duas vezes notei que quando um deles se erguia para dar alguns passos,
tropeçava como se estivesse tonto, ou cego.

Duas horas se passaram, mais ou menos. Agora,
eles estavam silenciosos, caídos nas mais inverossímeis posições amontoados uns sobre os outros. Dormiam. Sálvio falou:

—    Escutem… esses homens têm medo do escuro…

—    Acho que eles não enxergam nada de noite —
disse eu.

— Por isso mesmo é que devem
temer as trevas…
Tendo chegado a esta conclusão, concluímos também,

naturalmente, que
estávamos livres. Podíamos escapar-lhes quando quiséssemos, durante a noite.
Eles jamais nos perseguiriam. E Lalau propôs que escapássemos naquela noite
mesmo.

— Não
— disse Sálvio. — As intenções deles para conosco não podem ser más. Se
quisessem, já nos teriam trucidado e eu tenho interesse em observar melhor
esses selvagens. Há muito poucas referências a selvagens louros, no Brasil.
Estamos diante deles, o que talvez não tenha acontecido a explorador nenhum, e
devemos aproveitar esta rara oportunidade. Acho que devemos arriscar-nos em sua
companhia por mais um dia ou dois. Escaparemos quando quisermos, durante a
noite.

Discutimos
um pouco sobre o assunto. Eu e Lalau achávamos mais prudente fugir logo.
Quincas, porém, era de opinião que não corríamos perigo e, assim, resolveu-se
ficar. A noite foi tranquila. O silêncio era interrompido apenas pelos ruídos
normais da selva e pelos roncos dos selvagens adormecidos. Aliás, eles não
fizeram senão roncar. Dormiram a noite toda sono ininterrupto e pesado.

A
marcha do dia seguinte foi penosa. Subíamos interminavelmente por um espigão
ressequido, sem sombras, nem águas. E nesse dia vimos como os selvagens louros
eram magníficos caçadores. Usavam boleadeiras. Atiravam-nas de longe,
violentamente e o animal ficava com as pernas de tal modo peadas que rolava
pelo chão, sendo em seguida abatido com o tacape. Nesse dia usaram as
boleadeiras por três vezes, e de cada vez foi abatido um bom veado. Tínhamos,
assim, comida abundante. Eles comiam a carne crua, e ficaram admirados quando
nos viram assar os nossos pedaços.

Por
várias vezes tentamos entabular conversa com eles, mas sem resultado. Sálvio,
pelo fim do dia, disse-me que deviam ter uma espécie de inteligência
"diferente" da nossa. E ao anoitecer, continuávamos diante de um
mistério. Não nos maltratavam, não nos entendiam, não se preocupavam conosco —
faziam-nos caminhar para um destino que nos era completamente desconhecido.

Com a vinda das sombras, repetiram-se exatamente as cenas da noite
anterior. Começaram a tropeçar, tontos, Detiveram-se,. afinal, e acenderam grande
fogueira.

É interessante notar que procediam como verdadeiros animais. Não
tomavam outra precaução senão acender as fogueiras. Depois deixavam-se cair em
qualquer lugar e adormeciam em seguida.

A noite estava muito quente e abafada, como os dois dias anteriores.
Nós não podíamos dormir, tanto era o calor e tamanha a sede que nos
martirizava.

Mas de repente começou a soprar a ventania e logo uma chuvarada
compacta caiu sobre nós, dando-nos deliciosa sensação de frescor. Estávamos,
agora, no alto do morro, onde se levantavam algumas árvores, que pareciam
cobertas de prata ao violento clarão dos relâmpagos.

Subitamente
houve um estrondo ensurdecedor. O céu e a terra foram violentamente iluminados,
e uma das árvores, como envoltas em manto de luz, torceu-se e abateu-se sobre
si mesma.

Pois
nem todo esse infernal ruído acordou os selvagens louros ou fez com que eles se
movessem. Continuavam amontoados no chão, imóveis, inermes, como coisas que
nada tivessem a recear dos elementos desencadeados. Tinhamo-nos posto de pé, e
conservamo-nos unidos uns aos outros, imóveis também e fascinados pelo
empolgante espetáculo. A sensação de frescor que havíamos sentido ao início da
chuva se transformara agora em intolerável mal-estar, porque o temporal era
demasiado violento para o nosso gosto. Nossas bagagens, envolvidas em oleados,
estavam amontoadas junto a um tronco de árvore caído e brilhavam na escuridão
sob os relâmpagos deslumbrantes que se sucediam rapidamente, iluminando as
desoladas cercanias. Foi depois de uma série quase ininterrupta de quatro
ou cinco relâmpagos que Quincas berrou:

— Olhem
à esquerda! Rochedos!… Quem sabe se há alguma caverna ali?

Pusemo-nos
a correr para o grupo de rochedos. Alcançados, percorremo-los, procurando uma
cavidade onde nos pudéssemos abrigar. Pouco depois, estávamos no interior de
ampla caverna coberta na face de uma das rochas. Encharcados até os ossos,
sentíamos grande satisfação por ficar fora do alcance daquele tremendo dilúvio.
Era suficiente sentir um teto sobre a cabeça, para que a impressão de conforto
fosse grande — tal é a capacidade de adaptação do homem às mais diversas
situações.

A
tempestade não amainava. Ao contrário, parecia recrudescer. Nunca em minha vida
vi cair tanta água! Por perto caíam raios. Ouvíamos estrondos ensurdecedores, e
tínhamos que fechar os olhos, deslumbrados pelos fortíssimos clarões.

Depois,
o vento mudou e começou a atirar a chuva para dentro da nossa caverna em
catadupas horizontais. Fomos fugindo, recuando para o fundo, até chegarmos à parede
que fechava a gruta. Subimos ao ressalto que a rodeava como um rodapé, e ali
ficamos os quatro, imóveis, olhando. E havia o que ver! A gruta tinha estranha
formação. Seu solo era mais baixo que o nível do chão lá fora. Parecia um fundo
de bacia. E nesse fundo a água se foi acumulando pouco a pouco, até que,
passado algum tempo, nos víamos diante de um lago. Sobre o ressalto estávamos a
seco mas a água continuava a subir, porque o vento empurrava a chuva para
dentro em catadupas. Se continuasse a subir assim, em breve teríamos que ficar
mergulhados.

—    Jeremias! — gritou Sálvío — Isto está ficando
preto! Parece um túmulo! Não sei o que vamos fazer daqui a pouco!

—    Logo que clarear saberemos — disse eu, embora
me sentisse talvez mais inseguro do que ele.

Lalau começou a queixar-se.
Estava inquieto.

Não
há motivo para desespero — dizia eu, que resolvera ser o "forte" da
turma. — Daqui a pouco a madrugada iluminará tudo, e poderemos sair. Não é
melhor estar aqui abrigados da chuva do que lá fora?

Não sei o que Lalau ia responder, porque, nesse instante, a Agua
alcançava o ressalto onde estávamos trepados. Acho que pulamos, mas não me
lembro bern. Ouvimos um estrondo que encheu toda a caverna, e senti que me
faltava o chão sob os pés. Em seguida, uma avalancha líquida me
agarrou e atirou para baixo. Fui arrastado para um negro corredor, entre águas
espumantes. Era atirado daqui para ali e meu corpo batia contra obstáculos sem
conta. O cérebro funcionava, porém, em meio a essa dolorosa balbúrdia e num
décimo de segundo compreendi o que acontecera: o ressalto aluíra, escavado pela
água, e a torrente, agora, se atirava para alguma galeria existente no fundo da
caverna, arrastando-nos.

Quanto tempo durou aquela tortura? Não sei, mas, tão inesperadamente
como tudo o que nos vinha acontecendo, me senti preso pelas roupas a qualquer
coisa firme. Atirei os braços para a frente e as mãos agarraram firmemente uma
ponta de rocha. Pude então, erguer o corpo e respirar. Depois, procurei
consolidar a minha posição. A água es-cachoava, furiosa, em redor de mim na
escuridão e espumava despedaçando-se contra a rocha onde me recolhera.

Ao
que me recordo, minha impressão mais profunda foi de que jamais conseguiria
sair daquele túnel sinistro, jamais tornaria a ver o azul do céu, o verde das
matas…

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