CAPITULO 8
ESTIRÃO PITORESCO
NÓS DOIS QUERÍAMOS QUE
AS MULAS ANDASSEM MAIS depressa.
Achávamos a sua andadura demasiado lenta.
— Vão muito bem assim — dizia Quincas. — Não se esqueçam de que o
tempo para nós não pode existir.
— Mas
temos trezentos quilómetros até Formosa, Quincas!
— Mais ou menos isso.
— E quando iremos chegar, assim?
— Quem sabe? Tudo depende do caminho e do estado
do tempo. Poderemos fazer 40 ou 50 quilómetros num dia, ou poderemos fazer
apenas 10. Haverá dias em que não faremos nem um.
— Que massada! Nunca chegaremos!
— Chegaremos, sim! O essencial aqui, para chegar
logo, é não ter pressa!
O sol caiu sobre nós quando entrávamos num trecho de mata cerrada,
ficando para trás a extensa campina.
Os
pássaros que gritavam ao longe iam emudecendo à nossa passagem.
Dava-se
àquele caminho o nome de "estrada". Por ali passavam os cargueiros, o
gado e os veículos que de tempos em tempos demandavam Formosa ou de lá vinham.
Mas a semelhança daquela picada com as estradas estava só no fato de não haver
árvores plantadas no leito.
Durante
quatro horas trotamos sob o docel da mata, com pequenas interrupções de
clareiras mais ou menos grandes. Depois, subimos uma encosta bastante íngreme,
quase despida de vegetação. Na outra vertente, a planície perdia-se de vista.
Buritis apareciam em pequenos capões, figurando ilhotas verdes na campina
acinzentada. Alguns embiruçus engalanados de amarelo pintalgavam alegremente a
paisagem, e uma ou outra sucupira começava a fazer desabrochar as suas alvas
flores.
A
noite caiu agradável e não armamos as tendas. Dormimos sob o céu estrelado,
depois de forrado o chão com os pelegos. Pelo meio da noite começou a esfriar,
e Lalau levantou-se para acender a fogueira que deixara preparada. Depois disso
dormi como uma pedra, con-tando-me Sálvio no dia seguinte que com ele se dera o
mesmo. Quando Quincas nos acordou, a Sálvio e a mim, ainda não eram cinco
horas. Mas ele e os dois camaradas já estavam em atividade, e tudo pronto para
a continuação da viagem: mulas arreadas e carregadas e o café pronto. Na noite
anterior eles haviam peado as mulas. Sem isso, pela manhã haveria um enorme
trabalho para as apanhar. Pouco depois estávamos novamente a caminho, pela
fresca admirável da madrugada.
Não há o que dizer dos oito dias que se seguiram. Caminhávamos o dia
todo, descansando após o almoço, pelas horas mais quentes, dormindo ao relento,
e acordando de madrugada para cavalgar de novo. Quincas caçara dois veados
campeiros. Sálvio e eu gastamos inúmeras horas procurando vestígios de
pré-história; parando junto de todas as pedras à procura de inscrições;
penetrando nas cavernas que apareciam e escavando os montículos com que
deparávamos. Mas essas nossas pesquisas, talvez um tanto infantis, não deram resultado
algum.
Durante
a longa caminhada atravessamos algumas "fazendas", o que descobríamos
pelas cercas caindo aos pedaços e por algumas cabeças de gado quase selvagens
que pastavam livremente na vastidão das campinas. Quanto a casas, não vimos
mais que choças.
É incrível que depois de tão
ermos caminhos apareça uma cidade como Formosa, com boas casas de tijolo,
cobertas de telhas, quase todas rodeadas de frondosos pomares. O edifício da
usina elétrica, de quatro andares, recém-terminado, todo de concreto, é
suficiente para se fazer idéia do que é o resto.
A nossa empoeirada caravana foi recebida com certo espanto e logo
rodeada de crianças, as quais, passado o primeiro momento, se puseram a fazer
intermináveis perguntas. Alguns marmanjos nos rodearam também, mas limitaram-se
a olhar e não perguntaram nada.
Eram quatro horas e do vale soprava vento frio que nada prenunciava de
bom. A altura de 900 metros em que se encontra a cidade contribuí para aumentar
o frio.
Em Formosa encontramos, afinal, bom pouso, em boas camas, e pudemos
tomar alimentação decente, embora pagando tudo muito caro.
No
dia seguinte fomos visitar a Lagoa Feia, que fica do outro lado, junto à
cidade. Apesar do nome, é uma bela lagoa, grande e pitoresca. A prefeitura de
Formosa mandou arumar à sua margem um recanto para piqueniques, instalando, à
sombra das árvores, mesas e bancos rústicos. Ali descansamos por algum tempo,
observando os jacarés que boiavam, sossegadamente como troncos de árvores
rodadas. Mais longe, um pescador, acocorado, ia tirando, regularmente, seus
peixes da água silenciosa.
Enquanto isso, Quincas dava um repasse no material e, com os dois
camaradas, fazia consertos urgentes. Quando deixei a margem da lagoa encontrei
um velhote pitoresco que me ofereceu excelente bússola, por preço de pechincha.
Dizia-se marinheiro aposentado, e, quando lhe comprei a bússola, agarrou-se a
mim como carrapato. Queria a viva força incorporar-se à expedição, afirmando
que sabia onde encontrar ouro e pedras preciosas em abundância. Deixou-nos, afinal, em paz, depois de ter tomado uma respeitável quantidade de
cachaça ordinária e foi fazer incompreensível discurso para os jacarés
ancorados no lodo da margem.
Dormimos ainda essa noite em Formosa. Mas tanto Sálvio como eu estávamos ansiosos por reencetar a caminhada para o sertão. Conforto e boa cama era
muito bom, mas se estivéssemos à procura dessas coisas teríamos ficado em São Paulo.
Refeitos e alegres deixamos Formosa às cinco horas da manhã seguinte
rumo ao nosso próximo pouso, que seria em Olho d’Água, cerca cie 50 quilômetros
distante, segundo os cálculos de Quincas. Creio que não era tanto, porque
chegamos com o sol ainda acima do horizonte.
Olhos
d’Água tem apenas uma rua empoeirada. A pensão que nos indicaram era tão suja e
pouco convidativa que preferimos passar a noite numa tapera abandonada, ao fim
da rua, já fora da povoação. Pelo menos, ali não havia à nossa espera, como na
pensão, um exército de baratas, pulgas e percevejos. Comemos bem na casa de um
conhecido do Quincas, goiano gorducho e folgazão que nos divertiu com inocentes
piadas que contava piscando picarescamente os olhinhos pequenos. Quincas
comprou dele grande quantidade de corda de fabricação local, resistente e leve.
Pela madrugada, ao deixarmos a vila, passamos pelo pântano onde nasce o
rio Pirapetinga. Daí em diante começávamos a viajar pela bacia do Tocantins, o
que nos dava certa sensação de alívio. Era que, de algum modo, começávamos a
"entrar no elemento".
A "estrada" era sempre igual, mas distínguiam-se nela, onde
havia lama endurecida, sinais de pneumáticos. Devem ser autênticos heróis os
motoristas que se metem por estes atoleiros!
Teríamos agora, até Cavalcante, um longo e fastidioso estirão.
Dois
dias depois atravessamos a vau o Tocantinzinho e entramos na Chapada dos
Veadeiros. Uma caminhada ininterrupta de seis horas levou-nos ao rio Pissarrão,
em cuja margem fizemos pouso. Os arredores já estavam tomando aspecto mais
bárbaro e selvagem. Só de longe em longe atravessávamos alguma fazenda de
criação e de vez em quando encontrávamos uma tapera hesitante, sem saber se
havia ou não de desabar sobre a estrada.
Só no dia seguinte é que vimos como são bonitos os morros que circundam
a Chapada, mas não nos detivemos para apreciar o espetáculo. Rumamos
corajosamente para Vea-deiros, onde chegamos à tardinha. Não conta, essa vila,
com mais de uma dezena de casas, todas cobertas com folhas de palmeira indaiá.
Muito interessante é o Morro da Balísa, a cuja sombra descansa o povoado.
Prosseguimos, e as dificuldades da marcha cresceram pelo centro da Chapada,
coalhada de pedras soltas, numa subida difícil. Atravessamos o Rio Preto na
nascente e, pela noitinha, chegávamos ao cimo, indo descansar à beira do
ribeirão Pouso Alto.
No dia seguinte contornamos a várzea de Sant’Ana e fomos acampar na
margem do rio do mesmo nome, numa lapa que não pudemos examinar direito por
falta de claridade, o que nos f êz, a Sálvio e a mim, esperar ansiosos pelo
romper da aurora. Antes de adormecer, Quincas contou-nos que essa lapa tem
nome. Chamam-na a "Casa de Pedra". Os caminhantes todos se abrigam
ali para dormir ou fugir aos temporais, que são frequentes e terríveis na
Chapada, e os caçadores fazem dela seu quartel-general nas grandes temporadas.
Não dormi bem. Sonhos agitados me faziam ajcordar constantemente e só o
clarão da fogueira acesa à entrada é que me animava a tentar o sono de novo.
Determináramos permanecer ali o dia seguinte, por dois motivos: Quincas
precisava passar em revista as seis mulas e curar uma delas, ferida pela má
colocação da carga e tomar outras providências; e nós dois queríamos realizar
completo exame dessa gruta, que nos parecia muito interessante.
CAPITULO
9
A "CASA DE PEDRA
ASSIM QUE
A LUZ DO DIA 0 PERMITIU, PUSEMOS-NOS EM
atividade. Lalau e
Tobias limparam uma antiga picada que ia até a margem do rio Sant,Ana e levaram
os animais para a água.
Sálvio,
eu e Quincas dispusemo-nos a iniciar a pesquisa na "Casa de Pedra".
Vimos, à entrada, em vários lugares, vestígios de fogueiras, sinal,
naturalmente, da passagem de viajantes que ali pernoitavam. A caverna era um
salão de pedra., em abóbada, com uns quatro metros de largura e outros tantos
de altura. O solo, de areia avermelhada e seca. Depois de cuidadosa observação
pareceu-nos que em uma das paredes havia alguns traços. Limpamo-la com grande
trabalho e distinguimos numerosas inscrições fundamente talhadas na parede
lisa.
Infelizmente
não pudemos determinar se eram antigas ou modernas, e o livro de Alfredo
Brandão "A Escrita Pré-histórica do Brasil", que levávamos, não nos
ajudou a decifrar tudo. Distinguimos o Ra duplo, ou "o fogo da terra e o
fogo do céu", a terrível divindade brasílica, também conhecida e adorada
em Creta, onde simbolizava a divindade da destruição. Distinguimos, igualmente,
Théta, que era a Athenê dos gregos, a Palias de Homero e a Minerva dos latinos,
e que foi, ainda, deusa da Atlântida. Distinguimos em seguida outros símbolos,
mas não conseguimos ligá-los para formar sentido. Gozamos, no entanto, dessa
estranha e profunda sensação de estar contemplando traços feitos por mãos
humanas há milénios, mãos que obedeciam a um cérebro pensante e que desejavam
transmitir a alguém um significado, uma ideia, uma noção qualquer. Quem teria
sido esse gravador de símbolos? Em que época teria vivido ? Qual seria o seu
credo, a sua religião ? Como se chamaria o seu povo? E que desejaria dizer com
aqueles traços ? Estaria anunciando alguma catástrofe que se aproximava? Quem
sabe se não seria um sobrevivente dessa catástrofe, deixando para os homens do
futuro a última mensagem do seu povo?
No
canto superior da gravação havia o que parecia representar um lagarto por cima
de um sol coroado de raios, e lá estava, também, por baixo do sol, o triângulo
a que Sálvio emprestava enorme importância. Nada pudemos, porém, concluir daí.
Na realidade, não é fácil conjugar, para conclusão inteligível, um sol, um
lagarto e um
"altar da magia". Fartos dos signos, continuamos o exame da caverna
e, ao chegar à parede do fundo, vimos que ela não era de pedra, como as
laterais, mas sim de terra desmoronada, de certo um bloco desabado de cima.
Pusemonos a cavar com singular coragem nessa parede, e, quando Lalau nos veio
chamar para o almoço, encontrou-nos enlameados de suor e barro, mas viu,
também, que tínhamos aberto um buraco por onde se avistava o interior negro do
outra caverna. . .
Tomamos
um banho confortável no ribeirão de Sant’Ana e, depois, atacamos com voraz
apetite o almoço de carne de tatu e os
restos de um veado. Tobias, o cozinheiro, recebeu desusados cumprimentos
pela excelência do almoço. Talvez
nos parecesse
mais delicioso por causa da fome que tínhamos e também pela satisfação que nos
dava o encontro dos signos o da
segunda caverna da "casa de pedra".
No fim da refeição, Sálvio inquiriu Quincas a respeito da caverna.:
— Você conhece essa ffruta ha muito tempo,
Quincas?
— Conheço, desde menino. É o pouso forçado dos
que vêm caçar veados por estas bandas, o serve de pouso aos que vão de viagem
pela estrada.
— E ela foi sempre assim?
— Sempre. Nunca ouvi dizer que fosse maior…
— Isso quer dizer que o bloco caiu do teto há já muitos
anos — disse-me Sálvio. Depois, para Quincas:
— Talvez tenhamos que nos demorar aqui mais algum tempo.
— Pois demoraremos quanto fôr necessário. Por isso é que
eu disse que não podemos contar com o tempo.
— Então, enquanto os animais descansam e se alimentam,
nós faremos a exploração da caverna. Você sabe, não, Jeremias? Foi em cavernas
como esta que Peter Lund descobriu, no Rio das Velhas, ossadas fósseis de
homens e animais.
— Lá dentro deve ser escuro, Sálvio. Teremos que
providenciar luzes.
— O Quincas nos arranjará algumas tochas; hein, Quincas
?
— Arranjam-se, sim.
Não foi fácil encontrar galhos que servissem para archotes. Quincas
percorreu o mato próximo durante muito tempo. Afinal, arranjou. Um indivíduo
notável, aquele. Cerca de duas horas da tarde, penetramos os cinco, munidos de
archotes acesos e outros de reserva, na nova caverna que se abrira ao fundo da
primeira.
Quincas e os dois camaradas surpreenderam-se logo com o seu fantástico
aspecto.
— Estalactites! — exclamou
Sálvio.
Realmente,
milhares de estalactites pendiam do teto, escorrendo ao encontro das
estalagmites que subiam do solo. O salão, muito grande, estava cheio de colunas
brancas, do mais estranho aspecto. À claridade vacilante dos archotes, as
colunas se multiplicavam a perder de vista, e as sombras se movimentavam pelos
mil meandros dançando em formas fantásticas nas paredes longínquas. Nem todas
as colunas estavam terminadas. Em seu trabalho paciente, a Natureza não se
importa com os dias, os meses, os anos ou os séculos. A Eternidade está à sua
disposição, e as colunas que se formam mediante finas camadas de água
calcificada, marchando nos dois sentidos, uma de baixo e outra de cima,
caminham sem pressa. Um dia estarão unidas. Algumas, já terminadas, grossas,
atestavam o trabalho milenar da paciente gota. Outras, pendiam do teto, a ponta
aguda parada a meio caminho, e apontando para pontas que do solo subiam
lentamente, para o encontro que se realizaria, quem sabe quantos séculos mais
tarde. Algumas, recém-ajustadas, eram maravilhosas, muito finas no meio, e
engrossando regularmente até às extremidades inferior e superior.
Desde
a infância ouvíramos falar em palácios encantados. .. Estávamos agora dentro de
um deles, autêntico, maravilhosamente autêntico!
O silêncio solene, quase aterrador, era pontilhado pelo gotejar
constante, lento, aqui e ali. E nós cinco estávamos tão imóveis como as
próprias estalactites, olhando maravilhados, emudecidos. Apesar de ter lido
muitas vezes descrições de tais grutas, eu jamais esperava que o espetáculo
tivesse essa solene grandeza — tão imperfeito é o vocabulário humano! E como o
meu é mais pobre ainda do que o do comum dos escritores, sei que ninguém vai
compreender a impressão que recebi. Desisto, mesmo, de procurar transmiti-la.
Acrescentarei, apenas, que sonhar um sonho maravilhoso e estar naquela caverna,
era a mesma coisa.
Afinal, depois de longos momentos de estupefação, conseguimos nos
desprender do lugar em que havíamos parado e demos mais alguns passos. Sálvio
abaixou-se subitamente e apanhou do solo algo parecido com um osso. Verificamos
logo, porém, que se tratava de um pedaço de coluna, e em poucos minutos de
exame nos convencemos de que fora partido violentamente.
— Alguém andou por aqui — disse Sálvio. — Isto é obra do homem. A
destruição num certo grau sempre indica a presença desse bicho infeliz.
Quincas, vamos cavar um pouco aqui, com cuidado.
Era
fácil cavar naquele solo de terra macia, e sob a di-reção de Sálvio, Lalau e
Tobias iam abrindo lentamente um grande buraco de três metros de diâmetro.
Meio metro abaixo da superfície, mais ou
menos, apareceram quatro pedras grandes, roliças, enegrecidas pelo fogo. Foram
postas de lado e a escavação continuou, alargando-se o buraco. Interrompemos o
trabalho cerca de sete horas, quando Tobias preparou um ligeiro jantar, na
outra parte da caverna.
Foi
no dia seguinte que encontramos a tíbia fossilizada. Aumentando o campo de
exploração, desenterramos um crânio partido e um maxilar que podia pertencer a
esse ou a outro crânio — tudo no mesmo estado da tíbia: fossilizado, com
incrustações calcárias e muita terra aderente.
Ao
anoitecer demos com a gamela de barro cozido, ornamentada com desenhos que só
mais tarde havíamos de compreender. Infelizmente a gamela partiu-se em três
pedaços quando a limpávamos. O entusiasmo daqueles achados levou-nos a
trabalhar até tarde da noite e durante todo o dia seguinte, até nos
convencermos de que nada mais havia ali. Quando lavamos no riacho as peças
encontradas, a nossa falta de prática nos levou a inutilizar o crânio e a
tíbia. Restava-nos intacto apenas o maxilar, sem dente algum, as quatro pedras
negras de fumaça e a gamela partida em três pedaços. Depois de unidos esses
pedaços, verificamos que o desenho da gamela não era mara-joara, como
esperávamos que fosse. No centro havia um rosto humano, em traços ligeiros,
grosseiramente representado. Os traços ornamentais, partindo dos olhos e da
boca, afastavam-se em círculos concêntricos até às bordas da peça. Eu jamais me
atreveria a chamar aquilo de "artístico". Mas, bem consideradas as
coisas, e levando em conta o número de anos que aquela gamela estivera assim
enterrada, — Sálvio disse que devia passar de mil anos — ela era, certamente,
notável.
Sálvio
deu mais de mil anos para todas as peças ali encontradas, e não sei em que se
baseou para dizer isso. Sei que o processo de fossilização dos ossos é muito
lento, e mil anos são um prazo mínimo. Mas sei, também, que, conforme a
qualidade do terreno, a profundidade, o teor calcário, o grau de umidade e
outros fatôres, o processo pode ser retardado ou acelerado. No entanto, não
posso aceitar a opinião de Sálvio sem reservas. Somente um perito poderia
avaliar a idade daquele material.
Na madrugada seguinte continuamos a viagem, descendo a Chapada em
direção a Cavalcante, que fica no grotão, lá embaixo. Foi essa uma das jornadas
mais penosas que fizemos, pelas dificuldades do terreno pedregoso, íngreme e
cansativo em demasia. O rio Sant’Ana despenhava-se em várias cascatas até
chegar à pequena cidade escondida entre folhagens de frondosas árvores.
Chegando a Cavalcante, fomos recebidos… a tiros! Os disparos
pipocavam por todos os cantos, e eu, num movimento instintivo, preparei-me para
fugir. Quincas me fêz sinal para que ficasse quieto. Puxou a sua garrucha e
disparou os dois tiros para o ar. Lalau e Tobias fizeram o mesmo. Seguiu-se uma
grande fuzilaria, e homens e crianças apareceram correndo, gritando, alegres.
— É costume da terra — explicou-me Quincas ao
ouvido, para dominar o barulhão.
— Creio que é esse o único lugar do mundo onde
os amigos se recebem a tiros — gracejou Sálvio, quando compreendeu.
Quincas era
conhecido de todo mundo ali. Aceitou o convite do seu Nicolau, e, assim,
tivemos ótimo jantar e bom pouso naquela noite. Na manhã seguinte Nicolau
levou-nos para ver a curiosidade de Cavalcante, cidade antiga- * mente rica e
movimentada, com grandes jazidas de ouro e pedras preciosas — o "buraco do
ouro". Era um grande poço, com água. Contou-nos Nicolau que aquele poço
fora feito pelos escravos, para extração de ouro. Um dia estavam oito deles
trabalhando lá embaixo quando, subitamente, rebentou um olho dágua, que começou
a encher o buraco. Ninguém se importou muito, mas afinal os pobres homens
morreram afogados ali dentro. Disse ele, ainda, que há cerca de cinquenta minas
abandonadas, de ouro e pedrarias, espalhadas pelos arredores. Isso, porém, não
nos interessava. O que queríamos eram informações de outro género, que, afinal,
não conseguimos. Assim, logo depois do almoço, que foi servido às dez horas, partimos. Atravessamos o
rio Bananal e começamos a subir os 700 metros da Serra da Ave-Maria, o que
tivemos que fazer a pé, por uma picada de pedras soltas, e puxando os animais
pelas rédeas. Paramos por várias vezes, para recuperar as forças. A subida era
terrível! Chegamos ao cimo pela tardinha — e vimos que valera a pena o
sacrifício. O panorama que se descortina é magnífico. As árvores mais
abundantes são enormes óleos, o que dá ao mato um tom geral avermelhado.
Aparecem, depois, ipês cobertos de flores amarelas. O espetáculo cromático é
interessante, pois inclui várias tonalidades, indo do avermelhado dos óleos,
serra abaixo, com os ipês amarelos de permeio — até ao branco dos paus-terra
que crescem na planície, lá embaixo. Interessante ainda observar-se que esta
vertente da serra é totalmente diferente da outra. Ela é coberta de vegetação
luxuriante, ao passo que a outra, que subimos desde Cavalcante, é nua e escalavi-ada.
Na descida, passamos pelas fazendas "Piteira" e "Pedra
Branca", indo acampar num bosque de buritis, à margem do Cotia.
No
dia seguinte almoçamos no Pouso Buraco Frio, à margem do São Félix, e fomos
pernoitar nas faldas do morro do Pote, junto ao Rio do Morro. A região é
infestada de onças, e, por isso, rodeamos o acampamento com cinco fogueiras que
mantivemos acesas durante toda a noite. Aliás, dormimos bem, não tendo outro
incómodo senão o de alimentar as fogueiras de vez em quando. Não ouvimos onça alguma, nem outro bicho.
Mais
um dia, e chegamos ao sopé da Serra de Ouro Fino. Almoçamos à margem do rio das
Lajes, afluente do das Almas. Estávamos terminando o almoço, quando vimos
passar uma canoa com três índios nus, ostentando magníficos cocares de penas
brancas e vermelhas.
—
São índios Gaviões! — exclamou Quincas. E pôs-se a gritar, chamando-os, na
"lingua geral". Os índios, porém, deviam estar com pressa, porque
aceleraram as resmadas e, sem olhar para trás, desapareceram dentro em pouco.
Três dias depois, o aspecto da paisagem começou a mudar. Desde Veadeiros
vínhamos palmilhando quase apenas desertos, com pequenos trechos de mato, e,
nos últimos cinco dias, unicamente terrenos desertos e pedregosos. Agora, da
charneca começavam a erguer-se árvores, que mais para diante se foram amiudando
até se tornarem a mata luxuriante que anuncia as proximidades do rio Paranã.
Chegamos
ao Paranã, afinal. Do outro lado, um amontoado de casinhas rebrilhando ao sol:
Palma, que está situada na confluência do Paranã com o rio da Palma. O rio
Paranã e o das Almas, que nele desemboca uns cinquenta quilómetros abaixo de
Palma, são os maiores formadores do Tocantins, com cujas águas ansiávamos
travar conhecimento. Em frente a Palma, o Paranã tem uns quinhentos metros de
largura — um lindo rio, manso e silencioso. À margem, estava atracada a
velhíssima barca que se aluga para a travessia. Entramos nela, com toda
a nossa, carga. Os animais atravessariam a nado.
O barqueiro é um velho, muito velho, alquebrado, de longas barbas
brancas e faz o serviço há mais de 40 anos. Tem um maravilhoso cabelo de neve,
revolto e emaranhado — verdadeiro tipo bíblico. Procurei descobrir em sua
cabeça ninhos de pássaros. Mas não havia nenhum,…
Ajudamos a impelir a velha barca, que tínhamos que esvaziar
continuamente com uma lata de banha, também furada.
Do ponto em que aportamos, na margem fronteira, três quilómetros nos
separavam de Palma.
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