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CAPÍTULO 21

SUBMISSÃO DE JEREMIAS

RECUPEEREI OS SENTIDOS AINDA ENVOLTO PELAS TREVAS.

Não enxergava um palmo diante do
nariz. Pus-me de pé e comecei a palpar em volta, acabando por verificar que
estava dentro de uma cova cujas frias paredes de terra eram cortadas a prumo.
Tentei subir por elas mas consegui apenas escalavrar os dedos, até ser obrigado
a desistir, cansado e desesperado. Sentado na terra úmida e gelada, pus-me a
recordar tudo o que de desastroso me havia acontecido desde que deixara os meus
companheiros. Decididamente, não estava com sorte. . . e esta fome atroz que
sentia. . . Pensando bem, o melhor era voltar para 9 companhia deles. Se fosse
hábil e paciente poderia induzidos a fugir comigo e então, juntos, sim.. . E se
eles não quisessem?… Bem, neste caso, o melhor ainda era ficar com eles,
para, todos unidos, arrostarmos o resto da aventura … Sim. Decerto isso seria
melhor do que andar perdido no mato, arriscado a morrer de maneira ignóbil.
Depois, embora os tais atlantes fossem indivíduos perigosos e perversos, Sálvio
devia estar raciocinando certo. Talvez nos dispensassem maior consideração do
que aos selvagens que haviam chegado até eles. Tínhamos chegado pacificamente,
sem pretensões de conquista, e talvez não nos esperasse o mesmo destino
daqueles que haviam apodrecido no fundo do barranco.

Estas coisas
todas redemoinhavam na minha cabeça e acabaram convencendo-me de que eu fizera
uma grande asneira; que os atlantes tinham boas intenções para conos-co e que não
corríamos perigo algum. Portanto, o melhor era voltar.

Sim..
. mas como? Agora, estava enterrado numa cova, e sentia penetrar-me pelas
costas o frio úmído da parede de terra… Assaltou-me subitamente um frenesi.
Precisava sair, correr para a aldeia, encontrar meus amigos. Recomecei a tentar
a escalada; inútil: a parede úmida, escorregadia, a prumo e lisa, era
impraticável. Devia estar com os dedos em péssimo estado, porque me doíam
muito.

Ainda se houvesse alguma claridade, se eu pudesse ver a parede, talvez
fosse possível. Mas assim, não.

O
bom senso, afinal, me recomendou que sossegasse, procurasse ficar quieto e
passasse em repouso as poucas horas que deviam faltar para amanhecer.

Procurei
dormir, mas o meu estômago doía de fome, o frio da terra penetrava-me os ossos,
e o cérebro não deixava de trabalhar estèrilmente em torno das peripécias já
passadas e das que talvez sobreviessem. Cedia ao cansaço, afinal, quando a
aurora começava a clarear o céu lá no alto, entre os ramos das árvores. Havia
no ar leves tons róseos e cinzentos. Dormi poucos minutos, porque, ao acordar,
angustiado, em sobressalto, com a boca amarga do gosto dos malditos frutinhos —
ainda não clareara de todo.

Pude,
então, ver onde passara aquelas horríveis horas da noite. Era uma cova quadrada,
com dois metros de parede de cada lado e uns três de profundidade, talhada a
prumo. As paredes cobertas de musgos e liquens indicavam que não era nova. Num
dos cantos, a erosão cavara depressões e buracos, e por ali era possível subir.

Em cima, morto de cansaço, comecei a procurar o caminho que me levaria
ao posto avançado. Mas senti-me mais perdido ainda do que no dia anterior. O
fato de ter andado em volta, como um idiota, tirava-me toda a iniciativa. Quis
orientar-me pelo sol, mas não me lembrava de que lado estivera a minha sombra,
na manhã anterior, quando estava na aldeia atlante. Pus-me a andar ao acaso, olhando ansiosamente para todos os lados, procurando
reconhecer qualquer particularidade que me indicasse o caminho. Mas era inútil.
Tudo aquilo era infernalmente semelhante.

Comecei de novo a perder a cabeça. Tive vontade de chorar e, de
repente, num verdadeiro acesso de loucura, comecei a gritar, chamando os nomes
ora de Sálvio, ora de Quincas.

De repente, pareceu-me ouvir uma
voz longínqua:

— Jeremias!…
Gritei mais alto.

Decorridos alguns momentos, tornei a ouvir meu nome. Já não havia
dúvida. Não era alucinação. Alguém me chamava na selva. Roído de emoção,
continuei a gritar, para orientar o meu salvador, e, passado algum tempo, vi os
meus dois amigos que, acompanhados de dois atlantes, caminhavam diretamente em
minha direção.

—    Então?… — perguntou Sálvio, sorrindo
maldosamente. — Passou bem a noite? Desistiu de voltar?

—    Sálvio — respondi o mais orgulhosamente que me
foi possível na circunstância. — Não é bonito vir zombar de mim nesta situação.
Continuo a pensar do mesmo jeito. Mas tenho que retroceder porque não sei me
orientar na floresta. É isso.

Sálvio sorriu ainda, contrafeito,
e Quincas falou:

— Você está num lindo estado… Vamos. Vamos em
bora, precisa tomar um banho e se alimentar.

— E
dormir — completei. Agradeci a Quincas com um olhar e partimos.

Foi
uma caminhada silenciosa, que durou cerca de uma hora, o que me fêz ver quão
perto estávamos do meu ponto de partida, tanto mais que andávamos devagar,
devido ao meu estado. Quando chegamos à aldeia eu estava exausto, cambaleava e
não podia dispensar o auxílio dos dois companheiros. Não foi possível comer nem
tomar banho. Caí na rede e adormeci imediatamente.

* * *

Ao acordar, vinte e quatro horas mais tarde, não contei aos meus amigos
as aventuras na mata, porque aquele episódio da fruteira, que me envergonhava e
irritava, havia de os fazer rir muito. Perdera, também, completamente, a
vontade de fugir, mas, para ser coerente comigo mesmo, continuei a afirmar que
desejava deixar aquilo na primeira oportunidade.

—   Você continua a ser um tolo. Estamos sendo tratados
como hóspedes de honra…

—   Bom proveito. O que desejo saber é quando vamos voltar
à civilização.

—  
Tenho conversado diversas
vezes com o chefe.

—  
E ele já lhe ensinou um
bom caminho para voltarmos?

—   É um homem inteligente e que está bem a par de tudo o
que se passa no "nosso mundo". Tem agentes nas cidades brasileiras
mais próximas, e sabe de tudo, inclusive os pormenores da guerra que se
desenrola entre a Alemanha, Itália, Japão e o resto do mundo.

—   Ótimo. E como é que ele lhe explicou aqueles restos
humanos atirados ao fundo da ribanceira?

Qualquer
um teria perdido a paciência. Mas Sálvio não era qualquer um.. . Voltou-se para
Quincas, que, calado, sentado num tronco, divertia-se dando golpes de facão num
galho seco — e disse:

—  
Quincas, explique a este
cabeça dura.. .

—   Foi exatamente o que Sálvio pensou — disse ele. — São
os restos de selvagens que atacaram o Posto. De tempos em tempos, os indígenas
se reúnem em grandes grupos e tentam assaltar a cidade.

—  
E então, os atlantes
destroem-nos, não é?

—   Eles têm que se defender, Jeremias. Você já viu um
ataque de selvagens? É uma coisa terrível. Parecem loucos e não respeitam coisa
alguma. Destroem e queimam e matam a torto e a direito. Quando guerreiam,
tornam-se realmente mais ferozes do que qualquer animal. Dificilmente recuam.

—  
Eu sei. Mas para que
aqueles troncos?

-—
Ali eles aprisionam os selvagens que conseguem capturar. Procuram fazê-los compreender
que não são inimigos. Depois, soltam-nos, para fazê-los ver tudo. Os que
compreendem são devolvidos às suas aldeias, mas os que BOntinuam inimigos, têm
que ser eliminados.


Mas eles não acharam nada melhor do que os postes, correntes e barrancos?

—   Mas — interveio Sálvio — será esse um tratamento
indigno, dada a psicologia particular dos selvagens?

—   Está bem. Concordo em que são uns anjos. Mas, aquele
altar coberto de sangue humano seco?

—  
Não é sangue humano,
Jeremias.

—   Sálvio! Isso é o que eles dizem, e vocês parecem
dispostos a acreditar em tudo. Será verdade?

—   Por que não havia de ser? Terão eles medo de nós, para
estarem mentindo?

—  
Não sei. Não gosto deles,
e pronto!

Houve uma pausa. Depois, Sálvio recomeçou a falar:

—   Antigamente, os Postos Avançados que rodeiam o Núcleo
Central eram mais afastados, e foi um deles que vimos destruído no caminho, lá
onde havia casas de pedra destelhadas…

—   Sei — interrompi — onde havia um barranco cheio de
ossadas, como aqui…

—   Justamente. Mas esses postos mais afastados eram muito
hostilizados pelos selvagens. Havia demasiadas guerras e demasiadas mortes.
Resolveram, então, transferir a linha mais para trás, diminuindo o círculo em
torno do Núcleo. Assim estão mais seguros. Todos os Postos Avançados estão em
constante comunicação entre si, e velam pela segurança do Núcleo.

—  
Mas que diabo fazem eles?
Para que existem?

—   
Perguntei isso ao velho chefe.
Não sei se entendi bem. Parece-me que eles se consideram um povo predestinado a
grande missão no futuro. Há inumeráveis séculos, há milénios que vivem de
acordo e respeitando certa missão sagrada, que vem de épocas esquecidas. O
cérebro que dírige tudo está no Núcleo Central, perdido entre serras
vastíssimas e inatingíveis.

—   Mas que é que eles fazem?

—   Nada. Conservam a tradição, e esperam.

—   E que é que existe no Núcleo Central?

—   Isso é que desejo saber. Pedi ao velho chefe que
mandasse alguém nos acompanhar até lá. Ele se recusou. Não o pode fazer sem
primeiro receber ordens. Já providenciou para se comunicar com o Primeiro
Orientador…

Depois de longa pausa em que todos estivemos pensativos, Sálvio
continuou:

—   Eles estão bem organizados e são muito hábeis. Há mais
de um mês que nos vêm seguindo pelas selvas… Desde o encontro com os
Selvagens Louros. Podiam nos ter matado facilmente.

—   E por que não o fizeram?


Não sei, mas penso que estão informados de nossa viagem desde o início. Aquele
coronel Marcondes, por exemplo… — e depois de uma pausa: — Criaram todas as
dificuldades em nosso caminho, para nos fazer retroceder e, talvez, para
comprovar até que ponto somos tenazes. Não quiseram impedir deliberadamente a
viagem. Acredito que é isso mesmo: queriam pôr à prova a nossa inteligência, a
nossa capacidade de luta, a nossa resistência. ..

—   Sendo assim, Sálvio, temos que reconhecer a existência
de um grande e poderoso superior entre eles.

—   Assim deve ser, Jeremias. Deve existir um Superior,
que tudo sabe, tudo vê e cujas ordens são indiscutíveis.

—   Isso dá muito que pensar…

—   Pense, então. Eu não tenho feito outra coisa, desde
que me pus em contacto com eles.

Quincas
continuava sentado no tronco, dando golpes com o facão no pedaço de pau. Também
ele pensava.

Só eu, só eu teimava em permanecer surdo e cego para o que me rodeava,
para a significação estranha daquela bem organizada aldeia de pedra, erguida em
plena selva, distante de todos os recursos, à margem de um inóspito deserto. . . guarda avançada de outra cidade que devia
ser grandiosa! Só eu teimava em não tomar conhecimento dessa coisa maravilhosa
e insuspeitada em todo o mundo! Teimava em pensar apenas em mim próprio, sem
dar atenção a mais nada. Não refletia que havíamos chegado ali como intrusos,
que me insurgia contra eles e agredira-os brutalmente; que eles,-no entanto,
nos alimentavam e abrigavam sem nada nos perguntar, como se nos devessem
respeito. Confrontando serenamente os acontecimentos, concluía que o selvagem,
ali, era, unicamente, eu…

Durante
meia hora estive refletindo, pensando, e ninguém falou. Depois, pus-me de pé e
caminhei, agitado, de um lado para outro. Quando parei, tomara uma resolução,

—   Sálvio… Quincas… Desculpem. Tenho sido um
tolo, um criançola.. . Para o futuro.. .

—   Ora… — interrompeu Quincas. — Compreendemos. Isso
era natural. Você estava exausto com a viagem.

—   Naturalmente — continuou Sálvio. — Compreendemos
perfeitamente. Nada temos que desculpar. Você tem estado com o sistema nervoso
irritado, mas a culpa não é sua.. . Você tem sido sempre um excelente
companheiro.. .

Os
dois estavam visivelmente comovidos. Senti súbita exaltação, e grande ternura:

—   Juro — disse eu solenemente — que aconteça o
que acontecer, irei com vocês até ao fim, seja ele qual fôr! Não sei o que me
deu…

—   Não se fala mais nisso. Está acabado.

* * *

Saímos
os três em direção à praça central, e só então notei que era revestida de grandes
lajes de pedra, lisas, e iguais. Os grupos de casas estavam arrumados em
pequenas ruas que irradiavam da praça. A grande casa onde morava o velho chefe,
isolada no lado oposto à entrada, ocupara um quarteirão. Todas as casas eram
térreas, do mesmo formato, embora umas fossem grandes e outras pequenas.
Quebrando a linha do círculo havia duas grandes construções colocadas
simetricamente, dois grandes galpões com jeito de oficinas ou depósitos. Ao
fundo, vários outros galpões, do mesmo formato e menores. Dos galpões menores
vinham ruídos fortes, de martelos, guinchos, serrotes, arrastar de coisas, etc.
— tudo o que caracteriza oficinas em atividade. Os atlantes se movimentavam, indo e vindo, cruzando a praça, entrando e saindo dos edifícios–oficinas. Ao
passarmos pela casa do chefe, vi, ao fundo da rua, lá atrás, uma nesga de verde
— um gramado, e uma criança passou correndo. Cristalinas risadas infantis
soavam longe. Fiz ideia de um "play-ground" e não me enganava. Pouco
depois, no fim da rua, estávamos diante de um grande tabuleiro de grama
sombreado com grupos de árvores. Crianças nuas, de ambos os sexos, corriam,
saltavam obstáculos, lutavam, jogavam pelota, gritavam e riam — divertiam-se,
como gostam de fazer todas as crianças de todas as partes do mundo. Ao lado,
sob imensa pérola coberta de vistosa trepadeira florida, mulheres atlantes
sentadas em toscos bancos teciam fazendas de cores vivas, ou pintavam
exemplares de cerâmica, enquanto vigiavam as crianças.

Ninguém
se importou conosco, nem nos olhou de forma particular. As crianças nem se
detiveram, nem alteraram o ritmo de seus brinquedos.

Ali estivemos longo tempo diante daquele divino espetá-culo, daquelas
crianças que viviam em plena natureza!

Um atlante chegou, sobraçando grande cesto cheio de frutos que
depositou no chão, não longe de um grupo de meninos. Levantou-se logo de todo o
bando uma gritaria infernal e, como formigas atraídas por doce, todas as
crianças se atiraram, correndo, para o cesto. Em poucos momentos ele estava
vazio, e os garotos, rindo com aquela alegria que vem da alma infantil e que só
ela tem, metiam os dentes nas polpas saborosas.

Eu
me esquecera do mundo. A inefável música da infância satisfeita e feliz
transportava-me para um céu muito distante.

De repente, alguém se aproximou de nós e tocou
no ombro de Sálvio. Era aquele indígena alto e forte que estivera ao lado do
barbaças.

—   Chefe quer falar.. .

—   Já vamos — respondeu Sálvio.

CAPITULO 22

ANTE O PENHASCO SOMBRIO

O VELHO QUERIA NOS DAR UMA
NOTÍCIA:

—   Estou admirado. Não esperava isto. Durante a nossa
história aconteceu várias vezes recebermos estrangeiros, mas jamais passaram
daqui, e quase todos foram exterminados depois de poucos dias. Esta é a
primeira vez que pessoas não nascidas dentro de nossas cidades têm licença, já
não digo simplesmente de viver mas de ir ao Núcleo Central. Mesmo entre os
nossos, posso contar pelos dedos os que já foram ao Núcleo. Recomendo-lhes que
sejam prudentes. Creio ainda ser útil avisá-los de que decerto jamais poderão
voltar à sua terra natal. Para nossa segurança, ninguém pode saber que
existimos, nem como vivemos.

—   Como? — perguntei. — Ele diz que nunca mais sairemos
daqui? Isso deve ser gracejo.

—  
Deixe o homem falar,
Jeremias!


Somos obrigados a tomar precauções porque não é chegado ainda o momento de
revelar ao mundo a nossa presença…

—  
Quer dizer que os senhores
são realmente atlantes?

—   Sim. Somos o que resta dessa gloriosa raça — a
primeira raça civilizada do mundo.

—  
Mas por que vivem
isolados?

—   
Porque o mundo, tal como está,
não nos poderá receber. É cedo. Temos grande missão a cumprir, importante papel
a representar na Comédia Humana. Mas a nossa hora de entrar em cena não chegou
ainda…

—   E… essa hora demorará muito ?

—   Não sei. Ninguém sabe. Mas o tempo não importa.
Esperamos há séculos sem conta, e continuaremos a esperar enquanto isso for
necessário. O importante é que estejamos aqui quando chegar o momento. Estamos
organizados para quando chegar a nossa vez, e cuidamos apenas de o estarmos
sempre. Somos os guardiões de alguma coisa imortal, que falta cada vez mais aos
homens do vosso mundo. Eles se afastaram tanto da natureza que… — o velho
interrompeu-se, e, dando um suspiro, continuou: — Bom.. . não me compete falar
sobre estas coisas. Alguém lhos falará com maior autoridade do que eu…

—   Sei. Os extremos se tocam.. .

—   Perfeitamente, jovem. Os extremos se tocam. É bem
isso… Os homens aprenderam a ser homens com os atlantes, e isso foi há muitas
centenas de séculos e foi neste mesmo lugar. . . Depois, os homens progrediram
e se encheram de orgulho,
julgaram-se deuses e se esqueceram dos simples Mandamentos da Felicidade. Estão
regredindo, certos de que continuam a progredir. Mas a civilização de onde
vieram morrerá. E daqui se espalhará, outra vez a semente do Bem, da Esperança
e da Vida…

—   Mas.. .

—   Chega — disse o velho erguendo a mão. — Não me
perguntem mais nada. Vão, e lá alguém lhes poderá falar melhor do que eu.

Lentamente
o velho desceu do estrado, encaminhando-se para a porta -que ficava na parede
de trás. Levantou a cortina e desapareceu. Nós ficamos olhando a tapeçaria que
balançava suavemente.

Foi a última vez que o vimos.

O indígena espadaúdo sorriu-nos e disse:

— Venham.. .

Guiou-nos
para fora, mas não nos fez sair da praça pela larga porta que havíamos cruzado
várias vezes. Conduziu-nos para trás da casa do velho, e, depois de nos fazer
rodear o "play-ground" saímos por pequeno portão que dava diretamente
para a mata.

Uma larga estrada apareceu diante de nós, e, alinhados a um lado, oito
atlantes. Quatro carregavam fardos e os outros quatro iam bem armados com
lanças, arcos-e-flechas e facões reluzentes. O indígena apontou os homens e
falou:

— Eles os levarão. Boa viagem!

Em seguida, retrocedeu, atravessou a porta e sumiu. No mesmo instante,
os oito atlantes iniciaram a marcha pela estrada que varava a floresta. Pelo
menos, eram camaradas decididos, que não perdiam tempo em conversa.. .

 

E foi assim prosaicamente, sem mais preâmbulos, que iniciamos a
memorável marcha pela estrada da floresta, rumo ao Núcleo Central dos Atlantes…
Os nossos guias caminhavam em passo cadenciado, igual, silenciosos., de grande
rendimento.

Com eles é que aprendemos a caminhar, a fazer longas marchas sem
excessivo cansaço. Não conversavam. Apenas, de longe em longe, trocavam breves
palavras, talvez de advertência para qualquer particularidade que nos passava
despercebida. Nós três, porém, conversávamos, comentando a perfeição da
estrada, pavimentada de pedra em todos os lugares onde isso era necessário. Os
cursos de água eram atravesados em pontes de pedra. Os pântanos eram igualmente
transpostos em sólidas pontes. A preocupação máxima dos construtores fora
fazer, tanto quanto possível, uma reta. As rampas eram muito suaves e as curvas
de longos raios. Havia obras de arte para passagem das águas e valas para
evitar os estragos da erosão. Raríssimas vezes viajamos a céu aberto.
Propositadamente, decerto, a estrada fora toda rasgada no seio da mata, ou
então, haviam plantado bosques onde não houvesse matas naturais.

Como já tínhamos observado, os atlantes não tinham hora certa para
comer. Comiam quando sentiam vontade. Quando perceberam que nós tínhamos horas
marcadas para as refeições pouco se importaram com isso, e só ocasionalmente nos
acompanharam. Nos quatro fardos vinham alimentos em abundância, o que nos
deixou bem aliviados, porque sabíamos quanto custa a falta de alimentos na
mata…

A
marcha de quatro dias pela excelente estrada não tem mola que se possa contar.
Foram quatro dias serenos, sem perturbação, durante os quais andamos sem
cansaço, comemos bem e dormimos
melhor. Não havia ponte para atravessar o grande rio; usamos uma canoa. Do lado
de lá, a estrada, sempre igual, penetrava em terreno montanhoso
e começava a fazer curvas numerosas. A floresta não era contínua; largas
clareiras a separavam. Subimos pouco a pouco, até nos encontrarmos na encosta
de verdadeira serra. Levamos dois
dias e quase todo o terceiro para galgar a serra, e, quando chegamos ao cimo,
encontramo-nos diante de um extraordinário panorama, que mal se deixava ver sob
a luz moribunda do sol poente.

Como
amontoado de escuras nuvens, se desdobrava, até ao infinito, a sucessão de
montanhas de suave aparência. Era um ondear contínuo, interminável, como se o
oceano tivesse subitamente petrificado suas vagas.

E
além, quase na linha do horizonte, elevava-se um morro mais alto que todos os
outros, dominando a terra em pedor. Tinha a forma de cone, e a impressão de
majestade silenciosa que se desprendia dele é impossível descrever.

A
obscuridade ia tragando o fantástico maciço. Um dos guias, ao nosso lado,
estendeu lentamente o braço e murmurou:

— Geomá!

Não
entendemos essa palavra, mas vimos os outros sete abaixarem respeitosamente a
cabeça e compreendemos que aquele cone era o marco de nosso destino. Senti um
arrepio. O rosto de Sálvio parecia iluminado por estranha luz interior; seus
olhos brilhavam intensamente e nos lábios estava parado um sorriso extático.
Quincas arregalava espantados olhos para a imensidão que a noite engolia
paulatina e inexoravelmente.

Dispusemo-nos a passar a noite ali no alto da serra.

Os atlantes, segundo seu costume, ficaram juntos, a alguma distância de
nós.

— Jeremias — escutei Sálvio sussurrar depois de longo silêncio. —
Estamos perto! Estamos chegando! Estamos no limiar da maior de todas as
descobertas feitas até hoje pelo homem!… É lá adiante, Jeremias! entre
aquelas montanhas atormentadas, naquele imenso rochedo… Geomá! Lá é que se
encontra o segredo da origem do homem, e talvez também o segredo do seu fim! E
estamos a poucos passos!

E
eu, sob a pressão de uma emoção estranha, indefinível, sussurrei também:

—    Isto tudo está me fazendo mal… é grande
demais para a minha compreensão.. . Tenho medo!

—    Eu também sinto certo receio, Jeremias. Mas
passará. Temos que ir até o fim.

Quincas,
cujos olhos brilharam num relâmpago fugitivo, falou com simplicidade serena:

—    Eu não sinto nada, nem medo nenhum. Mas estou
pensando no jeito de voltar. Porque sei que teremos de fugir e que não o
poderemos fazer por esta estrada…

—    Deixe. Não vale a pena pensar na volta, se
ainda nem chegamos.

Depois, ficámos os três em silêncio, e não sei quando adormecemos.

* * *

Acordei rudemente sacudido pelo braço, e ouvi a voz enrouquecida de
Sálvio, junto ao meu ouvido:

— Depressa! Olhe, Jeremias! Olhe!

Sentei-me,
ainda a tempo de ver uma grande bola de fogo que atravessava o céu, iluminando
as montanhas com palor espectral. O grande cone, Geomá, era uma massa negra,
imóvel lá no fundo. De repente, porém, iluminou-se e ficou coberto de estrias
de luz. A bola de fogo caíra sobre ele e se desfizera em milhares de línguas
rubro-brancas, logo desaparecidas, engolidas pela escuridão.

Pouco depois, como que saído de um letargo,
Sálvio falou:

– O sinal, Jeremias! A
"mãe-do-ouro"! O símbolo do poder!

E sua voz parecia
estranha, longínqua, tal a emoção que I embargava.

Teriam os
atlantes também observado o estranho fenômeno?
Não sabemos. Pelo menos, não ouvimos as suas ih,
e não percebemos movimento algum entre eles.

Quincas não viu nada. Dormia pesadamente.

Nós dois não conseguimos dormir o resto da noite. Ficamos sentados,
olhando o horizonte negro, olhando as estrelas, tão numerosas como eu nunca
vira. Lá no fundo de nossa alma pressentíamos um novo fenómeno. Qualquer coisa
estranha devia suceder ainda, qualquer coisa que não podíamos saber o que
fosse. E as horas passaram, sem que linda, acontecesse. Afinal, uma grande bola
de fogo começou a surgir por trás da morraria, enchendo o céu de fainas
vermelhas, roxas e amarelas.

Era o sol.

Os
oito atlantes puseram-se de pé. Pouco depois, Quincas levantava-se também,
satisfeito. Depois de comer fruías., pusemo-nos novamente a caminho pela
estrada, diretos AO grande cone lá no horizonte, agora nimbado de poeira de luz
dourada.

Daí em diante a caminhada se tornou mais difícil. Durante horas descíamos
a profundos vales, e durante outras horas infindáveis subíamos intermináveis
encostas. Andávamos com as montanhas, acima e abaixo, como um barco perdido no
mar, mas seguindo um rumo certo.

Cada vez que chegávamos ao alto da uma serra, avistávamos mais perto o
gigantesco penhasco sombrio que nos atraía como um imã. Depois do segundo dia,
só o perdíamos de vista quando descíamos a profundas ravinas. Lá estava ele, ao
longe, como gigantesco dedo erguido para nos indicar o caminho.

Durante quatro dias subimos e descemos morros

E, afinal, vencida a última etapa, vimo-nos frente a frente com o
colosso. Ele se erguia nascendo, inesperadamente, do chão, ao centro de imensa
planície que verdejava aos nossos pés. Era u’a massa negra, empolgante,
alcantilada, tão a pique, que alpinista algum poderia jamais pensar em
escalá-la.

Ao
seu redor, a planície plantada com árvores dispostas em círculos concêntricos
ao monstruoso morro. A estrada que vínhamos palmilhando descia diante de nossos
olhos, serpenteando, escorrendo por baixo das árvores da planície para ir
desaparecer de encontro à muralha do rochedo.

Estávamos parados, imóveis, mudos de emoção. De repente, vozes se
ergueram, ao nosso lado:

— Geomá! Geomá!

Os
oito atlantes estavam ajoelhados, de cabeça baixa, murmurando a palavra
sagrada. Depois, ergueram-se, e, de braços estendidos para St montanha,
começaram a recuar, até que se voltaram e partiram, de volta, sem nos dizer uma
palavra, sem nos lançar um olhar.

—   
Decerto, estão proibidos
de passar daqui…

—    Eu também o queria estar, Sálvio. Para dizer a
verdade…

—    Não comece de novo — interrompeu Sálvio — não
recomece. Vamos descer.

Quincas já ia descendo e foi a contragosto que os acompanhei estrada
abaixo. Parecia preso por algum poder misterioso. Mas nada podia fazer. Naquele
ponto, tínhamos que ir adiante, de qualquer modo.

Creio poder afirmar que os três retardamos a descida o mais possível.
Parávamos sob qualquer pretexto, e também sem pretexto nenhum. Que nos retinha?
Medo?

A noite veio surpreender-nos ainda a meio caminho da encosta. Deixamos
a estrada e nos abrigamos sob uma árvore bem copada. Sentamo-nos, à espera de
que alguma coisa nos viesse fazer andar. Tentamos conversar, mas só o podíamos
fazer em voz baixa e as palavras morriam muito depressa.

O sono não vinha.
Nossos olhos estavam presos ao colosso de pedra, muito vagamente delineado na
escuridão, visível apenas como
mancha mais negra. E as horas se arrastavam.

Em
meio a penosa vigília, ouvimos sons, que nos puseram-se imediatamente alerta.
Era como o tanger de numerosos sinos, mas sem o som metálico dos sinos;
chegavam fite nós como que envoltos em flocos de algodão, suaves, macios,
lentos.. . o volume foi aumentando, mas a qualidade permaneceu a mesma:
aveludada, macia, dolente. Lembrava certas modulações da música oriental,
imprevistas, aparentemente desconexas, mas cheias de fascinante encantamento.

Erguemo-nos. E, subitamente, uma luzinha apareceu tremulando, lá
embaixo na planície, como um furo candente no negror. Pisca-piscou um instante,
movendo-se para um lado. De repente, outra surgiu atrás dela; hesitou por um
segundo e seguiu após a outra. Depois outra, mais outra, mais, outra… todas
surgindo assim de súbito, como se saíssem de um buraco negro, invisível. E
continuavam a surgir, e caminhavam, umas atrás das outras, em fila, procissão
ondulante. Centenas de luzes ambulantes, persistentes, misteriosas. . . e os
sinos tangiam, enchendo o ar daquele som maciço, maravilhoso, monocórdico e,
contudo, fascinante — música estranha para nossos ouvidos, melodia monótona,
enervante, abissal, que provocava vertigem.

Enfim,
a última luz surgiu e seguiu atrás das outras. A procissão estava completa; em
longa fila estendia-se pelo terreno, intérrompia-se aqui e ali, escondida
decerto por algumas árvores, e continuava lá adiante, vasta curva que, ao que
imaginamos, passava por trás do colossal rochedo.

Depois,
a brisa nos trouxe o som enfraquecido de imenso coro de vozes cantando uma
litania onde não se distinguiam sons agudos nem graves. Era como o fluir e
refluir de ondas numa praia distante. Não tinha palavras. Ondulava como o som
dos sinos e como a procissão de luzes. Espaçadas, longas, moduladas num ritmo
enervante, as notas longínquas chegavam até nós assim:

— I…
A… O… E… U… O… E…

E,
vibrante, claro, como que animado de estranha vida própria, um trecho se
destacou:

— I… E…
O… U … A…

A
litania foi se extinguindo suavemente na distância, com a procissão que também
desaparecia na grande curva. Vimo-la ainda durante algum tempo, caminhando na
escuridão, como infindável lagarta de olhos luminosos. Afinal, a última luz
tremulou e desapareceu, engolida pela sombra, decerto por trás do rochedo.

O
som dos sinos durou mais alguns segundos, e morreu tão suavemente como
começara. Tudo ficou profundamente silencioso, profundamente escuro,
profundamente imóvel. E nesse silêncio, nessa imobilidade, nessas trevas
palpitava vida, uma vida que sentíamos roçar pelo nosso espírito, mas que não
compreendíamos.

Nenhum de nós disse uma palavra.

Deitamo-nos em silêncio sob a árvore. Eu adormeci pesadamente. Quando
acordei, o sol estava alto. Meus companheiros acordaram, um após outro.
Estávamos cansados, esmagados, e sem apetite, mas comemos algumas frutas do
grande cesto que Quincas trazia.

Pusemo-nos a descer o que restava da montanha, e, com o sol a pino,
pisávamos a planície verdejante. O solo era coberto de fino capim. A estrada,
pavimentada de pedras brancas, seguia até à boca escura aberta na base do
rochedo.

Quando chegamos ao umbral da imensa porta, detivemo-nos.

 

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