CRISTIANISMO – Dicionário Filosófico de Voltaire

Dicionário Filosófico de Voltaire – verbetes selecionados

CRISTIANISMO

Investigações históricas sobre o Cristianismo — Vários sábios notaram, com surpresa, não encontrar no historiador José nenhum vestígio da existência de Jesus Cristo, pois todo mundo concorda que a pequena passagem, onde ele alude ao assunto na sua História, é interpolada. O pai de José devia ter sido, entretanto, uma das testemunhas de todos os milagres de Jesus. José era da casta sacerdotal, parente da rainha Mariana, mulher de Herodes. Entra ele nos mínimos detalhes sobre todas as acções deste príncipe e, apesar disso, não diz uma palavra sobre a vida ou a morte de Jesus; o historiador, que não dissimula nenhuma das crueldades de Herodes, não fala absolutamente do massacre das crianças pelo mesmo ordenado, em consequência da notícia de haver nascido um rei dos Judeus.

O calendário grego conta quatorze mil crianças estranguladas na ocasião. É de todas as acções de todos os tiranos a mais horrível. Não há, absolutamente, exemplo semelhante na história do mundo inteiro.

Entretanto o melhor escritor que tiveram os Judeus, o único estimado pelos Romanos e os Gregos, não faz nenhuma menção a um acontecimento tão singular quanto pavoroso. Não fala, absolutamente, da nova estrela surgida no Oriente, depois do nascimento do Salvador, fenómeno espantoso que não devia escapar ao conhecimento de um historiador tão esclarecido como José. Guarda ele ainda silêncio sobre as trevas que cobriram toda a terra, em pleno dia, durante três horas, por ocasião da morte do Salvador, sobre a grande quantidade de túmulos a se abrirem num momento e a multidão dos justos que ressuscitaram.

Os sábios não cessam de testemunhar surpresa por não ver nenhum historiador falar de tais prodígios verificados no império de Tibério, sob as vistas de um governador romano e de uma guarnição romana que devia enviar ao imperador e ao Senado detalhes circunstanciados do mais miraculoso acontecimento de que os homens já tinham ouvido falar até então. Roma, mesmo, teria sido mergulhada em densas trevas durante as três horas; semelhante prodígio devia ficar marcado nos fastos de Roma e nos das outras nações. Deus não quis que essas coisas divinas fossem escritas por mãos profanas.

Os mesmos sábios encontram ainda alguma dificuldade na história dos Evangelhos. Notam que, em São Mateus, Jesus Cristo diz aos escribas e aos fariseus que todo sangue inocente, vertido sobre a terra, deve recair sobre eles, desde o sangue de Abel, o justo, ao de Zacarias, filho de Barac, assassinado no templo.

Não há, dizem, na história dos Hebreus, referência a Zacarias, morto no templo, antes da vinda do Messias, nem à sua época; mas encontramos na história do cerco de Jerusalém por José, um Zacarias, filho de Barac, morto no meio do templo pela facção dos zelotas. É no capítulo XIX do livro IV. Daí suporem eles que o Evangelho segundo São Mateus foi escrito depois da tomada de Jerusalém por Tito. Mas todas as dúvidas e todas as objecções dessa espécie se diluem ao considerarmos a diferença infinita existente entre os livros divinamente inspirados e os livros dos homens. Deus quis envolver numa nuvem tão respeitável quanto obscura seu nascimento, vida e morte. Seus caminhos são, em tudo, diferentes dos nossos.

Os sábios vêem-se também muito atormentados com as diferenças das duas genealogias de Jesus Cristo. São Mateus dá por pai de José, Jacob; de Jacob, Mathan, de Mathan, Eleazar. São Lucas, ao contrário, diz ter sido José filho de Heli; Heli de Matthat; Matthat de Levi, etc.

Encontram ainda dificuldades no facto de Jesus não ser filho de José, mas de Maria. Erguem também algumas dúvidas sobre os milagres do nosso Salvador, citando Santo Agostinho, Santo Hilário e outros, que emprestam à narrativa desses milagres um sentido místico, um sentido alegórico; como a figueira maldita e seca por não haver dado figos, quando não era tempo de figos; dos demónios transferidos para os corpos dos porcos numa terra onde não se criavam porcos; a água transformada em vinho no fim de um repasto, em que haviam feito libações. Mas todas essas críticas dos sábios são confundidas pela fé, por isso mesmo cada vez mais pura. O objectivo deste artigo é unicamente o de seguir o fio histórico e dar uma ideia precisa dos factos sobre os quais ninguém disputa.

Primeiramente, Jesus nasceu sob a lei mosaica, foi circuncidado segundo essa lei e cumpriu-lhe todos os preceitos, celebrou todas as suas festas e não pregou senão a moral, não revelou absolutamente o mistério de sua encarnação, não disse aos Judeus haver nascido de uma virgem; recebeu o baptismo de João nas águas do Jordão, cerimónia à qual vários judeus se submetiam, mas não baptizou jamais; não falou nos sete sacramentos; não instituiu a hierarquia eclesiástica, enquanto vivo. Ocultou aos contemporâneos ser filho de Deus, eternamente engendrado, consubstanciado com Deus e proceder do Espírito Santo, do Pai e do Filho. Não disse absolutamente que sua pessoa era composta de duas naturezas e duas vontades; quis que esses grandes mistérios fossem anunciados aos homens no decorrer dos tempos por aqueles a serem esclarecidos pela luz do Espírito Santo. Enquanto viveu, não se afastou em nada da lei de seus pais; não se mostrou aos homens senão como um justo agradável a Deus, perseguido pelos invejosos e condenado à morte por magistrados prevenidos. Quis que a Santa Igreja, por ele instituída, fizesse o resto.

José, no capítulo XII de sua História fala numa seita de judeus rigoristas, recentemente criada por um tal Judas galileu. "Eles desprezam — dizia o historiador — os males da terra; triunfam sobre os tormentos por sua constância; preferem a morte à vida, quando o motivo é honroso. Pre-feriram o suplício a ferro e fogo e terem os ossos quebrados a pronunciar a menor palavra contra o seu mestre ou a comer as carnes proibidas".

O retrato parece coincidir com os dos judaístas 7 e não com os dos essénios. Pois, eis aqui as palavras de José: "Judas foi o autor de uma nova seita, inteiramente diferente das três outras, isto é, dos saduceus, dos fariseus e dos essénios". Continua e diz: "São judeus de nação, vivem unidos entre si e encaram a volúpia como um vício". O sentido natural desta frase mostra-nos ser dos judaístas de que fala o autor.

De qualquer maneira, conheceram-se judaístas, antes dos discípulos de Jesus começarem a formar um partido considerável no mundo.

Os terapeutas constituíam uma sociedade diferente dos essénios e dos judaístas; assemelhavam-se aos ginossofistas das índias e aos brâmanes. "Têm eles — diz Fílon — um impulso de amor celeste que os leva ao entusiasmo das bacantes e coribantes, pondo-os no estado de contemplação a que aspiram. Esta seita nasceu em Alexandria, muito povoada por judeus, e expandiu-se consideravelmente pelo Egipto".

Os discípulos de João Baptista espalharam-se também um pouco pelo Egipto, mas principalmente pela Síria e pela Arábia, existindo também na Ásia Menor. Diz-se nos "Actos dos Apóstolos" que Paulo encontrou vários em Éfeso e lhes perguntou: "Recebestes o Espírito Santo?" Ao que eles responderam: "Ouvimos somente dizer que há um Espírito Santo". E ele lhes disse: "Que baptismo recebestes?" Ao que responderam: "O baptismo de João".

7 Mais conhecidos sob o nome de zeladores ou zelotas. Os chefes desse partido foram Judas, o Gaulainta, ou o Galileu, e o fariseu Sadok.

 

Havia nos primeiros anos seguintes à morte de Jesus sete sociedades ou seitas diferentes entre os judeus: os fariseus, os saduceus, os essénios, os judaístas, os terapeutas, os discípulos de João e os discípulos de Cristo, cujo pequeno rebanho Deus conduzia pelos atalhos desconhecidos da sabedoria humana.

Os fiéis tiveram o nome de cristãos na Antioquia, até pelo ano 60 da nossa era; mas foram conhecidos no império romano, como veremos em seguida, com outros nomes. Não se distinguiam antes senão pelo nome de irmãos, de santos ou de fiéis. Deus, descendo à terra para exemplo de humildade e de pobreza, dava assim à sua Igreja o mais frágil começo e a dirigia nas mesmas condições de humilhação em que ele houvera por bem nascer. Todos os primeiros fiéis foram homens obscuros, trabalhadores manuais. O apóstolo Paulo testemunha que ganhava a vida como tendeiro. São Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que fazia as roupas dos irmãos. A assembleia dos fiéis era em Jopé na casa de um curtidor de nome Simão, como se vê no capítulo IX dos "Actos dos Apóstolos".

Os fiéis espalharam-se secretamente pela Grécia e alguns foram até Roma, entre os judeus aos quais os romanos permitiam manter uma sinagoga. Não se separaram, a princípio, dos judeus; observaram a circuncisão, e como já notamos alhures, os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncisos.

Quando o apóstolo Paulo reuniu-se a Timóteo, filho de pai gentio, circuncidou-o ele próprio, na pequena cidade de Listra. Mas Tito, outro discípulo do apóstolo, não quis absolutamente submeter-se a isso. Os irmãos discípulos de Jesus estiveram unidos aos judeus até a época em que Paulo provocou uma perseguição em Jerusalém por haver levado estrangeiros ao templo. Era acusado pelos judeus de querer destruir a lei mosaica por meio de Jesus Cristo. Para livrar-se da acusação, o apóstolo Tiago propôs ao apóstolo Paulo fazer raspar a cabeça e ir purificar-se no templo com quatro judeus que tinham feito voto de raspá-las. "Levai-os con-vosco, disse-lhe Tiago (cap. XXI, "Actos dos Apóstolos"); purificai-vos com eles e que todo mundo saiba que o que se diz de vós é falso, pois continuais a guardar a lei de Moisés."

Paulo não foi menos acusado de impiedade e heresia, e um processo crime durou muito tempo; mas vê-se, clara-mente, pelas próprias acusações intentadas contra ele, que viera a Jerusalém para observar os ritos judaicos. Disse a Festus estas palavras textuais (cap. XXV dos "Actos"): "Não pequei nem contra a lei judaica nem contra o templo".

Os apóstolos anunciaram Jesus Cristo como judeu, enviado de Deus para fazer observar a lei.

"A circuncisão é útil, diz o apóstolo Paulo, se observais a lei". .

Quando fala de Jesus Cristo, nas suas Epístolas, não revela o mistério inefável da consubstanciação com Deus. "Somos libertados por ele (cap V, "Epístola aos Romanos") da cólera de Deus. O dom de Deus expandiu-se entre nós pela graça dada a um só homem, Jesus Cristo. . . A morte reinou pelo pecado de um só homem; os justos reinarão na vida por um só homem, que é Jesus Cristo."

No capítulo VIII: "Nós, os herdeiros de Deus e os co-her-deiros de Cristo." E no capítulo XVI: "A Deus, que é o único sábio, honra e glória por Jesus Cristo. . . — Vós estais em Jesus Cristo e Jesus Cristo em Deus" (l.a "Aos Coríntios", cap. III).

E (l.a "Aos Coríntios", cap. XV, v. 27) "Tudo lhe é subordinado, excepto, sem dúvida, Deus, que a Ele subordinou todas as coisas."

Tem-se tido alguma dificuldade em explicar a passagem da "Epístola aos Filipenses": "Não façais nada por vanglória; acreditai mutuamente por humildade que os outros vos são superiores; tende os mesmos sentimentos de Jesus Cristo que, escolhido por Deus, não quis igualar-se a Deus." Esta

passagem parece muito profunda e é esclarecida numa carta das igrejas de Viena e Lião, escrita no ano 117, um dos preciosos monumentos da Antiguidade. Louva-se nessa carta a modéstia de alguns fiéis: "Não quiseram revestir-se do grande título de mártires (por algumas atribulações) a exemplo de Jesus Cristo, o qual, escolhido por Deus, não se julgou de qualidade igual a Deus." Orígenes diz também no seu Comentário sobre João: "A grandeza de Jesus mais irradiava quando ele se humilhava, do que aconteceria se se julgasse no dever de igualar a Deus." Realmente, a explicação contrária é de uma falta de senso visível. Que significaria: "Acreditai os outros superiores a vós; imitai Jesus Cristo que não julgou ser uma usurpação igualar-se a Deus." Seria visivelmente contradizer-se, dar um exemplo de grandeza por um exemplo de modéstia, pecar contra o senso comum.

A sabedoria dos apóstolos fundava assim a Igreja nascente. Esta sabedoria não foi absolutamente alterada pela disputa que sobreveio entre os apóstolos Pedro, Tiago e João, de um lado, e Paulo, do outro.

Pouco a pouco, formaram-se várias Igrejas e a separação tornou-se completa entre os judeus e os cristãos, antes do fim do século primeiro, separação essa ignorada pelo governo romano. O senado de Roma e os imperadores não se envolveram, absolutamente, nos negócios de um pequeno grupo, que Deus havia até ali conduzido na obscuridade e ao qual elevava numa gradação insensível. É preciso ver em que estado se encontrava então a religião do império romano. Os mistérios e as expiações eram objectos de crença em quase toda parte. Os imperadores, é verdade, os grandes e os filósofos, não tinham nenhuma fé nesses mistérios; mas o povo que, em matéria de religião, dita lei aos grandes, impu-nha-lhes a necessidade de conformar-se, na aparência, com o culto. Para acorrentar os outros precisamos dar a impressão de trazer as mesmas cadeias. O próprio Cícero foi iniciado nos mistérios de Eleusina. O conhecimento de um só Deus era o principal dogma anunciado nessas festas misteriosas e magníficas. Devemos confessar que as preces e os hinos que nos ficaram de tais mistérios constituem o que o paganismo tem de mais piedoso e mais admirável.

Os cristãos, adorando também um só Deus, tiveram por esse lado maior facilidade para converter vários gentios. Alguns filósofos da seita de Platão tornaram-se cristãos. Eis por que os padres da Igreja nos três primeiros séculos foram todos platónicos.

O zelo inconsiderado de alguns não perturbou absolutamente as verdades fundamentais. Censuravam a São Justino, um dos primeiros padres, de haver dito, no seu Comentário sobre Isaías, que os santos desfrutariam, num reinado de mil anos sobre a terra, todos os prazeres dos sentidos. Consideraram-lhe um crime haver dito na sua Apologia do Cristianismo, que Deus, tendo criado a terra, deixou-a ao cuidado dos anjos, os quais, apaixonando-se pelas mulheres, deram-lhes filhos, que são os demónios. Condenaram La-tâncio e outros padres por haverem suposto oráculos das sibilas. Pretendia ele ter feito a sibila da Eritreia estes quatro versos gregos, cuja tradução literal é a seguinte:

"Com cinco pães e dois peixes Alimentará cinco mil homens no deserto. E amassando os pedaços restantes Encherá doze cestos".

Censuraram também aos primeiros cristãos a suposição de alguns versos acrósticos de uma antiga sibila, começando todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo, cada um na sua ordem.

Mas este zelo de alguns cristãos, em desacordo com a ciência, não impediu a Igreja de fazer os progressos a que Deus a destinava. Os cristãos celebraram, primeiro, seus mistérios em casas retiradas, em adegas, durante a noite, de onde lhes veio o título de Lucifugaces (segundo Minutius Félix). Fílon chamou-os gesseanos. Seus nomes mais comuns nos quatro primeiros séculos, entre os gentios, eram os de galileus e nazarenos; mas o de cristãos prevaleceu sobre todos os outros.

Nem a hierarquia nem os costumes foram estabelecidos de um momento para outro; os tempos apostólicos diferiram dos que os seguiram. São Paulo, na 1.a "Aos Coríntios" ensina-nos que os irmãos, circuncisos ou incircuncisos, estando reunidos, quando vários profetas queriam falar, era preciso não falar senão dois ou três, e se algum, durante esse tempo, tivesse uma revelação, o profeta que havia tomado a palavra devia ceder-lha. Sobre este uso da Igreja primitiva fundam-se, ainda hoje, algumas comunidades cristãs, mantendo assembleia sem hierarquia. Era permitido, então, a qualquer pessoa, falar na Igreja, excepto às mulheres; a santa missa, hoje celebrada de manhã, correspondia à ceia, feita à tarde; tais usos foram mudando à medida que a Igreja se fortificava. Uma sociedade mais ampla exigia maior número de regulamentos e a prudência dos pastores levou-os a adaptar-se aos tempos e aos lugares.

Quando as sociedades cristãs foram se tornando um pouco numerosas e várias se ergueram contra o culto do império romano, os magistrados agiram contra elas, e o povo, sobretudo, as perseguiu. Não se perseguiram os judeus, possuidores de privilégios particulares e confinados em suas sinagogas; permitiam-lhes o exercício da respectiva religião, como se faz ainda hoje em Roma; toleravam-se os diversos cultos disseminados pelo império, embora o Senado não os adoptasse.

Mas os cristãos, declarando-se inimigos de todos os cultos e sobretudo dos do império, foram submetidos várias vezes a cruéis provações.

Um dos primeiros e dos mais célebres mártires, Inácio, bispo de Antioquia, viu-se condenado pelo próprio imperador Trajano, então na Ásia, e enviado, por ordem deste, a Roma, a fim de ser entregue às feras, numa época em que ainda não se massacravam ali os cristãos. Não se sabe de que fora ele acusado ao imperador, célebre, aliás, pela sua clemência; era preciso possuísse Santo Inácio inimigos bem violentos. Como quer que seja, a história do seu martírio reporta-nos ter sido encontrado o nome de Jesus Cristo gravado no coração da vítima, em caracteres de ouro; e por isso receberam os cristãos, em alguns lugares, o nome de teójoros, que Inácio havia dado a si mesmo.

Conservou-se uma carta dele, na qual pede aos bispos e aos cristãos não se oporem, de forma alguma, ao seu martírio, ou porque os cristãos já se houvessem tornado bastante fortes para libertá-lo, ou porque, entre eles, alguns dispusessem de prestígio para conseguir-lhe o indulto. O que se torna ainda digno de nota é terem permitido aos cristãos de Roma virem à frente do mártir, quando conduzido a essa capital; o que prova, evidentemente, que se punia nele a pessoa e não a seita.

As perseguições não foram contínuas. Orígenes, no livro III contra Celso, diz: "Podem-se contar, facilmente, os cristãos que morreram pela sua religião, pois morreram poucos e somente de tempos em tempos e com intervalos."

Deus velou tanto pela sua Igreja que, apesar dos inimigos da mesma, fez com que ela tivesse cinco concílios no século primeiro, dezesseis no segundo e trinta no terceiro; isto é, assembleias toleradas. Essas assembleias eram, às vezes, proibidas, quando a falsa prudência dos magistrados receava se tornassem elas tumultuosas. Restaram-nos poucos processos verbais dos procônsules e dos pretores, condenando os cristãos à morte. Seriam as únicas actas, nas quais se poderia constatar as acusações erguidas contra eles e os seus suplícios.

Possuímos um fragmento de Dionísio de Alexandria, em que este nos reporta ao fragmento da queixa de um procônsul do Egipto no reinado do imperador Valeriano; ei-lo:

Dionísio, Fausto, Máximo, Marcelo e Queremão, tendo sido introduzidos na audiência, o prefeito Emiliano lhes disse:

"— Deveis saber pelas conversas que tivemos e por tudo que sobre o caso escrevi, como os nossos príncipes teste-

munharam bondade para convosco; quero ainda repetir-vos: eles fazem depender a vossa conservação e a vossa saúde de vós mesmos e o vosso destino está em vossas mãos. Não vos pedem senão uma coisa, o que a razão exige de todas as pessoas razoáveis: que adoreis os deuses protectores do império e abandoneis este outro culto, tão contrário à natureza e ao bom senso."

"— Nem todos os homens têm os mesmos deuses, e cada um adora o que julga sê-lo verdadeiramente" — respondeu Dionísio.

O prefeito Emiliano replicou:

"— Bem vejo que sois ingratos e abusais da bondade dos imperadores. Pois bem. Não ficareis muito tempo nesta cidade; envio-vos a Cefro, no fundo da Líbia, será lá o lugar do vosso exílio, segundo a ordem recebida dos nossos imperadores; além disso, não penseis em manter vossas assembleias, nem fazer vossas preces nos sítios que denominais cemitérios; isto vos é absolutamente proibido e não o permitirei a ninguém".

Nada possui mais caracteres de verdade do que esse processo verbal. Vê-se por aí como houve tempos em que as assembleias foram proibidas. Da mesma maneira, entre nós, foram os calvinistas proibidos de reunir-se no Languedoc; fizemos, mesmo, algumas vezes, enforcar e supliciar na roda alguns dos seus ministros ou pregadores, por manter as reuniões, apesar da lei. Da mesma maneira, na Inglaterra e na Irlanda as reuniões são proibidas aos católicos romanos e em certas ocasiões os delinquentes têm sido condenados à morte.

Apesar das proibições baixadas pelos romanos, Deus inspirou a vários imperadores a indulgência para os cristãos. O próprio Diocleciano, passando entre os ignorantes por um perseguidor, Diocleciano, cujo primeiro ano do reinado é ainda considerado a era dos mártires, foi durante mais de dezoito anos o protector declarado do cristianismo, a ponto de vários cristãos ocuparem cargos de relevo junto ao imperador. Desposou uma cristã e tolerou que em Nicomédia, onde residia, houvesse uma soberba igreja, erguida em frente ao palácio.

Galério, infelizmente, prevenido contra os cristãos, dos quais julgava ter razão de queixa, levou Diocleciano a mandar destruir a catedral de Nicomédia. Um cristão, mais zeoloso do que prudente, rasgou em pedaços o édito do imperador, e de lá vem a perseguição tão famosa, na qual houve mais de duzentas pessoas condenadas à morte em toda a extensão do império romano, sem contar as que o furor de um povo, sempre fanático e sempre bárbaro, fez perecer contra as formas jurídicas. Houve em certas ocasiões número tão grande de mártires, que devemos tomar cuidado para não deturpar a história desses verdadeiros confessores de nossa santa religião com uma confusão perigosa de fábulas e de falsos mártires.

O beneditino D. Ruinart, por exemplo, homem aliás tão instruído quanto estimável e zeloso, devia proceder com a máxima discrição na escolha de seus Actos Sinceros. Não basta um manuscrito tenha sido tirado da abadia de São Bento sobre o Loire, ou de um convento de celestinos de Paris, de acordo com um manuscrito dos franciscanos, para esse acto ser autêntico: é preciso seja o acto antigo, escrito por contemporâneo e apresente todos os caracteres da verdade.

Não podíamos deixar de nos reportar à aventura do jovem Romanus, em 303. Esse jovem havia obtido seu perdão de Diocleciano em Antioquia. Entretanto, diz-se que o juiz Asclepíades o condenara ao fogo. Os juízes presentes a esse espectáculo galhofaram do jovem São Romanus e censuraram os cristãos por terem um Deus que os deixava ser queimados, quando havia libertado Sadrac, Mesac e Abdénago da fornalha; e logo desencadeou, no céu sereno, uma tempestade apagando o fogo; e quando o juiz ordenou se cortasse a língua do jovem Romanus, o primeiro médico do imperador, ali se encontrando, desempenhou oficialmente a função de carrasco e cortou-lhe a língua na raiz; logo, o jovem até então gago, falou com o maior desembaraço; e o imperador ficou espantado de que se falasse tão bem sem língua; e o médico, para repetir a experiência, cortou imediatamente a língua do primeiro transeunte, que morreu no mesmo instante.

Eusébio, do qual o beneditino Ruinart tirou este caso, devia respeitar mais os verdadeiros milagres operados no Antigo e no Novo Testamento (dos quais ninguém duvidará jamais), para não lhes associar histórias tão suspeitas, capazes de escandalizar os espíritos fracos.

Esta última perseguição não se estendeu a todo o império. Havia, então, na Inglaterra, algum Cristianismo, que se eclipsou logo para reaparecer em seguida, sob os reis saxões. As Gálias meridionais e a Espanha estavam cheias de cristãos. O césar Constâncio Cloro protegeu-os bastante em todas as províncias. Possuía ele uma concubina cristã: a mãe de Constantino, conhecida mais tarde pelo nome de Santa Helena, pois nunca houve um casamento legítimo entre ambos, e Constâncio se desfez dela no ano 292, quando desposou a filha de Maximiano Hércules; mas ela conservou sobre ele muita ascendência e inspirou-lhe uma grande simpatia pela nossa santa religião.

A divina Providência preparou a vitória de sua Igreja por meios que parecem humanos. Constâncio Cloro morreu no ano 306 em York, na Inglaterra, quando os filhos que possuía da filha de um césar eram ainda muito crianças e não podiam pretender o império. Constantino-conseguiu a confiança necessária para se fazer eleger em York por cinco ou seis mil soldados alemães, gauleses e ingleses, na maior parte. Não havia probabilidades dessa eleição, feita sem o consentimento de Roma, do senado e do exército, prevalecer, mas Deus fez Constantino triunfar sobre Maxêncio, eleito em Roma, e desembaraçar-se, afinal, de todos os colegas. Não podemos esquecer, porém, ter ele se tornado indigno dos favores do céu pela morte de todos os parentes próximos, da esposa e do filho.

Pode-se duvidar do que Zósimo nos reporta sobre o assunto. Diz ele que Constantino, perturbado pelo remorso,

depois de tantos crimes, perguntou aos pontífices do impé-rio se havia expiação para ele, e que estes lhe responderam não conhecê-la. Não a houvera também para Nero, e este não ousara assistir aos sagrados mistérios na Grécia. Entretanto, os taurobólios estavam em uso, e é bem difícil acre-ditar que um imperador todo poderoso não conseguisse encontrar um sacerdote disposto a conceder-lhe os sacrifícios expiatórios. Talvez seja ainda menos crível que Constan-tino, ocupado com a guerra, com suas ambições e seus pro-jectos, circundado de bajuladores, encontrasse tempo para curtir remorsos. Zósimo acrescenta que um padre egípcio, chegado da Espanha, recebido pelo imperador, prometeu-lhe a expiação de todos os crimes na religião cristã. Supõe-se ter sido esse padre Ózio, bispo de Córdova.

De qualquer maneira, Constantino comungou com os cristãos, embora não fosse mais do que catecúmeno e reservasse o baptismo para a hora da morte. Fez ele construir a cidade de Constantinopla, depois centro do império e da religião cristã. Então, a Igreja tomou uma forma augusta.

É de notar-se que, desde o ano 314, antes de Constantino residir na sua nova cidade, os perseguidores dos cristãos vinham sendo punidos por estes pelas suas crueldades. Os cristãos atiraram a mulher de Maximiano no Oronte e lhe estrangularam os parentes; massacraram na Palestina e no Egipto os magistrados que mais se haviam declarado contra o Cristianismo. A viúva e a filha de Diocleciano, tendo-se escondido na Tessalónica, foram reconhecidas e seus corpos lançados ao mar. Era de desejar-se que os cristãos tivessem escutado menos o espírito de vingança; mas Deus, punindo segundo sua justiça, quis que as mãos dos cristãos fossem tingidas pelo sangue dos próprios perseguidores, logo que eles, cristãos, tiveram liberdade de agir.

Constantino convocou e reuniu em Niceia, perto de Constantinopla, o primeiro concílio ecuménico, presidido por Ózio. Ali decidiu-se a grande questão que tanto agitava a Igreja, tocante à divindade de Jesus Cristo. Uns se prevaleceram da opinião de Orígenes, no capítulo VI contra

Celso: "Erguemos nossas preces a Deus por meio de Jesus, que constitui um intermediário entre a natureza criada e a natureza incriada, que nos traz a graça de seu pai e leva nossas preces ao grande Deus, na qualidade de nosso pontífice." Apoiavam-se, também, em várias passagens de São Paulo, reportadas por alguns deles. Fundavam-se, sobretudo, nas palavras de Jesus Cristo — "Meu Pai é mais do que eu" — e o encaravam como a primeira criatura, a mais pura emanação do Ser Supremo, mas não precisamente como Deus.

Os outros, ortodoxos, alegavam as passagens mais conformes à divindade eterna de Jesus, como esta: "Meu Pai e eu somos a mesma coisa" (S. João, X, 30), palavras interpretadas pelos adversários da seguinte forma: "Meu Pai e eu temos os mesmos desígnios, a mesma vontade; não tenho outros desejos senão os de meu Pai."

Alexandre, bispo de Alexandria e, depois dele, Atanásio, colocaram-se à frente dos ortodoxos; e Eusébio, bispo de Nicomédia, com dezessete outros bispos, o sacerdote Ario e vários outros padres eram do partido oposto. A questão foi logo envenenada, porque Santo Alexandre tratou os adversários de anticristãos.

Afinal, depois de várias disputas, o Espírito Santo assim decidiu o concílio pela boca de duzentos e noventa e nove contra dezoito: "Jesus é filho unigénito de Deus, nascido do Pai, luz da luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, consubstanciado no Pai; cremos também no Espírito Santo, etc…" Essa foi a fórmula do concílio. Vê-se, pelo exemplo, como os bispos levaram vantagem sobre os simples sacerdotes. Dois mil membros da segunda ordem eram da opinião de Ario, afirmam-nos os dois patriarcas de Alexandria que escreveram em árabe a crónica dessa cidade. Ario foi exilado por Constantino, mas com Atanásio aconteceu a mesma coisa logo depois, e Ario foi chamado de novo a Constantinopla; São Macário pediu a Deus com tanto ardor para fazer morrer Ario antes de esse sacerdote poder entrar na catedral, que Deus lhe ouviu a prece. Ario morreu ao

Chegar à igreja, em 330. O imperador Constantino viu extinguir-se-lhe a existência em 337. Depôs o testamento nas mãos de um sacerdote ariano e morreu nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomédia, não se fazendo baptizar senão no leito de morte e deixando a Igreja triunfante, mas dividida.

Os partidários de Atanásio e os de Eusébio travaram uma urna cruel; e o que se chama arianismo foi, durante muito tempo, estabelecido em todas as províncias do império.

Juliano, o filósofo denominado o Apóstata, quis acabar com essas divisões e não o conseguiu.

O segundo concílio geral reuniu-se em Constantinopla em 381. Esclareceu-se ali o que o concílio de Niceia não julgara oportuno dizer sobre o Espírito Santo, e acrescentou-se à fórmula de Niceia que "o Espírito Santo é Deus vivo, pro-cedendo do Pai e adorado e glorificado com o Pai e o Filho".

Somente no século IX a Igreja latina estatuiu, por gradações, que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.

Em 431 o terceiro concílio geral, reunido em Éfeso, decidiu que Maria era verdadeiramente mãe de Deus e Jesus possuía duas naturezas numa só pessoa. Nestório, bispo de Constantinopla, pretendendo se chamasse à Virgem Santa mãe de Cristo, foi declarado Judas pelo concílio e as duas naturezas tiveram confirmação ainda no concílio de Calcedónia.

Passarei por alto sobre os séculos seguintes, já bastante conhecidos. Infelizmente, neles não houve nenhuma dessas disputas que não causassem guerra e a Igreja foi sempre obrigada a combater. Deus permitiu, para experimentar a pa-ciência dos fiéis, que os Gregos e os Latinos rompessem uns com os outros, de forma definitiva, no século IX; e permitiu ainda que no Ocidente houvesse vinte e nove cismas sangrentos para a Sé de Roma.

Entretanto, quase toda a Igreja grega e toda a Igreja da África tornaram-se escravas no domínio dos Árabes e, em seguida, no dos Turcos, os quais ergueram a religião maometana sobre as ruínas da cristã. A Igreja romana subsistiu,

mas sempre manchada de sangue por mais de seiscentos anos de discórdia entre o Império do Oriente e o Sacerdócio. Mas essas próprias disputas a fizeram muito poderosa. Os bispos, os abades, na Alemanha, tornaram-se todos príncipes, e os papas adquiriram, pouco a pouco, o domínio absoluto em Roma e numa região de cem léguas em derredor. Assim, Deus experimentou sua Igreja pelas humilhações, pelas perturbações e pelo esplendor.

Esta Igreja latina perdeu no século XVI a metade da Alemanha, a Dinamarca, a Suécia, a Inglaterra, a Escócia, a Irlanda, a melhor parte da Suíça, a Holanda; ganhou, porém, na América, pela conquista dos espanhóis, mais terreno do que o que havia perdido na Europa; não obstante, com maior porção de território, ficou com menor número de súbditos.

A Providência divina parecia destinar o Japão, o Sião, a índia e a China a formar-se na obediência do papa, para recompensá-lo da perda da Ásia Menor, da Síria, da Grécia, do Egipto, da África, da Rússia e de outros Estados perdidos dos quais já falamos. São Francisco Xavier, levando o Santo Evangelho às índias Orientais e ao Japão, quando os portugueses ali foram, em busca de mercadorias, fez grande número de milagres, todos atestados pelos reverendos padres jesuítas; dizem alguns ter ele ressuscitado nove mortos, mas o R. P. Ribadeneira, na sua Flor dos Santos8, limita-se a dá-lo como não tendo ressuscitado mais do que quatro, o que já é bastante. Quis a Providência que em menos de cem anos houvesse milhares de católicos romanos nas ilhas do Japão; mas o diabo semeou o joio no meio da boa semente. Os jesuítas formaram uma conjuração seguida de uma guerra civil, na qual foram todos exterminados em 1638. Então, a nação fechou seus portos a todos os estrangeiros, excepto aos holandeses, encarados como comerciantes e não como cristãos, e que foram primeiro obrigados a caminhar sobre a cruz para obter a permissão de vender as respectivas mercadorias na prisão, onde os encerraram, quando aportaram a Nagassaki.

8 " Fios sanctorum".

 

A religião católica apostólica romana foi proscrita na China nestes últimos tempos, mas de uma maneira menos cruel. Os reverendos padres jesuítas não tinham, na verdade, ressuscitado mortos na corte de Pequim; tinham-se contentado em ensinar astronomia, a fundir canhões e a ser mandarins. Suas infelizes disputas com os dominicanos e outros escandalizaram de tal forma o imperador Yong-tching, que este príncipe, a justiça e a bondade em pessoa, ficou suficientemente encolerizado para não permitir que se ensinasse a nossa santa religião, sobre a qual os missionários não chegavam a um acordo. Despediu-os com uma bondade paternal, fornecendo-lhes subsistência e condução até aos confins do império.

Toda a Ásia, toda a África, a metade da Europa, tudo o que pertence aos ingleses e aos holandeses na América, todas as tribos americanas não dominadas, todas as terras austrais, constituindo uma quinta parte do globo, permanecem presas do demónio, para cumprir-se esta palavra santa: "Muitos serão chamados, mas poucos os escolhidos" ("S. Mateus", XX, 16). Se há cerca de um bilião e seiscentos milhões de homens sobre a terra, como pretendem alguns doutos, a santa Igreja romana católica universal possui perto de sessenta milhões; o que constitui mais da vigésima sexta parte dos habitantes do mundo conhecido.

Fonte: Clássicos Jackson. Trad. De Brito Broca

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