Doença de Nietzsche / Vida de Friedrich Nietzsche – Daniel Halevy /5

VIDA DE FREDERICO
NIETZSCHE

Autor: Daniel Halévy

Tradutor: Jerônimo Monteiro
Extraído da edição da Editora Assunção ltda.
Coleção Perfis Literários

 

 O livro foi dividido em 7 páginas

Cap. 1 – OS ANOS DE
INFÂNCIA
Cap. 2 – OS ANOS DA
JUVENTUDE
Cap. 3 – FREDERICO NIETZSCHE E
RICHARD WAGNER — TRIEBSCHEN
Cap. 4 – FREDERICO NIETZSCHE E
RICHARD WAGNER — BAYREUTH
Cap. 5 – CRISE E CONVALESCENÇA Cap. 6 – O TRABALHO DO
"ZARATUSTRA"
Cap. 7 – A   ÚLTIMA   SOLIDÃO

 

 

V

CRISE  
E   CONVALESCENÇA

Frederico
Nietzsche regressou a Basiléia. Achando-se fraco e doente dos olhos, teve que
aceitar o auxílio que seus amigos lhe ofereciam. Um era um jovem estudante
chama– do Köselitz, a quem, por brinquedo, apelidara Peter Gast — "Pedro,
o hóspede", sobrenome que ficou — o outro era aquele Paulo Rée, judeu de espírito
agudo, que conhecera fazia dois anos.
Graças à abnegação de ambos, pôde Nietzsche reler as notas escritas em
Klingenbrunn, nas quais esperava encontrar matéria para uma segunda Extemporânea. Paulo Rée publicava, então, as suas Observações Psicológicas, reflexões
inspiradas pelos mestres ingleses e franceses, por Stuart Mill e La Rochefoucauld. , Frederico Nietzsche ouviu a leitura deste opúsculo e apreciou-o. Admirou a maneira prudente com que nele se conduzia o pensamento; gozou-o como um repouso, depois das enfáticas cerimônias de Bayreuth, e resolveu entrar na escola de Rée e de seus mestres. No entanto, continuava sentindo o enorme vácuo que nele deixava a sua renúncia a Richard Wagner.

Neste momento, escreve em 20 de setembro de 1876 — tenho
todo o lazer necessário para recordar o passado, o mais afastado e o mais
próximo, pois meu oculistá me obriga a permanecer longo tempo sentado em um
quarto às escuras. O outono, depois de um verão semelhante, é para mim, e
seguramente não só pára mim, mais
outono que nenhum outro. Depois do
grande acontecimento me vem um acesso de melancolia mais negro, para sair do
qual nunca seria demasiado cedo fugir para a Itália, ou para o trabalho, ou
para ambos de uma vez.

Conseguira a licença
pedida e a única felicidade que havia em sua vida era a Certeza de se ver
livre, por alguns meses, de todo o trabalho profissional.

Pelos fins de outubro,
deixou a Suíça, acompanhado de Alfredo Brenner e Paulo Rée. Os três alemães
desceram para Gênova, e um vapor os conduziu em seguida a Nápoles, onde eram
esperados pela senhorita de Meysenbug.

Encontrei Nietzsche
decepcionado
escreve ela — pois
a travessia e a chegada a Nápoles, em meio àquele povo estrepitoso, gritão e
importuno, tinham-no desagradado muito. No entanto, á tarde convidei-os a
fazer um passeio de carro até Possilipo. Era uma dessas tardes como só se vêem
ali: o céu, a terra e o mar flutuavam em uma glória de cores impossível de
descrever, mas que enche a alma de algo como uma música encantadora, de uma
harmonia em que todas as notas discordantes desaparecem. Observei como a
fisionomia de Nietzsche se iluminava com uma alegre admiração quase infantil.
Via-o dominado por uma emoção profunda, da qual saiu, por fim, vociferando em
exclamações entusiásticas, que eu saudei como o feliz augúrio de sua temporada
ali.

A senhorita de
Meysenbug havia alugado uma vila — antiga pensão — na lombada de uma
colina que levava até ao mar suas oliveiras, limoeiros, ciprestes e parreiras.
"No primeiro andar — escreve ela — havia quartos com terraços para

os cavaleiros; no
segundo, dependências para mim e minha empregada e ainda um grande salão de uso
comum."

Instalou seus hóspedes
naquele retiro por ela mesmo escolhido, mas não puderam gozar logo a vida
tranqüila que haviam vindo procurar. Um vizinho demasiado ilustre morava perto
deles: Richard Wagner, acompanhado dos seus, descansava em Sorrento, depois do
esforço e do triunfo imensos de Bayreuth.

Não se descobria nele
cansaço algum. Passava os, dias passeando e os serões conversando. A senhorita
de Meysenbug e seus amigos formavam-lhe uma espécie de corte. Esperava
Frederico Nietzsche encontrar-se, assim, de frente com o mestre? Não o
sabemos. De qualquer modo, não se pôde esquivar de tomar parte nos passeios e
nas palestras, embora. sem deixar de mostrar certa reserva. Enquanto Richard
Wagner falava de seus projetos de futuro, de sua próxima obra e das idéias
religiosas que desejava exprimir, Nietzsche se isolava com Paulo Rée, e com o
recente amigo falava de Chamfort e de Stendhal. Wagner observava essas
conversas. Não era amigo dos judeus, e Rée desagradava-lhe.    "Desconfie
— dizia a

Nietzsche  —  esse 
homem   não   lhe  trará  proveito   algum"__

Nietzsche não
modificou, por isso, sua atitude. Falava pouco ou, se tomava parte na
conversação, mostrava animação forçada, uma alegria que não conseguia parecer
de todo natural. A senhorita de Meysenbug surpreendeu-se mais de uma vez.

Mas não suspeitei
-escreve ela
que se houvesse
dado uma mudança em seus sentimentos e de todo o coração me abandonei a estes
prazeres que vinham completar os de Bayreuth. A alegria que experimentava de
viver em semelhante intimidade fêz-me citar, numa noite em que todos estávamos
juntos em torno a mesa, um pensamento de Goethe que me agradava muito:
"Feliz aquele que, sem ódio, se afasta do mundo, estreita um amigo, ao
peito e com ele frua aquilo que os homens não sabem nem suspeitam
o
que atravessa, pela noite, os labirintos do coração." Os Wagner não
conheciam esta citação, e ficaram tão encantados que tive de repeti-la. Ah! Eu
não suspeitava que os demônios, que também cruzam pela noite os labirintos do
coração e contemplam com desagrado o divino mistério da simpatia entre os
espíritos nobres, já tinham posto mãos a obra para semear a discórdia e a
divisão.

Pelos fins de
novembro, tendo já Richard Wagner partido de Sorrento, a senhorita de
Meysenbug e seus amigos puderam organizar proveitosamente suas vidas.
Distribuíram o emprego das horas: até o meio-dia, trabalho e solidão; ao
meio-dia, almoço e logo, alguns momentos de conversação e passeios; pela
tarde, trabalho e solidão, e, finalmente, pela noite, leitura.    Paulo Rée,
único saudável naquela sociedade de intelectuais

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DANIEL  HALÉVY

doentes, lia em voz
alta. Nietzsche e a senhorita de Meysenbug sofriam dos olhos; Brenner tinha os
pulmões afetados.

Quais eram os seus
autores? Jacob Burckhardt, cujo curso sobre a cultura helênica, então inédito,
estudavam detidamente baseando-se nas notas de um estudante de Basiléia, que
as emprestara; Michelet, Heródoto, Tucídides. Uma pergunta, ou a expressão de
uma dúvida, interrompia às vezes a leitura de Paulo Rée, e era quase sempre
Nietzsche quem encerrava o debate.

Que doçura, e que
benevolência animavam então a Nietzsche!
escreve a senhorita de Meysenbug em sua deliciosa descrição. Como
estava bem equilibrada a sua amável natureza, e boa a sua inteligência
destrutora! Gomo sabia ser alegre e rir de boa vontade diante das brincadeiras
que com freqüência vinham interromper
r seriedade do. nosso pequeno
círculo! Quando estávamos reunidos, à noite, Nietzsche comodamente instalado em
uma poltrona sob a proteção do quebra-luz; o doutor Rée, nosso amável leitor,
sentado à mesa onde se achava a lâmpada; o jovem Brenner junto à chaminé, à
minha frente, ajudando-me a descascar as laranjas para a refeição, dizia eu
com freqüência, rindo: "Representamos, verdadeiramente, uma família
ideal; aqui estamos, quatro pessoas que mal nos conhecíamos antes, que não
estão ligadas por laço de parentesco algum, que não possuem nenhuma recordação comum
e que. fazem, agora, vida em comum, absolutamente de acordo, na mais completa
liberdade pessoal e em perfeito contentamento de espírito e de coração. Como é
natural, bem depressa se esboçaram planos para renovar e prolongar aquela
feliz experiência.

Não seria possível
voltar todos os anos àquela costa italiana, com alguns amigos, fundando,
assim, um retiro espiritual longe de toda a escola e de toda a igreja? Pelo ano
de 1848 a senhorita de Meysenbug dirigira em Hamburgo uma espécie de célula
socialista, tema de um dos mais belos capítulos do seu livro e uma das mais
preciosas recordações de sua vida. Frederico Nietzsche não abandonava, de modo
algum, o seu plano de uni claustro laico. Assim, as recordações da velha
senhorita concordavam com as esperanças do seu jovem camarada. E como Paulo
Rée e Alfredo Brenner concordaram com o projeto, os quatro amigos se puseram a
estudá-lo com a  maior  seriedade,

Já nos púnhamos em
busca de um local apropriado
escreve
a senhorita de Meysenbug
— pois era em Sorrento, no seio daquela
deliciosa natureza, e não na atmosfera carregada de uma cidade, que o nosso
projeto, deveria tomar corpo. Junto à costa havíamos encontrado v& rias
grutas espaçosas, aumentadas pela mão do homem, verdadeiras salas de rocha e
onde havia até uma tribuna que parecia especialmente preparada para um
conferencista. Era ali que pensávamos dar nossas lições nos cálidos dias do
estio. Havíamos, também, concebido o plano da escola mais em acordo com os
moldes gregos do que com as idéias modernas, e a instrução deveria ser, melhor
dito, um ensinamento mútuo, à maneira peripatética…

Nietzsche escreve à
sua irmã: "Minha idéia, a escola dos educadores — ou, se você q prefere, o claustro moderno, a
colônia ideal, a universidade livre—
flutua sempre no ar. Que será dela?
Não o sabemos, mas, em imaginação, já nomeamos o diretor e o administrador do
nosso estabelecimento para quarenta pessoas."

Nos primeiros dias da
primavera, Rée e Brenner partiram de Sorrento. A senhorita de Meysenbug e
Nietzsche, que haviam ficado sós, distraíram-se lendo alternadamente em voz
alta, embora não tanto como precisavam, por causa dos seus olhos. E assim, a
maior parte do seu tempo se passava em conversação. Nietzsche jamais se cansava de ouvir as narrações de sua companheira. Ela lhe
descrevia os dias exaltados de 1848, o que agradava muito a ele, especialmente
quando falava de Mazzini.

Não se esquecia do acaso
que, em abril de 1871, lhe dera como vizinho de diligência, durante a travessia
dos Alpes, o herói italiano. Nada de transigir. É preciso viver resolutamente
na integridade, na plenitude, na beleza…
Mazzini citara esta máxima de
Goethe e Nietzsche associava-se às suas recordações. A senhorita de Meysenbug
conhecera-o em Londres e admirara a sua autoridade no ordenar, sua exatidão na
obediência, sua solicitude em servir a todos os servidores de sua causa,
tivessem o nome de Cavour ou de Garibaldi. Por outro lado, Mazzini havia
sofrido o castigo desta humildade: esquecido na hora da vitória, a lei do exílio
fora mantida unicamente em relação a ele. Não obstante, quisera terminar seus
dias na sua bem amada Ligúria, e ali fora morrer, ocultando o nome e
disfarçando a nacionalidade. O médico que tratava dele, pensando que era
inglês, surpreendia-se ao ouvi-lo falar üm italiano tão puro. "O senhor
verá — dizia o moribundo —. que jamais alguém amou tanto a Itália como
eu."

Nietzsche ouvia estas
histórias e dizia à senhorita de Meysenbug:

— O homem que mais
venero é Mazzini.

Poderia ela adivinhar
que o seu companheiro, aquele jovem alemão entusiasta e terno, acabava de
declarar em si próprio a guerra contra esses instintos de ternura e entusiasmo
que prejudicavam a clareza de seus julgamentos?   Que Nietzsche,

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DANIEL  HALÉVY

V

o continuador de
Schopenhauer, o amigo de Wagner, escolhia, agora por mestres a La Rochefoucauld, a Chamfort, a Stendhal? Poderia adivinhar que esse amigo que ao seu lado sonhava
fundar com ela um claustro laico exercitava-se, em seus longos passeios, para
enfrentar as tristezas de uma vida de rebelião e solidão? Nietzsche formulava
as regras de uma vida desse padrão:

Não deves amar nem
odiar o povo. Não deves te ocupar de política. Não deves ser rico nem pobre.
Deves evitar o caminho dos ricos e poderosos. Deves tomar mulher fora de tua
cidade. Deves deixar a teus amigos o cuidado de educar teus filhos.
, Não deves aceitar nenhuma das cerimônias da
Igreja.

A senhorita de
Meysenbug acabou conhecendo os pensamentos de Nietzsche. Um dia, ele colocou
em suas mãos um rolo de papéis e disse: "Leia isto. São as impressões que
tive, aqui mesmo, ao pé daquela árvore sob cuja sombra jamais me sentei sem
recolher algum pensamento." Ela leu e descobriu um Nietzsche
desconhecido, crítico e negador. "Não publique isto por enquanto — disse
ela. — Espere e reflita." Por toda resposta, Nietzsche sorriu. Ela
insistiu e a conversação se exacerbou um pouco. Não tardaram, porém, a fazer
as pazes, lendo Tucídides.

No princípio de maio,
Nietzsche, incomodado com o calor, quis partir. A senhorita de Meysenbug quis
que ele ficasse ainda uns dias e dominasse aquele primeiro cansaço antes de
empreender a penosa viagem, mas o seu amigo não a quis ouvir.

Nietzsche parte
decididamente amanhã
escreve a
senhorita de Meysenbug a Rêe
você bem sabe que quando ele decide
alguma coisa, executa-a, mesmo que o céu lhe mande as mais sérias advertências
contrárias. Nisto, deixa de ser grego, pois que não dá atenção aos augúrios.
Assim como o pior tempo não consegue dis-suàdi-lo de uma excursão, assim parte
agora, mortalmente cansado, apesar do vento violento que agita as ondas e que,
decerto, o fará enjoar espantosamente, pois que se obstinou em fazer por mar o
trajeto de Nápoles a Gênova.

Sim. Partiu escreve em outra carta. Se o sortilégio
de Sorrento, todo em flor, não conseguiu prendê-lo
que é que o
poderia ter convencido a ficar?. . . É para mim horrivelmente penoso deixá-lo
viajar só. / Ele é tão pouco prático e tão pouco hábil para se livrar de
apuros!..
.,   Felizmente o mar está hoje um pouco mais

Calmo. Ah… ele é
bem digno de lástima! Faz apenas oito dias, esboçávamos os planos para seu
futuro próximo e afastado. Teria sido a sua brusca resolução ditada pela
premência febril de fugir da doença, que talvez lhe tenha parecido ligada à
temperatura primaveril e um tanto anormal
é certo que reina aqui? Mas poderia ele passar melhor em
qualquer outra parte esta horrível primavera? Acredito que, no último instante
ele mesmo percebeu que sua partida era um tanto precipitada. Mas era demasiado
tarde. Tudo isto, estas partidas tristes e repetidas, me abateram muito…

Frederico Nietzsche
foi fazer uma estação de águas em Rosenlau. Mas, apenas sentiu alguma melhora, seu futuro próximo começou a preocupá-lo. Em setembro deveria recomeçar seu
trabalho de professor. Afinal de contas, era seu meio de vida e sua obrigação
cotidiana, da qual, em certa maneira, temia ver-se afastado. Era, também, uma
tarefa, porém, cujo espantoso tédio ele bem conhecia. Haviam-lhe insinuado que
as autoridades de Basiléia, em consideração á seus serviços e à sua doença,
concordariam em aposentá-lo com uma pensão suficiente. A senhorita de Meysenbug
aconselhava-o a retirar-se d.o trabalho; sua irmã» ao contrário, aconselhava
que conservasse seu posto, e Nietzsche inclinava-se mais por esta última.
Quanto mais próxima, porém, se achava a data do regresso, tanto mais viva era a
sua rebelião.

Existe para mim um
destino mais elevado; sei-o e sinto-o — escreve, então, a uma mulher que o
ajudava nos seus trabalhos, a sra. Maria Baumgarten, mãe de um dos seus
discípulos. — Poderei me servir da filologia, mas sou algo mais
, que um filólogo. "Estou sedento de mim
mesmo". Tal foi o tema persistente dos meus últimos dez anos. Agora,
depois de um ano de vida retirada, em que tudo se me mostrou tão visível e tão
claro (não posso definir o quanto me sinto rico e criador de alegria,
apesar de todas as dores, tão depressa como me deixam a sós comigo), agora,
digo-lhe com toda a certeza, regresso a Basiléia, mas não para
permanecer ali.
Como se arranjará isto? Não sei, mas, custe o que custar, conquistarei minha
liberdade. Que sejam modestas minhas condições materiais, é coisa que pouco me
importa.

Sua irmã  foi
reunir-se com ele em Basiléia e ficou vivendo em sua companhia. No primeiro
momento, seu prazer foi muito grande, mas não tardou em reconhecer que apenas
podia falar com aquela moça wagneriana dos pés à cabeça, devota fervorosa das
idéias de Bayreuth.    Paulo Rée era o único homem cuja companhia desejava, mas
ele se achava retido na Alemanha do Norte por motivo de saúde e não lhe era
possível,  como  Nietzsche  esperara,  ir a Basiléia.

Oxalá me chegue
logo a notícia de que os maus demônios da doença deixaram-no em paz
escrevia-lhe Nietzsche. Tudo o que lhe
desejo para o ano que começa é que você continue sendo o que é, e que continua
sendo
para mim, o que até agora tem sido… Permita-me que lhe diga que
jamais a amizade me parecera tão doce como neste último ano, graças a você.
Quando ouço falar nos seus trabalhos, faz-se-me água na boca, de tal modo
desejo estar com você. Fomos criados para nos compreendermos, e, cada vez que
nos encontramos, figura-se-me que fazemos como dois bons vizinhos aos quais
simultaneamente ocorreu a idéia de se fazerem uma visita, e que se encontram
nos limites de suas terras… Para quando uma boa palestra sobre as coisas
humanas, uma palestra pessoal e não epistolar?

Em dezembro, torna a
escrever a Rée: "Desejo estar ao seu lado dez vezes por dia…"

Entretanto, termina
seu livro, ou melhor, não o termina, pois deixa às suas notas a liberdade com
que haviam sido pensadas e escritas, uma atrás da outra, sem vinculo algum,
tendo prazer, precisamente, em deixá-las assim. Seu deplorável estado de saúde
o impede, por outro lado, de lhes dar uma trama e impor-lhes uma ordem…
embora, realmente, para quê? E recorda-se daqueles franceses cuja lealdade
tanto ama: Pascal, La Rochefoucauld, Vauvenargues, Montaigne. Como eles, quer
deixar a desordem e a interrupção em seus pensamentos. Deseja escrever um
livro simples, que faça prudentes aos entusiastas demasiado apressados.
Em Bayreuth, ao redor de Wagner, são inumeráveis as almas grandes. Frederico
Nietzsche, que escapara de ser uma delas, quer-lhes fazer sentir, conversando
à maneira do velho Sócrates, o ridículo de sua fé. Humano, demasiado humano, foi o título que escolheu. Pelo fim de sua vida consciente, ele mesmo nos
declarou o propósito do seu
livro:                                                         \

Com uma tocha na
mão, e na verdade a fumaça não velava a luz, projetei viva claridade sobre o
mundo subterrâneo do ideal. É a guerra, sim, más á guerra sem pólvora e sem
fumaça, sem atitudes guerreiras, sem
pathos,
sem membros deslocados tudo isto seria idealismo. — Erro
após erro, a todos apanhei e coloquei no gelo, e o ideal nem sequer foi
refutado:
gelou-se. Aqui, por exemplo, gela-se o Gênio; neste
outro canto gela o
Santo; sob um grosso tampão de gelo gela-se o Herói. E, finalmente, eis aqui a Fé congelada, e também a chamada Convicção; e
aqui também até a
Piedade, consideravelmente esfriada.    Em suma: quase
por todas as partes  congela-se
a  coisa-em-si.

Qbra realmente
paradoxal! Ninguém tão ardente como Frederico Nietzsche, ninguém tão crente em
seu trabalho, em sua missão, nos fins sublimes da vida, e, no entanto,
obriga-se q escarnecer deles. Destrói todas as teses que até então defendera: Pereat
veritas, fiat vita!
 (pereça a verdade e faça-se a vida) escreverá ele.
Agora, escreve: Pereat vita fiat veritas! Acima do lirismo, coloca a
ciência; acima de Esquilo, coloca o mesmo Sócrates que em outra ocasião
acusara. Sem dúvida tudo  Isto  não é mais que simulação, e ele o  sabe;  as
idéias que  exprime   não   são   realmente   as   suas;   arma-se   de  ironia
para um combate que será curto, pois que ele não é um ironista. Quer achar e
achará, pois disso está seguro, um lirismo desconhecido, que inspirará suas
grandes obras. Humano, demasiado humano é o signo de uma época de crise
e de transição; que surpreendente crise, porém, e que difícil transição!
"Aí está o livro — escreve Nietzsche — com grande surpresa daquele que jaz
enfermo…"

Em 3 de janeiro de
1877, recebe, enviado por Wagner, o poema de Parsifal. Lê-o e mede
melhor ainda a distância cada vez maior que o separa do seu antigo mestre.
Escreve ao barão  de Seydlitz:

Impressão de
primeira leitura: Mais de Lizst do que de Wagner; o espírito da contra-reforma;
para mim, demasiado acostumado á atmosfera grega, humana, tudo isso é de um
cristianismo demasiado limitado; a psicologia é fantástica; não há carne, mas
sim sangue demasiado (especialmente a
Santa Ceia, que é sangrenta demais para mim); não me agradam as
camareiras histéricas .. O estilo parece tradução de uma língua estrangeira.
Mas as situações e o seu desenvolvimento
não são da mais alta poesia?
Nunca músico algum deu à sua música missão mais elevada.

Nesta carta, Frederico
Nietzsche não diz tudo o que pensa. Algumas frases (sem carne e com sangue
demasiado)
deixam adivinhar, já ativa e veemente nele, a repugnância que
dez anos mais tarde exprimirá sem rebuços. Não obstante, ama o mestre
incomparável e pela primeira vez se vê obrigado a encarar claramente o
problema da ruptura. Recebeu o poema de Parsifal. Responderá? E, nesse
caso, em que termos?    Ou, mais simples e francamente, não responderá?

Sofre novo assalto de
dúvidas e preocupações. Como vive por aquela ocasião? Mal o sabemos. Já não se
confia a sua irmã, e as cartas que escreve a Paulo Rée, que sem dúvida  nos 
interessariam,  não  foram  publicadas.

A partir do Natal de
1877, tendo conseguido a redução da algumas horas no trabalho   de  ensinar,  
Frederico   Nietzsche goza, de mais tempo livre. Aproveita esta circunstância
para se afastar de Basiléia todas as semanas é passear, sozinho, nas zonas
vizinhas. Geralmente não ia até às montanhas; gostava pouco daqueles monstros, aos quais preferia o Jura e a Floresta Negra, cujas alturas arborizadas lhe
recordavam a paisagem de sua infância.

Quais eram seus
pensamentos? Não é difícil conjeturar: só Wagner e seu livro o preocupavam. Um
mês, dois meses se passaram sem que "respondesse à remessa do Parsifal.

Humano, demasiado
humano
estava impresso e o editor
esperava as suas ordens. Como, porém, prevenir o mestre? Como prepará-lo para
aquela surpreendente leitura? Seus fiéis haviam-no acostumado às mais
obsequiosas homenagens e à mais baixa deferência intelectual. Nietzsche sabia
que a independência de sua obra escandalizaria os devotos de Bayreuth. Nó
momento de se declarar, sentia medo. O público inquietava-o tanto como o
próprio Wagner, e sentia, até, certa vergonha da filosofia que dava como sua.
Escrevera aquelas páginas, e não se arrependia de nada; havia seguido, como
era seu dever, a lógica vital que regia seu espírito. Também sabia, porém, que
esta mesma lógica tornaria a levá-lo algum dia para um lirismo novo, e que
seria conveniente dissimular um pouco o intermédio de seus anos de crise.
Concebeu, então, uma idéia singular: não assinaria o seu livro; publicá-lo–ia
de modo enigmático, sem nome de autor; Richard Wagner seria o único a conhecer
o mistério e saberia que Humano, demasiado humano era a obra de seu
amigo, de seu discípulo, sempre fiel no fundo da alma. Com este intuito
escreveu um longo projeto de carta que foi conservado:

Envio-lhe este
livro:
Humano, demasiado humano, dizendo-lhe
ao mesmo tempo, a si e sua nobre companheira, em toda a confiança, o meu segredo,
que me convém que seja seu também: o livro é meu…

Encontro-me no
estado de ânimo de um oficial que tomou um reduto e que, apesar de estar
ferido, se encontra na parte mais alta dele, agitando seu estandarte: Mais
alegria, muito mais alegria do. que dor, por mais terrível que seja o espetáculo
em torno.

Já lhe disse que
não conheço ninguém que esteja de acordo com o meu pensamento. E, não obstante,
imagino que pensei, não como indivíduo, mas como representante de um grupo; o
mais singular sentimento de solidão e de sociedade

…. O mais rápido
arauto, que não sabe exatamente se a cavalaria vem atrás dele, nem mesmo se
ela existe…

Frederico Nietzsche
teve que renunciar a esta idéia, que o editor não aceitou.    E, por fim,
precisou decidir-se.    A Europa se preparava para
celebrar, em maio de 1878, o centenário da morte de Voltaire. Nietzsche
resolveu publicar então seu livro e dedicá-lo à memória do panfletário.

"Em
Noruega se chamam tempos de obscuridade às épocas em que o sol permanece
durante todo o dia abaixo do horizonte — escrevia Nietzsche em 1879; — durante
esse tempo, a temperatura baixa lenta e constantemente. Que maravilhoso símbolo
para todos os pensadores ante os quais o sol do futuro humano se obscureceu por
algum tempo!

Frederico
Nietzsche conheceu seu tempo de obscuridade. Erwin Rohde desaprovou seu
livro. Richard Wagner não se manifestou, mas Nietzsche soube como o julgavam em
torno do mestre. "O caricaturista de Bayreuth — dizia-se — é um ingrato,
ou um louco." Um desconhecido (não seria Gersdorff? Ao menos,
suspeitava-se dele), enviou de Paris uma caixa, da qual Frederico e Lisbeth
Nietzsche tiraram um busto de Voltaire com um breve bilhete: A alma de M. de
Voltaire apresenta suas homenagens a M. Frederico Nietzsche.
Lisbeth
chorou, não podendo tolerar a idéia de que seu irmão, germano de coração puro,
se alistasse sob a bandeira de um francês— e de que francês!

Sem
duvida, alguns amigos julgavam de modo diferente. "Seu livro — dizia Jacob
Burckhardt, — aumenta a independência do espírito…" "Só um livro —
escrevia Paulo Rée— me sugeriu tantas idéias como o seu: as conversações de
Goethe com Eckermann." Peter Gast permanecia fiel. Overbeck e sua esposa
continuavam sendo amigos seguros. Isto, porém, não fazia com que Nietzsche
sentisse menos a sua derrota. Humano, demasiado humano não tinha êxito
algum. Assegurava-se que Richard Wagner se regozijava com a escassez da venda,
caçoando com o editor: "Bem vê que só se lê Frederico Nietzsche quando ele defende a nossa causa; do contrário, não!"

Em agosto
de 1878, Humano, demasiado humano foi julgado e condenado no jornal de
Bayreuth: "Todo o professor alemão — escrevia o autor anônimo em quem Nietzsche reconheceu, ou julgou reconhecer Richard Wagner — deve escrever uma vez na
vida um livro que consagre sua celebridade. Mas, como não é dado a todo o mundo
encontrar uma verdade, ele se contenta, para obter o efeito procurado, em provar
a radical insensatez das idéias de um predecessor, e o efeito é tanto maior
quanto mais considerável foi o predecessor que agora se infama."

Esta
maneira baixa de julgar desolou Nietzsche. Ele se propunha então, precisamente
a expor, em tom de serenidade e de respeito, sua atitude com referência aos
antigos mestres, Schopenhauer e Wagner. Pareceu-lhe, porém, que o tempo das
cortesias havia passado, e, voltando às suas notas de Sorrento, começou a
escrever uma continuação aos pensamentos de Humano, demasiado humano.

 

Sua irmã deixara-o só.
Durante o mês de setembro, sua vida, de que conhecemos alguns detalhes,
arrasta-se lânguida e doentia. Evitam-no, temendo sua exaltação. Muitas vezes,
à saída da Universidade, procura encontrar-se com Jacob Burckhardt, mas o sábio
historiador habilmente se esquiva, pois embora estime o seu colega, também o
teme. Em vão procura Nietzsche conseguir novos discípulos. "Dedico-me a
caça de homens — escreve — como um verdadeiro corsário, não para vendê-los como
escravos, mas para levá-los comigo á liberdade."

Esta selvagem
liberdade que ele oferece, não seduz os jovens. Um estudante, Schaffler, narra
suas recordações: "Seguia o curso de Nietzsche, mas conhecia-o muito
pouco. Um dià em que o acaso nos reuniu, companhia até à saída, e andamos
juntos um pedaço. O céu estava cheio de nuvens claras. "Que formosas
nuvens! — exclamou Nietzsche -_ e que rápidas!" "Recordam as nuvens
de Paulo Veronez — disse eu. Sua mão fechou-se de repente em torno do meu
braço. "Ouça — disse ele — daqui a pouco estaremos em férias. Por que não vai comigo ver as nuvens de Veneza?" Surpreendido, balbuciei algumas
palavras vacilantes. Imediatamente, Nietzsche se afastou de mim, com
fisionomia glacial, fechada e como que amortecida. Sem dizer uma palavra, foi
embora, deixando-me só."                                          

A dor de separar-se de
Wagner era sua maior e mais constante mágoa. "Um adeus semelhante —
escreve — que impõe a impossibilidade de todo acordo entre as maneiras de
sentir e pensar, torna a nos colocar em contacto com aquela outra pessoa, e com
todas as nossas forças, nos chocamos contra o muro que o natureza levantou
entre nós e ela."

Em fevereiro de 1879,
Lisbeth escreveu a Cosima Wagner. Teria seu irmão aconselhado isso? Teria conhecimento?
Aprovava? Ignoramos. Cosima respondeu com uma imperiosa e doce firmeza.
"Não me fale de Humano, demasiado humano — diz ela. — A única coisa
de que me quero recordar, ao escrever-lhe, é que seu irmão, em outros tempos,
escreveu para mim algumas das mais belas páginas que conheço… Não lhe guardo
rancor. O sofrimento estraçalhou-o. Perdeu o domínio de si próprio, e isto
explica sua felonia…" E acrescenta, com mais graça do que sentido:
"Quando a dizer: Seus trabalhos atuais não são definitivos, são as etapas de
um espírito que se procura a si mesmo — parece-me quase tão curioso como se
Beethoven tivesse dito: Eis-me aqui em minha terceira maneira. Por outra parte,
o autor não se acha muito convencido de sua obra, e isto se percebe claramente ao
lê-la; toda ela não é mais que um sofisma sem engenho, que penaliza…”.

As Opiniões e
sentenças,
que formavam a continuação de

de Humano, demasiado humano, apareceram em
1879. Mas o escândalo deste segundo volume foi logo atenuado e como que

desviado, pela piedade que Nietzsche inspirava aos que
o ha­viam conhecido anteriormente. Seu estado de saúde se agra­vou. A cabeça, o
estômago e os olhos atormentavam-no sem descanso. Os médicos começavam a
inquietar-se com aquela enfermidade que não podiam debelar, e com aquele
enfermo, para eles incurável. Sua vista, e talvez sua razão, pareciam–lhes em perigo. Nietzsche adivinhava aqueles temores. Viu-»se obrigado a renunciar à sua viagem a
Veneza, onde o cha­mava e esperava Peter Gast, e teve que se encerrar em, seu
quarto de Basiléia, atrás das venezianas fechadas e das cortinas corridas.

Que será dele? Rohde e Gersdorff, apiedados com o nau­frágio
daquele homem de quem tanto haviam esperado, es­crevem a Overbeck:
"Ouvimos dizer que Nietzsche está per­dido. Dê-nos informações."
"Ah! — responde Overbeck — "seu estado é desesperador." O
próprio Richard Wagner re­corda e se emociona. "Posso, por acaso, esquecer
— escreve a Overbeck — este amigo que sé separou de mim tão violen­tamente?
Agora compreendo que não era justo exigir certas atividades convencionais de
uma alma desgarrada por tais pai­xões. É preciso calar e ter pena. Não sei,
porém, absolu­tamente nada de sua vida e de seus padecimentos, e isto me
aflige. Serei indiscreto pedindo-lhe que me dê notícias de nosso amigo?"

Teria Nietzsche visto esta carta? Não parece. Poucos
meses antes escrevera, entre outras notas: "O reconhecimento é uma virtude
burguesa, que não se pode aplicar a um homem como Wagner." Grande teria
sido sua alegria se houvesse podido ler, escrito por seu mestre, esse
pensamento idêntico ao seu: "não seria justo exigir certas atitudes
convencio­nais."

Overbeck e sua esposa assistem ao doente, e escrevem a
sua irmã dizendo-lhe que deve vir para seu lado. Imediata­mente, Lisbeth vai
para Basiléia e mal reconhece o homem encurvado, devastado, envelhecido dez
anos em uns poucos meses, que, com um gesto de mão, lhe agradece por ter che­gado.

Frederico Nietzsche renuncia à sua profissão de
professor, e apresenta sua demissão, que é aceita. Em recompensa de seis
serviços, receberá uma pensão de três mil francos.

Lisbeth leva-o consigo. Acreditando-se perdido, dita
suas últimas vontades: "Faça-me uma promessa, Lisbeth: que so­mente os
meus amigos acompanhem meu corpo; que não haja curiosos, nem indiferentes. Eu
já não me poderei defender; defenda-mo você. Que nenhum sacerdote, que ninguém
pro­nuncie sobre o meu ataúde palavras insinceras. Faça com que me enterrem
como um bom pagão, sem farsa."

Ele deseja os lugares mais desertos e silenciosos, e a
mais absoluta solidão. Lisbeth leva-o aos vales da alta Engadina, muito pouco
freqüentados naquele tempo. Nietzsche desco­bre aquela longínqua Suíça e sente
um bem-estar inesperado. A leveza e a pureza do ar, acalmam-no; a luz, atenuada
pelos montes próximos, é doce aos seus olhos fatigados. Gosta da­queles lagos
esparsos que fazem pensar na Finlândia, e daque­les pequenos povoados de nomes
musicais, e daqueles campo­neses de raça apurada, vestígios, já, da Itália tão
próxima, logo além das geleiras… "Esta natureza me é familiar — escreve
a Rée. — Não me surpreende. É como se já existisse entre nós uma antiga
confiança." Com a sensibilidade de um convalescente, começa a reviver;
Quase não escreve car­tas. Escreve para si mesmo e é na sua obra que devemos
procurar os dados anteriormente proporcionados pela corres­pondência.
Veja-se como descreve a ascensão à Engadina:

Et in Arcadia ego. Por cima das colinas que se as­semelham
a ondas, através dos austeros pinheiros e dos velhos abetos, olhei para uma
lagoa de verdes águas lactescentes. Em torno de mim havia rochas de todas as
formas, e um solo coberto de ervas e flores. Â minha frente movia-se um
rebanho, dispersando-se e concentrando-se. Algumas vacas, agrupadas ao longe,
sob um bosquezinho de pinheiros, destacavam-se à luz da tarde; outras, mais
próximas, pareciam manchadas de sombra. E tudo isto, muito tranqüilo sob a paz
do crepúsculo pró­ximo; eram cinco e meia. O touro do rebanho cami­nhava pelo
riacho branco de espuma; avançava lenta­mente, evitando, às vezes, as águas
escachoantes e outras vezes enfrentando-as. Encontrava naquilo, sem dúvida, uma
selvagem satisfação. Um casal de pele morena, de origem berganesa, apascentava
o rebanho. A rapariga vestia-se quase como um rapaz. À direita, por cima de um
grande cinturão de bosques, fragmentos de rocha e campos de neve. A esquerda,
bem por cima de mim, dois enormes picos gelados, envoltos num véu de clara
névoa. Tudo isso, grande, tranqüilo, luminoso. Esta be­leza, assim
repentinamente, de um golpe de vista, emocio­nava
até estremecer, até
suscitar na alma uma muda oração por aquele instante revelador.
Instintivamente,
como se fosse a coisa mais natural, a gente sentia-se
ten­tada a introduzir heróis, gregos naquele mundo de luz tão pura, de finos
contornos, livre de inquietação, de desejos, de anelos e de nostalgia. Era
preciso sentir co­mo Poussin e seus discípulos; de maneira a lima vez he­róica
e idílica. Assim certos homens têm vivido e sen­tido a vida, demoradamente, em
si mesmos e fora de si, e entre eles distingo a um dos maiores que tenham exis­tido

o inventor de um modo de filosofar heróico e idílico: Epicuro.

 

Frederico Nietzsche permaneceu em Engadina até setem­bro,
pobremente alojado, sobriamente alimentado, privado de amigos, de música e de
livros, mas, no fundo, contente. Seus sofrimentos não eram intoleráveis; podia
trabalhar e tomava nota a lápis em seis cadernos que logo ficaram cheios dos
seus pensamentos sempre céticos, mas hão amargos e como que se­renados e
temperados pela inesperada doçura.

No entanto, não tinha ilusões com respeito a essa
trégua; sabia que era apenas uma trégua, e não baseou nela espe­rança alguma.
Agradava-lhe, não obstante, poder dizer, an-tes de desaparecer, a felicidade
que lhe havia proporcionado a simples contemplação das coisas, da natureza
humana, das montanhas, do céu, e apressava-se em colher esta derradeira
felicidade. Nos primeiros dias de setembro, envia sua obra terminada a Peter
Gast.

Meu querido, meu muito querido amigo — escreve-Ihe
quando você receber estas linhas, o meu manus­crito estará em suas
mãos. Talvez você conheça um pouco do prazer que eu mesmo senti ao pensar na mi­nha
obra, agora terminada. Estou no fim dos meus trin­ta e cinco anos, "a
metade da vida", dizia-se faz uns mil anos; a idade em que Dante teve a sua visão, como nos diz nos primeiros versos do seu poema. Eis-me, pois, na
metade da vida, tão assediado pela morte, que pode me reclamar a cada momento;
minha vida é tal que devo prever uma morte
rápida, num espasmo… E,
assim, sin­to-me semelhante a um homem muito velho; tanto mais que
já fiz a
obra de minha vida. Verti uma gota de bom
azeite, sei-o e isto será
creditado na minha conta. No fundo, experimentei minha maneira de viver; e
muitos experimentá-la-ão depois de mim. Os contínuos e gra­ves sofrimentos não
alteraram, até agora, meu humor. Ao contrário, parece que me sinto mais alegre
e mais benévolo do que jamais o fui. De onde virá esta in­fluência que me
fortifica e melhora? É claro que não vem dos homens, os quais, salvo raras exceções,
"todos se irritaram comigo"
(*) e não sentem escrúpulo algum
em fazer-me saber disso. Leia, meu querido amigo, do principio ao fim este
último manuscrito e veja se desco­bre nele alguma marca de dor ou depressão.
Eu
creio que não, e esta crença me dá a certeza de que deve ha­ver alguma força
oculta nos meus pensamentos* e não a impotência
e lassidão que aqueles
que não me aprovam, querem ver neles.

 

(*) Peter Gast acredita que nesta frase há uma reminiscência
evangélica. As reminiscências das Sagradas Escrituras são freqüentes na língua
e no pensamento de Nietzsche. — (N. do A.).

 

 

Neste momento de sua vida, Nietzsche prepara-se para
morrer. De que morte? Pode-se adivinhar sem muito traba­lho. Esse fim
rápido, em um espasmo,
sofrera-o seu pai em outros tempos, ao morrer louco.
Nietzsche espera-o, e um sentimento de piedade o faz regressar ao lar.
Desligado das obrigações que o retinham em Basiléia, com liberdade de esco­lher
seu refúgio, não dá ouvidos a Peter Gast, que o chama a Veneza. Já não é tempo
para conhecer e amar uma beleza nova. "Não — diz ele. — Apesar de
Overbeck, e apesar de minha irmã, que me incitam a ir ao seu encontro* não
irei. Creio que há certas circunstâncias em que convém a gente aproximar-se de
sua mãe, do lar, das recordações da infância…" E é para Naumburg que
se retira.

Quer levar ali uma vida absolutamente tranqüila,
distraindo-se de seus pensamentos por meio de um trabalho material. Aluga uma
simplíssima dependência numa das torres da anti­ga muralha. Ao pé do velho muro
estende-se um terreno va­go, que ele arrenda para plantar. "Tenho —
escreve ele — dez árvores frutíferas, roseiras, lilases, cravos, morangos,
groselhas e groselhas-bravas. Nos começos do ano próximo terei dez canteiros
de legumes em tratamento."

Estes projetos de doente, porém, falham bem depressa.
O inverno foi rigoroso. Frederico Nietzsche não pode suportar o brilho da neve,
que lhe ofusca os olhos, nem o ar úmido, que o deprime e estraçalha seus
nervos. Numas poucas semanas perde tudo o que ganhara em Engadina.

O Viajante e sua Sombra, cujas provas haviam
sido cor­rigidas por Peter Gast, surge então, e parece ser melhor com­preendido
do que o haviam sido os volumes anteriores. Rohde escreve a Nietzsche uma carta
que lhe causa vivo prazer. Sem dúvida, não mostra nela uma admiração absoluta:
"Essa visão clara, mas jamais emocionada, da humanidade — diz ele — causa
pena a quem o quer bem e em cada palavra ouve o amigo." Em suma, porém,
admira-o:

O que dá a seus leitoresescreve é
coisa que mal suspeitará, pois que você vive em seu próprio espí­rito. Uma voz
como a sua, porém, é coisa que nós ja­mais ouvimos, nem na vida, nem nos
livros. Lendo-o, continuo experimentando o que experimentava junto a você, nos
tempos de nossa camaradagem; sinto-me ele­vado a uma ordem superior e
espiritualmente enobreci­do… A conclusão do seu livro penetra a alma. Você
pode e deve nos dar, depois destas discordantes harmo­nias, acordes mais doces
ainda, e mais sagrados… Adeus, meu querido amigo. É sempre você quem dá, e eu
sem­pre, quem recebe

Nietzsche sente-se feliz: "Obrigado, meu querido
amigo — escreve em 28 de dezembro de 1879 — o seu antigo afeto, selado de novo,
é o bem mais precioso que me trazem estes dias de estréia". Sua resposta, porém,
é breve e duas linhas finais explicam essa brevidade: "Meu estado de saúde
voltou a ser terrível; minhas torturas são atrozes; substineo, abstineo, e
eu mesmo me assombro."

Estas palavras tão fortes, não são exageradas. Sua mãe
e sua irmã, que o viram sofrer, confirmam os dias terríveis que ele atravessa.
Aceita o sofrimento como uma prova, co­mo um exercício espiritual. Compara o
seu destino ao dos homens que foram grandes na dor. Aí está Leopardi; Leopardi,
porém, não fora valente, pois que difamara a vida quando se achava enfermo e —
Nietzsche descobre esta severa verda­de — um enfermo não tem o direito de ser
pessimista. Ai está Cristo; mas o próprio Cristo desfaleceu na cruz: "Meu
Pai, por que me abandonaste?" Frederico Nietzsche não tem Deus, nem pai,
nem crença e nem amigos: negou-se todo o apoio, e, no entanto, não fraqueja.
Qualquer queixa, por fugaz que fosse, seria uma confissão de derrota, e ele
recusa esta confissão. A dor não o abate, mas, ao contrário, o ins­trui e
estimula o seu pensamento.

O espírito preparado para se opor à dor escreve
vê as coisas sob uma nova luz, e o indizível encanto que acompanha
toda luz nova, basta, ás vezes, para vencer a tentação do suicídio e fazer a
vida desejável. Aquele que sofre pensa com desprezo no mundo vago, fraco e
cômodo em que se compraz o homem são; pen­sa com desprezo nas ilusões mais
nobres e mais queri­das em que se deixou prender; este desprezo é o seu gozo, é
o contrapeso que o ajuda a suportar o sofrimen­to físico, contrapeso cuja
necessidade sente então…, Seu orgulho se rebela como jamais
o havia
feito: defende com deleite a vida contra um tirano como o sofrimento, contra
todas as insinuações desse tirano que desejaria obrigar-nos a nos colocarmos
contra a vida. Represen­tar a vida diante desse tirano é uma tarefa de incomparável
sedução
(*).

Frederico Nietzsche acreditava estar muito próximo o
seu fim. Em 14 de janeiro de 1880, desejando dirigir a algum amigo um último
sinal de seus pensamentos escreveu — com que esforço! — à senhorita de
Meysenbug uma carta que é um adeus e um testamento espiritual:

Embora escrever seja um dos frutos que mais proi­bidos
me. são, quero que você receba ainda uma carta minha
você, a quem
quero e venero como a uma irmã. Esta será a última, pois o terrível e quase
incessante mar­tírio de minha vida me dá desejo de morrer. Por al­guns sinais
sei que já está próximo o acesso de febre que me há de salvar. Sofri tanto,
renunciei a tantas coisas, que não existe asceta, seja de que tempo for, a cuja
vida eu não tenha direito de comparar a que tenho levado durante este último
ano. Não obstante, adquiri muitas coisas. Minha alma ganhou em pureza e doçura,
e não precisei, para isso, da religião nem da arte. (Você de­certo observará
que me sinto um tanto orgulhoso: foi no meu estado de total abandono que pude
descobrir, afi­nal, as minhas fontes íntimas de consolo). Creio ter feito a
obra de minha vida, tal como a pode fazer um homem ao qual não se deixou tempo
para isso. Sei, po­rém, que para muitos homens verti uma gota de bom azeite;
que muitos homens foram por mim orientados para uma vida mais elevada, mais
serena e mais lúcida. Dou-lhe este dado suplementar: quando a minha
huma­nidade
tenha deixado de ser, dir-se-á o que eu acabo de lhe escrever. Dor alguma
pôde, nem poderá jamais, in­duzir-me a .dar um falso testemunho sobre a vida
tal
co­mo eu a conheço.

A quem poderia eu dizer todas estas coisas senão a
você? Acredito
não será, porém, falta de modéstia dizê-lo? que
nossos caracteres se assemelham. Por exemplo: ambos somos corajosos e nem a
angústia, nem o desprezo podem nós afastar da rota que reconhe­cemos como boa.
Ambos conhecemos, em nós e ao redor de nós, muitas coisas cujo deslumbrante
resplendor mui­to poucos contemporâneos nossos conseguiram ver.
Es­peramos pela
humanidade e silenciosamente nos ofere­cemos em sacrifício
não ê
certo?

Tem boas notícias dos Wagner? Faz três anos já que
nada sei deles. Também eles me abandonaram. Des­de muito tempo sabia que Wagner
se afastaria de mim, tão depressa como tivesse reconhecido a diferença dos
nossos esforços. Disseram-me que ele escreve contra mim. Que o faça! De um modo
ou de outro, é forçoso que a verdade apareça! Penso nele com agradecimento cons­tante,
pois lhe devo algumas das mais fortes incitações à liberdade espiritual. Você
bem sabe que a senhora Wagner é a mulher mais simpática que já encontrei. Mas
nossas relações terminaram e seguramente não sou homem para reatá-las. É
demasiado tarde. Receba, amiga querida que para mim é uma irmã, as saudações do
jovem velho a quem a vida não foi cruel, por muito que sinta desejo de morrer.

 

(*) "Aurora", cap. 114. Este livro,
publicado em junho de 1881, contém indicações autobiográficas muito seguras pa­ra
a época que estamos estudando. (ST. do Autor)

 

 

Contra a expectativa, viveu. Paulo Rée foi vê-lo e
soube distraí-lo com algumas leituras. O frio, que tanto mal lhe fazia,
atenuara-se, e o degelo derreteu a neve que deslum­brava seus olhos. Peter
Gast, instalado em Veneza, como no ano anterior, escrevia-lhe, chamando-o
incessantemente. Em meados de fevereiro Nietzsche sentiu, com surpresa, que
suas forças despertavam; voltou a sentir seus desejos, suas curiosi­dades e
partiu imediatamente.

Permaneceu um mês em Riva, na margem do lago de
Guarda, de onde suas cartas, mais animadas, levaram certa es­perança aos seus.
Em 13 de março partiu para Veneza. Este dia marca o fim da crise e o começo da
convalescença.

A Itália não lhe agradara ainda. Que regiões conhece­ra
dela? — Os lagos; por sua timidez um tanto pesada, assen­tavam-lhe mal, como
também não lhe agradavam as harmo­nias demasiado doces. — Nápoles e seu golfo;
sentia repul­são pela turba dos napolitanos; o esplendor do espetáculo sem
dúvida conquistara-o, mas não o encantara. Nenhuma inti­midade se estabelecera
entre aquelas belezas deslumbrantes e suas paixões espirituais.

Veneza, ao contrário, seduziu-o desde o primeiro momen­to.
Sem esforço, com um só olhar, encontrou nela o que em outros tempos lhe haviam
dado seus mestres gregos: Homero, Theogonis, Tucídides — a sensação de uma raça
lúcida, que vive sem sonhos nem escrúpulos. Contra os sonhos os escrú­pulos e
os prestígios de uma arte romântica, vem Nietzsche lutando desde quatro anos. A
beleza de Veneza liberta-o. Recorda suas angústias e sorri de si mesmo. Mas
qual o ho­mem que, sofrendo, não acreditou nisso, não teve esse pueril
orgulho?

Quando sobrevém essa primeira aurora de alívio, de
cura
escreve — humilhamos, sem gratidão, o orgulho que antes nos
fizera capazes de suportar a dor; achamo-nos tolos e ingênuos, como se algo de
excepcional nos tivesse acontecido. Olhamos de novo para os homens e para a
natureza com desejo:
as luzes temperadas da vida nos reconfortam e a saúde
recomeça o seu jogo má­gico. Contemplamos este espetáculo como se estivéssemos
transformados, benévolos e fatigados ainda. Neste estado, não se pode ouvir
música sem chorar.

Peter Gast cuidava dele com uma bondade comovente;
acompanhava-o em seus passeios; lia para ele; tocava suas mú­sicas preferidas.
Frederico Nietzsche preferia a todas, naque­le tempo, as músicas de Chopin,
descobrindo em suas rapsó­dias uma audácia e uma franqueza de paixão, que a
arte alemã não produz. Convém, sem dúvida, pensar em Chopin quando se
lêem aquelas últimas palavras: Neste estado não se pode ouvir música sem
chorar.

Peter Gast faz também oficio, de secretário, pois
Nietzsche recobrou seu ardor pelo trabalho, e dita diariamente seus pen­samentos.
Desde o primeiro momento escolhe o título de seu novo livro (ao qual renunciará
em seguida) L’Ombra di Venezia, Não é, em verdade, a presença de Veneza
que co­munica ao seu espírito aquela riqueza, aquela força, aquela sutileza?
Tenta novas investigações. Será verdade, como es­crevera, que um frio cálculo
de interesse determina as ações dos homens? Que um mesquinho desejo de
conservação, de repouso, de comodidade criou esse excesso de beleza de que uma
Veneza é ò testemunho? Veneza é única, mas existe e é preciso explicá-la. Um
prodígio interior deve ser a causa des­te prodígio visível. Quais são, então,
as molas invisíveis que determinam nossos atos? A vida, dizia Schopenhauer, é
mera vontade de viver; todo o ser aspira a perseverar no ser. É dizer
pouco, pensa Nietzsche; a vida aspira constantemente a estender-se, a crescer;
quer, não conservar-se a si mesma, mas aumentar; um princípio de conquista e de
exaltação deve estar ligado à sua essência. Como formular este princípio?
Nietzsche não o sabe ainda, mas tem presente em si a idéia e sente-se agitado
por ela. Sabe que está nas vésperas de uma descoberta, no umbral de um mundo
desconhecido, e es­creve, ou dita a seu amigo:

As ações não são, jamais, o que parecem ser. Cus­tou-nos
muito trabalho aprender que as coisas exterio­res não são tais como nos
aparecem; pois bem
outro tanto nos sucede nó mundo interior. Os atos
são, em realidade, "algo diferente"
não podemos dizer mais
e todos os atos são essencialmente desconhecidos.

Em julho vai experimentar as águas de Marienbad; mora
numa pequena hospedaria situada nos limites dos bosques pe­los quais vaga todo
o dia.

Mergulho e escavo cuidadosamente nas minhas ruínas
morais — escreve a Peter Gast
e me parece que me vou transformando num
ser absolutamente subterrâneo; parece-me, neste momento, haver encontrado uma
galeria, uma saída. Isto me acontecerá cem vezes, e outras tan­tas vezes
ficarei decepcionado

Em setembro, acha-se em Naumburg, aparentemente de
humor alegre e conversador. Sua irmã Lisbeth reconhece em seu rosto aquela
expressão de doçura feliz que denuncia o trabalho interior, a plenitude e o
afluxo das idéias. Em 8 de outubro, temendo a neblina, desce novamente para a Itália,
detendo-se em Stresa, na margem do lago Maior; o clima, porém, não convém
aos seus nervos, e perturba suas meditações.

Experimenta, com espanto, a
tirania das influências exteriores, que o mantêm à sua mercê, e treme indagando
se poderá, com esta vida de constantes sofrimentos, exprimir as inumeráveis
idéias filosóficas e líricas que o assaltam. Pensa que o seu primeiro dever é
conservar a saúde, e parte em direção a Sorrento.

Como Gênova estava em
caminho, detém-se ali, e ime­diatamente se sente à vontade em seu ambiente. O
povo é vi­goroso, frugal, e alegre. A.temperatura, em novembro, quase estivai.
Gênova reúne em si a dupla energia da montanha e do mar. Nietzsche admira seus
palácios maciços, colocados de través nas vielas, monumentos levantados à
própria gló­ria por mercadores corsários, cujos instintos não se deti­nham diante
de escrúpulo algum. Seu espírito visionário evo­ca-os; sente necessidade
daqueles italianos de outros tempos, lúcidos, ávidos, muito pouco cristãos,
mentirosos para os ou­tros, mas francos para consigo mesmos, e jamais corrompi­dos;
sente necessidade deles para reprimir aquele sonho ro­mântico inextinguível
nele. Deseja, como já o desejara Rous­seau, um retorno à natureza. Rousseau,
porém, conhecia uma Europa que ofendia os sentimentos piedosos, a simpatia hu­mana,
a bondade. Nietzsche conhece uma Europa diferente, uma pesada Europa dominada
pelas massas e ofendendo a ou­tros sentimentos; outra, também, é a natureza
oprimida que ele exalta e na qual procura â saúde e o alívio de sua alma.

Deseja instalar-se em Gênova. Depois de algumas tenta­tivas, encontra um domicílio perfeito: uma mansarda com boa
cama, no alto de uma escada de 104 degraus, numa casa que dá para rua tão
inclinada e pedregosa que ninguém passa por ela, e entre cujas pedras cresce a
erva: Salita delle Battistine,.

Organiza uma vida tão
simples como seu domicílio, o que constituía uma de suas numerosas ilusões.
Dizia freqüente­mente a sua mãe: "Como vive a gente do povo? Quisera vi­ver
assim também." Sua mãe ria-se: "Comem batatas e touci­nho e bebem mau
café e álcool…" Nietzsche suspirava: "Ah… estes alemães
—"

Em sua casa genovesa,
habitada por gente pobre, os cos­tumes são outros. Seus vizinhos vivem
sòbriamente. Nietzs­che imita-os e se alimenta pouco; suas idéias se tornam
mais fluidas e mais nítidas. Compra um fogareiro e, ensinado pe­la patroa, ele
próprio prepara o seu risotto, e frita as suas alcachofras. Torna-se
popular na enorme casa. As enxaquecas voltam com freqüência a atacá-lo e
aborrecem-no; seus vizi­nhos, então, entram em seu quarto e se interessam pelo
seu sofrimento. "Não preciso de nada — responde ele com sim­plicidade — sono
contento".
Por causa da vista, à noite per­manece estendido no leito
sem luz alguma. "Faz isso por eco­nomia; — dizem os vizinhos —o professor
alemão não é bastante rico para acender velas." Em vista disso, oferecem-
lhe
luz.

 

Ele sorri, agradece e explica. Chamam-no o santo,
il piccolo santo.
Nietzsche sabe disso e se regozija. "Creio — escreve
— que muitas destas pessoas, com seus costumes sóbrios e ordenados, com sua
doçura e seu sentido de reti­dão, seriam veneradas como santas, se fossem
transportadas à semibarbárie dos séculos VI ao X." Concebe e redige ra­pidamente
uma regra de vida.

Uma independência que não moleste a ninguém; um
orgulho doce, velado, e que, não invejando as honras e as satisfações dos
demais, e abstendo-se de zombarias, não incomode as pessoas..
. Um sono
ligeiro, uns mo­dos livres e pacíficos; ausência de álcool, de amizades ilustres
ou principescas, de mulheres e de jornais, de hon­ras e de sociedade que não
seja a de espíritos superiores, e, à falta destes, de gente humilde (da qual é
tão impos­sível prescindir como da contemplação de uma vegetação sadia
e.poderosa); os pratos mais fáceis de preparar, e, na medida do possível,
preparados por si próprio, ou que apenas tenham necessidade , de preparo.

A saúde era para Frederico Nietzsche um bem frágil, in­cessantemente
conquistado, perdido e reconquistado» e tanto mais precioso por isso mesmo.
Cada dia favorável fazia-o experimentar essa surpresa que traz felicidade aos convalescentes.
Ao saltar da cama, vestia-se, metia em seu embornal um caderno de notas, algum
livro, frutas e pão. Em seguida partia ao acaso pelos caminhos próximos.
"Assim que o sol se levanta — escreve — subo a uma rocha solitária junto
às ondas, e ali me estendo, sob o guarda-sol, imóvel como um lagarto, nada mais
tendo diante de mim que o mar e o puro céu." Permanecia assim largo tempo,
até às horas extremas do crepúsculo, -horas clementes para seus olhos enfermos,
tão freqüentemente privados de luz, para aqueles olhos continua­mente ameaçados
cujas menores alegrias ele saboreia.

Aqui está o mar escreve. Aqui
podemos esque­cer a cidade.
É certo que seus sinos tocam sempre a Ave
Maria, são eles que fazem esse ruído fúnebre e in­sensato, más doce, no momento
em que se cruza o dia com a noite. Um instante mais e tudo fica em silên­cio! O
mar se estende, pálido e brilhante, sem poder falai: O céu brinca com seus
infinitos matizes o seu eterno brinquedo mudo da tarde, sem poder falar. As
rochas e os recifes correm pelo mar como procurando descobrir nele o lugar mais
solitário, sem poder falar. E este enorme mutismo, que de repente
nos
surpreende, é lindo e cruel e nos dilata a alma…

Quantas vezes celebrou ele esta hora em que, segundo
suas palavras, "o mais pobre remador rema com remos de ouro"!

Recolhe, então, os frutos do dia, escreve os
pensamentos que lhe chegaram com a forma e o canto de suas palavras. Con­tinua
as investigações iniciadas em Veneza: Que é a energia humana? Qual é o sentido
dos seus desejos? Como se expli­ca a desordem de sua história, o lamaçal de seus
costumes? Agora, já o sabe: a mesma força ambiciosa e cruel atira o homem
contra o homem e o asceta contra si próprio. "Nietzs­che tem que analisar
e definir esta força para poder, afinal, regê-la. Tal é o problema que se
propõe, e que espera resol­ver algum dia. Tinha prazer em se comparar aos
grandes navegantes, àquele capitão Cook, que navegara, com a sonda na mão,
durante três meses, sobre recifes de coral. Nesse ano de 1881, seu herói era o
genovês Cristóvão Colombo, o qual, quando ; ainda não aparecia terra
alguma reconheceu, sobre a água, ervas levadas dos prados até o mar alto pela
água leitosa e ainda doce de um rio desconhecido.

Onde queremos ir? escreve. — Queremos
fran­quear o oceano? Para onde nos arrasta esta poderosa paixão que prevalece
em nós sobre todas as paixões? Por que este desesperado vôo nessa direção para
o ponto em que, até agora, todos os sóis
declinaram e se extin­guiram? Talvez
se diga também, algum dia, de nós, que com a proa sempre orientada para Oeste,
esperávamos al­cançar uma Índia desconhecida, mas que o nosso desti­no era
fracassar diante do infinito… Para que, meus irmãos? Para quê?

Nietzsche sentia predileção por esta página lírica,
que coloca no fim do seu livro como um hino final. "Que outro livro —.
escreve — conclui com um para quê?

Pelos fins de janeiro termina seu trabalho; mas é
incapaz de copiar novamente o manuscrito. Sua mão está demasiado nervosa e sua
vista muito fatigada. Envia-o, pois, a Peter Gast, Em 13 de março, a cópia está
pronta, e Nietzsche anun­cia-o ao editor:

Querido senhor: aí tem o manuscrito do qual me é
tão penoso separar-me
E, agora, rapidez, rapidez, ra­pidez!
Partirei de Gênova logo que o livro apareça, e “daqui até lá viverei sobre
brasas. Apresse-se e apresse
fo impressor! Não poderá
ele prometer-lhe por escrito que no fim de abril, o mais tardar, terei nas mãos
o livro terminado? Querido senhor Schmeitzner, que cada um de nós faça,
neste momento, o mais que possa. O con­teúdo do meu livro é tão importante! É
para nós uma questão
de honra que meu livro não tenha erro algum e venha
a
o mundo dignamente e sem mancha. Suplico-Ihe que faça isto por mim:
nada de propaganda. Poderia lhe muitas outras coisas, mas o senhor compreenderá
tudo por si mesmo, quando tiver lido o meu livro.

 

O editor leu, compreendeu mal e não manifestou o menor
entusiasmo. Em abril, Nietzsche ainda em Gênova, esperava as provas. Esperara
surpreender os seus amigos com a remes­sa de uma obra inesperada, e a ninguém
dissera coisa alguma, exceção de Peter Gast. Afinal, renuncia ao prazer do
segredo. "Boa nova — escreve a sua irmã — um novo livro, um grosso
volume…! Um livro decisivo, sobre o qual não posso pensar sem uma viva
emoção…" Em maio, reúne-se a Peter Gast, numa vila de Veneto, Rocoaro,
junto aos Alpes. Sua impaciên­cia cresce dia a dia. A demora do seu editor
impedem-no de ventilar as novas idéias que já o acossam.

Aurora — título finalmente escolhido — aparece
no mo­mento mais desfavorável: em julho.

 

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