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Capítulo IV (¹)

SIGNIFICAÇÃO HISTÓRICA E
INTERPRETAÇÃO

REAL DO VERDADEIRO SENTIDO

DAS RELIGIÕES

SOBRE O
VALOR DA HISTÓRIA: O ESPÍRITO COMO CENTRO DA ESFERA INFINITA DO UNIVERSO

Neste dédalo obscuro e incerto da indagação sobre as origens
do homem, não tentarei arriscar-me; a estes
ousados investigadores que se esforçam por
arrancar do passado os seus segredos mais re-motcs, não acompanharei. Não é que
ponha em dúvida a eficácia de seus esforços, ou acredite que daí não se poderá
tirLr nenhuma luz. Não, A história, como diz Buckle, "é uma mina preciosa
e respeitabilíssima de riquezas". É como uma espécie de memória coletiva
que faz de todas as gerações que se sucedem através das idades, um só organismo
no tempo, e é pela história que de modo mais eloquente se afirma a unidade da
espécie humana.

(¹) pp. 72-76

 

Mas
a fonte primordial, o recurso fundamental, neste domínio, recurso a que todos
os outros estão subordinados, é a observação interna, a percepção imediata, cu,
para empregar uma expressão mais precisa e enérgica, a visão interior. E tal é
o método de que, de preferência, procurarei servir-me. Recorrerei, sim, à
história, sempre que se fizer necessário, e sempre que do resultado positivo do
trabalho dos historiadores se possa tirar esclarecimento para a ordem dos fatos
concretos e reais. Mas não será meu obje-tivo esclarecer o passado:
ligar-me-ei antes aos que se propõem a ditar leis ao futuro. Meu ponto de vista
não é o do historiador, mas o do moralista. Ligo-me assim, não à tradição de
Heródoto, mas à de Sócrates; e o princípio do meu método é ainda o preceito
socrático: conhece-te a ti mesmo.

É.
pois, o presente mesmo, o presente vivo e real que principalmente me interessa.
Verdade é que o presente supõe o passado, ao mesmo tempo que envolve o futuro.
O espírito forma assim uma unidade, não somente no espaço, mas igualmente no
tempo, pois tudo o que existe no cosmos infinito interessa a seu conhecimento e
está, de certo modo, subordinado à su?. ativídade, ao mesmo tempo que o
conhecimento mesmo é como uma visão do espírito em duas direções opostas e
ambas ilimitadas: na direção do passado e na direção do futuro. E se o
Universo, como dizia Pascal, "é uma esfera infinita cujo centro está em
toda a parte e a circunferência em parte alguma" é o espírito que
representa o centro dessa esfera. Cada consciência representa, pois, o
centro do universo e deste centro partem raios que envolvem a
totalidade das coisas.

(i) pp. 76/81

 

ATITUDE
REACIONÁRIA DA CIÊNCIA MODERNA COM RELAÇÃO ÀS RELIGIÕES (¹)

Sobre o valor dos historiadores e filósofos que cogitam de
fazer a luz sobre as obscuridades impenetráveis em que se acha envolvido o passado mais remoto do homem,
sobre o valor das suas descobertss e ccnjeturas, não me externarei. Não me
julgo para isto habilitado, nem tenho, a respeito dos fatos de que se ocupam,
convicção feita. Uma coisa, entretanto, parece-me certa, ou pelo menos
extremamente provável: é que uma grande filosofia existiu em épocas
remotíssimas, filosofia que é exatamente uma filosofia do espírito, à qual se
prende a origem das religiões.

"O império da
religião decresce tanto mais".

"O
passado pertence-lhe, o presente resiste-lhe, o futuro recusa-o".

"O futuro pertence à
ciência".

Assim
se manifesta o intransigente professor da Escola de Antropologia de Paris, inflexível
e duro, reacionário e feroz. Também temes aí o tipo perfeito do homem moderno,
impotente e sem fé, miserável e vão; mas arrogante, ameaçador, impassível;
espécie de Prometeu acorrentado, imortal, mas prisioneiro da força: de essência
divina, mas ligado a seu rochedo por correntes de aço, insuperáveis, tremendas:
vencido, aniquilado, abatido, supliciado, mas ameaçando o destino. Assim Lefèvre,
como se estivesse a arquitetar o poema da filosofia do desespero, canta a morte
dos deuses e apregoa o poder soberano do homem. E sem compreender que a morte
tudo destrói e que o destino tudo aniquila, coloca-se, por assim dizer, acima
da morte, e é como se estivesse a delirar na loucura do entusiasmo, que faz a
apologia da ciência. E sem pavor em face do desconhecido, forte, como se já não
fosse acessível ao horror sagrado que assaltava os nossos avós, repete: — A era
das mitologias e das religiões está terminada: os fantasmas do sonho
desaparecem e a luz se faz sobre os mais ocultos mistérios. A ciência matou os
deuses.

E a ciência, entretanto, matou os deuses antigos, mas vai
criando deuses novos, a seu modo: a natureza é um deles, a experiência é outro.

Outro escritor dos nossos dias, Salomon Reinach (…) define
a religião em geral nestes termos: um conjunto de escrúpulos que fazem
obstáculo ao livre exercício de nossas faculdades.
Os escrúpulos a que
estamos sujeitos na convivência social não são todos de ordem religiosa.

O que tudo significa, em última análise, que a religião tem
por fundamento a ignorância. Quanta confusão, quanta desordem nos escritores
mais competentes: quanta anarquia no pensamento moderno!

A CIÊNCIA
DAS RELIGIÕES (¹)

A
ciência das religiões é de criação recente. (…) Mas o número dos autores que
se ocupam da matéria, cresce em proporções extraordinárias em todos os países
cultos, e as obras que a respeito têm sido até agora publicadas, formam já
bibliotecas.

O
erro de todos estes pensadores consiste em fazer da religião uma ciência ou um
sistema do conhecimento, pondo-a em seguida em relação com o conhecimento
científico propriamente dito, para considerá-la por fim como uma falsa ciência
ou como uma falsa interpretação da realidade. Não: a religião não é uma
ciência, não é um sistema de conhecimento, mas um governo. É o governo pela lei
moral, governo real e efetivo, essencialmente distinto do governo pela lei ao
direito, ou do governo pela justiça, mas não menos necessário e eficaz.

A religião, a meu ver, pode ser definida nestes termos: a
mcral organizada. E isto quer dizer: é a sociedae organizada pela íei moral, é
a sociedade governada pela razão.

Sem dúvida a época presente é de crise
religiosa.

Mas a religião não deixou por isto de ser a. maior e a mais
grave preocupação do espírito humano, E agora, mais do que nunca, foi que a
religião se tornou o mais formidável de todos os problemas e a questão das
questões. E — coisa singular! — foi exatamente nesta época em que es sábios
proclamaram a morte das religiões, nesta época de tremenda reação contra toda e
qualquer manifestação do sentimento religioso, — que foi criada a ciência das
religiões, como para dar uma prova descomunal do desvairamento geral e da
confusão dos espíritos. Este fato é altamente significativo e quer dizer que a
questão apenas foi posta e que a solução ainda está por ser dada.

(¹) pp. 81/87 228

RELIGIÃO
E FILOSOFIA (¹)

É
tempo de tirar das reflexões até aqui feitas, especialmente neste, como nos
dois outros anteriores capítulos, as conclusões que importa tomar em
consideração para mais decisiva elucidação dos problemas de cuja solução
cogitamos.

A
religião não é ciência, mas governo. Sobre este ponto, cremos, não poderá haver
dúvida, pois a coisa nos parece claríssima. E ver-se, só por esta conclusão,
que todo o conflito ou antagonismo que se supõe existir entre a ciência e a
religião, é simplesmente o resultado de um equívoco, não sendo permitido
comparar a religião e a ciência como se fossem duas modalidades ou formas
distintas do conhecimento, porque a religião deriva, sim, de conhecimento, mas
é forma, não do conhecimento, mas da ação. Mas esse governo ou ação em que se
resolve a religião, supõe como condição essencial uma intuição da vida e uma
interpretação da realidade, numa palavra, uma concepção do mundo; o que
significa que a religião não é ciência, mas tem por fundamento a ciência; não a
ciência da matéria, destinada a servir como instrumento da ação sobre os
elementos exteriores, ou segundo uma fórmula mais precisa, destinada a
estabelecer o domínio do homem sobre a natureza; mas a ciência do espírito ou a
filosofia moral, destinada a orientar-nos na vida e a estabelecer o domínio do
homem sobre si mesmo.

(1) pp. 87/103

 

À filosofia, como ciência do espírito, compreendendo a
filosofia moral que é exatamente, da filosofia do espírito, a parte mais
importante e o núcleo fundamental, a esta ciência, única no seu género, que
dando-nos, pela visão interior, a interpretação da nossa própria existência,
fornece-nos ao mesmo tempo a indicação para a interpretação da existência
universal; a esta ciência das ciências, a esta ciência suprema que, como
manifestação teórica de nossa atividade cognitiva, representa o mais alto grau
do saber e a vida mesma do espírito, — corresponde, pois, na prática, a
religião. É que essa ciência nos dá uma intuição da vida e do mundo. Deste modo
torna-nos consciente de nossa própria realidade, como da realidade exterior;
orienta-nos na vida; explica-nos o sentido de nossa posição no caos do
universal existência; habilita-nos, em suma, a fazer a dedução da lei a que
devemos obedecer. Ora, a lei é o princípio orgânico da sociedade. Por
conseguinte, feita a dedução da lei, segue-se como consequência o fato da
organização social. Quer dizer: fica estabelecido o
governo moral das sociedades, fica fundada a religião. A religião é, pois, a
própria filosofia, passando da ordem teórica para a ordem prática, saindo, como
doutrina, da consciência do sábio, para dominar como lei ou como fé na
consciência das multidões.

Ora,
é sabido que o homem tem por destino próprio a sociedade, não lhe sendo
possível viver senão na sociedade e com a sociedade; e como a sociedade é um
organismo moral e esse organismo não se compreende sem a religião, e a religião
não pode existir senão como aplicação prática de uma filosofia, — daí resulta
que a filosofia é tão velha quanto o homem e existe desde que existe o homem no
planeta.

E
como começou? Começou certamente desde que apareceu no planeta um ser pensante,
desde que o homem começou a pensar. Também pensar é já filosofar. É possível
que suas primeiras manifestações fossem como que uma revelação subconsciente do
instinto, uma visão de poeta, tomado de terror sagrado em face das maravilhas
do cosmos, obra exclusivamente de artista, na ausência absoluta de conhecimento
cientificamente organizado; um como delírio de alucinado, em face do
desconhecido, sentindo-se um homem de organização superior dominado pelo que se
poderia chamar a vertigem da emoção e lendo, por assim dizer, no fundo da
existência, como se o transportasse à mais longínqua visão do futuro, uma
revelação do alto. Já sabemos que o destino próprio da arte é criar o ideal,
suprindo as imperfeições e deficiências da ciência. Na época primitiva, em que
a inteligência do homem apenas desabrochava, era a emoção estética que devia
prevalecer. Assim as primeiras religiões devem ter sido obra dos primeiros
poetas que decerto concentravam o mais alto grau do saber e toda a ciência. E o
profetismo hebraico deve talvez ainda explicar-se como consequência desse modo
de agir próprio do espírito primitivo e como manifestação do sentimento
estético e deste instinto criador do ideal que é o privilégio do artista.

Não
há erro mais grosseiro do que fazer da religião uma forma inferior do
conhecimento. Em todos os povos, como em todos os momentos da história, a
religião foi e será sempre a mais alta manifestação da intelectualidade: a
religião é o veículo espiritual da sociedade; é o espírito regulando as suas forças,
organizando as suas energias, introduzindo a unidade na multiplicidade; numa
palavra: a religião é o império da razão.

 

A maior parte dos sistemas filosóficos são infundados, são
construções arbitrárias, meras fantasias. São como blocos de neve que passam e
não fecundam a terra. Falta-lhes o verdadeiro elemento de vida para toda a obra
do pensamento: uma convicção soberana e dominadora. Para vencer, para imperar
sobre o povo, isto é, para exercer sua função prática, é necessário que a
filosofia seja dominada por um grande sopro de verdade. É por isto que só uma
grande filosofia, que só as grandes concepções dominadas pelo amor da verdade e
pelo pensamento do bem, poderão transformar-se em religião.

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