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LIVRO II

QUESTÃO FUNDAMENTAL: A "COISA EM
SI" E OS FENÓMENOS

Capítulo I (¹)

NECESSIDADE
DE UMA RIGOROSA DELIMITAÇÃO DO CONCEITO DO ESPÍRITO

Devo agora, antes de passar a outro assunto, esforçar-me por
precisar com a maior segurança possível, o que se deve entender por espírito.
Uma rigorosa delimitação deste conceito é tanto mais necessária quanto é certo
que se trata aqui de um ensaio sobre a filosofia do espírito. E para que se
possa bem compreender o que temos em vista desenvolver e de que natureza são as
conclusões que propomos, indispensável é que, antes de tudo, seja esclarecido
este ponto: que é o espírito? É certo que neste volume não poderemos entrar em
exame detalhado dos fatos de caráter mental ou espiritual. Limitar-nos-emos aqui
apenas aos dados gerais da filosofia do espírito. O estudo minucioso dos fatos
ficará reservado para outro trabalho. Mas em todo o caso é da maior
conveniência que fique desde logo determinado o conceito mesmo do espírito,
pelo menos no sentido em que compreendemos, que é aliás o sentido natural e
empírico. . . Fica, pois, entendido que quando falamos de espírito, dever-se-á
subentender que se trata unicamente do espírito de que podemos ter
conhecimento, direta ou indiretamente, pelas forças mesmas de nossa atividade
cognitiva, isto é, do espírito tal como reside em nós, manifestando-se
como consciência e como percepção, como inteligência e como vontade, da energia
de que somos dotados, capaz de sentir e pensar, de querer e agir.

(i) pp. 107-108

 

Mas
para dar uma ideia mais precisa e uma compreensão mais segura do modo por que
entendemos o fato, o meio mais eficaz parece-nos consistir no seguinte: em
submeter a exame essa obscura questão da coisa em si e dos
fenómenos; questão que se tornou desde Kant, ou melhor, desde Hume, um dos
pontos mais complicados e incertos da filosofia moderna.

Que
relação tem, porém, com essa questão, a noção do espírito? É o que veremos mais
tarde. Por enquanto basta chamar a atenção para a preponderância extraordinária
que foi dada à noçãc mesma de fenômeno entre os filósofos
contemporâneos.

A
QUESTÃO DA "COISA EM SI" E DOS FENÓMENOS EM SEU DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO (¹)

Já fiz sentir anteriormente que todo o movimento intelectual
hodierno, pelo menos, deste movimento que se afirma vigorosamente como se
estivesse destinado a vencer e a dominar, orientado na direção da psicologia ou
da filosofia do espírito, — deriva de Locke. E é também de Locke que deriva a
distinção que cada vez se tem tornado decisivo no pensamento contemporâneo
entre a coisa em si e os fenómenos. É verdade que Locke não cogitou
propriamente dessa questão, e a noção de uma coisa em si só passou a ser
considerada como um conceito filosófico e foi objeto de sérias investigações
depois de Kant. Mas a distinção feita por Locke entre as qualidades primárias e
as qualidades segundas da matéria prende-se já ao assunto.

A
QUESTÃO DA "COISA EM SI" E DOS FENÓMENOS NA FILOSOFIA CRÍTICA »

A conclusão geral de toda a obra de Kant é ainda o mesmo
princípio já firmado por Hume: que só podemos conhecer o que impressiona a
nossa sensibilidade. Isto quer dizer: o que conhecemos resolve-se sempre em
impressões sensíveis. E como são as impressões sensíveis, no sistema de Hume,
como no de Kant, que constituem o que chamamos fenómenos, resuRa daí que todo o
nosso conhecimento é limitado aos fenómenos e não pode ir além do mundo dos
fenómenos.

(¹) pp. 109

(2)
pp. 112

Torna-se assim
evidente que "a coisa em si", devendo compreender-se como o que é
(substância), em distinção do que aparece (fenómeno), é um princípio superior
ou estranho à fenomenalidade, e, como tal, é absolutamente inacessível ao nosso
conhecimento e só se pode admitir como conceito negativo. É a negação
mesma de todo o conhecimento. É o que resulta dos dados gerais da crítica. E
nisto Ksnt nada acrescentou ao que fora já fixado por Hurae. Em que consiste,
pois, a sua obra própria? Neste fato que, a ser verdadeiro, seria realmente
decisivo: que Kant, pela crítica da razão, pretende ter dado, do valor
negativo da "coisa em si" quanto à possibilidade de seu conhecimento,
uma demonstração irrefutável, com a sua teoria do caráter puramente ideal e
subjetivo das formas da sensibilidade, como das categorias do entendimento.

A
negação do conhecimento da "coisa em si" resulta, pois-, como
consequência inevitável, uma vez firmadas as primeiras linhas da Estética
transcendental.
Mas essa negação é ainda corroborada pela Analítica
transcendental,
uma vez que as categorias do entendimento que são, como se
sabe, estabelecidas por Kant, em número de doze, correspondendo três categorias
a cada uma das formas puras do juízo — afirmação, negação, limitação
(qualidade); unidade, pluralidade, totalidade (quantidade); possibilidade,
realidade, necessidade (modalidade); substancialidade, causalidade,
reciprocidade (relação) — todas estas categorias, na sua totalidade ou com as
reduções por que tiveram de passar nos continuadores do sistema, — são, nas mesmas
condições que as formas puras da sensibilidade, nas mesmas condições que o
espaço e o tempo, igualmente ideais e subjetivas.

A "COISA EM SI" E A METAFÍSICA (¹)

A
metafísica, no sentido primitivo, tradicional da palavra, é a ciência do ser
enquanto ser. Isto equivale a dizer que é a ciência da "coisa em si",
pois uma coisa corresponde a outra. Tal ciência fica em absoluto excluída, uma
vez que a "coisa em si" não pode ser objeto do conhecimento.
Nenhuma metafísica, nenhum dogmatismo é, por conseguinte, possível, depois da
crítica. e a filosofia só se poderá compreender, como crítica da razão, como
análise da experiência e determinação dos limites do conhecimento. É a que
deverá ficar reduzida, segundo Kant, a metafísica do futuro.

(¹) p. 117

 

AS
EVENTUALIDADES DA "COISA EM SI" NA PRÓPRIA FILOSOFIA DE KANT (¹)

Em verdade, o criticismo, mesmo nos termos em que fora
fundado por Kant, encerrava elementos que autorizavam a interpretação da "coisa
em si", já como espírito, já como matéria; o que quer dizer que encerrava
em germe, por um lado o idealismo, e por outro lado o realismo. E foi assim que
os sucessores de Kant, pretendendo, aliás, cada um, por seu lado, ser o
legítimo intérprete do verdadeiro espírito do criticismo, terminaram
restabelecendo o dogmatismo. E o criticismo perdendo o seu caráter negativo,
transformou-se em uma nova metafísica: a princípio na direção idealista
(Fichte, Schelling, Hegel); depois na direção realista (Fries, Herbart,
Benecke); e por fim na direção monista (Schopenhauer, Noiré, Paulsen). E foi
esta última direção que veio a prevalecer, e nesta o pensamento dominador é o
de Schopenhauer que consiste na interpretação da "coisa em si" como
vontade.

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