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Capítulo IV

VISTA RETROSPECTIVA:
EVOLUÇÕES DO

CONCEITO DA VONTADE — DE SCHOPENHAUER A BERGSON

SOBRE
O VALOR DA HISTÓRIA NO TRABALHO DA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA (2)

É tempo de concluir esta trabalhosa análise. Trabalhosa, é
bem certo; mas necessária, pois é aí que se acha a questão fundamental da
filosofia do espírito. Vê-se também, pela luz que nos vem desta análise, quanto é valiosa a
investigação histórica para elucidação dos problemas filosóficos. É que a
filosofia é, não resultado do esforço de um pensador isolado; mas obra comum da
humanidade, produto tradicional da colaboração instintiva e natural dos maiores
pensadores, em todos os países e em todas as épocas, agindo de comum acordo, e
prestando-se mútuo socorro, através da sucessão das idades. Deste modo, nada é
perdido, e não há pensador que não leve a sua pequena pedra para a construção
do monumento comum. E se a verdade é o objetivo de todos, cada um concorre por
seu esforço, para desbravar o caminho, senão descobrindo a verdade, pelo menos
desfazendo dúvidas e dando combate a preconceitos e erros. É como uma
exploração em terra fecunda, mas de difícil acesso. O explorador, não raro,
perde a di-reção do tesouro que se oculta na rocha. O veio de ouro fino lhe
escapa. Torna-se então necessário voltar ao ponto de partida, para tomar uma
orientação mais segura. É assim na obra do pensamento, onde, também,
frequentemente, para vencer as dificuldades presentes, o mais seguro é
consultar o passado.

E quantas vezes realmente não vem do passado mais remoto a
centelha que nos inflama a alma, deixando perceber num fragmento de frase, num
pensamento mal definido, a revelação de estranhas verdades, clarão imprevisto a
iluminar as trevas da consciência, relâmpago que nos orienta, fazendo-nos
voltar ao caminho perdido na escuridão da noite impenetrável?. . . Nada é,
pois, perdido na obra do pensamento, e no passado, como no presente, o ideal é
um só e o mesmo para todos, entre os que trabalham pelo desenvolvimento do
espírito. É certo que as opiniões são inúmeras, e os sistemas a tal ponto se
multiplicam, que chega a se tornar difícil senão impossível, já não digno
realizar, porém, até mesmo imaginar como possível um acordo definitivo entre as
consciências, de modo a se salvar a verdade.

(1) pp. 119-120

(2) pp. 235-238

 

Mas a variedade dos sistemas explica-se pela variedade mesma
de aspectos com que se nos representa a realidade, e também pela fecundidade do
espírito que dispõe de recursos incalculáveis. Não há, pois, razão para
desanimar pela multiplicidade de ideias, como pela variedade dos sistemas: uma
e outra coisa, pelo contrário, depõe em favor da fecundidade do espírito. É que
o objeto do conhecimento a todo o momento muda de fisionomia, e deste modo é
sob inúmeras faces que se apresenta; e o espírito, por seu lado, dispõe de
inúmeros aparelhos lógicos para apreendê-lo em suas contínuas mutações e sob
seus diferentes aspectos. E qualquer ideia que seja de boa fé concebida e com
clareza apresentada, merece ser discutida; e cada ideia indica, pelo menos, um
certo ponto de vista e uma orientação particular; e cada sistema encerra a sua
parcela de verdade.

É
por isto que não se compreende uma filosofia bem orientada e segura, senão em
ligação imediata com a história da filosofia. A história é como o laboratório
próprio da ciência do espírito, — espécie de lógica concreta e viva, em que o
sujeito e o objeto do conhecimento se confundem. É como se a elaboração do
saber se objetivasse em fatos, confundindo-se com a sucessão mesma dos
pensadores e com o desenrolar dos sistemas: o que prova que há perfeita
solidariedade na obra dos pensadores, não só entre todos os povos, como através
de todas as épocas. E por maiores e mais radicais que nos pareçam as
divergências com que se combatem as diferentes escolas, é certo que obedecem à
mesma inspiração comum, e no fundo todas as correntes do espírito unificam-se
no pensamento da verdade. As mesmas questões renascem, os mesmos problemas se
agitam em todas as épocas, e embora se apresentem com seus caracteres próprios
e sob aspecto novo, têm sempre a mesma significação fundamental. É preciso
interrogar o passado, é preciso considerar as mutações por que vão passando as
ideias. A obra do pensamento vem de longe e tem raízes profundas. É como uma
árvore a cuja sombra se abriga a humanidade inteira; mas também, por isto
mesmo, precisa de continuamente crescer e desenvolver-se, e não o poderá fazer
senão pela colaboração de todos os espíritos. É também pela consolidação de
inúmeras correntes históricas. É o que dispensa qualquer análise. E uma
filosofia que não tivesse nenhuma ligação com o passado, se isto fosse
concebível, seria artificial e falsa, planta sem raízes no solo, ou sem meios
para receber o influxo da luz: fantasmagoria inexplicável que nenhuma influência
poderia exercer e que até nem poderia ser compreendida. A filosofia é uma
energia em evolução, um desenvolvimento histórico. Deste modo só se define e
precisa, só pode se impor e exercer ação viva e eficaz, quando verdadeiramente
consciente do seu papel e destino, e por conseguinte, quando esclarecida pela
luz da história. Também, toda a grande filosofia vem sempre como o resultado
final de um desenvolvimento lógico, como a consolidação de uma tradição
particular de pensadores que em geral tem suas raízes conhecidas ou ocultas no
mais remoto passado.

A
"COISA EM SI" OU A EXISTÊNCIA VERDADEIRA NO HOMEM (¹)

 

Em que consiste, para cada um de
nós, existir? Consistirá simplesmente no fato de ter um corpo e ocupar um
lugar no espaço? Se assim fosse, em nada se distinguiria nossa existência da de
qualquer outro corpo, da de uma pedra, por exemplo, por que a pedra também tem
um corpo e como corpo também ocupa um lugar no espaço. Mas ninguém dirá que
nossa existência se confunde com a da pedra. Por que? Simplesmente por isto:
porque a pedra não sente, porque a pedra não é capaz de pensar. Logo, o que
constitui nossa existência não é o fato de possuir, como a pedra, um corpo, nem
tampouco de ocupar, como a pedra, um lugar no espaço. A ser assim, tudo se
explicaria, no que nos respeita, pela força e pela matéria. Mas há, certamente,
em nós alguma coisa que é superior à força, alguma coisa que a matéria não
explica. É esse princípio maravilhoso que levava Pascal a dizer: "O homem
é apenas um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Um
vapor, uma gota d’água, basta para matá-lo. Mas quando o Universo o esmagasse,
o homem, ainda assim, seria mais nobre do que aquilo que o mata, porque sabe
que morre, ao passo que o Universo nada sabe da vantagem que tem sobre o
homem". Pascal conclui daí que toda a nossa dignidade consiste no
pensamento. Mas não basta isto: seria necessário acrescentar que é o pensamento
mesmo que constitui toda a nossa existência, e se somos homens, é porque somes
seres pensantes. E em verdade para todo o homem cessar de pensar, é cessar de
existir. E o homem, efetivamente, cessa de existir desde que se torna incapaz
de sentir e de pensar. Cortai a qualquer um os braços e as pernas, mutilai-o
por todas as formas, deixai-o reduzido apenas ao tronco e à cabeça. Enquanto a
vida não se lhe tornar impossível e ele for capaz de sentir, pensar e querer,
não deixará de ser homem. Seu corpo poderá ficar reduzido a um resto disforme.
Mas ele nem por isto ficará diminuído como homem: o que significa que não
ficará diminuído em sua existência verdadeira, isto é, em sua existência como
espírito. E isto prova que o homem como espírito, é indivisível. E assim todo o
ser, assim toda a realidade. Ninguém, porém, dirá que o homem continua a
existir no cadáver, se bem que o corpo esteja ainda completo. Por que? Porque
aí já não existe o princípio pensante. O cadáver, não há dúvida, infunde-nos
respeito, talvez mais do que o próprio ser vivo, mas isto unicamente pelo
mistério que encerra, ou porque representa a ultima fase de um drama
de que veio a ser exatamente o desenlace trágico, fatal. Mas todcs sabem que
resta no cadáver apenas uma matéria informe que breve se desfará em poeira. E admitindo-se que consigamos fazer com que persista, dando-lhe por algum artifício
qualquer, a resistência da pedra, ainda assim o cadáver jamais será um homem:
será apenas uma estátua — matéria mcrta, agregado heterogéneo de elementos
estranhos uns aos outros, sem coesão interna, sem calor e sem vida.

 

(1) pp. 322/324

 

O pensamento, a energia psíquica, ou, numa palavra, o
espírito — eis, pois, a "coisa em si" ou o ser verdadeiro do homem; e
o corpo ou o organismo humano não é senão a modalidade acidental ou a aparência
exterior dessa energia mesma; ou ainda, como pretende Bergson, um simples
instrumento de que o espírito se serve para agir.

A
"COISA EM SI" NO ANIMAL E NA PLANTA (¹)

Eu penso — eis para mim a primeira verdade, a verdade
fundamental. E esta verdade é de evidência irresistível e não pode ser posta em
dúvida, porque quando duvido, estou pensando, e posso assim duvidar de tudo,
menos de meu pensamento. Não se deve, porem, dizer como Descartes: eu penso,
logo existo — cogito, ergo sum. Deve-se ao contrário dizer: eu penso,
logo existe meu pensamento. E se existo, é porque sou capaz de pensar, e minha
existência não consiste em outra coisa, senão em meu pensamento. E se me tornar
incapaz de pensar, perdendo totalmente a consciência, cessarei de existir. E se
conheço alguma coisa de mim mesmo e do mundo, é somente pelo que sinto em minha
consciência.

Eu
sou uma consciência, eu sou um ser pensante, eu sou um espírito — eis, pois,
para mim, em que consiste toda a minha existência. E isto sei porque sinto; logo
por uma espécie de visão interna, por observação interior, ou melhor, por
introspecção direta: o que só é possível, tratando-se de minha própria
consciência. Há, porém, outros homens, seres idênticos a mim, e também animais
dotados de conformação análoga à minha, dispondo dos mesmos sentidos, vivendo
como eu vivo, passando por fases análogas de desenvolvimento, crescendo,
sofrendo e morrendo. Como, porém, poderei penetrar a essência íntima dos outros
homens e também a dos animais?

(1) pp. 324/326

 

Quanto aos outros homens é certo
que com eles me comunico de inúmeros modos, que penso e transmito-lhes o meu
pensamento, que a eles me associo nas minhas obras, nas minhas aspirações, nos
meus trabalhos. E sei assim que são como eu consciências que são como eu seres
pensantes, e que é só como seres pensantes que de fato existem, sendo que, se
cessarem de pensar, cessarão de existir. Isto, porém, conheço somente porque
observando os seus movimentes, vejo que só se podem explicar como estando em
correspondência necessária com sentimentos e ideias análogas às minhas. É o que
eu chamo introspecção indireta. E significa isso que tratando-se dos outros
homens, só os posso apreciar e observar através do que se passa na minha
própria consciência.

Essa
atividade interna que se manifesta no animal é da mesma natureza da nossa e é
aí que está a "coisa em si" ou o ser verdadeiro do animal. Por onde
se vê que o animal, em si mesmo, é também, embora em condições sem dúvida
inferiores ao homem, uma modalidade do espírito.

A ALMA E
O CORPO (¹)

Os
psicólogos modernos, em particular, os psicólogos da escola experimental, fazem
desta questão da alma uma questão de pura fisiologia, e é assim pelo exame
átomo-fisiológico e pela análise histológica do cérebro e do sistema nervoso
que procuram descobrir a alma. Servem-se para isto de toda a sorte de
instrumentos e de máquinas delicadíssimas. E como decompondo o organismo e
submetendo-o à prova das mais engenhosas investigações, nenhuma atividade
interna, de caráter subjetivo, se faz visível à luz dos aparelhos, concluem daí
que não existe alma, e é, deste modo, pela atividade mesma do corpo que
pretendem explicar a energia psíquica .

(i) pp. 339/345

 

Eu adoto outro método, parecendo-me que para descobrir a
alma, o único meio eficaz consiste em interrogar a, consciência. Esta é
propriamente a energia interna, a existência subjetiva, e como tal é o símbolo
vivo da existência verdadeira. Procurar fora da consciência a alma, é negá-la,
e em verdade a alma só pede ser estudada,
procurando-se ler no fundo da consciência. Interrogue, pois, cada um, a própria
consciência.

A
alma é, pois, o ser verdadeiro do homem, como de todo o organismo, e se bem que
seja uma energia puramente interna, inacessível a todo e qualquer processo de
observação exterior, todavia é sempre ativa e em tudo se mostra presente na
vida do organismo, fazendo-se de certo modo visível, senão em si mesma, pelo
menos em suas operações, como nos movimentos exteriores que determina.

Eis aí, pois, a solução desse monstruoso problema da
distinção entre o corpo e a alma — problema que tem sido, através de todos os
tempos, o terror e o desespero dos filósofos: a alma do ser vivo, de todo o
organismo, como de todo o sistema natural, é uma ideia divina, em analogia com
a concepção ou ideia humana que dá origem às produções artísticas. E nisto
claramente se vê a distinção entre o pensamento de Deus e o do homem. Ê que no
homem, por assim dizer, o pensamento é morto, pois, nada produz objetivamente
real, e apenas reflete passivamente a imagem das coisas. Em Deus, pelo
contrário, o pensamento é vivo. O que significa: é princípio de criação, de tal
modo que em Deus pensar é criar. Também o que torna necessária a ideia de Deus,
é exatamente o fato de que o mundo é uma criação contínua, e não se compreende
criação sem um criador.

Dir-se-á, porém; mas o homem não será também criador, a seu
medo? Sim: nós somos também, em certo sentido, criadores. É o que devemos
reconhecer, uma vez que somos capazes de pensar, pois pensar é arquitetar
ideias, logo criar. Mas, pensando, nós apenas criamos abstrações e fantasmas;
Deus, pensando, cria consciências e corpos, forças e movimentos, cria todes os
fatos da natureza. O cosmos, portanto, com todos os seus mundos e com todos os
seus movimentos, o espaço e suas constelações, tudo isto é Deus pensando. Deus
pensa e a substância cósmica, em todas as suas modalidades, só por ação do
pensamento divino, logo se desenrola no espaço. As forças naturais são então os
processos mesmos de que Deus se serve para pensar, as categorias do supremo
Intelecto. E eu digo, em conclusão, e nisto consiste a minha concepção funde
mental: o mundo é uma atividade intelectual, pois é Deus pensando, e nós,
homens, como elementos que somos do mecanismo do mundo, fazemos também parte do
pensamento de Deus, e somos, por conseguinte, no mais rigoroso sentido da
palavra, ideias divinas.

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