A psicologia evolutiva






A psicologia evolutiva




Ricardo Ernesto Rose Jornalista e licenciado em filosofia



“Se acreditamos com tanta ingenuidade nas idéias é porque


esquecemos que foram concebidas por mamíferos.”





CIORAN, E. M., Silogismos da Amargura


Uma das grandes dificuldades apontada por diversos autores na psicologia é a construção de uma história desta ciência. A maneira mais simples consiste em descrevê-la em uma seqüência cronologicamente ordenada – porém não logicamente correta – no que se refere à análise dos problemas e tentativas de soluções. A perspectiva mais coerente focaria as questões isoladas, seguida das análises lógica e cronologicamente ordenadas das soluções que lhe foram propostas.



Usualmente, divide-se a história da psicologia em dois períodos: o filosófico-especulativo e o científico. A primeira fase tem suas origens no pensamento grego, e se estende até o final do século XIX e início do século XX. Neste primeiro período incluem-se todas as contribuições – notadamente no campo da filosofia – desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Locke, Hume e outros. Ainda na segunda metade do século XIX surgem os primeiros avanços no estudo do sistema nervoso e ocorre a introdução de práticas experimentais, com o alemão Wilhelm Wundt (1832-1920). É por esta época que se produzem os primeiros trabalhos de envergadura de pesquisa experimental sobre aprendizagem, com Ebbinghaus, no domínio da memória e Thorndike, em torno da formação de hábitos, com a utilização de animais. A este último deve-se a transposição das idéias de Darwin para o campo da aprendizagem.



A corrente psicológica inaugurada por Thorndike foi bastante influenciada pelo filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910), também o mais importante representante da corrente filosófica do pragmatismo. Esta linha de pensamento dá grande valor à interação da teoria com a práxis. Segundo o próprio James, “teorias não são mais respostas para charadas, respostas com as quais podemos nos satisfazer; teorias transformam-se sobretudo em ferramentas” (James, 1994, pág. 23 e 24 – tradução nossa). William James, além de grande filósofo, é considerado por muitos o pai da psicologia americana. Em sua obra Principles of Psychology (Princípios de Psicologia), afirma que a mente não poderia aprender a menos que tivesse rudimentos de conhecimento inato. O psicólogo estava convencido de que os seres humanos dispunham de tendências inatas, que não eram provenientes da experiência, mas eram herdadas, tendo se originado através do processo da seleção natural. Na mesma obra, James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos do que outros animais, e não menos.



As idéias de William James, que contribuíram para a criação da psicologia funcionalista e influenciaram outros autores, foram aos poucos perdendo o interesse do mundo acadêmico. O funcionalismo foi eclipsado por outras escolas psicologia, como a escola behaviorista ou comportamentalista. Todavia, o princípio do funcionalismo ressurgiu parcialmente em 1958, quando o lingüista Noam Chomsky retomou a idéia dos “rudimentos de conceitos inatos”, defendido por James anteriormente, e que Chomsky chamava agora de “gramática profunda”. Nesta teoria, o lingüista afirma que era impossível que uma criança – dado o pouco tempo de vida e a complexidade do arranjo – aprendesse as regras inatas na linguagem, como defendido pelo behaviorismo. Chomsky apresentou exemplos onde criticava a posição comportamentalista e tentava provar que a mente da criança deveria ter as regras inatas, através das quais o vocabulário da linguagem é fixado.



O desenvolvimento conjunto de várias ciências como a biologia, a genética, a neurologia, a antropologia, a paleontologia e a psicologia, permitiu que nos últimos trinta anos se reunisse um número cada vez maior de informações, que propiciaram o ressurgimento do funcionalismo, agora sob novas roupagens. O primeiro indício deste reaparecimento desta corrente de pensamento psicológico foi a publicação do livro Sociobiology: The New Synthesis, do biólogo Edward O. Wilson, que causou grande impacto no mundo acadêmico quando surgiu. A obra, interpretada à época tendenciosamente por vários autores e universidade americanas, acabou gerando forte oposição e foi acusada de defender o darwinismo social. O psicólogo americano Stephen Pinker, referindo-se a Wilson em seu livro Tábula Rasa, defende-o das acusações e resume sua proposta da seguinte maneira: “(Wilson) analisa princípios sobre evolução da comunicação, altruísmo, agressão, sexo e criação de prole e os aplica aos principais grupos taxonômicos dos animais sociais como insetos, peixes e aves. O capítulo 27 faz o mesmo para o Homo Sapiens, tratando nossa espécie como mais um ramo do reino animal. Inclui um exame da literatura sobre os universais e variação de sociedades, uma discussão sobre linguagem e os seus efeitos sobre a cultura e a hipótese de que alguns universais (incluindo o senso moral) podem provir de uma natureza humana moldada pela seleção natural. Wilson manifestou a esperança de que sua idéia pudesse ligar a biologia às ciências sociais e à filosofia…” (Steven Pinker, 2004, pág.157).



A partir da década de 1990, dois acadêmicos de Harvard, John Tooby e Leda Cosmides retomaram muitos pontos defendidos pela sociobiologia e criaram a psicologia evolutiva. O zoólogo inglês Matt Ridley define esta corrente psicológica da seguinte maneira: “Foi uma tentativa de fundir o melhor do nativismo (funcionalismo) de Chomsky – a idéia de que a mente não pode aprender a não ser que tenha rudimentos de conhecimento inato – com o melhor do selecionismo da sociobiologia: a forma de compreender uma parte da mente é entender o que a seleção natural planejou que ela fizesse.” (Ridley, 2003, pág. 308).



Para se compreender a evolução da corrente psicológica do funcionalismo, desde os tempos de William James até a psicologia evolutiva, é necessário entender a evolução do darwinismo ao longo dos últimos 150 anos – já que este influenciou bastante esta psicologia. Segundo um dos maiores biólogos do século XX, Ernst Mayr, o darwinismo teve seis fases, cada uma agregando mais dados e aprofundando as bases da teoria da evolução, cobrindo o período de 1859 até por volta do ano 2000. Eliminando falsas interpretações como o lamarckismo (para o qual a evolução se dá por transmissão de características adquiridas); o saltacionismo (no qual a evolução acontece “aos saltos”, por mudanças abruptas) e a ortogênese (segundo a qual a evolução teria uma meta, seria teleológica) e incorporando a genética e a biologia molecular, a teoria da evolução é hoje tão bem comprovada quantas outras teorias no ramo da física.



Segundo escrevem Leda Cosmides e John Tooby em seu estudo Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia evolutiva: um guia) “o objetivo de estudo da psicologia evolutiva é descobrir e entender o projeto da mente humana. A psicologia evolutiva é uma abordagem da psicologia, na qual conhecimentos e princípios da biologia evolucionista são colocados em uso na pesquisa da estrutura da mente humana.” (Cosmides, Tooby, 2007, pág. 1 – tradução nossa). Baseada na teoria da evolução, a psicologia evolutiva encara a mente como um conjunto de “máquinas de processamento de informações”, projetadas pela seleção natural para resolver problemas de adaptação, enfrentados por nossos ancestrais caçadorescoletores. Retomando a afirmação já feita por William James, no final do século XIX, os autores dizem que tendemos a considerar o ser humano como uma espécie que transcendeu ou sublimou (para usar uma expressão cara a Sigmund Freud) seus instintos, substituindo-os em grande parte pela racionalidade. Todavia, se observarmos todas as coisas que automaticamente fazemos com nosso cérebro, como olhar, falar, gostar de alguém, devolver um favor, ter medo de doenças, apaixonar-se, iniciar um ataque, deslocar-se na paisagem, e uma gama de outras coisas, percebemos que estas ações só são possíveis porque há um vasto e heterogêneo sistema computacional, ajudando e regulando estas atividades. Este sistema trabalha tão bem que nem percebemos que existe.



Entre filósofos e cientistas, antes e depois de Darwin, sempre foi senso comum que a mente humana era uma folha em branco, uma “tabula rasa”, virtualmente sem nenhum conteúdo. Tomás de Aquino já escrevia que “não há nada no intelecto que não estivesse antes nos sentidos”, e nisso foi seguido por John Locke, o pai do empirismo inglês, que entre outros influenciou a filosofia de Rousseau (“o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe”) e todo o pensamento marxista além do behaviorismo. De acordo com esta corrente de pensamento, todo conteúdo da mente humana tem origem “externa”; a arquitetura mental consiste de mecanismos independentes, classificados sob nomes como “aprendizado”, “indução”, “inteligência”, “imitação”, “racionalidade” ou “cultura”. Tais mecanismos mentais não possuem estruturas de processamento, o que implica que tudo o que pensamos e sentimos vem do exterior e do mundo social.



A psicologia evolutiva, por outro lado, afirma que toda a mente humana tem uma estrutura de circuitos especializados, propiciando estruturas universais de sentido, que nos permitem entender as ações e as intenções dos outros. Steven Mithen em seu livro A pré-história da mente, descreve a psicologia evolutiva da seguinte maneira: “…Cosmides e Tooby tratam a mente como tratamos qualquer órgão do corpo – é um mecanismo evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas por nossa espécie durante a evolução.” (…) “como conseqüência disso, Cosmides e Tooby argumentam que a mente é um canivete suíço com um grande número de lâminas altamente especializadas”. (Steven Mithen, 2002, pág. 68).



A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1) Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; 3) Como os programas de processamento de informações do cérebro geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um ramo da biologia, várias ferramentas podem ser aplicadas à psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como métodos pela psicologia evolutiva, são:



1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como um computador. Seus circuitos são projetados para gerar comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua função é processar informações, ou seja, é um computador feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura, neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira altamente organizada e são por sua vez conectados aos circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores sensórios são conectados a neurônios, que transmitem informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são projetados para gerar movimento, respondendo às informações do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”, é gerar comportamento que seja apropriado às circunstâncias encontradas pelo restante do corpo no ambiente.



2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela seleção natural, para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive: o que come, de quem é presa, com quem se acasala, com quem se associa, como se comunica, e assim por diante.



3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a maior parte do que ocorre no cérebro permanece desconhecido. Como resultado, nossa experiência consciente pode nos iludir e fazer-nos pensar que a estrutura da mente é mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que experimentamos como fáceis de resolver são difíceis – requerem um circuito neural bastante complexo. A complexidade do funcionamento da mente humana é muito grande. Podemos apresentar grandes generalizações, que todavia não explicam como a estrutura efetivamente funciona.



4º Princípio: Diferentes circuitos neurais são especializações para resolverem diferentes problemas de adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo mecanismo raramente é capaz de atender diferentes necessidades de adaptação, como escutar, enxergar, sentir raiva, medo, náusea, etc. Conseqüentemente, o cérebro deve ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios.



5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas dúzias de indivíduos, obtendo seu alimento diário – quando disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma, a chave para entender o funcionamento da mente moderna é compreender que seus circuitos não foram projetados para problemas diários de um cidadão moderno – foram desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa mente não tenha mecanismos de aprendizado, capazes de permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles.



Estes são os principais aspectos da psicologia evolutiva, ramo da psicologia – ou da biologia – que vem despertando a atenção de cientistas e filósofos envolvidos com a questão do darwinismo e do estudo da mente. As implicações filosóficas desta teoria ainda não foram avaliadas completamente, mas deverão ter grande ressonância nos próximos anos, haja vista o enorme impacto provocado pela teoria da evolução e pela teoria da psicanálise na filosofia.



Para terminar esta exposição, citamos as palavras do neurobiólogo Wolf Singer que, referindo-se ao estudo da evolução do cérebro e de suas consequências, afirma: “Finalmente precisamos reconhecer que estamos enredados em sistemas cujo desenvolvimento não podemos prognosticar, nem efetivamente dirigir. Para complicar ainda mais, junte-se a isto o fato de que não conseguimos imaginar a dinâmica de sistemas não-lineares mais complexos. Já que processos não-lineares dificilmente são previsíveis ou direcionáveis, não surgiu durante o processo evolutivo necessidade de desenvolver sistemas cognitivos que pudessem “imaginar” acontecimentos complexos, não-lineares. (Wolf Singer, 2003, pág.301 – tradução nossa).






BIBLIOGRAFIA


Bastos, Cleverson Leite, Mente, Cogniçao e a Teoria da Mente Ornamental, Revista de Filosofia, Curitiba,



v.18 n. 21, p.111-123, julho/dez 2005 Becker, Mehr, e outros, Gene, Meme und Gehirne (Genes, Memes e Cérebros), Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 2003 Cosmides, Leda, Tooby, John, Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia Evolutiva: Uma manual – sem tradução), Center for Evolutionary Psychology, disponível em <
http://www.psych.ucsb.edu/research/cep/primer.html

> acesso em 06/09/2007 Enciclopédia Mirador, Vol 17, verbete Psicologia, Editora Encyclopaedia Britannica: São Paulo, 1982 Hogan, John, A mente desconhecida, Editora Schwarcz, São Paulo: 2002 James, William, Was ist Pragmatismus? (O que é pragmatismo?), Beltz Athenäum Verlag, Weinheim,



Mayr, Ernst, Biologia, Ciência Única, Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2005 Mithen, Steven, A pré-história da mente, Fundação Editora da Unesp: São Paulo, 2002 Pinker, Steven, Tábula Rasa, Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2004 Ridley, Matt, O que nos faz humanos, Editora Record: São Paulo, 2003 Ruse, Michael, Levando Darwin a sério, Editora Itatiaia Limitada: Belo Horizonte, 1995




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