O problema dos universais em Pedro Abelardo

O problema dos universais em Pedro Abelardo

Miguel Duclós

Trabalho Originalmente Apresentado para a FFLCH/USP

"Reflitamos
primeiramente a respeito da causa comum. Cada um dos homens, distintos uns dos
outros, embora difiram tanto pelas próprias essências quanto pelas formas –
como lembramos acima ao investigarmos a física da coisa – se reúnem naquilo que
são homens" (ABELARDO, Lógica Para Principiantes, pg.61)

1 – Escopo do trabalho

O problema que se coloca nesse trecho resume a temática da querela dos
Universais, discussão central na filosofia medieval, da qual se ocuparam
diversos autores além de Abelardo num grande período de tempo. Trataremos aqui,
de forma compacta, de alguns aspectos dos universais e da visão de Abelardo
sobre o tema. A questão dos universais é primeiramente enunciada a partir da Isagoge de Porfírio. Isagoge é o termo grego para "introdução". Trata-se
de uma introdução às categorias de Aristóteles, que como o filósofo mais
importante e de maior alcance, era objeto constante de comentários, debates e
glosas. Averróis, por exemplo, era conhecido como O comentador e
escreveu dezenas de obras sobre o filósofo. Porém ele é de uma geração
posterior a Abelardo, viveu entre 1126 e 1198, enquanto Abelardo viveu entre
1079 e 1142. Nesse período de tempo a obra de Aristóteles se difundiu
consideravelmente. A geração de Abelardo conhecia Aristóteles principalmente
através das traduções de Boécio para o latim de duas únicas obras, referentes
ao corpo da lógica no sistema: Categorias e De Interpretatione. Estas,
juntamente com outros cinco textos (além de Isagoge, De syllogismo categórico,
De syllogismo hypothetico, De diffèrentiis topicis
and De divisione do
próprio Boécio) são as fontes primárias da lógica de Abelardo. Abelardo sabia
muito pouco grego, e, não obstante fazer breves referências a outros trabalhos
como os Argumentos Sofísticos e os Primeiros Analíticos, nada
indica que tenha conhecido as grandes obras sobre a moral, a física e a
metafísica.

2 – Platão e Aristóteles

O
conceito de universal e o problema que ele implica é bastante antigo, e remonta
da universalia medieval até o tà kàtolon de Aristóteles e o eidos e ideai de Platão. Platão pode ser tomado como o originador desse
tópico filosófico perene, e daí nós lembramos da recorrente frase de A.
Whitehead de que toda a história da filosofia não passa de um amontoado de
notas de pé página a Platão. Ele acreditava que a existência dos universais era
necessária não apenas ontologicamente – para explicar a natureza do mundo, mas
também epistemologicamente – para explicar a natureza da nossa experiência
nesse mundo. Seu conhecido argumento apontava os universais como formas que
existem em si mesmo num domínio espiritual, transcendente. Uma pessoa bela participaria da forma de beleza. Essa forma só pode ser conhecida pelo intelecto, e não
pelos sentidos, e por isso é assinalada a importância da dialética – o jogo de
perguntas e respostas entre mestre e aluno – como a única maneira de fazer a
alma ascender, por degraus, da lama em que se encontra presa pelos sentidos até
a contemplação da forma. O particular é apenas uma manifestação da forma, e
segundo a epistemologia platónica, para conhecer, é necessário ter acesso aos
universais eternos e imutáveis. O próprio Platão argumenta contra a teoria das
formas no Parmênides. Aristóteles, como é sabido, critica o mestre. As
suas duas principais objeções apontam que Platão, fazendo da Forma uma
substância separada e perfeita introduziu um dualismo exagerado e
desnecessário, e que Platão confunde a categoria da substância com a de
qualidade. Colocar o conhecimento em um outro nível, numa matriz perfeita, não
resolveria o problema, apenas o adiaria. As questões feitas sobre os
particulares se repetiriam nas formas. O segundo ponto seria um erro lógico, já
que a forma seria ao mesmo tempo uma substância individual — requerida pela
tese da separação – e uma qualidade, necessária para ser um universal. A
lembrança será útil para contrapor mais adiante a posição de Abelardo sobre o
problema. O estagirita defende a existência apenas dos individuais, como
Sócrates ou esta cadeira em que estou sentado. Os universais existem apenas
como elementos comuns nos particulares. O universal X é
tudo o que é comum ou dividido aos particulares Y. É predicado dos
particulares. Os individuais são classificados por géneros na medida em que tem
as mesmas propriedades. Quanto mais diferenças nas qualidades determinadas,
mais refinada se tornam as classificações.

3 – Conceito

O universal pode talvez ser definido como um objeto abstraio ou termo
que abrange coisas particulares. Aquilo sobre o qual se podem predicar várias
coisas. A definição é difícil, o universal é mais próprio de ser pensado[i]. Um adjetivo abstrato como
beleza, justiça, coragem e bondade etc. Dizer de dois objetos que cada um uma
tábua, um quadrado, ou é amarelo é dizer que há algo comum nestes objetos, que
pode ser dividido com muitos outros e em virtude do qual os objetos podem ser
classificados como géneros. Essa classificação não é somente possível para o
uso científico, como também inevitável, já que toda experiência passa por
coisas classificadas em géneros, por mais que estes possam ser vagos ou
desarticulados. A palavra Sócrates é um nome "próprio". Supõe-se que
mediante este nome estejamos nos referindo a uma pessoa determinada, a uma
entidade concreta e singular cujo nome é "Sócrates". Da entidade
concreta e singular, ou da pessoa, cujo nome é "Sócrates", podemos
dizer que é um homem, estatura baixa, com barba. Estes termos são usados para
qualificar "Sócrates", são nomes comuns usados para determinar uma
qualidade singular de modo universal, por isso são chamados
"universais". Lembramos aí da questão de Agostinho sobre a relação
entre as ideias de Deus relativas às coisas sensíveis. O problema capital dos
universais, portanto, diz respeito ao seu status ontológico, pois se
trata de determinar que espécies de entidades são. Não obstante isso, há
importantes implicações e ramificações em outras disciplinas: a lógica, a
teoria do conhecimento e até mesmo a teologia. São três as questões levantadas
a partir dos universais: a do conceito, a da verdade e a da linguagem. A
predominância dos universais na Idade Média se deve, em parte, por derivarem
dos únicos textos clássicos disponíveis no período e em parte porque envolvia o
dogma da natureza ao mesmo tempo e única e tríplice de Deus.

4 – Os medievais e os universais

A enunciação do problema propriamente dita foi dada na
tradução de Boécio de Isagoge, conforme se segue:

"Como é necessário,
Crisaoro, para compreender a doutrina das categorias de Aristóteles, saber o
que é o género, a diferença, a espécie, o próprio e o acidente, e como este
conhecimento é útil para a definição e, em geral, para tudo o que se refere à
divisão e à demonstração cuja ,doutrina é muito proveitosa, tentarei em um
compêndio e a título de instrução resumir o que nossos antecessores disseram a
respeito, abstendo-me de questões demasiado profundas e mesmo detendo-me pouco
nas mais simples. Não tentarei enunciar se os géneros e as espécies existem por
si mesmos ou na inteligência nua, nem, no caso de subsistir, se são corporais
ou incorporais, nem se existem separados dos objetos sensíveis ou nestes
objetos, formando parte dos mesmos. Este problema é excessivo e requeriria
indagações mais amplas. Me limitarei a indicar o mais plausível que os antigos
e, sobretudo, os peripatéticos disseram razoavelmente sobre este ponto e os
anteriores" (Isagoge, I, 16)". As três questões postas são as
seguintes: "Se os universais existem na realidade ou apenas no pensamento: utrum verum esse habeant na taníum in opinione consistant; em seguida,
caso de fato existissem, se são corpóreos ou incorpóreos; em terceiro lugar, se
são separados das coisas sensíveis ou se as entregam. A estas três questões
acrescenta por conta própria uma quarta, destinada a se tornar clássica, como
já o eram as três primeiras: "os géneros e as espécies ainda teriam uma
significação para o pensamento se os indivíduos correspondentes cessassem de
existir?" (GILSON, pg 344)2[ii].
Muitos autores medievais se referiram a esse problema e geraram assim as
posições clássicas sobre o assunto: a dos realistas — chamados de antiqui
doctores –
e a dos nominalistas.

O extremo
realismo platônico era representado
por Guilherme de Champeaux: uma natureza real e comum está presente em cada ser
das espécies, que diferem uns dos outros por seus acidentes, não pela
substância.

Os universais
são coisas (res). Abelardo irá sugerir
que duas pessoas então podem ser
uma e a mesma substância. Champeaux expica-se argumentando que são o mesmo não essencialmente, mas indeterminadamente. José e João são o mesmo em serem homens,
pois pertence ao homem ser mortal e animal racional, mas a humanidade em cada
um não é a mesma, mas similar, porque são dois homens. A própria física dos
corpos, para Abelardo, destitui essa doutrina de sua veracidade, já que a
experiência atesta as coisas como realmente distintas umas das outras. Se o
universal animal existe inteiramente na espécie homem e na espécie cavalo, é ao
mesmo tempo racional e uma e não racional em outra, o que é contraditório, e
portanto, impossível. As objeções do aluno Abelardo ao seu mestre Guilherme
Champeaux fizeram com que esse resignasse de sua posição filosófica.

Os
nominalistas supunham que os universais não são reais, mas se encontram depois
das coisas (universalia post rem). Tratam-se, portanto, de abstrações da
inteligência, reduzidos à materialidade das palavras. Apenas os nomes são
universais, as coisas nomeadas são sempre singulares. Abelardo sofreu forte
influência desta doutrina, embora não seja um nominalista e tenha criticado o
extremismo de Roscelino. Este, conforme a definição de Boécio, afirmava: "Nihil
enim aliud est prolatio (vocis) quam aeris plectro linguae percussio
".
É controversa a classificação da teoria de Abelardo. Embora ele seja chamado às
vezes de nominalista, é mais acertado chamá-lo de conceítualista ou realista
moderado, sendo, no entanto ambas as opções simplificações. Gilson aponta que a
posição de Abelardo não se encontraria numa "linha ideal que ligaria
Aristóteles a Santo Tomás de Aquino", mas antes a "gramática
especulativa a Guilherme de Ockham"[iii]

5- Abelardo

Abelardo mantinha que os universais existem como pensamentos baseados
no particular das coisas, enquanto os nominalistas supunham existência apenas
nas coisas, e negavam. Para Abelardo, o universal não é um som (vox, emissão
de voz, flatus voeis), como era para Roscelino[iv], mas uma palavra (sermo), ou
seja, um som com significado, o sentido dos nomes (nominum significatio). Adquire
seu sentido pelo seu uso referencial, sendo a referência mediada por uma ideia
geral que é uma imagem composta. O conhecimento depende desse processo de
abstração, uma vez que a separação entre forma e matéria -juntas na natureza –
é empreendida pelo intelecto. Este "não se engana pensado à parte seja a
forma, seja a matéria; ele se enganaria se pensasse que a matéria ou a forma existem
a parte, mas tratar-se-ia de uma falsa concepção dos abstratos, não da sua
abstração" (GILSON, pg 350). A existência dos universais está relacionada
a um evento psicológico, a uma intencionalidade do pensamento. Essa
teoria pode ser chamada de psicológica e serviu para responder as quatro
questões.

Sobre a primeira questão,
Abelardo responde que

"na
verdade, significam pela denominação coisas verdadeiramente existentes, isto é,
as mesmas que os nomes singulares e que, de modo algum, estão colocados numa
opinião vazia; contudo, de certa maneira, consistem, como ficou estabelecido,
numa inteleçção isolada, nua e pura." (pg 74)

7

Sobre a segunda questão, convém a
seguinte citação:

"(…) de um certo modo, os corporais, isto é, separados na sua essência
e os incorporais quanto a designação ao nome universal, porque nao os denominam
separada e determidamente, mas confusamente, como o ensinamos acima
suficientemente. Daí também, os próprios universais serem chamados corpóreos
quanto à natureza das coisas, e incorpóreos quanto ao modo de significação,
porque embora denominem o que é separado, não o denominam, separada e
determinadamente", (pg 75)

Para
a terceira questão, Abelardo concede que os universais estejam nas coisas
sensíveis, mas dirá que "concedemos que todos os géneros ou espécies encontram-se
nas coisas sensíveis. Mas porque sua intelecção era sempre chamada de isolada
da sensação, eles não pareciam de modo algum estar nas coisas sensíveis. Por
isso perguntava-se com razão se poderiam alguma vez estar nos sensíveis; e
responde-se que, quanto a certos deles, que estão, mas de tal maneira que, como
foi dito, permanecem naturalmente a parte da sensibilidade".

Sobre a quarta questão que formulou, Abelardo responderá na p. 76:
"de modo algum admitimos que haja nomes universais quando, tendo sido
destruídas as suas coisas, eles já não são predicáveis de vários, porquanto não
são comuns a quaisquer coisas, como o nome da rosa, quando não há mais rosas, o
qual, entretanto, ainda é então significativo em virtude da intelecção, embora
careça de denominação, pois de outra sorte não haveria a proposição: nenhuma
rosa existe".[v]

BIBLIOGRAFIA

8

  •         Porfírio, o Fenício: Isagoge: introdução às categorias de Aristóteles. São Paulo :
    Matese, 1965.
  •         The Encyclopedia of
    philosophy.
    Paul Edwards, editor in chief. New York, Macmillan 1967
  •         Abelardo, Pedro. Lógica
    para principantes.
    Trad. Carlos do Nascimento. Vozes, 1994.
  •         Ferrater-Mora, José. Diccionário
    de Filosofía.
    Ariel, Barcelona, 1994.
  •        Gilson, Etienne. A
    Filosofia na Idade Media, Trad. E. Brandão. Martins Fontes, 1995.


[i] Aristóteles o define como "aquilo
que é naturalmente apto para ser predicado de muitos", oposto ao singular
– "aquilo que predica de um só".

[ii] 2 Filosofia na Idade Media, A; E. Gilson; Trad. E.
Brandão. Martins Fontes, 1995.

[iii] 3 Op Cit, pg 350

[iv] 4 "Fuit autem, nemini magistri nostri
Roscellini tam
nsana sententia ut nullam rem partibus constare
vellet,
sea
sicut solis vocibus species, ita et partes
ascridebat"
(Abelard,
"Liber divisionum")

[v] 5 Também citado por Carlos Ribeiro Nascimento, tradutor
da obra, em sua excelente tradução, que foi muito útil para esclarecer e
acompanhar a linha evolutiva do rico argumento de Abelardo.

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