Processo de independencia do brasil e Primeiro Reinado – História do Brasil

Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)

História do Brasil

Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.

TOMO II

 

CAPÍTULO XIV

A independência nacional

"Já podeis, da pátria filhos, Ver contente a Mãe gentil; Já raiou a Liberdade No horizonte do Brasil. Brava gente brasileira, Longe vá temor servil! Ou ficar a Pátria livre, Ou morrer pelo Brasil!"

(Do Hino Nacional Brasileiro.)*.

Os acontecimentos dos últimos meses haviam abalado e transformado tão completamente a disposição constitucional interna dos reinos unidos de Portugal e Brasil, que, antes de prosseguirmos na nossa narração histórica, se torna absolutamente necessário recordarmos o estado atual das coisas políticas.

Um rápido golpe de vista bastará.

O antigo absolutismo pesava desde séculos sobre todo o desenvolvimento do Estado, pelo que tudo, até nos mais extremos ramos da administração, estava intimamente impregnado pela revolução, que irrompia repentinamente; e sobre os seus destroços devia surgir uma nova ordem constitucional de coisas, que tornasse possível ao povo tomar realmente parte nas mais diversas esferas da vida do Estado.

Semelhante missão não se resolve facilmente, nem depressa, pois para a sua resolução era ao mesmo tempo necessária uma regeneração do povo; de um lado, tanto como do outro do Atlântico, foi preciso que primeiro, durante anos, se travassem duros combates, antes que se firmassem seguros alicerces, e, para a geral satisfação, nada mais que as formas externas da nova Constituição; porém, sob essa estrutura, escondia-se ainda, especialmente nos círculos inferiores da vida do Estado, o antigo sistema inalterado.

"No Brasil continuava apenas o velho regime português".

A princípio, de fato, deu-se somente pouca atenção, no lado brasileiro, à parte liberal da nova organização do Estado; é que o antagonismo nacionalista, que lavrava entre ambos os povos irmãos, de aquém e de além-mar, a relegava ao segundo plano. Antes de tudo importava, pois, a posição política de ambas essas partes do reino, uma para com a outra.

* Os versos de Evaristo da Veiga colocados à guisa de moto neste capítulo e para os quais D. Pedro I escreveu a música, nunca tiveram o caráter de hino nacional brasileiro, pelo menos oficialmente. Ê possível, contudo, que, até o aparecimento do belo hino de Francisco Manuel da Silva, o que ocorreu para celebrar a abdicação do primeiro Imperador, em 1831, fosse, de fato, o hino de Evaristo-D. Pedro I freqüentemente tocado em cerimônias oficiais. Possível, escrevemos, porque nada há documentado a respeito. Atualmente essa composição é conhecida como Hino da Independendo. (O.N.M.).

 

Desde a repatriação de d. João VI, estavam de novo reunidas em Lisboa as cul-minâncias do governo do Estado, ali residia o soberano comum de ambos, a quem, todavia, no momento, restava apenas uma sombra de autoridade; pois o verdadeiro poder havia sido assumido pelo segundo fator da soberania do Estado, as Cortes Constituintes. Nessa assembléia, porém, embora nela tivessem assento e deliberassem também deputados brasileiros, eram em decisiva maioria os portugueses natos: 130 contra 70, número, de resto, nunca completo.

Assim, Portugal, sob a bandeira da nova ordem constitucional, recuperara a soberania legal e efetiva sobre a velha terra colonial, que havia perdido nos últimos tempos do absolutismo. E as cortes estavam decididamente inclinadas, como já traduzia seu primeiro manifesto, a explorar essa soberania especialmente em proveito de sua pátria européia, e julgavam-se tanto mais habilitadas para tal usurpação, quanto contavam no Brasil com aliados aparentados e de igual opinião, inclusive nas tropas da denominada Divisão Auxiliar, não menos entre os inúmeros portugueses residentes.

Por outro lado, o Brasil, embora sujeito à autoridade suprema do rei comum e das cortes comuns, de fato meramente portuguesas, aliás, estava por direito completamente equiparado à velha mãe-pátria, Portugal, como reino independente, e possuía a sua própria organização autônoma; as suas províncias heterogêneas, que no tempo colonial formavam uma simples unidade geográfica, tornavam-se agora uma unidade política e começavam pouco a pouco a sentir-se como tais, não obstante ainda às vezes desunidas pelo espírito cioso local, vivamente acentuado; embora não sem resistência, mais ou menos todos consideravam capital do país o Rio de Janeiro, onde as autoridades supremas da justiça e da administração tinham sede, e onde então o herdeiro da coroa tinha a sua corte, como regente.

Está claro que, nestas circunstâncias, não podiam os brasileiros de mais a mais sujeitar-se à cobiça dos portugueses, que afinal tendiam para a "recolonização" do seu país; menos que tudo, porém, o Rio de Janeiro, que com tal mudança mais tinha a perder, isto é, a sua posição preeminente de capital. Logo que as cortes avançassem nesse sentido, rebentaria, como era fácil de prever, a mais viva oposição, mormente no Rio de Janeiro, e esse espírito de resistência, com a antiga aversão contra os portugueses, com o exemplo da América do Sul espanhola, devia inflamar-se cada vez mais violentamente; estava-se, pois, em vésperas de uma guerra, na qual os brasileiros tinham que enfrentar, em primeira mão, o já mencionado partido português no próprio país, isto é, os residentes portugueses, os funcionários e as tropas da denominada Divisão Auxiliar; em segunda mão, todas as forças militares de Portugal; e o resultado de tal guerra poderia somente ser a completa sujeição do Brasil ou o completo desatamento de todo laço com Portugal.

Se, porventura, havia alguém no Brasil, se um homem existia que tivesse o maior interesse em impedir que a tais extremos se chegasse, era o então príncipe regente dom Pedro. Pois a ele, como príncipe herdeiro, cabia a sucessão em ambas as partes dos Reinos Unidos Lusitanos, de aquém e além-oceano, e a ele interessava, mais que a ninguém, que nenhum dos dois se perdesse para a dinastia de Bragança; assim, era ele o mediador nato no conflito em perspectiva.

E representar tal papel era-lhe grandemente facilitado pelo fato de ser considerado meio compatriota pelos brasileiros; nascido em Lisboa, a 12 de outubro de 1798, havia já com seus pais transmigrado para o Rio de Janeiro, na idade de oito anos; pelo seu casamento com a arquiduquesa Leopoldina da Áustria, realizado em Viena a 13 de maio, no Rio a 5 de novembro de 1817, aqui se havia tornado esposo e pai; além disso, por uma certa oposição contra os conselheiros de seu pai, como é o costume dos herdeiros de coroa, já desde muito havia ganho não pequena popularidade, porém, sobretudo, recentemente, por sua conduta durante a revolta de 26 de fevereiro de 1821; e agora, como príncipe regente do Brasil, estava colocado numa posição que, se de um lado o obrigava a cumprir as ordens das autoridades superiores do reino, do rei e das cortes, igualmente ela o autorizava a apresentar-se como representante e defensor do Brasil.

Se tal papel de mediador seria eficaz, se com o tempo seria sustentável, entre as paixões de ambos os lados, era o que restava saber; porém, em todo caso, devia aumentar ainda as simpatias que d. Pedro já havia conquistado no Rio e no Brasil; e nessa afeição pessoal do povo residia, sem dúvida, um contrapeso monárquico contra as tendências republicanas, que ameaçavam propagar-se da vizinha América espanhola para cá.

* * *

Voltemos agora para a nossa narração histórica. Ao tempo do regresso do rei para Lisboa (26 de abril de 1821), ainda continuava a alastrar-se pelo interior do Brasil a revolução portuguesa, sem que fosse estorvada em parte alguma no seu curso regular, por oposição legal das autoridades; quase que, em todas as províncias os capitães-generais do rei, espontaneamente ou forçados, depuseram o seu cargo, e no seu lugar estabeleceram-se juntas provisórias, compostas dos homens mais eminentes do movimento, sem distinção, portugueses ou brasileiros.

Por outro lado, nos portos, onde o mesmo já havia acontecido antes, conservou-se tudo provisoriamente tranqüilo; sobretudo no Rio de Janeiro subsistiam sempre, em conseqüência dos acontecimentos de 21 de abril, o geral desalento e a paralisação da vida política; mesmo as importantes notícias, que em breve chegaram de Lisboa, pouca impressão produziram.

É que nessa cidade haviam as cortes, a 9 de março, estabelecido as trinta e sete proposições fundamentais da Constituição portuguesa, e a 29 de março as confirmaram solenemente, com juramento, e as expediram, para igual formalidade, a todas as partes do Reino Unido. Aconteceu, porém, que a redação desses princípios fundamentais se consumara ainda antes que os deputados brasileiros houvessem chegado a Lisboa; além disso, no artigo 21 do próprio documento, estava determinado que as leis das cortes, para os países anexos, teriam somente validade, depois que os seus próprios representantes as houvessem aprovado; achou-se, portanto, o príncipe regente d. Pedro autorizado a adiar a exigida prestação de juramento, e aproveitou-se mesmo do motivo para dirigir uma carta do próprio punho às cortes, na qual lhes recomendava insistentemente que, para as novas resoluções, esperassem a cooperação dos deputados brasileiros.

A população nacional do Rio de Janeiro parece que a tudo assistia indiferente; ao contrário, entre os do partido português causou grande escândalo essa primeira desobediência às ordens das cortes; especialmente nos quartéis da Divisão Auxiliar começou surda fermentação, atiçada por oficiais ambiciosos, que finalmente se manifestaram em franca rebeldia. Pela manhã de 5 de junho, concentraram-se os batalhões portugueses, novamente, na praça do Teatro (largo do Rocio) e exigiram, com gritos sediciosos, o imediato juramento; toda a cidade ficou em agitação; o próprio príncipe regente, chamado às pressas da sua quinta de São Cristóvão, apareceu em breve no meio dos sediciosos e prometeu satisfazer às suas exigências; todavia, acrescentou ele, o desejo do exército não podia decidir só ele, era preciso em primeiro lugar tomar conhecimento da vontade do povo.

Para este fim, foram imediatamente convocados os eleitores da cidade para uma assembléia extraordinária no edifício do teatro; e, quando estes, como não podia ser de outro modo, declararam a sua aprovação, prestou d. Pedro, e com ele todos os presentes, o juramento aos artigos fundamentais da Constituição.

Muitas outras concessões foram ainda exigidas e obtidas pelos sediciosos triunfantes; os prisioneiros pelos acontecimentos de 21 de abril foram libertados; e teve o príncipe regente que se conformar com a destituição do seu mais distinto conselheiro, o conde dos Arcos, a cujas tendências absolutistas se atribuía a culpa da demora da prestação do juramento, e mandá-lo para Lisboa, a responder por isso. Teve o príncipe até que admitir que se associasse a ele e a seus ministros uma comissão militar, para a fiscalização das tropas, e, para a administração civil, uma junta, a cujos conselhos se devia sujeitar, e, por seu lado, elas se responsabilizavam perante as cortes.

Todavia, estas duas autoridades revolucionárias nunca chegaram a possuir qualquer poder; agora, a comissão militar extinguiu-se em breve por si mesma, por dissolução espontânea, e a junta ficou completamente à sombra, ao lado do conselho de ministros, de sorte que d. Pedro conservou de fato o pleno poder executivo, embora sempre coagido pelas tropas sediciosas.

Pode-se imaginar que estes acontecimentos da capital não deixaram de ter conseqüência alhures, e que, assim como antes se fizera para a futura Constituição em geral, agora se procedeu, ora aqui, ora ali, à confirmação, por juramento, dos artigos fundamentais da Constituição.

De muito maior importância foi, todavia, o novo abalo que de Lisboa recebeu a vida política das diversas províncias. Na capital portuguesa haviam as cortes, ao tempo em que apenas o rei partia do Rio, a 24 de abril, publicado um decreto que atingia da maneira mais sensível às condições brasileiras; por esse ato não só se permitiam as juntas provisórias de cada província, mas mesmo exigia-se delas, que doravante, sem tramitar pelo governo central do Rio de Janeiro (a regência), entrassem diretamente em ligação oficial com o poder supremo em Lisboa. Isto significava evidentemente romper a organização do poder centralizado, a unidade política do Brasil, como se havia formado recentemente, e restabelecer o antigo estado de coisas dos tempos coloniais, em que as diversas províncias, completamente estranhas entre si, se relacionavam simplesmente com a mãe-pátria; é que então se esperava subjugá-las mais facilmente, sendo isoladas.

Para o sucesso desse plano, contavam as cortes com o espírito local vivamente pronunciado, com o ciúme interprovincial que formava tão importante traço do caráter nacional brasileiro. E não se enganavam inteiramente; não só porque o partido português, que pregava por toda parte incondicional obediência às cortes, zelosamente apoiou essa medida, também porque em não pequena parte da população nacional essa lei achava viva aprovação, por lisonjear o seu particularismo c ciúme contra o Rio de Janeiro.

Assim foi sobretudo na velha cidade da Bahia; ali ajunta provisória, na qual de resto predominava o elemento português, imediatamente se conformou com a ordem recebida de Lisboa, e, não satisfeita com isso, apressou-se a declarar abertamente à regência do Rio o seu desligamento; não se podia — assim referia um documento oficial de 20 de junho — reconhecer de modo algum a regência, visto a mesma haver sido estabelecida pela exclusiva autoridade do rei, sem cooperação das cortes.

O mesmo aconteceu na cidade de São Luís do Maranhão; também ali ajunta se desligou formalmente da autoridade do príncipe regente e entrou em relações diretas com Lisboa.

Porém, em ambos estes lugares, não teve esse passo aprovação unânime, nem ao menos na cidade, quanto mais no interior. Também o exemplo da Bahia não produziu efeito alhures. Em Pernambuco conservava-se ainda o régio capitão-general, se bem que em contínua luta contra revoltas locais e sedições militares, e ele não se achava disposto, nem obrigado, a tomar partido na questão pendente entre o príncipe herdeiro da coroa e as cortes.

As juntas provisórias das províncias vizinhas mais fracas abstinham-se ao menos de declarar-se abertamente, embora tacitamente cessassem toda a correspondência com o Rio, ou em geral a correspondência oficial, a fim de governarem em liberdade.

Todavia, fosse como fosse; já pela atitude tomada pela Bahia, estava o Norte do Brasil de fato sem relações com o Rio de Janeiro, e subtraído à autoridade do príncipe regente.

Outro aspecto tomaram as coisas nas regiões do Sul. Em Vila Rica de Ouro Preto, capital de Minas Gerais, agitaram-se também as ambições particularistas; porém, esta província, apesar do número superior de sua população, já por causa de sua posição mediterrânea, dependia de suas vizinhas, Rio de Janeiro e São Paulo; e a primeira destas províncias mantinha-se fiel, está claro, a d. Pedro. E a mesma atitude havia resolvido São Paulo; ali havia até então continuado a governar tranqüilamente o real capitão-general conde de Oyenhausen, que gozava de geral consideração e afeto; somente quando os paulistas, influenciados pelas notícias que chegavam do Rio, tomaram parte na prestação de juramento aos artigos fundamentais da Constituição, consideraram eles necessário estabelecer o governo provincial nos moldes modernos e nomear uma junta (fins de junho).

A presidência da mesma foi dada ao próprio capitão-general resignatário; porém, a influência preponderante era do vice-presidente José Bonifácio de Andrada e Silva, paulista de nascimento, que havia feito longos anos de estudos e viagens na Europa, algum tempo havia mesmo ocupado em Portugal o cargo público de lente, e agora se salientava na sua pátria por sua alta ilustração, e não menos por suas vastas relações de família (um de seus irmãos, Martim Francisco, foi eleito secretário da junta; outro, Antônio Carlos, para deputado às cortes por São Paulo). A ele, principalmente, se deve ter a junta resolvido continuar de acordo com o Rio de Janeiro e sustentar a autoridade do príncipe regente e haver despachado uma deputação própria à capital, a fim de comunicar a d. Pedro essa resolução.

O exemplo de São Paulo teve ao menos por efeito moderar os propósitos dos movimentos particularistas de Minas Gerais, ao passo que sobre as províncias menores do Sul a sua influência foi absolutamente decisiva. Mesmo além da fronteira sul, em Montevidéu, foi justamente então resolvida (19 de julho) a incorporação da Banda Oriental ao Brasil, e reconhecida a autoridade do príncipe regente por parte dos funcionários e do general Lecór, que ali comandava.

Assim, fora de novo fortalecida a posição oficial de d. Pedro no Sul do Brasil e isso pela manifestação espontânea do povo, apesar da resolução contrária das cortes; todavia, essa posição não era nada agradável.

Mesmo aquelas juntas provinciais que se haviam submetido à regência, primeira de todas a de São Paulo, pretendiam pelo menos administração financeira separada e recusavam toda contribuição de dinheiro; o Banco Nacional, ao qual então d. Pedro recorreu, teve em breve de seu lado que suspender os pagamentos (28 de julho), e assim se viu o príncipe nos mais extremos apuros de numerário, pelo que muito se ressentiu o serviço público; sobretudo a atitude das tropas portuguesas da Divisão Auxiliar tornou-se mais insegura, desde que se atrasou o pagamento do soldo; ficaram mais atrevidas em praticar freqüentes desordens e com isso provocavam os cidadãos brasileiros.

Por outro lado, naturalmente tomou d. Pedro muito a mal haver-se substraído à sua autoridade todo o Norte do Brasil, à instigação das cortes; queria-se, assim, consoante ele oficialmente escreveu ao pai, degradá-lo a uma posição indigna de sua condição, a simples capitão-general de província; e o seu descontentamento encontrou vivo eco no Rio, tanto mais que esta cidade via igualmente ameaçada a sua supremacia, pelo curso dos acontecimentos.

De seu lado as cortes, sem se deixarem demover pelos queixosos relatórios do regente, iam sem consideração alguma cada vez mais procedendo contra a independência brasileira; haviam, na verdade, numa proclamação de 13 de julho, feito as mais bem soantes promessas a seus irmãos de além-mar, "o ramo sul-americano da grande família portuguesa"; doravante os interesses de ambos os países não serão mais separados, e os portugueses não se considerariam livres, se os brasileiros não compartilhassem da sua liberdade; porém nos debates revelava-se cada vez mais claramente que essa unidade de interesses tendia para o restabelecimento da completa submissão e incorporação do Brasil ao conjunto do Estado português, e os deputados brasileiros debalde se esforçavam por garantir à sua pátria uma posição particular, até certo ponto independente.

Todas essas circunstâncias concorreram, em primeiro lugar nos grandes portos do Brasil, para fazer crescer cada vez mais a efervescência política; mesmo nos lugares onde as juntas se haviam declarado incondicionalmente a favor das cortes, como na Bahia, o partido nacionalista salientava-se sempre mais abertamente; ainda de modo mais decisivo nas províncias do Sul; já se ousava sem reserva manifestar desconfiança contra as cortes constituintes, falava-se da necessidade de uma representação nacional própria; mesmo de tempos em tempos a idéia de independência nacional se manifestava em voz alta.

* * *

Foi no dia 4 de outubro que às esquinas das ruas do Rio de Janeiro se afixaram cartazes, nos quais se instava com d. Pedro: "que não devia esperar, até (pela morte de seu pai) ser d. Pedro IV (de Portugal); ele devia já proclamar-se Pedro I (do Brasil)"; ao mesmo tempo, espalhava-se o boato de que um bando de conjurados estava prestes a arvorar a bandeira da independência; alguns mesmo já diziam saber que o príncipe regente, no seu ressentimento contra as cortes, não era infenso ao plano e que ele havia conferenciado secretamente com os cabeças da conspiração.

O que havia de verdadeiro em tudo isso é o que resta saber; do lado brasileiro, afirmou-se, mais tarde, que toda a demonstração fora feita de propósito pelos portugueses residentes e soldados; o certo é que o corpo de oficiais da Divisão Auxiliar se serviu do pretexto para dirigir ao príncipe regente uma enérgica representação, na qual exigia dele que fizesse declaração pública de manutenção da unidade do reino e contra as veleidades de independência dos brasileiros.

Não tardou d. Pedro a dar satisfação a essas exigências; imediatamente publicou uma proclamação ao povo do Rio de Janeiro, na qual ele reprovava o excesso cometido, e prevenia contra a aliciação de certos demagogos sem consciência; "ele próprio — acrescenta — protestava que jamais quebraria o juramento dado ao rei e à Constituição, antes preferia morrer por eles, e tinha a certeza do apoio das tropas e de todos os homens fiéis aos princípios constitucionais".

E, numa carta, que, ainda no mesmo dia, escreveu ao seu real pai, exprimiu-se ele não menos categoricamente, renovando mesmo o seu juramento de fidelidade "a vossa majestade, à Nação e à Constituição Portuguesa" (4 de outubro).

Não vemos nenhum motivo para duvidar de que o príncipe regente fosse realmente sincero nessa declaração; mais do que qualquer outro, devia sem dúvida o herdeiro do trono empenhar-se por manter a unidade do reino, ou mesmo a união pessoal de ambas as terras da coroa. Também parece que no Brasil se compreendeu desse modo a proclamação, e de novo cessaram os pruridos de independência; porém a fermentação continuava a sua obra, que não mais podia ser detida.

Por toda parte, também nas províncias do Norte, opunha-se o partido nacionalista ao português, com sempre maior hostilidade.

Na Bahia, chegou-se mesmo a combate de ruas entre os batalhões portugueses e brasileiros, e só com dificuldade conseguiu o general comandante restabelecer a paz (novembro).

Em Pernambuco, teve o capitão-general que se resignar à demissão (26 de outubro) e o governo ficou em mãos de uma junta provisória, que, de seu lado, sem o declarar francamente, de fato não queria absolutamente saber, nem do príncipe regente do Rio, nem das cortes em Lisboa; todavia, consentiu que o batalhão português da guarnição, nos últimos tempos alvo de viva animosidade e sitiado formalmente no seu quartel, fosse substituído por outro, procedente de Portugal.

No Rio de Janeiro, e em geral naquelas províncias onde a autoridade do prín-cipe-regente era reconhecida, não ocorreu nenhuma perturbação séria de ordem; porém o estado de coisas em conjunto era tão crítico, que d. Pedro julgou necessário ainda uma vez exortar as cortes a usarem de prudência e moderação.

"Estimarei que o soberano Congresso, — assim escrevia ele, numa carta oficial de 9 de novembro, ao seu real pai, imediatamente depois que o influente deputado por São Paulo, Antônio Carlos de Andrada, de passagem, estivera em audiência com ele, — que com tanta sabedoria trabalha na nossa legislação constitucional, não se deixe iludir por cartas particulares, a respeito do estado dos espíritos aqui; e eu o aconselharia a que, antes de resolver com referência a esta parte do Reino Unido, espere a chegada e a colaboração dos deputados americanos. O Brasil já foi por demasiado tempo colônia; ele reclama agora, pelos seus representantes, uma inteira equiparação" (9 de novembro).

* * *

Entretanto, já havia acontecido o irremediável.

As cortes, depois de romperem pelo decreto de 24 de abril a unidade política e a organização política autônoma do Brasil, depois de haverem por segundo decreto, de 28 de julho, incorporado as tropas nacionais brasileiras ao exército português, agora, com uma série de novas resoluções, acabavam de destruir todas aquelas instituições que ainda faziam lembrar que o Brasil havia sido durante algum tempo um reino independente e equiparado a Portugal, como país irmão, com os mesmos direitos.

Um decreto provisório, de 29 de setembro, aniquilava todo o aparelhamento do poder central do Brasil; as altas autoridades administrativas, o Supremo Tribunal, etc, que desde 1808 funcionavam no Rio, finalmente a regência que o rei havia deixado à sua partida, tudo foi suprimido. Como já havia acontecido nas restantes províncias, era agora estabelecida também no Rio de Janeiro, para a administração dessa província, uma junta, e todos esses governos provinciais deviam de novo. como antes, entender-se diretamente com o gabinete de Lisboa; igualmente nas coisas da justiça, os processos das instâncias deviam passar ao Supremo Tribunal português. Segundo decreto da mesma data dispensava, consequentemente, o príncipe regente das obrigações de seu cargo e o convidava a, dentro de determinado prazo, voltar para Portugal, via Inglaterra, França e Espanha.

Com isso era, sem mais nem menos, de novo restabelecida aqui legalmente a antiga constituição colonial, como subsistira antes de 1808; somente com a única variante de que agora nas províncias, em lugar do capitão-general nomeado pelo rei, tinha em mão as rédeas do governo uma comissão de cidadãos eleitos, uma junta provisória.

E todas essas resoluções profundamente modificadoras foram tomadas com uma desconsideração sem exemplo, antes ainda de haver tomado assento no Congresso a maioria dos deputados brasileiros, e sob o quase unânime protesto dos poucos que já estavam presentes.

Também quanto à impressão que essas medidas produziriam no Brasil, as cortes parece que não se iludiram, pois logo a seguir tomaram disposições que pareciam preparativos para uma guerra iminente: o decreto de l9 de outubro autorizava o governo a nomear um comandante militar para cada província brasileira, o qual seria completamente independente da junta local; e, além disso, foi resolvido, a 18 de outubro, que, para reforçar a Divisão Auxiliar, sem demora se fizessem novas remessas de tropas para Pernambuco e Rio de Janeiro, como pouco antes se fizera para a Bahia. Portanto, julgavam as cortes portuguesas poder, com a força das armas, facilmente segurar o seu imenso império colonial sul-americano; era como se lhe transmitisse o contágio da cegueira incurável o país seu vizinho, Espanha, que já desde dez anos perdia, uma após outra, as suas possessões americanas, na verdade com honra, porém por sua própria tolice.

Vejamos agora as conseqüências que essa cegueira produziu no Brasil. Na tarde de 9 de dezembro, chegaram ao Rio de Janeiro as resoluções das cortes de setembro a outubro; no dia imediato, escrevia o príncipe regente a seu pai que estava pronto a obedecer e já se empenhava nas disposições para estabelecer uma junta e para a sua própria partida; a mesma afirmação ele repetia ainda em três cartas seguintes, de 14, 15 e 30 de dezembro; porém já nesta ele acrescentava, que lhe seria "sobremaneira sensível se, como era de temer, fosse obrigado a não dar o exato cumprimento a tão soberanas ordens".

Desta vez, certamente, ele não devia ser muito sincero nos seus protestos de lealdade, pois, como estavam as coisas e lembrando-se das palavras de seu pai à despedida, ele não deveria obedecer à ordem das cortes; para consigo mesmo e para com a família, ele tinha a obrigação de ficar.

A sua presença constituía ainda o último laço, que, se não mais prendia todas as províncias, todavia sempre unia as do Sul; se ele partisse, também estas se desagregariam e o reino do Brasil então — e para sempre — se desmembraria, tal qual a América do Sul espanhola, num sem-número de pequenas porções, cada uma das quais tomaria a sua própria direção. Se algumas dessas porções — entre outras, não restava dúvida, que muitas, como Rio e São Paulo, imediatamente proclamariam a sua independência — reconhecessem ainda a soberania portuguesa, com o tempo todas certamente se sublevariam contra as veleidades de recolonização das cortes; e então rebentaria por toda parte uma guerra feroz de independência, que durante anos exterminaria as próprias forças e não menos as de Portugal, porém, segundo todas as possibilidades, acabaria pela geral separação.

Portanto, um completo desmembramento do próprio Brasil e a sua perda para a casa de Bragança eram a perspectiva, caso ele partisse. Ao contrário,1 se ficasse o príncipe regente, todos esses perigos eram, ao menos no momento, obviados; as províncias do Sul permaneceriam unidas, e as já dispersadas do Norte adquiririam um ponto central, em torno do qual se poderiam de novo congregar; as cortes, por seu lado, podiam voltar à moderação e porventura achar uma solução razoa’1-vel, talvez a da união pessoal, que impedisse a completa separação de ambos os reinos irmãos.

Nestas circunstâncias, não precisou d. Pedro muito tempo para resolver-se; porém, considerando as então onipotentes cortes, que no caso de aberta resistência poderiam mesmo cassar os seus direitos hereditários ao trono, devia ele naturalmente querer guardar as aparências de obediência; e era-lhe fácil isso; bastava deixar que o povo brasileiro o forçasse.

Logo que foram conhecidas as resoluções das cortes, produziu-se surda fermentação geral no Rio de Janeiro, que, segundo todas as aparências, ia perder irremediavelmente a sua preeminência de capital. Ouviam-se nas ruas palavras sediciosas: "Se o objeto da Constituição é só fazer-nos mal, leve o diabo a Constituição!" E não somente os nacionais, também (o que, parece, absolutamente não entrou nos cálculos das cortes) uma parte do próprio partido português, aquela porção de funcionários que, à dissolução das autoridades centrais, iam ficar sem emprego e sem pão, os negociantes residentes, que, no caso da partida do príncipe, receavam imediata declaração de independência, revolução e guerra, todos esses eram agora os mais zelosos propugnadores da causa brasileira e declaravam unânimes que d. Pedro devia ficar.

No mesmo sentido se exprimia a imprensa diária, que só agora (desde a revogação da censura; até então existia somente um jornal oficial da corte) surgia do nada. Igualmente inúmeros panfletos; e entre esses produziu especialmente a mais profunda impressão o de Francisco de França Miranda, "O Despertador Brasiliense", pois qualificava a legislação das cortes de medida "ilegal, injuriosa, e impolítica. Ilegal, porque foi decretada sem a cooperação dos nossos representantes, e, conseguintemente, sem a manifestação geral da nação. Injuriosa, porque mostra o desdém com que o Congresso dispõe da nossa existência, como se nós fôssemos um punhado de escravos miseráveis, sujeitos ao capricho e abandonados à discrição dos seus senhores, e não um reino aliado mais poderoso, e tendo mais recursos do que o próprio Portugal. Impolítica, porque é precisamente no momento em que se escolhe para nos encher de desgostosj para tornar aos olhos do mundo inteiro a nossa separação necessária e legítima".

Além disso, foi posta em circulação e dentro em breve assinada por mais de 8.000 cidadãos do Rio de Janeiro uma representação ao presidente do Senado da cidade, na qual solicitavam e o encarregavam, como seu legítimo representante, de protestar junto ao príncipe regente contra o cumprimento dos irritantes decretos das cortes. Também esse documento, datado de 29 de dezembro, usava de termos decisivos, mesmo ameaçadores: "Nunca — declarava ele — dará o povo do Rio de Janeiro o seu assentimento à partida do príncipe regente", e, lembrando as palavras antigas de um escritor francês, Du Pradt: "Se algum dia o soberano estabelecido no Brasil voltar para Portugal, deixará após si a independência". E acrescentava o manifesto: — "O navio que reconduzir sua alteza real aparecerá sobre o Tejo com o pavilhão da independência do Brasil".

Já antes e com maior energia manifestara a província de São Paulo a sua opinião. Assim que ali chegaram ambos os decretos, com o "Diário Oficial", do Rio, de 11 de dezembro, convocou José Bonifácio de Andrada os seus colegas da junta provisória para uma assembléia extraordinária; eram 11 horas da noite, quando eles se reuniram. Ainda na mesma noite, depois de Andrada convencer com palavras calorosas e firmes todos os presentes, foi resolvida e assinada uma representação endereçada a d. Pedro, na qual o governo provincial de São Paulo exprimia a mais profunda indignação sobre o que acabava de acontecer, sobre a descarada irreverência com que as cortes haviam ousado ofender, por um lado, ao príncipe "que querem fazer viajar, como um pupilo, rodeado de aios, aspias e bedéis", por outro lado ao povo brasileiro.

"Como agora esses deputados de Portugal, sem esperarem pelos do Brasil, — dizia o memorável ofício, datado de 24 de dezembro, — ousam já legislar sobre os interesses mais sagrados de cada província e de um reino inteiro? Como ousam desmembrá-lo em porções desatadas, isoladas, sem lhe deixarem um centro comum de força e de união? Como ousam roubar a vossa alteza a lugar-tenencia que seu augusto pai e nosso rei lhe concedera? Como querem despojar o Brasil do Desembargo do Paço e Mesa da Consciência e Ordens, Conselho da Fazenda, Junta do Comércio, casa da Suplicação e tantos outros estabelecimentos novos, que já prometiam futuras prosperidades? Para onde recorrerão os povos desgraçados, a bem de seus interesses econômicos e judiciais? Irão agora, depois de acostumados por doze anos a recursos prontos, sofrer outra vez, como vis colonos, as delongas e trapaças dos tribunais de Lisboa? Quem crerá, depois de tantas palavras meigas, mas dolosas, em recíprocas igualdades e em felicidades futuras?!

"Sim, augusto senhor, é impossível que os habitantes do Brasil, que forem honrados e se prezarem de ser homens, e mormente os paulistas, possam jamais consentir em tais abusos e despotismos; sim, augusto senhor, vossa alteza real deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das cortes constituintes, não só para o nosso bem-estar, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal. Se vossa alteza real estiver, o que não é crível, pelo deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de setembro, além de perder para o mundo a dignidade de homem e de príncipe, terá sempre de responder, perante o céu, do rio de sangue que decerto vai correr pelo Brasil com a sua ausência, pois os seus povos, quais tigres raivosos, acordarão decerto do sono amodorrado, em que o velho despotismo os tinha sepultado, e em que a astucia de um novo maquiavelismo constitucional os pretende agora conservar".

Além do governo provincial, também dirigiram representações ao príncipe regente, de um lado o Senado da Câmara Municipal (31 de dezembro de 1821), de outro lado o bispo, o capítulo e o clero de São Paulo (l9 de janeiro de 1822), os quais, sob diferentes formas, repedam as mesmas idéias.

E, em completo acordo com a disposição de São Paulo, estava a agitação que, então, no princípio do ano de 1822, também fazia vibrar os espíritos além do rio Paraíba, na província de Minas Gerais.

Entretanto, não perdia d. Pedro de vista, naturalmente, a crescente agitação; porém se conservava tranqüilo, e prosseguia francamente nos preparativos de sua viagem. Somente quando lhe chegaram às mãos as primeiras manifestações da vontade nacional, o manifesto do governo de São Paulo (2 de janeiro de 1822), ele não hesitou mais e escreveu a seu pai: "Parece-me impossível cumprir ambos os decretos das cortes, porque a opinião pública é toda contra eles por toda parte, e ninguém pode contrariar essa rainha do mundo".

Todavia, antes de declarar abertamente a sua resolução, esperou ainda a extrema pressão da opinião pública.

Foi ao meio-dia de 9 de janeiro, quando as autoridades municipais da capital Rio de Janeiro se acharam no palácio real em audiência, suplicada e concedida poucas horas antes; havia-se reunido a elas um cidadão de São Pedro (Rio Grande do Sul), que se apresentava como representante de sua província170; era orador o presidente do Senado da Câmara, José Clemente Pereira. "A saída de vossa alteza real dos Estados do Brasil, — assim começou ele o seu discurso ao príncipe regente, — será o decreto fatal que sancione a independência deste reino! Exige, portanto, a salvação da pátria que vossa alteza real suspenda a sua ida, até nova determinação do soberano congresso. Tal é, senhor, a importante verdade que o Senado da Câmara desta cidade, impelido pela vontade do povo que representa, tem a honra de vir apresentar à mui alta consideração de vossa alteza real."

Em minuciosa exposição, continuou o orador a descrever o estado das coisas brasileiras: São Paulo e São Pedro compartilhavam o modo de pensar da capital, e já estava a caminho uma deputação para fazer iguais representações; ainda mais agitado era o Estado de Minas Gerais, e todo o Norte do Brasil já estava em plena dissolução; por toda parte se faziam sentir aspirações particularistas ou mesmo republicanas, o partido da independência levantava a cabeça; aonde se chegaria, se o filho do rei, o último ponto central de unidade, o derradeiro esteio da ordem monárquica e da união com Portugal se retirasse do país? Ficasse o príncipe no Brasil, até dar tempo a que o soberano congresso fosse informado; as cortes podiam estar iludidas, parte pela atitude de muitas juntas provinciais, parte por manifestações particulares; pois até houve quem daqui tivesse requerido que o príncipe regente fosse chamado do Brasil; porém, agora, não podiam desconhecer certamente a repercussão na opinião, e a retirada do funesto decreto contentará os desejos do Brasil. Competia a d. Pedro proporcionar às cortes o prazo necessário para reconsiderarem; ele devia ficar, "senão seria imediata a separação e inevitável a anarquia".

Não teriam sido necessárias palavras tão enérgicas; d. Pedro estava desde muito resolvido. "Como é, — respondeu ele, — para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico!"

"O presidente do Senado, — informou o próprio d. Pedro a seu pai sobre os acontecimentos, — assim o fez, e o povo correspondeu com imensos vivas, cordialmente dados a vossa majestade, a mim e à união do Brasil a Portugal, e à Constituição; depois de tudo sossegado, da mesma janela em que estive para receber os vivas, disse ao povo: "Agora só tenho a recomendar-vos união e tranqüilidade". E assim findou o memorável ato do grande drama brasileiro.

* * *

Não ficou só nisso; ao regozijo geral havia de misturar-se uma dissonância.

Não precisamos lembrar que existia no Rio de Janeiro um forte partido português ; a grande maioria desses residentes estrangeiros, tantos quantos pertenciam à classe dos civis, certamente não estavam menos satisfeitos que os brasileiros com a resolução do príncipe, de ficar, pois não se podiam iludir que de outro modo não se evitaria o perigo da imediata separação e da guerra civil; contudo, havia naturalmente também entre eles cabeças esquentadas, que sustentavam o princípio da incondicional obediência às cortes.

Pior que tudo era a disposição de espírito entre as tropas da Divisão Auxiliar portuguesa. Está claro que entre elas, por efeito dos acontecimentos do ano anterior, os laços da disciplina deviam estar muito frouxos; por toda parte, nas agitações de 26 de fevereiro, 5 de junho, 4 de outubro, elas haviam representado o papel principal, com armas na mão haviam extorquido concessões do governo, ao passo que os seus companheiros brasileiros e cidadãos haviam ficado apenas em segundo plano: assim, elas se julgavam os "verdadeiros representantes do povo", e tomaram muito a mal o fato de fazerem agora os civis uma não menos importante revolução, por sua própria conta.

Além disso, intervinham o antagonismo nacionalista, as insinuações dos oficiais ultraportugueses e dos residentes; em suma, os soldados se amotinaram com desenfreadas arruaças, começaram a perturbar a ordem da cidade com o seu comportamento tumultuário e clamores sediciosos; o príncipe, diziam eles, devia obedecer à ordem recebida; a cabrada, eles a manteriam em ordem.

E, para tornar a coisa ainda mais grave, pediu demissão o general comandante da Divisão, descontente com o que havia acontecido, e por não querer tomar parte na responsabilidade; conta-se mesmo que manifestou nos quartéis o seu descontentamento, sem reservas. Isto foi o sinal para aberta amotinação; a 11 de janeiro de 1822, pouco antes da meia-noite, pegaram em armas os batalhões portugueses e tomaram posição no morro do castelo, de onde, com os seus canhões, dominavam uma grande parte da cidade.

Porém, com a rapidez do raio, espalhou-se a notícia desse motim; e, ao amanhecer o dia, estavam também reunidas em armas no Campo de Sant’Ana as tropas nacionais e as milícias da capital. Enfrentavam-se assim ambos os partidos em pé de guerra e estava iminente encarniçado combate, cujo resultado poderia ser duvidoso, pois, sendo os brasileiros superiores em número, eram-no os portugueses em experiência da guerra. Todavia, tal extremidade foi evitada pela intervenção de d. Pedro. Parece que as tropas auxiliares haviam contado atemorizar com a sua sublevação, ao mesmo tempo que à cidade, ao príncipe, e obter imediato triunfo, como nas ocasiões precedentes; porém, como assim não sucedesse, o general e o corpo de oficiais recuaram, assustados talvez diante da responsabilidade de um levante completamente malogrado e da guerra civil; e, depois de algumas negociações, voltaram os batalhões portugueses à obediência, sob a condição de não serem desarmados.

Porém, essa submissão chegou tarde demais para fazer esquecer o que havia acontecido; a hostilidade contra os soldados portugueses chegou agora ao mais alto grau, e, sem o mais sério perigo para a paz pública, não se lhes podia permitir o regresso aos quartéis, a continuação de sua estada na cidade.

D. Pedro, por isso, para tranqüilizar o povo, ordenou imediatamente à Divisão Auxiliar que saísse da cidade e fosse acampar à outra margem da baía do Rio de Janeiro, na Praia Grande (Niterói), onde devia permanecer, até que se concluíssem, os preparativos para o seu embarque e repatriação; ela obedeceu e tomou no mesmo dia a posição indicada.

Ao mesmo tempo, cuidou o príncipe regente de garantir a cidade contra possível volta e ataque repentino: às embarcações de guerra, ancoradas no porto, ele recomendou a mais severa vigilância; também, no lado de terra, a meio caminho entre o acampamento português e as portas da cidade, mandou ele estabelecer as tropas provinciais e a milícia; e finalmente, ainda a 12 de janeiro, solicitou dos governos provinciais de São Paulo e Minas Gerais reforços armados.

De fato, era o estado de coisas muito crítico; a Divisão Auxiliar, no primeiro momento de contrição, havia condescendido com a transferência para a Praia Grande; porém, apenas ali chegou, de novo reapareceu o espírito de insubordinação, mais agravado ainda pela indignação por haverem cedido diante das tão menosprezadas tropas nacionais. As ordens do príncipe regente e do seu ministro da guerra foram publicamente desrespeitadas, e, por fim, quando estavam prontas as embarcações para recebê-los, negaram-se os portugueses, sob diversos pretextos, a ir para bordo; correu o boato de que eles queriam ficar até à chegada do destacamento de tropas que se esperava de Lisboa e então, reunidos a estas, tirarem vingança da vergonha sofrida.

Pode-se imaginar que impressão isso produziu no Rio de Janeiro; do seu lado, era impossível a d. Pedro sofrer que uma tropa de soldados oferecesse resistência desse modo à sua autoridade e fizesse perigar todo o resultado de seus esforços, para a manutenção da paz e união do reino; assim, resolveu obrigar os amotina-dores a partirem, se fosse preciso com emprego de força.

Depois de lhes haver repetido, a 30 de janeiro e numa proclamação de l9 de fevereiro, a ordem de embarque, foi proibida, com o máximo rigor, qualquer comunicação ou fornecimento de víveres ao acampamento português (2 de fevereiro); ameaçada assim de morrer de fome, prometeu a Divisão Auxiliar obedecer, com a condição de lhe ser concedido o adiantamento de três meses de soldo, por despedida. Porém, agora continuando, apesar de tudo, a demora, foi dom Pedro para bordo de uma fragata ancorada no porto, de onde mandou chamar a oficialidade e declarou-lhe que, se ao romper do sol no dia seguinte, não começassem a embarcar, como ele determinara, não lhes daria quartel, abriria as hostilidades por terra e por mar (9 de fevereiro). Isto produziu efeito; no dia 10, ao romper do dia, eles começaram a embarcar, como havia sido ordenado, e a 15 de fevereiro de 1822 saiu barra a fora a esquadra de transportes, que levava a Divisão Auxiliar do Rio de Janeiro.

* * *

D. Pedro não poderia ter procedido de outro modo; ele tivera que sacrificar a rebelde Divisão Auxiliar, para manter o bom entendimento com a população brasileira, e, por ele próprio, diligenciar tão solícito no afastamento dela, conseguiu firmar ainda mais a sua popularidade; porém com isso abria mão do contrapeso contra a pressão que de outro lado era exercida sobre ele, e agora não lhe restava mais outro alvitre, senão associar-se francamente ao movimento nacional.

Já ele havia antecipado essa necessidade, chamando, a 16 de janeiro de 1822, o mais eminente personagem do partido nacional, José Bonifácio de Andrada, de São Paulo, para o seu ministério, e confiando-lhe as pastas do interior, da justiça e dos estrangeiros; alguns meses depois, também o irmão dele, Martim Francisco, assumiu o cargo de ministro da fazenda; e a influência conjunta desses dois irmãos, que já se baseava nas províncias vizinhas na sua posição pessoal, porém alcançava ainda muito mais longe por sua íntima ligação com sociedades políticas secretas, dominou completamente o gabinete de d. Pedro e a subseqüente marcha dos acontecimentos.

Tal era o estado das coisas no Rio de Janeiro; com o apoio das duas províncias vizinhas, adquiriram base mais considerável. Ainda quando se tratava de afastar a Divisão Auxiliar, apresentaram-se duas deputações, a primeira de São Paulo, tendo José Bonifácio de Andrada como chefe (26 de janeiro), de sorte que ele pôde logo assumir o cargo que lhe era confiado no ministério; a segunda, vinda de Minas Gerais, da qual era chefe o vice-presidente da junta provincial, José Teixeira da Fonseca Vasconcelos (15 de fevereiro de 1822); ambas essas deputações traziam representações escritas e deviam protestar contra a partida de dom Pedro; protestos que, ao saberem da resolução de ficar, mudaram-se em alegre aplauso.

Todavia, não era tudo; retendo desse modo o príncipe regente, como chefe comum, de direito, de todas as províncias brasileiras, exprimiam ambas essas representações claramente a idéia de que importava colocar junto desse ponto central monárquico da unidade brasileira uma representação popular, a fim de, por um lado, estabelecer entre as diversas províncias mais ligação e interesse mútuo, por outro lado adquirir mais força perante Portugal.

A deputação paulista lembrou a criação de uma junta de deputados provinciais; a de Minas Gerais referia-se mesmo a cortes constituintes. A coisa era arriscada; constituir por sua própria autoridade uma tal representação brasileira, seria atribuir-se as mais altas prerrogativas de soberania; e, mais que tudo, mais do que mesmo a última consumada desobediência, as cortes de Lisboa haviam de melin-drar-se, quando se ameaçasse de opor-lhes a concorrência de uma assembléia nacional; Andrada, de quem provavelmente primeiro partiu essa idéia e a quem competia agora, como ministro recém-nomeado, realizá-la, julgou por isso mais aconselhável proceder com prudência e dar à nova representação popular a simples forma de um conselho de Estado.

Um decreto do príncipe regente, também firmado por Andrada, que foi publicado no dia imediato ao da partida da Divisão Auxiliar (16 de fevereiro de 1822), instalava um Conselho de Procuradores Gerais das províncias do Brasil, com precedência sobre todas as outras corporações públicas. Nesse conselho, devia representar-se cada uma das províncias, conforme o tamanho e importância, por um, dois, ou três procuradores gerais, que eram eleitos, segundo o modo estabelecido para as eleições de deputados, e por outro lado, no caso de não desempenharem devidamente as suas obrigações, poderiam ser exonerados de seus cargos e substituídos, por decisão dos seus círculos eleitorais; além disso eram concedidos aos ministros voto e assento nesse conselho, assim como era reservada ao príncipe regente a presidência, bem como a convocação.

Finalmente, quanto às suas atribuições, eram elas bastante limitadas: os procuradores deviam dar seu conselho, mas somente quando pedido, sobre os mais importantes negócios do Estado, especialmente nos planos de reformas, bem como "propor, discutir e deliberar sobre os negócios mais interessantes das suas províncias, formando projetos peculiares e acomodados às suas localidades e urgências".

Recomendava-se a todas as autoridades provinciais providenciassem para que fossem imediatamente verificadas as necessárias eleições, e, logo que estivessem reunidos os procuradores, pelo menos de três províncias, deveria entrar o conselho no exercício de suas funções.

Todavia, para isso, ainda havia vagar; pois nas províncias do Norte, onde mesmo era contestada a autoridade do príncipe regente, o decreto não chegou à execução; e nas províncias do Sul, Minas Gerais, São Paulo e São Pedro, as eleições demoraram meses, de sorte que os procuradores gerais eleitos pelo Rio de Janeiro debalde esperaram pela chegada de outros colegas. Somente da longínqua Montevidéu chegou um deputado, porém, só de passagem, pois ele havia sido eleito para tomar assento nas cortes de Lisboa; deixou-se ele, entretanto, facilmente convencer, para, em vez disso, ficar no Rio e apresentar-se mesmo como procurador geral de sua pátria, a recém-adquirida província brasileira Cisplatina (princípio de março de 1822).

Num dos dias seguintes (9 de março), apareceu à barra do Rio de Janeiro a esquadra portuguesa, cuja vinda estava desde muito anunciada e esperada; conduzia a divisão de tropas que devia servir para reforçar ou para substituir a Divisão Auxiliar, consoante a resolução das cortes.

Depois do que havia acontecido recentemente, o governo de d. Pedro, mesmo que o quisesse, não poderia, sem correr o maior risco, receber uma nova guarnição portuguesa no Rio, tanto menos porque era de supor que desta vez houvessem sido dadas ao comandante superior português instruções de completa independência perante as autoridades brasileiras.

Mandou-se, por isso, logo ordem à esquadra de fundear fora da barra; somente foram chamados à terra ambos os comandantes superiores, o da frota e o das tropas de desembarque; o próprio d. Pedro declarou-lhes que, antes de tudo, eles deviam prometer por escrito incondicional obediência a ele, príncipe regente, não obstante quaisquer instruções contrárias que tivessem, e os oficiais, que não ousavam ofender o príncipe herdeiro da coroa, conformaram-se com essa exigência.

No dia imediato, entraram os navios e ancoraram sob os canhões das fortalezas, todavia somente para curta demora necessária; não se permitiu desembarque, ao passo que os oficiais portugueses não tiveram remédio senão consentir em que se recrutassem entre as suas tropas soldados para os regimentos brasileiros.

Depois de haverem por este modo seiscentos homens trocado o serviço português pelo brasileiro, e por outro lado haverem se abastecido os navios de víveres e água, teve a esquadra que levantar ferros e voltar para Portugal (24 de março).

* * *

Durante esses sucessos no Rio de Janeiro e nas províncias do Sul de igual política, era também o Brasil central e do Norte teatro de importantes acontecimentos.

Sabe-se que todas essas províncias, da Bahia para cima, franca ou tacitamente repeliam a autoridade do príncipe regente; a ordem para seu regresso, dada pelas cortes, a sua resolução de ficar, e a instituição de um novo ministério, bem como

de um conselho de procuradores gerais, nada de tudo isso impressionou aqui diretamente, embora a notícia dos fatos, ao se espalhar ao longe, pouco a pouco, contribuísse grandemente para promover e fortalecer o movimento nacional brasileiro, que por toda parte se patenteava.

Nas províncias do Norte, a tranqüilidade, de resto, não havia sido ainda seriamente perturbada: os elementos brasileiros e os portugueses, nas juntas dos governos e no povo, conviviam, se não amigavelmente, ao menos em paz, e a execução de muitos dos decretos das cortes não esbarrava em obstáculo algum; assim se instalaram num e noutro ponto, sem dificuldade, os novos comandantes militares, somente responsáveis perante o ministério de Lisboa, mesmo pequenas guarnições portuguesas.

Outro era o caso nas províncias centrais, onde, em ambos os portos, Pernambuco e Bahia, o antagonismo nacionalista já estava em máxima tensão, e, de fato, também ali a hostilidade visava, sobretudo, as tropas da guarnição portuguesa, com as quais já no fim do ano precedente se haviam dado sangrentos atritos e combates de rua.

Agora, rebentava na Bahia formal guerra civil. Foi que, a 14 de fevereiro, havia ali chegado um decreto de Lisboa que, pela preterição do geralmente estimado então comandante, investia no comando supremo a um oficial mais moço, o general Madeira; porém este, por sua energia sem contemplações e seu modo de pensar ultraportuguês, era tão malquisto, quanto temido. Por isso, quando ele quis assumir o comando e os batalhões portugueses se reuniram em torno de sua bandeira, as tropas brasileiras francamente lhe recusaram a obediência (16 de fevereiro).

Isso deu lugar a combate encarniçado nas ruas, que durou três dias, 18, 19 e 20 de fevereiro; afinal, tiveram as tropas nacionais, completamente vencidas, que se retirar da cidade de Salvador.

Ficava, agora, o general Madeira senhor absoluto na cidade, e, se ele não julgou, em todo caso julgaram os residentes portugueses e as cortes de Lisboa que isso fosse uma grande vantagem, cheia de conseqüências; porém, em breve se desenganaram; eles iam aprender, como o haviam aprendido em século anterior os holandeses, que, num país meio selvagem como o Brasil, a posse de uma capital e de um porto era coisa pouco decisiva. Pois, o resto das tropas nacionais dispersadas reuniu-se de novo, dentro de algumas semanas; acudiu em grande número em torno delas a milícia, inflamada pelo ódio antigo e recente; e assim acampava, em breve, junto das muralhas de São Salvador, um corpo de assédio brasileiro, que, fraco demais para fazer perigar a cidade, era todavia bastante forte para cortar-lhe toda comunicação com o interior.

Assim, o triunfo, que os portugueses haviam alcançado na cidade, proporcionou ao partido nacional completo predomínio no interior da Bahia. E, o que era mais importante, os chefes desse partido compreendiam agora, uma vez que se achavam empenhados em guerra aberta, a necessidade de procurar um apoio qualquer; e onde melhor poderiam achá-lo do que no Rio de Janeiro?

Assim, trataram de entrar ali em ligação, e por esse meio facilitaram pouco a pouco ao governo de d. Pedro estender a sua autoridade também sobre a província da Bahia.

Na vizinha província de Pernambuco correram as coisas mais pacificamente. Aqui era a tropa portuguesa de guarnição muito mais fraca, apenas um batalhão, e não podia oferecer resistência à aversão unânime do povo e do exército; ante as representações da junta do governo, havia a guarnição, depois de algumas negociações, embarcado voluntariamente para Portugal; e, pouco depois, também aqui, como havia acontecido no Rio de Janeiro, se conseguiram repatriar amigavelmente as tropas que apareceram no porto para substituir a guarnição (março).

Com isso, estava Pernambuco definitivamente livre da ocupação estrangeira, não havia perigo algum iminente a recear. Nestas circunstâncias, como se pode imaginar, estava o governo provincial tanto menos inclinado a renunciar à sua situação independente, a qual havia até então conservado, em face dos governos de Lisboa e do Rio de Janeiro. Todavia, ao mesmo tempo a Bahia dava um exemplo de advertência sobre os perigos da desunião, e secretamente atuavam diversos agentes do governo de d. Pedro, com incansável zelo; de sorte que resultou na opinião pública um completo reviramento contra essas veleidades particularistas.

A l9 de junho de 1822, declararam-se povo e soldados e, obrigados por estes, também ajunta provincial, em favor da adesão ao Rio de Janeiro; solenemente se proclamou a autoridade do príncipe regente; e o exemplo de Pernambuco, pelas seguintes semanas, repercutiu nas pequenas províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, e mesmo até no Ceará.

Lancemos agora um olhar para Lisboa, onde ainda continuavam os deputados portugueses e brasileiros, nas sessões das cortes, a ocupar-se, uns e outros, especialmente com as deliberações sobre a futura Constituição dos Reinos Unidos. Está claro que nessa ocasião os deputados brasileiros procuravam ardorosamente assegurar o bem de sua própria pátria, e não cessavam de chamar a atenção para a ameaçadora disposição dos espíritos ali; porém só encontravam ouvidos surdos. Se bem que, desde o decreto provisório de 29 de setembro de 1821, nada de definitivo ficara resolvido, contudo repetiam-se continuamente, na tribuna e nos relatórios das comissões, os propósitos de recolonização.

Somente em março de 1822, às notícias do que havia acontecido no Rio e na Bahia, ficou um tanto cautelosa a maioria portuguesa. Não só se assentou então em prolongar provisoriamente a estada do príncipe regente no Brasil, em prorrogar o mandato das autoridades centrais ali em função, como também se começou a considerar se não seria aconselhável, por ocasião da nova organização política definitiva, estabelecer ali uma regência, como poder central. Todavia, contra isso se levantaram muitas vozes, que queriam a união direta das diferentes províncias com Lisboa.

E, quando afinal se puseram de acordo, foi quanto possível reduzida nos respectivos parágrafos a autoridade da futura regência brasileira; também ela não devia ter o concurso de assembléia alguma nacional, de nenhum órgão legislativo; porém as cortes de Lisboa, portanto uma maioria absolutamente portuguesa, reservavam-se também para o futuro o exclusivo direito de dar leis ao Brasil. Pequenas concessões desta ordem, como as que se foram dando no correr do verão de 1822 (até 23 de setembro), quando os trabalhos da Constituição do Reino Unido se completaram, ainda um ano antes poderiam ter servido para sossegar o Brasil; agora, quando ali a torrente da opinião pública impelia para a organização política completamente independente, em todo caso conservando a união pessoal portuguesa, já chegavam muito tarde demais; e as notícias que vinham, no tocante às negociações e resoluções, só serviam para ainda mais irritar os patriotas brasileiros de sangue esquentado.

E ainda mais contribuíram igualmente nesse sentido algumas outras medidas.

Primeiro que tudo, tomou-se muito a mal, quando, em vista das hostilidades que começavam, o gabinete de Lisboa proibiu com o máximo rigor a exportação de armas e munições para o Brasil, e disso notificou oficialmente a todos os portos amigos da Europa (fevereiro até março de 1822); via-se nisso, como exprimiu o teor de um manifesto no Rio, "o prelúdio de uma declaração de guerra, motivada por nossa resistência contra o sistema da recolonização".

Não menor desgosto produziu o haver-se discutido nas cortes a respeito de entabular negociações com a Espanha sobre a troca da Província Cisplatina (Banda Oriental) pela velha cidade portuguesa de Olivença. Na verdade, era a idéia muito natural, pois, como se sabe, havia d. João VI, no seu tempo, de certo modo conservado a Banda Oriental como penhor por Olivença, que os espanhóis ocupavam obstinados, apesar da estipulada restituição; porém, aos brasileiros pareceu como se a tenção fosse mutilar o corpo do seu império e enfraquecê-lo.

E a isso acrescentaram-se outros boatos mais desastrosos; falava-se no Rio de Janeiro que as cortes e o gabinete de Lisboa negociavam com a coroa da França sobre cooperação armada, para suplantar uma eventual revolução brasileira, e, como preço de tal serviço, haviam oferecido uma cessão parcial da Guiana Brasileira (província do Pará); idênticas negociações estavam também em andamento com a Inglaterra, e a esta potência, pelo mesmo serviço, prometiam-se a prorrogação e ampliação do vantajoso tratado de comércio de 1810.

Sob a impressão de tais boatos e notícias, chegou ao seu auge no Rio de Janeiro a irritação longamente alimentada contra as cortes de Lisboa; agora não se queria mais ouvir falar nelas, não se admitia mais que tivessem autoridade sobre o Brasil, e sempre mais alto se exigia uma assembléia representativa propriamente nacional.

Além disso, retumbava a cidade de preparativos de guerra; precisamente agora, os acontecimentos da Bahia haviam produzido a mais profunda impressão; era preciso socorrer os patriotas baianos contra os tiranos estrangeiros, e a esse respeito eram todos unânimes; e, enquanto o governo fazia os preparativos para uma expedição, voluntários sem conta acudiam às bandeiras.

No meio dessa agitação, havia o príncipe regente provisoriamente saído da sua capital, pois acontecimentos suspeitos haviam-no chamado à vizinha província de Minas Gerais. A junta provincial dali, como já se mencionou, logo depois de instalada, tinha revelado certas ambições particularistas, porém, em breve, ao exemplo de São Paulo, de novo se havia chegado para a regência do Rio, e ainda recentemente mandara saudar d. Pedro por uma deputação (15 de fevereiro); agora, entretanto, voltavam-lhe as antigas veleidades e comportava-se como inteiramente independente.

À primeira notícia desses fatos, havia seguido o príncipe regente para Minas Gerais, a fim de firmar ali a sua autoridade (25 de março); só, sem acompanhamento militar, ele transpôs os limites, e, por demonstrar desse modo tão generosa confiança, conquistou os corações dos mineiros; a revolta calou-se diante do júbilo com que o povo saudou o príncipe; sem encontrar oposição em parte alguma, ele chegou, a 9 de abril, à capital da província, Vila Rica de Ouro Preto, e fez ali estabelecer um novo governo provincial, seguro, em lugar do existente de até então, governo que lhe garantiu daí em diante a adesão dessa importante província.

* * *

A 25 de abril, regressou d. Pedro ao Rio de Janeiro, onde encontrou tudo na maior agitação e viu que a força premente das circunstâncias lhe traçava decisivo modo de conduta. Ao passo que de um lado fazia zelosas diligências para ativar os preparativos de socorro à Bahia, escrevia ao mesmo tempo para Lisboa, ao seu

augusto pai, em 28 de abril, recomendando com termos fortes as atuais exigências do povo: "Peço a vossa majestade que mande apresentar esta às cortes gerais, para que elas saibam que a opinião brasileira, e a de todo homem sensato que deseja a segurança e integridade da monarquia, é que haja aqui cortes gerais do Brasil, com atribuições legislativas, e, assim, ou as cortes gerais do Reino Unido em Lisboa nos concedem de bom grado, as nossas particulares, ou, então, eu mesmo as convoco".

De fato, pode ser que d. Pedro assim resolvesse, como se pode depreender das expressões dessa carta; talvez também fosse propensão de seu ministro Andrada dar às cortes de Lisboa um prazo para resolverem; o povo do Rio de Janeiro era, porém, de outra opinião; e, antes mesmo que essa carta pudesse ter chegado a Portugal, já havia o povo conseguido o seu intento, sem tumultos, por meio de simples manifesto e discursos, não tendo o governo de d. Pedro nem poder nem vontade para oferecer-lhe resistência.

Primeiramente, quando, a 13 de maio, dia do aniversário do reinante d. João VI, o príncipe regente recebia, em nome de seu augusto pai, os cumprimentos de praxe, apareceu também o senado da cidade na audiência, e, apresentando-se como órgão da capital e da província de igual nome e de todo o reino do Brasil, traduziu o desejo de que, em consideração aos iminentes perigos, dos quais eram prenúncios os sucessos na Bahia e a proibição de importação de armas, se dignasse d. Pedro, para proclamar a sua firme resolução e para sossegar os ânimos em geral, assumir o título de "protetor e defensor perpétuo do Brasil".

"O título que este povo leal e generoso me oferece — foi este o teor da própria resposta de d. Pedro, segundo ele mesmo a registrou — honra-me sobremaneira e enche-me de orgulho; contudo, não o posso aceitar, desse modo. O Brasil não precisa da proteção de ninguém; ele mesmo se protege. Porém, aceito o título de "defensor perpétuo", e juro provar-me digno dele, enquanto correr uma gota de sangue nas minhas veias".

Incontinenti, foi redigida e publicada a declaração; de igual modo foi publicado segundo documento, no qual assinaram as autoridades civis e militares da cidade, declarando o seu reconhecimento e homenagem; e os numerosos votos de felicitações, que em breve começaram a chegar, de perto e de longe, provaram que o novo título havia causado em geral boa impressão.

De importância ainda maior foi a ocorrência de 23 de maio. Apresentou-se, de novo, o senado da cidade do Rio de Janeiro em palácio, para entregar ao príncipe regente, em solene audiência, um manifesto que nas últimas semanas havia circulado na capital e estava coberto de numerosas assinaturas.

Tal qual todas as outras atas da época, usava também esta, datada de 20 de maio, de linguagem tão empolada quanto enérgica, e manifestava-se não somente em nome da capital, onde havia sido redigida, porém, ao mesmo tempo, em nome daquelas províncias todas que reconheciam a autoridade de d. Pedro — conforme os seus termos, em nome das "Províncias Coligadas", Rio de Janeiro, São Paulo, São Pedro e Cisplatina.

Depois de uma longa enumeração de todas as queixas, eram nela renegados formalmente o Congresso dos Reinos Unidos e as cortes de Lisboa, porque faltaram, de muitos modos, para com o Brasil e toda a nação, contra os princípios da moral, da igualdade, da natureza, da política e da razão, e declarava que o soberano Reino do Brasil queria cassar as suas delegações de plenos poderes da sua soberania.

"O Brasil deseja conservar a união com Portugal, sujeito a um rei comum a ambos; porém, o espaço imenso que os separa, a diversidade de elementos e interesses de ambos os povos tornam impossível doravante um congresso legislativo em comum, porque o mesmo lançaria o germe da morte na felicidade do Brasil". Por isso, urgia que o príncipe regente convocasse imediatamente ao Rio de Janeiro uma "assembléia geral" de deputados de todas as províncias brasileiras, para que esta exercesse o poder legislativo para o Brasil e resolvesse sobre as justas condições e as formas sob as quais o Brasil deveria permanecer unido a Portugal.

"O Brasil, no meio das nações independentes — assim concluía o manifesto, referindo-se às colônias espanholas separadas — não pode conservar-se colonial-mente sujeito a uma nação remota e pequena, sem forças para defendê-lo, e ainda menos para conquistá-lo. As nações do universo têm sobre nós e sobre ti os olhos, príncipe; de ti depende que apareçamos diante delas como rebeldes, ou como homens livres e dignos de o ser".

"Tu já conheces os bens e os males que te esperam e à tua posteridade… Queres ou não queres? Resolve, senhor!"

E no mesmo sentido foi o discurso com que o presidente do conselho municipal entregou esse manifesto; principalmente, ele repetiu com mais força o que já meses antes as deputações de São Paulo e Minas Gerais haviam significado: "Como remédio único, a convocação de uma assembléia geral era imprescindível, para restabelecer e fortalecer a unidade do Brasil, a união de todas as províncias; só ela podia manter a união com Portugal".

Portanto, uma simples união pessoal com Portugal, e uma regência própria, uma assembléia legislativa constituinte, eram esses os princípios básicos do programa político para o Brasil, como agora o Rio de Janeiro definitivamente o formulava.

Se ele era pouco do agrado do povo português, em todo caso os interesses dinásticos da casa de Bragança ficavam garantidos, e d. Pedro, já desde muito, sem dúvida, devia ter-se habituado a essas idéias. Assim respondeu ele ao conselho municipal: "Fico ciente da vontade do povo do Rio, e, tão depressa saiba a das mais províncias, ou pelas câmaras ou pelos procuradores gerais, então imediatamente me conformarei com o voto dos povos deste grande, fértil e riquíssimo reino".

* * *

Certamente era muito justa a tal cláusula, porém executá-la à letra seria demorado e em parte impossível; dificilmente, também, esperaria o Rio de Janeiro tanto tempo. Foi preciso, por esse motivo, contentar-se com um simples subterfúgio: um decreto do príncipe regente, de l9 de junho, convocava para uma sessão no dia seguinte todos os procuradores gerais já eleitos, e presentes no Rio de Janeiro. De fato, pelo texto do decreto instituidor, de 16 de fevereiro, era necessário que estivessem reunidos, pelo menos, os procuradores de três províncias, para que o conselho entrasse no exercício de suas funções, e estavam presentes, além de ambos os procuradores gerais do próprio Rio de Janeiro, apenas um, duvidosamente autorizado, o de Montevidéu; todavia, a urgência das circunstâncias desculpava essa deficiência; e, assim, constituiu-se o Congresso Nacional, a 2 de junho, com os três procuradores gerais e os ministros, sob a presidência do próprio d. Pedro.

Depois de haverem todos jurado fidelidade à religião católica romana, à casa real de Bragança e ao príncipe regente, e em seguida prestado o compromisso de sustentar a soberania e integridade do Brasil, abriu d. Pedro a sessão com um discurso no qual ele saudava os deputados presentes e requeria o seu conselho, em relação à situação política.

No dia seguinte, na segunda sessão, recebeu como resposta uma representação dos procuradores gerais, na qual estes se associavam sem reservas aos desejos do povo do Rio de Janeiro, e propunham a imediata convocação de uma assembléia geral. E, logo em seguida "a representação dos procuradores gerais de algumas províncias do Brasil e de diferentes câmaras e povo de outras", — que assim resumia o próprio decreto, — foi ainda avisado no mesmo dia, 3 de junho de 1822, pelo ministro de Estado José Bonifácio de Andrada, deixando para ulterior regulamentação os pormenores a respeito das eleições e outros, — convocava-se uma "assembléia geral constituinte e legislativa", composta dos deputados das províncias do Brasil, e essa assembléia, conforme se propusera, seria revestida com a parte de soberania que compete ao povo deste continente, e incumbir-lhe-ia determinar os princípios sobre os quais se haveria de fundar, de um lado, a independência do Brasil, e, de outro, a tão desejável união com os mais ramos da grande família portuguesa.

Pode-se imaginar o júbilo com que foi acolhido esse decreto; voltou de novo o Senado da Câmara, para exprimir, com superabundância de palavras, os seus agradecimentos; o povo e as tropas da capital renovarem o juramento de fidelidade ao príncipe; mesmo se chegou a falar em aclamá-lo "rei do Brasil", e a seu pai, o rei d. João — "imperador dos Reinos Unidos de Portugal, Brasil e Algarves"; e o próprio d. Pedro, quando a 19 de junho informava a seu pai, declarava-se pronto, naturalmente de preferência com igual licença, a aceitar esse título.

Igualmente nessa mesma carta de 19 de junho de 1822, declara decisivamente, no seu nome e no do Brasil, que não obedecerá às cortes de Lisboa: "O Brasil, senhor, ama a vossa majestade, — diz ele, — reconhece-o e sempre o reconheceu como seu rei; foi sectário das malditas cortes, por desgraça ou felicidade (problema difícil de decidir-se); hoje, não só as abomina e detesta, mas não lhes obedece, nem lhes obedecerá mais, nem eu consentiria em tal, o que não é preciso, porque de todo não querem senão as leis de sua assembléia geral constituinte e legislativa".

Resta saber se nestas duras palavras, — e não são as mais duras de que dele se serviu contra as cortes, — d. Pedro, o príncipe educado no absolutismo, não expandia o mesmo ódio que animava outros membros da casa de Bragança, e que no ano seguinte motivou a contra-revolução portuguesa.

Em todo caso, com estas palavras ele exprimia os sentimentos do Rio de Janeiro e de todo o partido nacional brasileiro; era uma declaração de independência do Brasil, não do rei, porém das cortes e do povo português.

* * *

Até aqui haviam as coisas sido bem sucedidas, quando o governo de d. Pedro, cujo influxo e atividade se haviam limitado até então somente às províncias do Sul, começou a tomar em séria consideração também as províncias do Norte. Se d. Pedro rompera com as cortes, que então eram ainda todo-poderosas, com isso comprometendo a sua posição de príncipe herdeiro presuntivo, a sua herança de Portugal, interessava-lhe tanto mais assegurar para si todo o Brasil; importava, portanto, reunir em torno de sua bandeira as províncias dispersas, afastar do país os elementos ameaçadores nacionais portugueses.

Já desde algum tempo se haviam entabulado, para esse fim, relações, primeiramente com as províncias centrais, e justamente então chegava a notícia de um importante êxito: a l9 de junho havia Pernambuco reconhecido, por uma resolução do governo, do povo e do exército, a autoridade de d. Pedro, e estava a caminho uma deputação, para trazer ao Rio a sua homenagem.

Também os baianos almejavam associar-se às províncias coligadas do Sul; porém, eles vinham suplicando socorro, pois a sua capital e porto estavam nas mãos do general português Madeira e do partido ultraportugues; e, se bem que tivessem estabelecido cerco contra Salvador, sentiam-se impotentes por suas próprias forças a levá-lo avante com sucesso.

D. Pedro não tardou a tomar medidas em seu favor: a 15 de junho expediu, como herdeiro presuntivo da coroa e príncipe regente, uma carta régia ao general Madeira, na qual ele lhe ordenava que embarcasse imediatamente com todas as tropas portuguesas para fora da Bahia, para a Europa; ele próprio ficaria responsável perante seu augusto pai por essa medida indispensável ao interesse da tranqüilidade do Brasil. Segunda carta do mesmo dia ordenava à junta provisória do governo que preparasse as necessárias embarcações, sobretudo favorecesse e apressasse de todo modo o regresso de Madeira.

E, dois dias depois, a 17 de junho, foi publicada uma proclamação, na qual o príncipe regente convidava os seus "amigos baianos" a associarem-se lealmente às províncias coligadas e demonstrarem a velha intrepidez brasileira. É possível que esse apelo cooperasse de modo importante para estimular o corpo de bloqueio do Salvador e abafar os últimos pruridos particularistas; tanto menor impressão produziu a carta régia; o general Madeira, apoiado nas instruções que havia recebido, negou-se francamente a obedecer: ele devia conservar a Bahia, e havia de fazê-lo, até nova ordem de Lisboa.

E, mais ou menos ao mesmo tempo que essa repulsa, chegava ao Rio de Janeiro a notícia de que as cortes de Lisboa, em extremo irritadas, haviam resolvido e preparado novas remessas de tropas. Então, chegavam as coisas ao extremo: d. Pedro, como príncipe regente e defensor do Brasil, considerando que seu augusto pai, d. João VI, estava prisioneiro, sem vontade própria, nas mãos das cortes, declarou francamente ao governo de Lisboa que lhe recusava obediência e que ficavam rotas as relações oficiais; fazia-o agora, não mais numa simples carta particular, como a 19 de junho, porém em dois documentos oficiais, ambos de l9 de agosto; e, ao passo que num e noutro manifestava a sua vontade de manter de pé, não somente no momento, a amizade e as relações comerciais entre Brasil e Portugal, mas, igualmente para assegurar os vínculos políticos de união pessoal, ele declarava, de modo mais decisivo e enérgico, que estava preparado para a defesa, e resolvido a não mais aturar soldados portugueses no solo brasileiro.

São estas, em suma, as idéias mestras em ambos esses documentos de l9 de agosto de 1822; entretanto, por sua decisiva importância, havemos de examinar cada um de per si. O primeiro deles, um decreto dirigido a todas as autoridades civis e militares, ordenava que se tratasse imediatamente de fortificar todos os portos brasileiros e de exercer neles a mais estrita vigilância; tropas portuguesas, que chegassem, deveriam ser impedidas de desembarcar, e, logo que se lhes fornecessem todos os mantimentos, deveriam dar volta; no caso de não quererem as ditas tropas obedecer a estas ordens, e que ousassem desembarcar, deveriam ser rechaçadas com armas na mão, por todas as forças e meios; se, apesar de todos esses esforços, não se lograsse êxito, ficava recomendado aquele sistema bárbaro de guerra, que nos países semi-selvagens nunca falha: os habitantes, que se retirassem de seus domicílios, levando para o interior todos os seus teres e haveres, todos os mantimentos e boiadas, e de lá fizessem inexorável guerra de guerrilhas contra os invasores, até os aniquilar.

O segundo documento era um "Manifesto aos Povos do Brasil", assinado por d. Pedro e redigido por um dos procuradores gerais do Rio de Janeiro, Joaquim Gonçalves Ledo.

"Está acabado o tempo de enganar os homens". Com estas palavras emprestadas de uma proclamação do tempo da Revolução Francesa, começa o extenso documento: "Os governos, que ainda querem fundar o seu poder sobre a pretendida ignorância dos povos ou sobre antigos erros e abusos, têm de ver o colosso de sua grandeza tombar da frágil base sobre que se erguera outrora. Foi por assim o não pensarem que as cortes de Lisboa forçaram as províncias do Sul do Brasil a sacudir o jugo que lhes preparavam; foi por assim pensar que eu agora (o príncipe regente) já vejo reunido todo o Brasil em torno de mim, requerendo-me a defesa de seus direitos e a manutenção da sua liberdade é independência. Cumpre, portanto, ó Brasileiros, que eu vos diga a verdade: ouvi-me, pois!"

Em longas frases prosseguia o manifesto, recapitulando as agitações de até então, dizendo os erros cometidos por Portugal e as cortes, o que se havia conseguido à custa de esforços, para depois descrever com as mais brilhantes cores a nova era, que a abertura das assembléias gerais constituintes iniciaria para o Brasil.

"Acordemos, pois, generosos habitantes deste vasto e poderoso império! Está dado o grande passo da vossa independência e felicidade, há tanto tempo preconizadas pelos grandes publicistas da Europa. Já sois um povo soberano, já entrastes na grande sociedade das nações independentes, a que tínheis todo o direito. E a vossa augusta assembléia, com mão segura, fundará a nova organização do Estado".

"Não temais as nações estrangeiras: a Europa, que reconheceu a independência dos Estados Unidos da América e que ficou neutra na luta das colônias espanholas, não pode deixar de reconhecer a do Brasil, que com tanta justiça e tantos meios e recursos procura também entrar na grande família das nações".

"Que vos resta, pois, Brasileiros? Resta-vos reunir-vos todos em interesses, em amor, em esperanças".

"Não se ouça, pois, entre vós outro grito que não seja "união". Do Amazonas ao Prata não retumbe outro eco que não seja "independência". Formem todas as nossas províncias o feixe misterioso que nenhuma força pode quebrar. Desapareçam de uma vez antigas preocupações, substituindo o amor do bem geral ao de qualquer província ou de qualquer cidade! Deixai, ó Brasileiros, que obscuros blasfemadores soltem contra vós, contra mim, injúrias, calúnias e baldões; deixai que digam que atentamos contra Portugal; deixai que clamem que nos rebelamos contra o nosso rei; ele sabe que o amamos como a um rei cidadão! Deixai que vozeiem, querendo persuadir o mundo de que quebramos todos os laços de união com os nossos irmãos da Europa; não, nós queremos firmar em bases sólidas essa união!"

E, na conclusão do manifesto, dirigia-se d. Pedro a cada uma das províncias: aos baianos, a quem assegura o seu compadecimento e auxílio e estimula-os a combater sem tréguas contra as tropas portuguesas, "esses monstros que se sustentam do vosso sangue"; aos mineiros e pernambucanos, para quem apela, a fim de voarem em socorro da Bahia; finalmente, aos habitantes do Norte, Ceará, Maranhão e Pará, a quem ele convida a aderirem às províncias coligadas. "Brasileiros em geral! reunamo-nos! Sou vosso compatriota, sou vosso defensor; a minha felicidade reside na vossa felicidade; é minha glória reger um povo brioso e livre. Dai-me o exemplo das vossas virtudes e da vossa união. Serei digno de vós!"

Assim concluía o manifesto aos povos do Brasil (l9 de agosto de 1822). Alguns dias depois, 6 de agosto, publicou d. Pedro segundo manifesto, a todos os governos e nações amigas, no qual lhes dava parte circunstanciada e justificativa de tudo que havia acontecido até então, e do atual rompimento de relações oficiais entre o Reino do Brasil e o governo do momento em Lisboa — "o próprio rei era prisioneiro de uma facção"; convidava-os ao mesmo tempo a continuarem "as mesmas relações de mútuo interesse e amizade", e travarem relações diplomáticas diretamente com o governo do Rio de Janeiro; os seus diplomatas, "os seus sábios, os seus artistas, os seus empreendedores, os seus colonos", seriam todos bem-vindos, como antes, no Brasil. Nos pormenores, não oferece o manifesto nada de especial interesse; somente para recapitular a situação política do momento e o ponto de vista do governo de d. Pedro, mencionamos que o príncipe regente, nesse documento, assim como nos outros, certamente declarava a firme resolução de manter a autonomia política e independência do Brasil, cujos direitos e futura constituição ele prometia defender até à última extremidade, porém, "sob a reserva de justa e razoável união com as restantes partes da monarquia lusitana, sob um só rei".

Ao mesmo tempo que esses manifestos, que deviam informar o povo e o mundo todo do novo programa político, publicou o governo, num decreto de 3 de agosto, o regulamento das eleições e outras disposições relativas à convocação do primeiro congresso, decretada a 3 de junho, de sorte que os trabalhos das eleições pudessem começar seriamente daí em diante.

Também a expedição em socorro dos patriotas baianos, contra o general Madeira, a qual se aprestava havia tanto tempo, finalmente se fizera de vela.

Todavia, primeiro que tudo reclamavam a atenção do governo os acontecimentos de São Paulo, onde justamente então se haviam declarado sérias dissensões no seio do partido nacional e no da própria junta provincial. O próprio d. Pedro partiu para ali (14 de agosto), a fim de conservar a paz interior, o que ele conseguiu sem grandes esforços, com a sua mediação pessoal, depois do que demorou em São Paulo algumas semanas, parte na capital, parte em viagens.

* * *

O tempo dessa sua estada ali trouxe novo sucesso decisivo para a causa da independência brasileira. O ponto de vista, que o governo de d. Pedro havia tomado nessa questão, se não era propriamente dúbio, todavia era artificial demais, para poder contar com a geral aprovação. O povo não compreendia a frase do rei prisioneiro, que, portanto, não compartilhava da culpa das cortes portuguesas, nem podia conceber como seria conciliável a independência com a subsistência da união pessoal; tais teoremas e dubiedades não podiam de modo algum entusiasmar as massas; e os patriotas exaltados instavam que se acabasse de uma vez com isso, que, assim como se havia rompido com as cortes, se rompesse com o rei de Portugal e que se proclamasse completa separação da monarquia lusitana.

Necessariamente d. Pedro havia de resistir "a tal extremidade; não só porque, com semelhante modo de proceder, ele assumia a culpa, ou pelo menos as aparências de rebelião contra o seu augusto pai, mas também porque ele, o legítimo herdeiro dos Reinos Unidos, com isso perdia a sua porção européia. Todavia, a sua posição não era de molde a que ele pudesse manifestar a sua vontade própria perante a pressão da opinião pública; já que se havia adiantado tanto, não podia, não devia deixar perder-se todo o esforço de até então, devia também dar o último passo; assim, durante a sua estada em São Paulo, às representações, sobretudo da câmara municipal e de outros homens influentes, havia-se ele resolvido a romper de modo mais decisivo do que até então, irrevogavelmente, com Portugal.

Isso aconteceu a 7 de setembro de 1822, na planície do Ipiranga, que, regada pelo riacho do mesmo nome, se estende não longe da cidade de São Paulo; ali foi que d. Pedro soltou o brado — "Independência ou Morte", ao qual se juntaram jubilosas as aclamações inúmeras do povo, que acudia em massa compacta; imediatamente, ele arrancou o tope português que trazia, que com ele os brasileiros ainda sempre usavam e, em troca, atou ao braço uma fita verde, na qual, em cercadura de um triângulo de ouro, estavam como lema as palavras acima citadas. Todo esse acontecimento não teve feição propriamente oficial, porém a de inspiração do momento; contudo, ele deu à causa nacional um lema e uma insígnia, e, por isso, festeja o Brasil, desde então, o dia 7 de setembro como aniversário, a planície do Ipiranga como berço da independência nacional17

A 15 de setembro, regressou d. Pedro de São Paulo para o Rio, onde, nessa mesma noite, apareceu no teatro com a nova insígnia, e repetiu o brado de guerra, de — Independência ou Morte! Aqui se desenrolaram, então, nos dias seguintes, as últimas cenas do drama da separação do Brasil. De acordo com o governo, o Senado da Câmara tomou a iniciativa, a 21 de setembro, e um manifesto do Senado, assinado pelo presidente José Clemente Pereira, anunciava aos cidadãos e aos soldados da capital: "manifestamente era vontade e desejo unânime da nação, aclamar s.a. real o príncipe regente "imperador constitucional do Brasil"; era, porém, desejável que essa elevação ao trono não parecesse, por passos precipitados de uma cidade ou província, mera medida de partido, porém, que se fizesse de modo normal e com solenidades condignas, a fim de se apresentar ao mundo todo como expressão da vontade nacional brasileira. Por esse motivo, assim dizia em conclusão, "havia o Senado encaminhado as disposições necessárias, a fim de que a aclamação de sua alteza real se efetuasse não somente na capital, mas também nas outras cidades do Brasil, a 12 de outubro, dia de seu aniversário natalício, pára o que o Senado tinha fundadas esperanças".

No mesmo dia, publicou o governo, por seu lado, um importante decreto, assinado por José Bonifácio de Andrada, que serviu de certo modo como complemento do manifesto do Senado; com ele se visava a quebrar qualquer possível resistência dos portugueses residentes à iminente organização nacional do Brasil.

Toda a gente, dispunha ele, não só brasileiros, mas também portugueses, usará, como sinal de adesão à causa nacional, como distintivo, aquela faixa verde e dourada no braço esquerdo; quem, porém, não quiser, deverá pedir seu passaporte e sair do país dentro de quatro meses, se residente no interior, dentro de dois meses, se nas cidades marítimas. Finalmente, todo aquele que atacasse a sagrada causa do Brasil, quer oralmente, quer por escrito, seria punido com todas as penas de alta traição.

Como o Senado da capital o previra, assim aconteceu; de todas as autoridades municipais das vizinhas províncias do Sul, com as quais ele entrara em entendimento, chegavam respostas de assentimento; e assim ficou marcada na sessão de 10 de outubro a proclamação do império definitivamente para o dia 12 *.

171 Não encontrei, em parte alguma, descrição minuciosa do acontecimento: também a princípio não se lhe ligou tanta importância como depois; porém, datava-se a independência do Brasil ou do dia do manifesto de 1′ de agosto, ou da elevação ao trono do imperador d. Pedro (12 de outubro). (Nota do autor).

 

* * *

Na manhã desse dia, dirigiu-se ao palácio o presidente do Senado, Pereira, com uma deputação, a fim de dar parte ao príncipe regente da vontade da nação e saudá-lo como o primeiro "imperador constitucional e defensor perpétuo do Brasil".

Em poucas palavras, prometeu d. Pedro, por estar convencido de ser a vontade geral, aceitar o título oferecido e a nova coroa imperial do Brasil; certamente pesarosa e mais profundamente ainda, sentiu a sua esposa, a arquiduquesa austríaca, a significação do momento, em que um ramo da casa de Bragança se arrancava do tronco paterno, tomava raízes no solo vulcânico da América, momento em que um filho de rei deixava colocar à sua cabeça, pelo favor do povo, a coroa hereditária, que pertencia a seu pai, e com isso, embora só aparentemente, opunha-se perante o mundo inteiro aos princípios tradicionais do antigo direito de príncipes, da moderna legitimidade. Porém tinha que ser; não somente o interesse da família exigia a conservação, a todo preço, do belo patrimônio; recusar a coroa significava também entregar o Brasil a todos os horrores da guerra civil e da desorganização: e, diante de tão poderosas considerações, desapareciam naturalmente os escrúpulos sobre questão de princípios.

Mesmo o mais imediato detentor do direito, o augusto pai, embora tendo que renegar o novo imperador durante algum tempo perante o mundo, secretamente não podia senão aprovar o procedimento do filho; tanto que nas suas palavras de despedida havia, com exata visão, desde muito antevisto o que ia acontecer.

A própria cerimônia da elevação ao trono e prestação de juramento de fidelidade realizou-se logo depois no campo de Sant’Ana, uma extensa praça da capital, que depois trocou o seu velho nome pelo de campo da Aclamação (campo de Sant’ Ana, mais tarde, em 1831, mais uma vez mudado para campo da Honra). Perante as autoridades, as tropas e uma multidão de povo, repetiu d. Pedro, publicamente, que aceitava a coroa e prometeu igualmente sancionar e fazer vigorar a futura Constituição, como a projetasse a recentemente convocada Assembléia Constituinte, caso ela fosse digna dele próprio e do Brasil.

Correspondeu-lhe o brado de júbilo do povo, ao qual se misturaram os repiques dos sinos e o ribombar dos canhões, e dirigiu-se então o cortejo festivo para a capela imperial, a fim de solenizar com um Te Deum a elevação do Brasil e da nova dinastia imperial. Depois, desenrolaram-se os variados festejos; as ruas resplandeceram com fogos de artificio e luminárias, e passaram-se muitos dias, antes que a nova cidade imperial americana, São Sebastião do Rio de Janeiro, cansada do tumulto dos regozijos, voltasse à tranqüilidade dos trabalhos da vida diária.

De modo idêntico, embora com menos esplendor, foi o acontecimento festejado a 12 de outubro de 1822, nas cidades do interior da província do Rio de Janeiro, igualmente em São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e São Pedro. Pouco a pouco, no correr dos seguintes meses, prestaram juramento (menos a cidade da Bahia, dominada pelos portugueses) todas as províncias do Norte, até o Ceará. Finalmente, a 21 de janeiro de 1823 172, arvorou o próprio Piauí a nova bandeira imperial e submeteu-se à autoridade do imperador d. Pedro I, depois de haver, por suas próprias forças, expulsado as tropas da guarnição portuguesa.

Logo um dos primeiros cuidados do jovem imperador, depois de sua ascensão ao trono, foi dar ao novo império as insígnias do costume. O tope nacional já existia, aquele braçal verde com triângulo de ouro e a legenda — Independência ou morte! e ficou em uso até obter de Portugal a independência brasileira o reconhecimento de direito internacional, sendo então substituído por um simples tope auriverde, sem as palavras altissonantes.

Escudo de armas e bandeiras foram estabelecidos ainda no correr de outubro de 1822; o escudo de armas era assim organizado: em campo verde, uma esfera armilar de ouro, dividida em quatro partes por uma cruz de prata, da ordem de Cristo, circulada a mesma esfera por uma orla azul com 19 estrelas de prata, como símbolo das 19 províncias de então: Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande dq Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, São Pedro e Cis-platina 173; e, firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados são abraçados por dois ramos de plantas de café e tabaco, como emblemas da sua riqueza comercial e das tendências pacíficas do novo império. A bandeira é verde, com um quadrilátero romboidal cor de ouro, e traz no centro deste o escudo das armas do Brasil.

Consideremos agora as relações do novo império do Brasil com o reino irmão de até então, a mãe-pátria portuguesa. A 23 de outubro de 1823, remeteu d. Pedro a seu augusto pai, d. João VI, a notificação oficial da sua elevação ao trono, uma simples carta oficial de serviço, na qual, quanto aos acontecimentos, se reportava aos jornais, que remetia junto.

173 Dessas estrelas, a da Cisplatina (hoje república do Uruguai) desapareceu a 27 de agosto de 1828; em troca, acresceram outras duas, ;i do Alto Amazonas, em 5 de setembro de 1850, e a do Paraná, em 19 de dezembro de 1853. (Nota do autor)

Mais importante era uma proclamação anexa, do imperador ao povo português, datada de 21 de outubro. Minuciosamente, esse documento recapitulava, ainda uma vez, como as cortes de Lisboa, sem consideração, haviam demonstrado o propósito e a vontade de rebaixar de novo à posição de colônia o reino irmão de além-mar, revestido de iguais direitos, e, como o rei de ambos, a quem haviam retirado todo o poder e conservavam em duro cativeiro, não se achava em condições de defender os direitos do Brasil; "em tão críticas circunstâncias — considera a proclamação — o heróico povo do Brasil, vendo fechados todos os meios de conciliação, usou de um direito, que ninguém lhe pode contestar, aclamando-o, no dia 12 de outubro, seu imperador constitucional, e proclamando sua independência".

"Tal é a situação do Brasil: se, desde o dia 12 de outubro, ele não é mais parte integrante da antiga monarquia portuguesa, todavia nada se opõe à continuação de suas antigas relações de amizade e de comércio, contanto que de Portugal se não enviem tropas a invadir qualquer província deste império. Portugueses: eu ofereço o prazo de quatro meses para a vossa decisão; decidi e escolhei: ou a continuação de uma amizade fundada nos ditames da justiça e da magnanimidade, nos laços de sangue, e em recíprocos interesses; ou a guerra mais violenta, que só poderá acabar com o reconhecimento da independência do Brasil ou com a ruína de ambos os Estados".

Não era de esperar que o poder político dominante em Lisboa escolhesse nessa alternativa o alvitre da paz; pois, ao mesmo tempo em que o Brasil se separava inteiramente, também no seio das cortes dos Reinos Unidos Lusitanos se fazia o completo rompimento entre portugueses e brasileiros.

Já antes havíamos mencionado que os deputados brasileiros representavam, nas deliberações sobre a Constituição, apenas triste papel; ainda mais insustentável se tornou a sua posição, quando chegaram do Brasil notícias, cada vez mais críticas, da elevação de d. Pedro a defensor, da convocação da Assembléia Constituinte, etc.

Então, não guardou mais reservas a irritação da maioria portuguesa, e, com desmedida paixão, as cortes publicaram o decreto de 19 de setembro de 1822. O teor do mesmo consistia em diversos assuntos: primeiramente, anulava o decreto de d. Pedro, de 3 de junho, sobre a convocação do Congresso Brasileiro, como ilegal, e mandava processar publicamente os ministros que o haviam assinado; a mesma providência era lançada contra a junta provincial de São Paulo, porque ela havia dado o primeiro exemplo da desobediência; depois retirava ao príncipe herdeiro regente os direitos da regência brasileira e ordenava-lhe que regressasse a Portugal, no prazo de um mês sob pena de perda dos seus direitos de sucessão, sob pena de responder por alta traição; daí em diante nenhum comandante militar lhe devia obedecer, nem o governo de então do Rio de Janeiro; finalmente, era intimada a autoridade executiva de Lisboa a tudo empenhar por fazer vigorar essas resoluções.

Está claro que os deputados brasileiros não podiam nem queriam aprovar semelhante decreto; e, ainda mais, chegaram os dias (22, 23 de setembro), em que deviam confirmar com a sua assinatura, à guisa de juramento, a concluída Constituição dos Reinos Unidos, que, na sua opinião, lesava o direito e o bem do Brasil. Não era fácil se furtarem a essa necessidade, pois os passaportes, pedidos para regressarem eram negados ou retardados, e assim o documento oficial da Constituição portuguesa em comum (Lisboa, 1822) apresentou, de fato, 36 assinaturas de deputados brasileiros; desses, eram oito de Pernambuco, cinco da Bahia e Rio, quatro do Ceará, três do Pará e Alagoas, dois de Piauí e Paraíba, finalmente um de Maranhão, Goiás, São Paulo e Santa Catarina. Porém diversos dos deputados haviam conseguido pôr-se a salvo secretamente; e sete desses, entre eles os dois mais famosos de São Paulo, Antônio Carlos de Andrada e Diogo Antônio Feijó (depois regente do império), publicaram do porto inglês de Falmouth uma carta aberta, na qual explicavam e justificavam a sua saída secreta das cortes, a 22 de outubro de 1822, documento que em outras circunstâncias teria sido certamente de máxima importância, mas agora, diante da independência brasileira, perdia toda a significação.

Depois de tais acontecimentos, não era de esperar que Portugal aceitasse a oferecida mão de amizade do Brasil independente; embora se dissolvessem agora as cortes constituintes (4 de novembro), todavia as novas cortes legislativas, que se reuniram a 1° de dezembro de 1822, compunham-se em grande parte dos mesmos elementos, e não se podia esperar deles senão sentimentos igualmente hostis; certamente haviam de cogitar da reconquista. E, para tal empresa, ainda possuía o próprio governo de Lisboa no Brasil importantes pontos de apoio militares. Nas cidades marítimas do Norte e províncias de Pará e Maranhão acantonavam ainda guarnições portuguesas, que, embora fracas, bastavam, entretanto, para garantir a obediência, ao menos da população dos portos, e a supremacia do elemento português no seio das juntas governativas.

Na cidade da Bahia continuava sempre a sustentar-se o general Madeira, com um considerável número de tropas; na verdade, ele procurara debalde romper a linha de cerco brasileira, em 7 de novembro de 1822; porém as suas trincheiras eram sólidas, e, enquanto o mar e o porto estivessem abertos para a bandeira portuguesa, ele não precisava preocupar-se com o provimento do necessário.

Finalmente, também no extremo Sul, em Montevidéu, havia recentemente ocorrido uma revolução no sentido favorável a Portugal. Aconteceu assim. Ainda existia na Província Cisplatina recém-anexada considerável exército de ocupação, constando em parte de tropas brasileiras, em parte de nacionais portuguesas; mas, como essas tropas estacionassem separadas, as portuguesas de preferência nas cidades da costa, as brasileiras no interior, haviam-se desse modo evitado até aqui os costumados atritos nacionalistas; todo o exército de ocupação e também, sob a sua pressão, a população de língua espanhola, haviam conservado uma atitude uniforme no atual movimento revolucionário, a qual foi, segundo o exemplo do general Lecór, que comandava a Província Cisplatina (como muitas vezes temos relatado), continuar a reconhecer a autoridade de d. Pedro, como príncipe regente. Agora, porém, havia d. Pedro proclamado o Brasil independente e a si próprio imperador.

Quando a notícia disso chegou ao quartel-general em Montevidéu, resolveu o general Lecór, e com ele o Senado da cidade, arvorar a nova bandeira do império e arriar a portuguesa. Mas isso encontrou decisiva reprovação da guarnição, que constava ali exclusivamente de batalhões portugueses; debalde percorreu o general, a cavalo, as suas fileiras, procurando persuadi-los; afinal, para não ser preso como traidor, teve que fugir, à noite, da cidade, com algumas centenas de fiéis; e a guarnição escolheu o general Álvaro da Costa de Sousa Macedo para seu comandante e renovou o juramento de fidelidade às cortes portuguesas, ao governo de Lisboa.

Ao contrário, no interior, entre as tropas brasileiras nacionais, a declaração da independência encontrou a mais calorosa aprovação; todas se reuniram em torno de Lecór fugitivo, e com esse seu auxílio este general, em breve, até princípios do ano seguinte, 1823, obrigou à submissão as pequenas cidades da costa, como Maldonado, Sacramento, guarnecidas por um punhado de soldados portugueses.

Somente para assaltar Montevidéu as suas forças não bastavam: teve que se contentar em cortar-lhe as comunicações com o interior, por meio de uma forte linha de cerco, de sorte que ela ficou inteiramente reduzida ao reabastecimento por mar.

Portanto, Montevidéu, Bahia, Maranhão e Pará eram os pontos militares de apoio, que Portugal ainda possuía no Brasil; além disso, uma invasão portuguesa podia contar, quase por toda parte, com o auxílio dos numerosos portugueses residentes; estes, porém, eram na maioria gente pouco belicosa, funcionários ou negociantes, e para a guerra podiam oferecer apenas sua simpatia ou pouca coisa mais.

* * *

Destarte, era a situação externa do novo regime imperial no Rio de Janeiro ainda e sempre muito difícil, além do que se opunha a ele, dentro da própria capital, uma facção contrária. A ânsia da caçada dos empregos, que nos últimos anos havia também contagiado os brasileiros, tomava agora naturalmente grande desenvolvimento, quando, para organização do novo Estado, tantos novos cargos estavam para ser distribuídos, tantos funcionários antigos exonerados por livre vontade ou forçados tinham que ser substituídos; assim também as iniciadas eleições para a Assembléia Constituinte punham em evidência um sem-número de jovens políticos presumidos: era impossível ao governo satisfazer a todos.

O ministério Andrada, que, em nome do imperador, exercia autoridade incondicional, pouco prazer achava em tal oposição; contra alguns desafetos foram tomadas medidas sem qualquer consideração; um jornalista da oposição foi expulso do país sem processo, pela polícia, coisa que não concordava de todo com os princípios liberais, que estavam na ordem do dia, e de modo algum contribuía para apaziguar os ânimos.

Em vez de se consolidarem, em breve viram-se os Andradas seriamente ameaçados na sua posição.

Já mencionamos que a influência dos dois irmãos, abstraindo das suas eminentes individualidades, se apoiava em grande parte na maçonaria brasileira, de feição inteiramente política; agora, os invejosos rivais conseguiam minar esse fundamento do seu poderio. Eram principalmente dois homens, ambos do Rio de Janeiro, que nos recentes acontecimentos haviam representado os mais importantes papéis ao lado dos Andradas de São Paulo, e agora se julgavam igualmente com direito à supremacia ministerial: o procurador geral Ledo e o presidente do senado da cidade, Pereira.

Contra a vontade do ministério, souberam obter nas lojas maçónicas da capital resoluções calculadas para lisonjear o imperador (também iniciado); e d. Pedro, que já devia estar cansado da dependência aos seus conselheiros de até aqui, parece haver acolhido muito favoravelmente os novos candidatos à sua preferência, pelo que os Andradas, depois de alguns atritos, se despediram, a 25 de outubro de 1822.

Porém, agora se verificou que a sua popularidade era ainda preponderante; o estado dos espíritos na capital tornou-se tão tenso, que o imperador julgou prudente chamar de novo ambos os irmãos para o gabinete; ao encontro do mais velho, José Bonifácio, foi ele próprio, em pomposo préstito, e celebrou publicamente na rua diante do povo, uma espécie de reconciliação, 30 de outubroI74.

 

Pode-se imaginar quais foram os sacrifícios: Ledo Pereira e, além destes, alguns particularmente desafetos, foram, sem forma alguma de processo, exilados; diversos dos mais influentes maçons foram envolvidos em processos, as lojas foram fechadas; e no seu lugar surgiu uma nova sociedade secreta, o "Apostolado", que, organizada segundo as idéias dos Andradas, devia ser inteiramente instrumento deles; assim, mantinham-se os irmãos mais firmes do que nunca e para o momento eram eles os homens que convinham.

Passou-se o mês de novembro no Rio de Janeiro, sem que ocorresse coisa alguma de importância; os preparativos para a coroação do jovem par imperial, a qual se realizou com o máximo esplendor, a 1° de dezembro de 1822 (no 1829 aniversário da elevação ao trono da dinastia de Bragança), absorvia todas as atenções; a torrencial chuva, que não cessou o dia inteiro — estava-se no tempo das águas — não conseguiu interromper as solenidades, nem amortecer a alegria popular, e os festejos continuaram diversos dias.

Em recordação, criou o imperador, no dia da coroação, a primeira ordem honorífica nacional brasileira — a Ordem do Cruzeiro — e conferiu, durante as seguintes semanas, honrarias diversas, como, por exemplo, foi agraciada a capital do império, São Sebastião do Rio de Janeiro, com o título de "muito fiel e heróica cidade"; também circundou o seu trono com uma guarda de honra, cujos membros, escolhidos das famílias mais distintas, sobretudo da capital, deviam obrigar-se por juramento à incondicional obediência a sua majestade, medidas essas que, conforme a opinião dos críticos, tiveram muitos louvores e ainda mais censuras.

* * *

Imediatamente depois da coroação, diante das notícias que chegavam de Lisboa e por informações prestadas por deputados brasileiros, que pouco a pouco regressavam das cortes, tomou o gabinete do Rio de Janeiro atitude decisivamente hostil contra Portugal.

Sendo necessário preparar-se para uma guerra fratricida, ordenava um decreto, de 11 de dezembro de 1822, o seqüestro provisório de todos os bens existentes dos portugueses no Brasil, e lançava embargo sobre todas as embarcações destinadas a Portugal; segundo decreto, de 10 de janeiro de 1823, dispunha sobre a concessão de cartas de corso e permitia a todos os súditos e estrangeiros, sob a bandeira brasileira, o apresar, afundar, incendiar, destruir navios portugueses; terceiro decreto, de 2 de fevereiro, ordenava a todos os brasileiros, que se achassem em solo inimigo português, regressassem no prazo de seis meses, para defender a pátria, quando não, ficariam sendo portugueses e os seus bens seriam seqüestrados. Ao mesmo tempo, faziam-se aprestos em terra e no mar; falou-se em elevar o exército a 20.000 homens de linha e 40.000 de milícias, e proporcionalmente a marinha, para cujo reforço foi aberta uma subscrição pública voluntária, e com o máximo êxito.

Como, porém, as próprias forças pareciam não bastar em toda parte, procurou-se ao mesmo tempo angariar auxílio estrangeiro; a 8 de janeiro, foi determinado que se angariasse pessoal para um batalhão estrangeiro na capital; um emissário, que, como agente diplomático, foi para Londres, foi autorizado a recrutar marinheiros ingleses. Finalmente, o governo do império entabulou negociações com um desses audazes aventureiros que percorriam os mares sul-americanos, sob as mais diferentes bandeiras, lorde Cochrane, nesse momento almirante da República do Chile, e conseguiu obter para o serviço do Brasil esse homem do mar, tão destemido, quanto experimentado; a 21 de março, entrou ele no porto do Rio de Janeiro, onde içou a sua bandeira de almirante no navio de linha "D. Pedro I" e reuniu sob seu comando todo o conjunto da esquadra brasileira (No VII capítulo, há uma referência a seu respeito.)

Julgou então o governo brasileiro chegado o momento de proceder ofensivamente contra os pontos militares de apoio, que Portugal ainda possuía no país; o primeiro assalto devia visar ao ponto mais importante, a cidade de São Salvador; a 29 de março de 1823, a baía de Todos os Santos foi declarada bloqueada; a 3 de abril, fez-se de vela lorde Cochrane, para dar execução a esse decreto.

Dentro de São Salvador e em torno, estava, entretanto, tudo como antes; embora cortada toda a comunicação com o interior, por uma forte linha de cerco, conservava-se o general Madeira dentro das muralhas e reabastecia-se de víveres pelo mar; e estacionava então no porto uma esquadra portuguesa, contando, além de outras, nove grandes embarcações. Viu-se assim lorde Cochrane, quando, a 4 de maio, entrou na Bahia, diante do inimigo superior, pois ele dispunha apenas de seis navios grandes; e se, não obstante, imediatamente passou a dar ataque, teve logo que interrompê-lo, com resultado duvidoso. Num ataque direto à cidade, pelo lado do mar, numa cooperação imediata com as tropas brasileiras de cerco, não se podia pensar; contentou-se lorde Cochrane, pois, em mandar de volta os navios pouco prestáveis, e equipar os outros com gente escolhida, na maioria marinheiros ingleses, e cruzar diante da Bahia; ao passo que ele, com os seus rápidos veleiros, evitava habilmente os grandes navios portugueses, que diversas vezes tentaram rechaçá-lo, foi continuando sempre a manter cerrado bloqueio. Isto produziu efeito; cercados por ambos os lados, privados de todo aprovisionamento de víveres, acharam-se em breve os portugueses em Salvador na mais extrema penúria; pouco adiantou o general Madeira, fazendo sair da cidade mulheres, crianças e doentes, umas dez mil pessoas, a 10 de maio; um mês depois, estava a cidade completamente reduzida à fome; e não restava outro alvitre, senão a retirada voluntária.

Assim, após um conselho de guerra, resolveu o general-chefe do exército embarcar a tropa, as provisões de guerra, os bens do governo e, além disso, todos os portugueses residentes, que desejassem retirar-se com as suas posses. Na noite de 1 para 2 de julho, foram as âncoras levantadas, e a esquadra portuguesa tomou rumo da pátria, para Lisboa, perseguida pelos cruzadores de lorde Cochrane, que, em caminho, lhe colheram ainda muitos transportes; e a cidade de São Salvador foi ocupada pelas tropas brasileiras e rendeu homenagem ao imperador.

Depois deste primeiro sucesso, alcançou lorde Cochrane mais outro: quando ele perseguia a esquadra portuguesa, numa presa caíram-lhe às mãos ofícios, cujo teor dizia que uma parte das tropas retiradas da Bahia era destinada a reforçar a guarnição portuguesa do Maranhão; imediatamente resolveu ele, embora sem ordem especial, antecipar-se e reconquistar para a coroa brasileira também ambas as províncias do norte, Pará e Maranhão.

Rumando para o norte, chegou ele a São Luís do Maranhão em 27 de agosto; ali haviam, de fato, chegado, justamente antes dele, alguns navios portugueses; todavia, apesar desse reforço, a junta provisória não ousou oferecer resistência, também a guarnição ficou satisfeita por lhe ser concedida retirada livre; e pôde assim lorde Cochrane, sem combater, tomar posse da cidade para o imperador d. Pedro I, além de todos os navios portugueses ancorados no porto.

Daqui ele destacou um só navio de guerra, sob as ordens do comandante Greenfell, mais além para o norte; e, logo que este apareceu com a bandeira brasileira à embocadura do Amazonas, declarando-se vanguarda da grande esquadra, também as autoridades da capital e do porto de Belém (Pará) concordaram em submeter-se espontaneamente (setembro).

Assim bastou a simples presença de lorde Cochrane para romper a autoridade da coroa de Portugal, nas duas últimas províncias que ainda lhe eram fiéis; serviço enorme, pelo qual o imperador d. Pedro o recompensou com o título de marquês do Maranhão, quando ele, a 9 de novembro de 1823, entrou de novo, triunfante. ‘ na baía do Rio de Janeiro.

Certamente não estava por inteiro completada a submissão do Norte do Brasil; conservava-se ainda no interior da província do Maranhão, aquartelado em Caxias, um pequeno destacamento do exército português, o qual se defendia com sucesso contra as milícias provinciais do Maranhão, Piauí e Ceará, que o apertavam de todos os lados; todavia, desde que os portos estavam todos em mãos brasileiras, a sua situação era desesperadora; e, depois de haver sustentado mais um ano a gloriosa resistência, consentiu em retirar-se, mediante capitulação honrosa, a 12 de agosto de 1824. Essas foram as tropas portuguesas, que por mais tempo se conservaram no Brasil, pois pouco antes se haviam também retirado os últimos companheiros, os de Montevidéu.

Como se sabe, desde princípios de 1823, estava o general Álvaro da Costa, com as tropas nacionais portuguesas, sitiado nessa cidade, sob o cerco do corpo brasileiro, do general Lecór; a sua situação era de certo modo tolerável, pois o cerco por terra não era muito apertado e o lado do mar estava inteiramente aberto; faltava-lhe, porém, muita coisa, sobretudo dinheiro, para saldar os sempre crescentes atrasos do soldo. E, como de Portugal nada vinha para socorrê-los, e, ao contrário, chegava a notícia de que por toda parte se retiravam as tropas portuguesas, da Bahia, Maranhão, Pará, compreendeu o general da Costa que estava combatendo por uma causa perdida; pelo fim do ano, ele tratou com o general Lecór uma capitulação, para a qual estipulava pagamento do soldo atrasado e livre regresso a Portugal; e, em conseqüência desse ajuste, ficaram de novo os brasileiros com a cidade de Montevidéu, sem combate, a 2 de março de 1824.

* * *

Estava o Brasil limpo de tropas inimigas. O fato de havê-lo conseguido com tanta facilidade e de não se fazer nada em Portugal para socorrer ou libertar os fiéis defensores da bandeira portuguesa, explica-se pelas circunstâncias internas do momento em Portugal, onde, justamente na primeira metade do ano de 1823, o povo e a corte estavam às voltas com uma reação absolutista; a 3 de junho foram, como se sabe, dissolvidas as cortes, foi suspensa a constituição liberal do ano antecedente, e restabelecida a ilimitada autoridade da monarquia.

Certamente, a princípio isso nada influiu nas relações com o Brasil: os novos poderes absolutos do Estado pareciam tão pouco inclinados a reconhecer a independência do Brasil, quanto os liberais derribados; ainda em setembro, referia-se o Diário da Corte, de Lisboa, à perda da Bahia, como acontecimento lastimável, e o general Madeira, de regresso, foi, embora só pela forma, submetido a tribunal de guerra; e os cônsules portugueses tiveram repetidamente que notificar oficialmente aos mercados financeiros estrangeiros que qualquer eventual empréstimo, feito ao governo do Rio de Janeiro de então, nunca seria reconhecido por parte do legítimo rei de Portugal-Brasil.

Do resto, podia ser que em Lisboa se esperasse que os brasileiros, depois da dissolução das cortes, sobre as quais recaía o maior peso da sua má vontade, se inclinassem antes para uma reconciliação; nesse sentido, talvez contassem com a cooperação de d. Pedro; assim, depois da dissolução das cortes, o gabinete de Lisboa havia feito sobrestar a remessa de tropas, e em seu lugar apenas despachava alguns mediadores.

Porém, nesse cálculo se enganava absolutamente; o rompimento se consumara e era irrevogável; o povo brasileiro, na sua maioria, e nos círculos propriamente preponderantes, não queria mais saber de governo português; o próprio d. Pedro não estava bastante firme, para que pudesse ousar medidas reconciliadoras; de nada teriam servido à causa e, segundo todas as probabilidades, lhe custariam a coroa.

O modo pelo qual ele acolheu os mediadores portugueses prova que isto ele soube ajuizar corretamente. Quando o primeiro deles, o marechal Luís Paulino de Oliveira Pinto da França, chegou, a 7 de setembro, à baía do Rio de Janeiro, e se fez anunciar por meio de uma bandeira de parlamentario, foi ele categoricamente interrogado se estava investido de plenos poderes para reconhecer a independência brasileira, como base e condição preliminar de qualquer negociação; e, como ele tivesse que negar, vedaram as autoridades do porto toda comunicação com o navio parlamentario inimigo; ninguém da equipagem devia desembarcar em terra; todavia ao comissionado Pinto da França — porém, só a ele — por estar gravemente doente, foi concedida hospedagem no Rio de Janeiro, onde ele poucos dias depois faleceu.

Ainda pior aconteceu ao segundo enviado, o conde do Rio Maior, que chegou a 16 de setembro; o seu navio, uma fragata portuguesa, havia entrado diretamente no porto do Rio de Janeiro sem bandeira parlamentaria; em conseqüência do que foi declarado boa presa e entregue ao tribunal do almirantado brasileiro para a sentença; e, além disso, porque ele igualmente teve que responder pela negativa à mesma questão preliminar, foi-lhe recusada qualquer negociação. Mesmo d. Pedro foi tão longe no seu — disfarçado — zelo, que chegou a recusar as cartas particulares de seus augustos parentes, porque, no endereço, faltava o devido título imperial; secretamente, todavia, segundo se diz, ele conferenciou com o conde do Rio Maior.

Fosse como fosse, teve em todo caso o negociador português que se retirar sem resposta oficial, e tomou um simples paquete de carreira para a viagem de regresso a Lisboa, onde entrou a 19 de dezembro de 1823. Ali, o seu relatório produziu naturalmente muito mau sangue; porém, nesse ínterim, havia passado a oportunidade, estavam perdidos todos os pontos de apoio militares no Brasil; e agora, para de novo se tomar pé ali, impunham-se os maiores esforços de guerra; para isso, porém, dificilmente bastariam os recursos de Portugal, dado o seu esgotamento financeiro e as circunstâncias críticas do próprio país, e, mais do que ninguém, o brando rei d. João VI não estava disposto à guerra contra o Brasil, contra o seu filho.

Finalmente, contribuiu sobremodo em todo caso a atitude que tomou a Inglaterra, sob o ministério Canning, relativamente aos assuntos americanos, para impedir uma declaração de guerra. Esse Estado comerciante, que nos recém-nascidos Estados transatlânticos livres, de língua portuguesa e espanhola, tinha os seus melhores fregueses, e que, por isso, era francamente contrário ao restabelecimento da antiga coação colonial, assim como a uma guerra de longa duração, constrangia as obstinadas mães-pátrias para a paz e a condescendência. Numa missiva de 30 de janeiro de 1824, endereçada ao encarregado de negócios britânico em Madri e destinada à comunicação à corte espanhola, traduziu Canning, em primeiro lugar, expressamente a sua intenção: "O reconhecimento dos Estados americanos, que, consoante o direito internacional, de fato já estão independentes, não podia mais ser adiado". Assim era o teor das suas palavras; e essa opinião de uma potência, embora enviada diretamente à corte de Madri, produziu a mais viva repercussão em Lisboa, onde desde sempre era suprema a influência inglesa. Daí em diante, o governo português pôde ainda ter falado de remessa de uma expedição de guerra para o Brasil, porém dificilmente o fez a sério; e em breve reclamou mesmo os bons ofícios da Grã-Bretanha, em março de 1824, para exigir do Brasil suspensão das hostilidades contra navios e súditos portugueses, a restituição das propriedades portuguesas confiscadas e, sobretudo, dissuadi-lo, com urgência, de possíveis ataques às outras colônias fiéis a Portugal — visavam-se mormente as feitorias africanas de escravos.

De boa vontade aceitou a incumbência o governo inglês, e o seu cônsul-geral no Rio de Janeiro teve que advogar vivamente estas exigências, a troco do que, por seu lado, dava, embora de modo indireto, seguranças tranquilizadoras. Na verdade, oficial e definitivamente nada se podia basear nisso, nem mesmo uma trégua: porém, esse começo de intervenção inglesa bastou completamente para moderar as hostiliÔades. Realmente, o governo brasileiro ainda foi, de quando em quando, inquietado com boatos alarmantes e explodia então em discursos da mais violenta ênfase; assim, uma proclamação de 10 de junho de 1824 ainda aludia a uma iminente expedição militar de Portugal contra o império, e prometia que o imperador sairia a campo, a desembainhar a espada à frente das bravas falanges brasileiras, pela liberdade do Brasil, e que suas esquadras levariam o pendão nacional até mesmo à foz do Tejo. Porém prevalecia já a esperança de conclusão amigável; foram delegados comissários a Londres, a fim de se entabularem possíveis negociações com Portugal, e evitou-se qualquer movimento de ofensiva que pudesse irritar o adversário.

E, quanto aos interesses e às propriedades dos particulares portugueses, sempre se usou da máxima moderação; os tribunais brasileiros de presas eram de tal clemência e bondade, que à gente do mar, por outro lado, interessada, pareciam mesmo injustiça; muitos oficiais e marinheiros estrangeiros, frustradas as suas esperanças de rica presa em dinheiro, abandonavam aborrecidos o serviço da marinha brasileira; os outros murmuravam abertamente, e, mais que todos, lorde Cochra-ne, que, de seu lado, como almirante, era interessado nas maiores quantias, e ainda mais porque ele ficava de permeio ao tribunal de presas e o governo, de um lado. e os seus subordinados, de outro lado. Veremos adiante como ele próprio se compensou.

* * *

No seguimento das relações estrangeiras e de guerra, adiantamo-nos muito sobre a marcha do desenvolvimento interno do Brasil; e precisamos, por isso. reencetar a narração deste em princípios do ano de 1823.

No correr dos primeiros meses, foram chegando, um a um, das diversas províncias, os deputados eleitos para a Assembléia Geral Constituinte, e até maio estavam 52 deles reunidos no Rio de Janeiro.

Naturalmente, como em casos idênticos de uma primeira tentativa parlamentar, não podia deixar de ser um ajuntamento de mui variados elementos, homens das mais diversas classes e sentimentos; todavia, logo se perfilaram, com clareza relativa, em dois partidos diferentes.

De um lado, o partido do governo, também chamado absolutista ôu português, constando na maioria de funcionários portugueses natos ou educados em Portugal, que, por livre vontade, haviam assegurado e salvado a sua situação, em abraçando a causa nacional, e agora utilizavam para a sua eleição a poderosa influência que tal posição oficial lhes emprestava; não se podia esperar deles que se entusiasmassem pelas idéias liberais, pois eram criados no costume do despotismo para com os de baixo, e do servilismo para com os de cima.

Por outro lado, os patriotas, entre os quais jovens letrados, sem cargo público, e sacerdotes seculares do grau inferior, representavam papel principal; haviam-se verdadeiramente entusiasmado pela causa da independência e liberdade do povo, e os seus discursos eloqüentes e calorosos deviam arrebatar a parte indolente, irre-soluta da assembléia, e a massa do povo, mais depressa do que as palavras cautelosas e sem vida dos adversários; porém, os próprios chefes estavam ainda imbuídos do estilo e das tendências da Revolução Francesa; e não tinham de todo aprendido claramente as condições políticas do Brasil.

Diante desses dois partidos apresentava-se o terceiro fator, o detentor do poder executivo, o ministério Andrada, o ministro do interior e estrangeiros, José Bonifácio, e o ministro das finanças, Martim Francisco, ambos também deputados; e tinham no terceiro irmão, Antônio Carlos, antes membro das cortes de Lisboa, agora igualmente eleito para a assembléia geral, um advogado tão solícito, quanto talentoso.

Já vimos, antes, que os Andradas amavam governar e que, onde se tratava de garantir o poder, não recuavam diante de arbitrariedades ilegais; por esse motivo, eles não desejavam naturalmente restringir demais as prerrogativas da coroa, na constituição que se elaborava; e, para todos os seus desejos e empenhos, eles tinham no partido do governo dócil instrumento, como já possuíam outro na dedicada sociedade secreta do Apostolado. Porém, está claro, não se podiam repelir inteiramente as exaltadas pretensões dos patriotas, sem excitar perigosamente o povo ainda sempre agitado, mormente nas cidades grandes dos portos; era preciso, portanto, fundamentalmente, prever um acordo quanto possível favorável.

Nesse sentido era traçada a fala do trono, com que o imperador Pedro I, entre grandes solenidades religiosas e militares, abriu a 3 de maio de 1823 a sessão da primeira Assembléia Geral Constituinte. Depois de haver mais uma vez narrado minuciosamente a história da declaração da independência e, em seguida, relatado tudo que o seu governo até então se havia esforçado por fazer e realizado, dirigiu o imperador aos deputados reunidos as seguintes palavras de advertência:

"Como imperador constitucional, e mui especialmente como defensor perpétuo deste império, disse ao povo no dia lp de dezembro do ano próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha espada defenderia a pátria, a nação e a constituição, se fosse digna do Brasil e de mim.

"Ratifico hoje mui solenemente perante vós esta promessa, e espero que me ajudeis a desempenhá-la, fazendo uma constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão e não pelo capricho, que tenha em vista somente a felicidade geral, que nunca pode ser grande, sem que esta constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado que são as verdadeiras para darem uma justa liberdade aos povos e toda a força necessária ao poder executivo.

"Todas as constituições, que, à maneira das de 1791 e 92, têm estabelecido suas bases e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que são totalmente teóricas e metafísicas, e por isso inexequíveis; assim o provam a França, a Espanha e ultimamente Portugal. Elas não têm feito, como deviam, a felicidade geral, mas, sim, depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em uns países já apareceu, e em outros não tarda que apareça, o despotismo de um, depois de ter sido exercitado por muitos, sendo conseqüência necessária ficarem os povos reduzidos à triste situação de presenciarem e padecerem todos os horrores da anarquia.

"Longe de nós tão melancólicas recordações! Vós não ignorais, e eu estou certo que a firmeza nos verdadeiros princípios constitucionais, que têm sido sancionados pela experiência, que caracteriza cada um dos deputados, que compõem esta ilustre assembléia; espero que a constituição que fizerdes mereça a minha imperial aceitação, seja tão sábia e tão justa, quanto apropriada à localidade e civilização do povo brasileiro; destarte, será admirada igualmente por todas as nações, e até os nossos inimigos reconhecerão a santidade e sabedoria de seus princípios".

Como se pode depreender, não encontrou a fala do trono aprovação geral; muito longe disso; mormente os patriotas, cheios da idéia da soberania nacional, tomaram muito a mal o imperador e o seu gabinete reservarem para si o direito de ratificar ou rejeitar os trabalhos da constituição, ao passo que o governo antecedente do rei d. João VI se havia de antemão submetido às decisões de uma assembléia constituinte e havia ratificado com juramento prévio a constituição ainda por ser elaborada.

Logo âos primeiros debates, quando se tratou de dar resposta à fala do trono, evidenciou-se a má vontade; "a assembléia se persuade — observou um — não poder deixar de fazer uma constituição digna do imperador e do Brasil"; "seria melhor pedir logo ao imperador as suas condições", propôs outrem; e terceiro, ao passo que manifestava a sua persuasão de que certamente o imperador ratificaria a constituição apresentada, deixava em seguida perceber que, no caso contrário, tinha sua majestade a liberdade de seguir a sua consciência e depor a coroa.

Contra tais tendências levantaram-se os Andradas, para defenderem em diversos discursos as palavras de d. Pedro e combater as aspirações democrático-repu-blicanas; minuciosamente expôs o ministro José Bonifácio a situação das Américas, antes espanholas, hoje republicanas, que agora, já desde quatorze anos, gemiam sob a calamidade de contínua guerra civil; ele assinalou os padecimentos da França durante a grande Revolução, e os recentes tumultos na Espanha e Portugal, e concluiu com as seguintes palavras: "Mas protesto, à face da assembléia e à face do povo, que não concorrerei para a formação de uma constituição demagógica, mas sim monárquica, e que serei o primeiro a dar ao imperador o que realmente lhe pertence".

Isto produziu efeito; na verdade, levantaram-se ainda vários oradores da oposição; porém, em conclusão, o discurso em resposta à fala do trono, como o ministério o desejava, foi aprovado pela maioria; e esse discurso glosava as palavras da fala do trono, manifestando a esperança de que se obteria "uma constituição digna do Brasil, digna do imperador, e digna de nós".

Este primeiro triunfo parlamentar, como era de esperar, muito firmou provisoriamente a situação do ministério; os Andradas sentiram-se poderosos como nunca, e continuaram a governar à moda antiga; nem mesmo descontinuaram as prisões arbitrárias. Com isso, porém, crescia o rancor dos patriotas, já descontentes com a derrota; e, quanto ao partido do governo, ele sustentava, por princípio, as propostas do ministério; porém, nem a pessoa dos ministros, nem a sua política exterior, que tornava irremediável o rompimento com Portugal, podia achar muito apoio entre esses homens, portugueses natos ou formados em Portugal. Se, a princípio, nada de excepcional aconteceu — aguardava-se a chegada dos deputados retardatários, e tomava-se o tempo nos trabalhos preparatórios das comissões para a obra da constituição, — todavia mais cedo ou mais tarde havia de dar-se grave rompimento entre o ministério e a assembléia, e os Andradas estavam certamente prevenidos nesse sentido; eles pretendiam, — assim corria a versão, — tentar a sorte com uma dissolução e nova eleição, se necessário fosse. Porém, a coisa sucedeu mais rápida e diversa do que eles pensavam.

A 20 de junho, um membro da oposição apresentou um projeto de lei, cujo teor era: "Devia o governo ter a liberdade de expulsar do país qualquer português nato, à simples suspeita de sentimentos hostis"; projeto que, como se vê, tinha sua. razão de ser na antipatia nacional e na atitude duvidosa de tantos portugueses residentes; e pelo menos um dos Andradas, Antônio Carlos, resolveu adotar e defender o projeto. Evidentemente ele não considerou que com tal proceder fazia perigar a posição oficial de seus irmãos; um projeto de lei, como o apresentado, que arriscava à exoneração do cargo e expulsão tantos de seus membros portugueses natos, devia naturalmente inquietar e ferir o partido do governo; e assim esse partido retirou o apoio concedido até então ao ministério e entrou em acordo com a oposição, pelo que perdeu o governo a maioria parlamentar; daí devia então resultar ou a dissolução do parlamento ou a demissão dos ministros.

Competia a d. Pedro optar, e, como se pode imaginar, ele devia ser vivamente assediado por ambos os partidos.

De fato, ele pôde adiar ainda algumas semanas a decisão, estando no momento doente de cama, seriamente ferido por uma queda de cavalo (30 de junho); porém, afinal, ele próprio havia de regozijar-se por poder ver-se livre da aborrecida tutela dos seus todo-poderosos ministros,, aceitou imediatamente, após o seu restabelecimento a demissão apresentada por ambos os Andradas, 17 de julho de 1823.

No dia imediato, publicou-se uma proclamação, na qual o imperador negava ter conhecimento e responsabilidade nas arbitrariedades até então praticadas, e, para o futuro, prometia a segurança legal das pessoas e da propriedade.

A queda do ministério Andrada, a que o povo desta vez assistiu indiferente, mudou fundamentalmente a constelação política no Rio de Janeiro. O imperador estava doravante resolvido a governar por si próprio, e escolheu para seus ministros, nas fileiras do partido do governo, dois homens não inteiramente malquistos sem passado político nem influência, — o do interior, José Joaquim Carneiro de Campos, depois marquês de Caravelas, e o da fazenda, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, depois marquês de Baependi; homens que, como conselheiros bem intencionados, estariam bem nesse lugar, porém que eram os menos adequados para conjurar as tempestades de uma assembléia parlamentar.

E, além disso, o novo governo imprevidentemente não tomou na devida consideração as antipatias nacionais dos brasileiros; em vez da excessiva hostilidade contra portugueses e os que favoreciam os portugueses, a qual no período dos Andradas estava na ordem do dia, os atuais ministros mostraram-se exageradamente conciliadores. Não somente foram suspensas todas as perseguições aos suspeitos inimigos da independência; o tribunal de presas (como já mencionamos), usava da maior clemência contra as propriedades de portugueses; por um decreto de 2 de agosto, foi até o comando da Bahia autorizado a recrutar para o serviço do Brasil todos os prisioneiros de guerra portugueses, que desejassem permanecer no país; tudo medidas, especialmente a última, que deram ensejo para as mais violentas discussões, na imprensa e na câmara.

Por outro lado, os Andradas, embora desalojados de seus cargos, ainda eram, por seus dotes de espírito e por suas extensas relações, muito poderosos; e, além disso, eles fundaram agora, sob nomes estranhos, um jornal para a sua própria política, o Tamoio (segundo o nome de uma tribo índia extinta), que, com linguagem audaciosa e idéias liberais, favorecia as paixões do momento, e em breve obteve grande influência no seio da população da capital.

Ao passo que eles procuravam assim obter de novo um forte apoio na política, demonstravam ao mesmo tempo que não haviam nem esquecido nem perdoado a sua queda no parlamento, onde eles agora se associaram aos patriotas; eram incessantemente os mais severos e incansáveis adversários dos seus sucessores nos cargos, e o seu jornal pululava de odiosas acusações e enchia-se de enfeitadas comparações entre a administração atual e a precedente (a sua própria); via-se, porém, agora, em particular, como na oposição eles pensavam sobre o governo parlamentar e constitucional de modo diverso que não no seu tempo de ministério.

Se os ministros atuais houvessem somente sabido dirigir com ordem o seu próprio partido e tratar inteligentemente os adversários, com certeza teriam obtido segura maioria; mas não eram capazes disso. Assim, já nas primeiras semanas chegaram as coisas a conflito, embora não importante.

É que, desde algum tempo, se tratava, nos trabalhos preparatórios para a constituição, da questão de decisiva importância, a saber se competia &k não ao imperador opor veto absoluto contra as resoluções da assembléia constituinte; questão essa que, como já se mencionou, havia sido levantada primeiro na fala do trono do imperador. Os ânimos haviam-se esquentado de certo modo com isso, e não somente na capital, porém mesmo em diversas províncias, como, por exemplo, na cidade de Porto Alegre (província de São Pedro), onde autoridades, guarnição e cidadãos reuniram-se em comício popular e declararam-se solenemente contra o veto absoluto. Também no parlamento, não sem a cooperação dos Andradas, predominaram no fim as tendências democráticas, e foi resolvido, a 29 de julho, que os decretos da assembléia geral deveriam ter força de lei, mesmo quando o imperador lhes negasse sanção.

Porém d. Pedro não se deixou facilmente desalojar do seu ponto de vista, que. a princípio, com a cooperação dos Andradas, havia adotado; a essa decisão ele respondeu com uma proclamação ao povo (9 de agosto de 1823), na qual, referindo-se aos acontecimentos de Porto Alegre e de outros lugares, fazia acusações às tendências democráticas em geral e designava o pensamento da democracia no imenso Brasil como absurdo; certamente ele não queria atribuições alheias, mas também não deixaria jamais usurpar as que de direito lhe deviam competir.

Tiveram primeiramente ambos os partidos que se contentar com essas declarações provisórias, sem se precipitar por uma decisão; de resto, obstinaram-se na sua opinião; e o projeto de constituição para o império do Brasil, como a 30 de agosto resultou da deliberação de uma comissão de cinco membros (entre eles dois Andradas, José Bonifácio e Antônio Carlos), foi apresentado à assembléia geral e concedia ao imperador apenas o veto suspensivo com a duração de duas sessões, o qual, à reiteração da mesma decisão do parlamento, perdia a sua força à terceira sessão.

Todavia, adiou-se novamente para mais tarde o ameaçador conflito, por haverem chegado no momento os mediadores portugueses, pois, enquanto estes permaneciam na baía do Rio de Janeiro (até princípios de outubro), absorviam quase exclusivamente a atenção de todos os círculos. Porém, quando eles partiram, tornaram-se as relações entre ambos os fatores da soberania do Estado cada vez mais hostis; ao passo que a assembléia geral, de seu lado, deliberava sobre o projeto da constituição e o aceitava a bem dizer tal qual, continuavam os oposicionistas, e, mais que todos, os Andradas, incansáveis a criticar, em todas as oportunidades, a conduta do governo, e nisso demonstravam sempre maior empenho em exorbitar da função legislativa, para usurpar atribuições do poder executivo.

Os ministros, de boa vontade ter-se-iam demitido diante dessas agressões; porém o imperador sustentava-os no seu cargo; não desejava absolutamente ceder mais nada, pois por um lado a oposição facciosa dos seus ex-conselheiros, os Andradas, o havia irritado ao mais alto ponto; por outro lado, parece que nele falava o sangue imperioso de seus augustos antepassados, mormente desde as últimas notícias de Portugal.

Acolá, além-mar, a reação absolutista havia, sem dar golpe, conseguido deitar abaixo uma constituição e uma assembléia parlamentares, e ele aqui havia de se deixar estorvar por um parlamento ou melhor por alguns deputados, havia de deixar que um par de ministros demitidos lhe ditassem leis? Se eles tinham os meios para atacar, a tribuna e a imprensa, ele tinha o meio para a resistência; continuava a desfrutar grande popularidade no seio da população da capital, havia conquistado a afeição das tropas nacionais, reforçadas pelos soldados e oficiais portugueses, angariados entre os que haviam querido ficar aqui, entre os prisioneiros da Bahia, e em parte reorganizadas com esses elementos, já pelo fato de se lhes pagar pontualmente o soldo, coisa pouco usual, já por demonstrar o imperador vivo interesse pelos negócios militares; e, além de tudo mais, não havia dúvida que mesmo a maioria dos representantes do povo, aqueles antigos funcionários experimentados, quando vissem o governo seriamente resolvido, logo voltariam à submissão.

* * *

Tal era o aspecto da situação, quando um incidente inesperado produziu o #, completo rompimento.

Uma folha diária, a Sentinela, publicou uma nota que se exprimia de modo ofensivo sobre os elementos portugueses incorporados nas tropas nacionais. Como autor deste artigo, a voz pública designava um farmacêutico, Davi Pamplona, açoriano de nascença, e isso deu ocasião a que dois oficiais de artilharia, portugueses natos, procurassem o desgraçado na sua casa e o maltratassem terrivelmente, — ação de defesa própria, da máxima brutalidade, que em outras circunstâncias teria incorrido na reprovação geral, porém agora era uma questão de partido.

Os militares aprovaram em geral o modo de proceder dos companheiros; a polícia recusou-se a intervir; tomou então a assembléia geral com tanto maior zelo em consideração a queixa apresentada pelo seviciado, e, não contente com haver o relator requerido a imediata restauração de uma pesquisa judicial, propôs Antônio Carlos de Andrada que, no caso de serem os acusados julgados culpados, fossem expulsos do império por lei especial.

A imprensa oposicionista, mormente o Tamoio, esgotava-se em declamações contra os mercenários estrangeiros, mesmo culpava o governo de secreta cumplicidade no que havia acontecido e exortava-o a abandonar o caminho que estava tomando, hostil ao povo; chegava a lembrar ao imperador o destino de Carlos I, da Inglaterra, e de outros reis destronados. Palavras idênticas soaram na tribuna; sobretudo a 10 de novembro foram tão violentos os debates, e a participação da compacta assistência manifestou-se de modo tão tumultuoso, que o presidente julgou necessário levantar logo a sessão; em suma, a assembléia geral parecia transformada num comício.

Porém agora estava o imperador também resolvido a reagir; ainda no mesmo dia, ele reuniu um conselho de ministros, no qual, ao que se sabe, ele exprimiu a opinião de que, ou o parlamento se conformava por livre vontade em expulsar os Andradas e outros oradores oposicionistas de seu seio, ou seria preciso proceder à sua completa dissolução.

Fosse como fosse, recusaram-se, entretanto, os ministros a concordar com as medidas propostas e apresentaram todos, menos um, as suas demissões, que foram aceitas.

Somente o ministro da marinha, Francisco Vilela Barbosa, se conservou no cargo e cuidou dos negócios das outras pastas, até que de novo as assumissem homens igualmente monarquistas, porém de caráter mais resoluto; tiveram assim as pastas: a da fazenda, João Severiano Maciel da Costa, mais tarde marquês de Queluz; a da justiça, Clemente Ferreira França; e a dos estrangeiros, Luís José de Carvalho e Melo.

E agora era a luta decisiva contra a assembléia geral. Ainda à tarde de 10 de novembro, um coronel, que era da confiança do imperador, conduziu o seu regimento, talvez sem a ordem expressa deste último, porém não sem que ele o soubesse, à quinta de sua residência, em São Cristóvão; em breve, seguiram-se a este as restantes tropas da guarnição do Rio de Janeiro; e, assim, cercado pelas forças do Exército, à manhã seguinte, 11 de novembro, mandava o imperador uma mensagem à assembléia geral, nestes termos: "Os oficiais da guarnição tinham ido queixar-se dos insultos que têm sofrido na sua honra e mormente a falta do altdfclecoro que é devido à sua augusta pessoa, sendo origem de tudo certos redatores de periódicos e de seu incendiário partido". Por último, s. m. esperava que a "Assembléia haja de tomar em consideração esse objeto, dando as providências que tanto importam à tranqüilidade pública".

Não é preciso descrever o alvoroço que produziram a marcha das tropas para São Cristóvão e essa mensagem imperial, na capital e mormente na assembléia; na verdade, deviam agora empalidecer o antigo partido do governo, todos os deputados moderados, à iminência do perigo; porém, ainda no momento, os Andradas. com a sua linguagem resoluta, arrastaram consigo a maioria, para gáudio do povo aglomerado nas galerias, que aprovava com ruidosos aplausos, e, por proposta de Antônio Carlos, foi resolvido que a assembléia ficasse em sessão permanente, por estar em perigo.

Então, depois de longos e tumultuosos debates sobre a resposta à mensagem imperial, declarou a assembléia que, pelos meios regulares, nada havia chegado aos seus ouvidos a respeito de queixas dos oficiais; era, portanto, preciso pedir os devidos esclarecimentos ao governo, e estaria então pronta a cooperar de boa vontade em todas as convenientes medidas para esse fim.

Tarde, na noite de 11, foi despachada essa resposta para São Cristóvão, onde chegou a 12 de novembro, à 1 hora da madrugada; porém os deputados permaneceram toda a noite, a "noite da agonia", como mais tarde foi chamada, reunidos na sala das sessões, à espera dos acontecimentos. Já a maioria considerava perdida a sua causa e dispunha-se ao martírio político; os sacerdotes presentes ouviram-se em confissão, uns aos outros; porém os chefes da oposição contavam, ainda e sempre, com o apoio do povo; e, assim, cedo, de manhã, foi apresentado e discutido um segundo decreto, pelo qual os portugueses e estrangeiros, em serviço nas tropas nacionais, deviam ser retirados da capital, no espaço máximo de seis horas.

Logo em seguida, chegou segunda mensagem imperial, que designava o Tamoio e a Sentinela como as folhas ofensivas, e os três Andradas, mormente, como causadores das agressões. Porém, mesmo assim, não queria a assembléia conformar-se com a incondicional submissão no momento; o novo oficio do governo foi, em regra, à comissão especial, para ser relatado; oficiou-se ao ministro do interior para comparecer à assembléia, a fim de dar explicações complementares sobre a presença das tropas em São Cristóvão, sobre as tenções do governo.

Compareceu o ministro, e os esclarecimentos que ele deu foram, na verdade, insuficientes, em geral; porém uma coisa ele exprimiu claramente: as tropas estavam em perfeita harmonia e não se dispersariam, enquanto a assembléia não anuísse aos seus desejos. Com isso se dava ao parlamento a última alternativa.

E, então, assim que o ministro virou as costas, acenderam-se violentos debates; os antigos adversários dos Andradas, até então sopitados pela preponderância parlamentar destes últimos, levantavam agora a cabeça, para censurar acremente a oposição facciosa de até então; os mais moderados aconselhavam a paz e a tolerância; os Andradas, porém, conservavam a sua atitude indómita. Embora o mais velho, José Bonifácio, extenuado pela sessão noturna, deixasse a sala, os outros dois permaneceram tranqüilamente nos seus lugares, e ninguém, nem mesmo o mais acirrado adversário, ousou, diante deles, propor a retirada dos três, o recurso para reconciliação, ao qual a mensagem imperial havia bastante claramente aludido. Assim se passaram as horas do meio do dia.

Entretanto, havia d. Pedro passado em São Cristóvão revista às tropas reunidas, que o acolheram com tumultuosos vivas; ele as pôs em marcha contra a capital, e estabeleceu no campo de Sant’Ana o grosso, cujo comando ele tomou pessoalmente, ao passo que um destacamento seguiu, com algumas peças, contra a sala de sessões da assembléia.

Se, esta, mormente a oposição, havia contado com o auxílio do povo, via-se agora desenganada; mão nenhuma se mexeu para deter as tropas que se aproximavam; as galerias do público, pouco antes tão apinhadas, esvaziaram-se. Um oficial penetrou na sala das sessões e leu em voz alta o decreto imperial da dissolução, no qual se verberava a assembléia, que havia quebrado o seu juramento de defender a integridade e independência do império e a dinastia de d. Pedro. Quis o presidente mandar protocolar esse decreto, mas nem isso lhe foi concedido; teve, sem mais nem menos, que se retirar da sala, com todos os deputados. E, quando eles saíam, apoderaram-se os soldados de Antônio Carlos e Martim Francisco, além de alguns de seus partidários; José Bonifácio e outros já haviam sido aprisionados nas suas casas; imediatamente foram todos esses oradores da oposição conduzidos a um navio 175 que estava pronto para fazer-se de vela para a França, e sem mais processo foram expulsos do país. E o imperador fez a sua entrada triunfante na capital, e o povo, leviano, aclamou o vencedor, como pouco antes havia aclamado os vencidos.

A assembléia geral estava dispersada, os irmãos Andradas banidos, a imprensa da oposição destruída; nenhum entrave tolhia mais a onipotência imperial; e a tudo isso havia assistido a capital, calada ou aprovando.

Porém, d. Pedro, por mais que lisonjeasse o seu orgulho a reconquista do poder supremo, não podia ignorar que o Rio de Janeiro não era o Brasil, e que nãc se devia atrever abertamente a uma reação absolutista. As diversas províncias e o< seus funcionários, embora em nome submissos ao império, conservavam sempre uma giande autonomia; tratava-se de saber como elas acolheriam os acontecimentos de 12 de novembro, e, para isso, tornava-se necessário apresentar o sucedido com a melhor feição possível.

Para que ninguém se julgasse ofendido, foi publicado, já a 13 de novembro, um decreto que esclarecia a censura de perjúrio lançada no decreto de dissolução declarava que isso não se entendia com os dignos, honestos representantes, que sempre tiveram em vista o bem do Brasil, porém somente com aquela facção, que anelava pelos horrores da anarquia, para poder saciar sua sede de vinganças.

E a esse decreto acompanhava uma proclamação ao povo, concitando-o ã união e à confiança, ao mesmo tempo que se empenhava por justificar o sucedido.

"A salvação da pátria, — assim dizia ela, — que me está confiada, como de sor perpétuo do Brasil, e que é a suprema lei, assim o exige." "Se a assembléia não fosse dissolvida, seria destruída a nossa santa religião, e as nossas vestes seriam tintas em sangue." "As prisões agora feitas serão pelos inimigos do império consideradas despóticas? Não são. Vós vedes que são medidas de polícia, própi para evitar a anarquia, e poupar as vidas desses desgraçados, para que possam gozar ainda tranqüilamente delas, e nós de sossego. Suas famílias serão protegidas pelo governo."

* * *

No mesmo sentido, embora com outras palavras, exprimia-se um manifeste imperial, datado de 16 de novembro; e todos esses documentos repetiam a promessa, já feita no decreto de dissolução: o imperador ia já convocar outra assembléia, à qual ele submeteria o projeto de constituição, que em breve havia de apresentar.

De fato, já a 26 de novembro se reunia uma comissão, composta de seis mii tros (do interior, do exterior, da justiça, das finanças, da guerra e da marinha . | quatro conselheiros de Estado, que, sob a imediata presidência de d. Pedro, tratar da elaboração da nova constituição; e, dentro de poucas semanas, a 11 de dezembro de 1823, havia realizado a sua tarefa.

No essencial, foi tomado por base o projeto da comissão de constituição ca assembléia, de 30 de agosto, comparando-o com a constituição francesa de 1"v a portuguesa de 1822 e outras do mesmo período; e, além disso, exerceram dei: influência, especialmente, os escritos do político francês Benjamin Constant.

Mais adiante (recorrendo às ulteriores leis complementares de organizao voltaremos mais detidamente aos trabalhos da elaboração da constituição bra leira; aqui nos contentaremos com uma simples notícia de seu teor e com uma rápida comparação entre a constituição de 11 de dezembro e o mais antigo esboço, de 30 de agosto.

Respiram igualmente ambas o mesmo espírito liberal; a constituição declara expressamente que todos os poderes são emanações e delegações da nação e estabelece o imperador e a assembléia geral ambos como representantes equivalentes da nação; além disso, enumera, no seu artigo final (179), uma série de direitos invioláveis, que seriam garantidos a todos os cidadãos.

Uniformes, dispunham ambas sobre o direito eleitoral, bastante amplo, limitado por um recenseamento, e que seria exercido de modo indireto; dividiam ambas a assembléia geral em duas câmaras, a de deputados, eleitos por quatro anos, e a de senadores, eleitos vitalícios em listas tríplices, sobre as quais o imperador escolhia o terço; e determinavam que as câmaras se reunissem todos os anos em maio, por quatro meses; também o simples veto suspensivo do imperador, em duas sessões, que perdia o direito na terceira, passou sem ser alterado do projeto para a constituição.

Além disso, a constituição garantia (em vista do sentimento de autonomia provincial tão vivo por toda parte, e a exemplo da constituição dos Países Baixos) a cada uma das províncias, para seus particulares interesses, uma assembléia representativa própria, o chamado Conselho Geral, cujos membros, 21 no Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e São Pedro, e, nas outras, 13, deviam ser eleitos de igual modo, como os deputados do império; porém as suas atribuições eram simplesmente consultivas, as suas resoluções só teriam força de lei depois de sancionadas pelo parlamento e pelo imperador; ao mesmo tempo, mudou-se o antigo título de capitão-general pelo novo nome do presidente.

Uniformes, garantiam ambas, projeto e constituição, a independência da justiça, a inamovibilidade do juiz, a não ser por sentença de direito, e a cooperação do povo no julgamento, por meio de jurados.

Finalmente, ambas definiam expressamente, como é aliás intuitivo, mas era de excepcional importância diante dos acontecimentos dos últimos tempos e das agitações na vizinha América ex-espanhola, que o exército era por essência obrigado à obediência e não podia nunca ter reurííes deliberativas.

A par dessas coincidências, existiam, certamente, algumas divergências, em geral sem significação digna de nota; somente duas pareciam de maior importância prática, uma mormente, em vista dos tempos mais próximos, enquanto não estivessem organizadas as relações de direito internacional, e as particulares de direito de príncipe, com Portugal, o reino irmão de antes.

O imperador d. Pedro era, como se sabe, igualmente herdeiro presuntivo da coroa do reino de Portugal; em referência a isto, o projeto de 30 de agosto era claro e simples: quando um herdeiro (ou herdeira) ou detentor da coroa brasileira obtiver direitos a uma coroa estrangeira, não poderá possuir ambas, porém terá que optar, por uma ou outra, disposição que, certamente, correspondia, como nenhuma outra, aos votos gerais do povo. Todavia, foi suprimida na constituição de 11 de dezembro: esta última proibia, somente no art. I9, laço algum de união ou federação que se opusesse à independência brasileira, e, no art. 104, estabelecia que o imperador não poderia sair do império sem o consentimento da assembléia geral, e, se o fizesse, se entenderia que abdicava a coroa. Era manifesto que d. Pedro desejava conservar, para alguma eventualidade favorável, uma escapatória para a união pessoal luso-brasileira.

A segunda divergência era de interesse mais permanente. Na forma usual, havia o projeto de 30 de agosto discriminado os três conhecidos poderes, o executivo, o legislativo e o judiciário; a estes acrescentava agora a constituição, segundo a teoria de Benjamim Constant, ainda um quarto poder, o moderador, que ela designava como a chave de toda a organização do Estado; os poderes executivo e moderador competiam ao imperador; porém não lhe eram com isso concedidos absolutamente direitos mais extensos, extraordinários; antes, ao contrário, o que se incluía na esfera do poder moderador, — o direito de perdão, a sanção das leis, convocação extraordinária, prorrogação e dissolução do parlamento, nomeação e demissão de ministros, escolha de senadores nas listas tríplices, suspensão provisória dos juízes nos casos de denúncia judicial, — eram todas somente faculdades que sê costumavam incluir nas atribuições do poder executivo.

Extraordinária era só a forma pela qual essas faculdades deviam ser exercidas; a constituição dizia expressamente que o imperador exercia o seu poder executivo por meio de seus ministros de Estado responsáveis, e que nenhum ato do poder executivo teria execução, sem ser referendado ou assinado por um deles (arts. 102 e 132); em relação, porém, ao poder moderador, não havia tal exigência; antes, ao contrário, significava de modo terminante que essa atribuição competia exclusivamente ao imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, e que o imperador não era sujeito a responsabilidade alguma (artigos 98 e 99). Portanto, para as enumeradas atribuições, na totalidade as mais importantes da vida interna do Estado, a cooperação franca do ministério responsável não era diretamente excluída, contudo também não era necessária; os ministros podiam ai declinar de toda responsabilidade, e o parlamento não tinha ninguém a quem porventura pudesse chamar à responsabilidade; porém o imperador constitucional estava, em relação a ambos os lados, o ministério e o parlamento, como autócrata irresponsável.

Que fosse o intento de d. Pedro fazer o mais extenso uso dessa posição independente, por ele criada para si mesmo, compreende-se logo; outra questão era se essa posição intencionalmente ambígua, entre o governo absoluto e o constitucional, podia com o tempo ser sustentada.

A constituição estava elaborada; agora, tratava-se de submetê-la, conforme a promessa, à opinião de uma nova assembléia nacional; todavia, d. Pedro, acabando justamente de sofrer a tempestade das agitações parlamentares, tinha pouco desejo de manter essa promessa. Para esse fim, escolheu uma outra escapatória, que não devia lisonjear menos, e até mais, a tão altamente apregoada soberania do povo e que, contudo, era muito menos perigosa; tal qual o costume na república norte-americana, a nova constituição seria submetida ao povo para a votação direta, e, para esse fim, foram despachadas cópias a todas as autoridades municipais das diferentes províncias.

O que significam tais votações, perante uma forte burocracia organizada, nós na Europa temos experiência bastante disso; basta-nos, portanto, somente lembrar que também no Brasil governava um grupo de funcionários poderosos e muitas vezes mesmo despóticos, e depreende-se que, mormente nas municipalidades do interior, toda a coisa não passaria de uma farsa. E, mesmo sem uma tal coação de cima, não poderia ser de outro modo; ainda tolhido, na infância da sua cultura política, crescendo sob o açoite férreo do despotismo e agora atordoado pelas palavras altissonantes do liberalismo, estava o povo brasileiro, menos que todos, preparado para dar a sua opinião sobre a obra de uma constituição.

Em geral, foi aceita sem verificação, com indiferença ou com aprovação; alguns levantaram também abertamente objeções, que, entretanto, quase uniformemente visavam tanto aos pontos importantes como aos sem importância; assim, por exem pio, a estabelecida perpetuidade dos senadores, porque punha limites à concorren cia ou, mais precisamente* à ambição e mania dos títulos, foi tão combatida, e com igual violência, como o poder moderador.

De resto, não se esperou no Rio de Janeiro pelo completo resultado e possíveis emendas da votação geral; depois que o senado e os habitantes da cidade, a 9 de janeiro de 1824, e mais os das províncias vizinhas mais próximas, em suma, aquilo que o decreto imperial de 11 de março designava como a "maioria do povo brasileiro", se declarou, aprovando a constituição, prestou d. Pedro, a 25 de março de 1824, o juramento à mesma, com grande pompa e manifestações de júbilo do povo; com ele, juraram a sua esposa, a imperatriz, o bispo e o senado da câmara da cidade; e, segundo o uso do país, seguiram-se a esses atos solenes os mais variados festejos, que ocuparam o espaço de muitos dias.

Estava pronta a Constituição Brasileira, essencialmente na capital e com a cooperação, na verdade um tanto vacilante, do povo; as províncias haviam-se em geral calado a respeito e, mesmo quando, aqui ou ali, ocorreram manifestações isoladas, delas não se aproveitaram os partidos para fazer seriamente perigar a paz pública e a integridade do império.

Pode-se explicar essa indiferença ou submissão tácita das províncias, em parte, pelas relações com o estrangeiro; de quando em quando, ainda era preciso combater contra os restos das tropas portuguesas de guarnição, ou eram sobressaltadas pelos beatos contínuos de nova iminente invasão portuguesa, diante do que cada qual queria evitar tanto mais o perigo do isolamento ou mesmo de uma guerra civil; além disso, estavam as juntas, eleitas pelo povo, que por toda parte ainda governavam (os novos presidentes provinciais, nomeados pelo governo, só foram instalados no correr dos anos de 1824-25), muito ocupadas com as questões particulares de sua própria província, que tinham para o povo muito maior interesse do que os acontecimentos do Rio de Janeiro.

De resto, não havia dúvida, apesar de tudo, de que o texto da nova constituição e, ainda mais, o modo como a mesma se havia organizado, haviam produzido um grande número de descontentes, e muitos sintomas disso se manifestavam. Assim, correu mais tarde o boato de que no próprio Rio de Janeiro, na época da dissolução do parlamento, um certo número de moços exaltados havia tramado uma conspiração para assassinar o imperador, e a essa conjura se atribuiu o incêndio do teatro, no dia em que aí se efetuou a prestação de juramento do imperador; no tumulto, devia ser d. Pedro apunhalado, coisa que, entretanto, se malogrou.

Da Bahia e outros lugares chegaram manifestos que exprimiam o pesar pela dissolução à viva força e davam a entender que, para o futuro, era necessário um governo rigorosamente constitucional.

Mais alarmante, finalmente, foi o aspecto que tomaram as coisas em Pernambuco.

Já tivemos que mencionar várias vezes como em todo o Brasil estava espalhado um partido, não muito forte, que, em vez da constituição monárquica constitucional da Europa,, havia tomado para seu ideal polírico a república federaüva da América do Norte; em parte alguma era esse partido tão numeroso quanto em Pernambuco, e sabe-se como já no ano de 1817 se ensaiou ali um levante republicano, que terminou com ignominiosa derrota e duro castigo.

Esgotada por esses esforços de então, representou a provícnia, durante a emancipação nacional, apenas papel secundário. Sustentou-se ali muito tempo um capitão-general português, e, se ajunta provisória, que lhe sucedeu, procurou conservar-se algum tempo independente, tanto do Rio de Janeiro como de Lisboa, não conseguiu, porém, estender a sua influência além dos limites de sua província, e em breve também teve ela que reconhecer a autoridade de d. Pedro (1? de junhc de 1822).

Não estava, entretanto, com isso dominada toda a tendência oposicionista ce Pernambuco; revigoravam-na, por um lado, o ciúme provincial contra a dominação do Rio de Janeiro, por outro lado, a confiança em si mesmo do partido republicano, e, mesmo no seio da junta governaúva, pouco a pouco prevaleciam de novo essas tendências. A frente da mesma fora colocado, no correr de 1822, Manuel de Carvalho Pais de Andrade, conhecido membro do partido republicano, que ja havia tomado parte nos acontecimentos de 1817; e, por causa disso, declarou-se franca divergência com o gabinete imperial.

Do Rio havia sido mandado um funcionário de confiança, que devia substituir esse homem suspeito e assumir as suas funções; porém o povo de Pernambucc não quis admitir tal substituição, e três grandes reuniões consecutivas do povo recusaram reconhecer essa nomeação imperial, de sorte que o enviado teve que voltar ao Rio de Janeiro, sem haver nada conseguido. Despachou, então, o governo de d. Pedro uma pequena esquadra para bloquear a desobediente Recife (janeiro de 1824); todavia, isso produziu pouca impressão; Manuel de Carvalho, o eleito do povo, ficou em seu posto, e, se alguns oficiais ambiciosos tentaram derribá-lo (20 de março), conseguindo com o auxílio de um batalhão dedicado levá-lo preso a uma fortaleza do porto, ele foi de novo posto em liberdade já nessa mesma tarde e reconduzido à plena posse do poder. Provisoriamente, Manuel de Carvalho, de resto, continuou a governar em nome de d. Pedro, como funcionário do império; somente na ocasião propícia ele descobriu à luz toda a amplidão dos seus planos.

Já foi mencionado como d. Pedro, enganado pelos boatos, publicou, a 10 de junho de 1824, um manifesto empolado, no qual se referia à iminência de uma invasão portuguesa e à heróica resistência triunfante que ela encontraria. No dia imediato, 11 de junho, seguiu-se a este o decreto, um tanto tímido, visando ao governo de Pernambuco, no qual o imperador declarava que lhe seria impossível proteger toda a costa brasileira e que, por isso, competia às províncias defenderem-se a si mesmas.

Tal mensagem devia naturalmente produzir a pior impressão em Pernambuco: mais do que nunca se generalizou a dúvida, se, de mais a mais, d^Pedro era sincero quanto à independência nacional; todavia, se não se podia contar com proteção alguma da coroa imperial, para que, então, continuar dependente?

Resolveram os republicanos utilizar para os seus fins essa disposição dos espíritos, e Manuel de Carvalho cedeu aos seus votos; a 2 de julho de 1824, publicou uma proclamação, na qual o imperador d. Pedro era declarado traidor, pois que o seu propósito era entregar o Brasil às mãos dos portugueses; ao mesmo tempo, eram convocadas todas as províncias do Norte a desconhecer a autoridade imperial e reunir-se, sob a presidência de Pernambuco, num Estado federativo republicano independente, que se devia chamar "Confederação do Equador".

De fato, chegaram, no correr das seguintes semanas, adesões da Paraíba, do Rio Grande do Norte, mesmo do Ceará; porém, a sua cooperação limitou-se a simples palavras e pequenos tumultos; também Alagoas e os distritos do interior de Pernambuco demonstraram pouco interesse e, em breve, o partido dos monarquistas atreveu-se mesmo a fazer franca contra-revolução. Um membro da aristocracia pernambucana de fazendeiros, Barreto, depois marquês do Recife, que possuía extensas propriedades no Cabo de Santo Agostinho, desfraldou a bandeira imperial, e em torno dela se perfilaram numerosos voluntários; na verdade, não se atreveu a fazer frente, em campo aberto, aos republicanos, em número bastante superior; todavia, defendeu-se com sucesso contra o bloqueio que eles começaram a fazer ao seu acampamento, por terra e por mar.

Entretanto, chegava ao Rio de Janeiro a notícia desses acontecimentos, quando justamente também se havia recebido a consoladora certeza de que nada havia de real na receada invasão; assim, podia-se, sem temor, volver todas as forças para subjugar a revolta. O imperador declarou a província desmembrada em estado de sítio; a esquadra de guerra, sob o comando do almirante lorde Cochrane, fez-se de vela para ali (l9 de agosto); sob a sua escolta, navegou o general Francisco de Lima e Silva, com um destacamento do exército, que desembarcou nas costas de Alagoas, a fim de fazer junção, com as forças de Barreto.

Mais ou menos em meados de agosto, apareceu lorde Cochrane com as suas flâmulas diante do Recife e estabeleceu o bloqueio; porém, antes de chegar ao extremo, ele convidou os pernambucanos, em repetidas proclamações, à submissão e ofereceu-se mesmo como mediador, para apresentar as suas queixas ao imperador; mas esses oferecimentos foram tão infrutíferos como as ameaças que os acompanhavam. Também a proposta de um encontro pessoal a bordo de um navio de guerra francês neutro, rejeitou-a Manuel de Carvalho; em vez disso, ele procurou atrair o almirante para o seu partido, pelo suborno; ofereceu-lhe 400 contos, se ele quisesse arriar a bandeira imperial, e içar a da república.

Natuftílmente, romperam-se, então, todas as negociações; a esquadra preparou-se para o bombardeio; todavia, os maiores navios não podiam, por causa de seu calado, aproximar-se a alcance de tiro, e as poucas bombas que uma pequena embarcação de guerra lançou à cidade (28 de agosto) tão pouco dano causaram, que se renunciou à tentativa. A questão se decidiu em terra; o general Lima, depois de reunir-se a Barreto, marchou ao encontro dos republicanos, bateu-os e dispersou-os em diversas escaramuças, apesar da sua superioridade numérica; já a 11 de setembro de 1824, estavam os bairros mais exteriores da cidade de Recife nas suas mãos, e a 17 foi também conquistado o último reduto dos revoltosos, foi a velha cidade dos recifes tomada à viva força; toda Pernambuco obedeceu de novo à autoridade imperial.

O governo brasileiro, triunfante, usou da sua vitória com doçura; o cabeça da revolta, Manuel de Carvalho, já a 11 de setembro, quando, derrotado no combate, se havia extraviado, conseguiu refugiar-se a bordo de uma nau de guerra inglesa e nela chegou a salvamento à Europa; foram somente executadas (conforme a sentença do Tribunal do Rio de Janeiro, de 12 de março de 1825) três condenações à morte, todas três personagens de pouco destaque176; além disso, foram deportadas algumas centenas de prisioneiros de guerra para as províncias do Sul. Assim terminou, depois de curta e apagada existência, a "Confederação do Equador".

 

Seguiu-se um epílogo singular; e, com ele, o mais glorioso e bem sucedido combatente pela causa da independência e integridade do império retirou-se do cenário da história do Brasil.

Já se disse em que pé estava o almirante Thomas, lorde Cochrane, marquês do Maranhão, para com o governo imperial; desde que ele, depois de seu primeiro cruzeiro ao longo da costa, chegou de regresso ao Rio de Janeiro (9 de novembro de 1823), havia, em seu nome e no de seus subordinados, feito reclamações quase incessantes sobre a pretensa injustiça do tribunal de presas, sem que fossem, de qualquer maneira, tomadas em consideração pelo ministério ou que resultasse autorização para receber o dinheiro de presas e atrasos de soldo.

Muitos oficiais e marinheiros abandonaram, por esse motivo, descontentes, o serviço; o próprio lorde Cochrane ficou com o seu navio-almirante inativo na baía do Rio de Janeiro; e, segundo parece, havia ele francamente recusado (fins de 1823) a cooperação pedida para o bloqueio de Montevidéu, cidade que ainda estava, então, nas mãos dos portugueses. Esqueceu-se isso, e Montevidéu foi, sem o seu auxílio, de novo conquistada pela capitulação; do seu lado, porém, continuou o governo a não fazer nada para satisfazer as queixas do almirante, até que. ao estalar a revolução em Pernambuco, os seus serviços se tornaram de novo indispensáveis.

Então, foi-lhe paga uma prestação de 200 contos, por conta, mediante a qual os marujos puderam ser satisfeitos, em’ parte; e, em seguida, como já mencionamos, lorde Cochrane fez-se de vela, a l9 de agosto de 1824, para Pernambuco, onde, de resto, não teve ensejo de obter grandes resultados; à conclusão da luta. ele nem sequer estava presente, pois o seu navio-almirante perdeu a âncora no porto de Recife, e ele, já desde princípio de setembro, tivera que arribar à Bahia. Somente a 29 de setembro regressou ele a Pernambuco e seguiu então para o norte, ao longo da costa; passou diante das províncias de Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, onde a sua simples presença bastou para abafar as fracas agitações revolucionárias, úlümas fagulhas do incêndio que foi a Confederação do Equador. m

Finalmente, a 9 de novembro de 1824, chegou ele ao Maranhão e também ali. onde se digladiavam dois partidos, que se acusavam mutuamente de tendências republicanas, restabeleceu com facilidade a paz. Porém esta última província teve que pagar caro por semelhante beneficio; lorde Cochrane, cansado das eternas reclamações infrutíferas junto do ministério, resolveu fazer-se pagar por moto-próprio, e, para isso, ofereceu-se-lhe aqui a melhor oportunidade.

Num memorial, ele explicou ao governo da província que, à sua primeira vinda (agosto de 1823), ele havia expulsado as autoridades e tropas portuguesas, pelo que competiam a ele e à esquadra, segundo*os usos da guerra, como legítimo despojo, todas as propriedades do governo português de então; ele as havia deixado à província, mas agora exigia o pagamento das mesmas; todavia, não reclamava todo o valor delas, pois, em consideração à pobreza do país, se contentaria com 160 contos. Ajunta, como era de esperar, opôs-se, a princípio, a tão insustentável argumentação; entretanto, havia lorde Cochrane afastado o seu presidente, substituindo-o por um homem que lhe era devotado, e ele insistiu tão obstinadamente no que desejava, que a junta, afinal, julgou prudente ceder; foi encarregada do pagamento da quantia a alfândega de São Luís do Maranhão. Até ser feito o pagamento, demorou, então, lorde Cochrane nessa capital e porto, e, sob o nome do dócil presidente provincial, Manuel Teles da Silva Lobo, governou sem restrições.

Um jornalista, João Antônio Garcia de Abranches, que no seu jornal, O Censor ousou criticar o modo de proceder do almirante (ele designava-o, embora duramente demais, como pirata e ladrão), foi, sem outra forma de processo, banido do Maranhão por um simples decreto. Um funcionário imperial, Pedro José da Costa Barros, que havia vindo, em fevereiro de 1825, do Rio de Janeiro para ali, a fim de assumir o governo da província, teve quase a mesma sorte; lorde Cochrane, quando percebeu que esse recém-chegado não estava disposto a aprovar o que havia acontecido, recusou-lhe em absoluto o seu reconhecimento; e, como Barros procurasse pela força tomar posse, mandou prendê-lo como conspirador e deportá-lo para o Pará (10 a 12 de março).

Finalmente, foi-lhe entregue toda a quantia; lorde Cochrane pagou-se a si mesmo e aos marinheiros; então, mandou a esquadra de regresso ao Rio de Janeiro, sob o comando do comodoro Jewett, ao passo que ele próprio se fazia de vela, na fragata Piranga, para a Inglaterra (20 de maio de 1825).

Ele havia prometido, outrora, servir ao Brasil, até ser reconhecida a sua independência; para satisfazer a essa promessa, deixou ele ainda alguns meses o seu pavilhão-almirante desfraldado a bordo da Piranga, até se efetuar a acomodação com Portugal; já se vê que, depois do que havia acontecido, no Rio de Janeiro ninguém mais desejava recorrer aos seus serviços. O governo imperial indignou-se ao mais alto grau; mas, visto reconhecer que também não deixava de ser culpado, evitou manifestar francamente a reprovação, e a folha oficial, o Diário Fluminense, contentou-se em reproduzir simplesmente as notícias do Maranhão; além disso, como era de esperar, Lobo foi logo exonerado do cargo e Barros foi instalado como presidente provincial; também, num decreto de 3 de setembro de 1825, foi severamente censurado o banimento de Abranches, como injusto, arbitrário e inconstitucional.

Na própria província do Maranhão, parece que, de resto, não se compartilhava dessa indignação; em vista do espírito de autonomia e dos ciúmes provinciais, afinal, era indiferente ao povo que o dinheiro da caixa da sua alfândega corresse para o bolso de lorde Cochrane ou para o tesouro do império, no Rio de Janeiro; e, quando, algum tempo depois, foram ordenadas as eleições para o parlamento, foi justamente a criatura de lorde Cochrane, Silva Lobo, do número dos candidatos triunfantes.

* * *

Volvamos agora um olhar retrospectivo para as condições gerais de todo o império.

No interior, a vitória sobre a revolução republicana em Pernambuco não pouco contribuiu para firmar a posição do imperador e do ministério; na verdade, aconteciam, ora aqui, ora ali, perturbações da ordem local (assim, por exemplo, na Bahia revoltou-se, a 25 de outubro de 1824, um batalhão e assassinou o gover-nador-militar, todavia logo ele foi forçado a submeter-se e, como castigo, foi transferido para o limite sul do império, a Cisplaüna); por outro lado, levantes propriamente políticos, que ameaçassem a forma monárquica do Estado ou a unidade do império, não eram de fato para recear; o desfecho da revolução republicana descoroçoara por toda parte tais veleidades.

Ao contrário, começava mesmo uma reação que tendia à revogação da constituição e restabelecimento da soberania absoluta, e nela colaboravam, em parte os antigos portugueses, criados nas tradições do absolutismo, em parte insípidos aduladores, que cobiçavam empregos e favores. De diversas províncias chegavam ofícios que exprimiam e recomendavam, mais ou menos abertamente, essas idéias; entre todas se destacava a de Montevidéu (7 de dezembro de 1824), com uma re presentação que era oficialmente assinada pela totalidade do conselho municipal: uma da Bahia, etc.; e um funcionário zeloso demais, Chichorro, juiz de Taubaté (província de São Paulo), chegou mesmo ao ponto de proclamar d. Pedro, em três povoações, imperador absoluto.

Demonstrações desta ordem não deixavam de encontrar na corte aceitação favorável, e muitos daqueles que mais vivamente tomaram parte nessas manifestações foram nos anos seguintes contemplados com cargos, cartas laudatórias. ordens honoríficas, títulos (sobretudo os títulos de nobreza, todavia sem dotação, foram conferidos então em grande número); porém possuía d. Pedro basta: bom senso, para não se deixar guiar por essas sedutoras bajulações; julgou mesmo necessário reprová-las publicamente; numa proclamação de 13 de maio de 1825. ele afirmou que: não querendo nem devendo desviar-se da firme resolução de manter a observância da constituição por ele solenemente jurada e por todos os povos do Brasil, houve por bem declarar que só quer e há de governar com aquele sagrado código".

Esta franca declaração e renovada garantia à constituição talvez não fossem inteiramente do gosto do imperador, nem de sua livre vontade; é possível que as relações ainda não regularizadas com Portugal e as já iniciadas dissensões diplomáticas com os Estados da Confederação do Prata o houvessem induzido a tanta moderação na sua política interna; e, de fato, no meio de tantas complicações com o exterior, teria sido duplamente inoportuno de novo derribar o estado de legalidade apenas criado, não sem o emprego da força. Além do que, se pusesse formalmente abaixo a constituição outorgada, isso não lhe concederia poder mais ilimitado do que o que eleja possuía, sem dúvida.

Desde os acontecimentos de 12 de novembro de 1823, era protelada continuamente, de ano para ano, a prometida convocação para uma nova "assembléia geral"; a imprensa estava suplantada, e, a não serem os jornais oficiais, apenas uma vez ou outra alguma folha diária ousava articular tímida palavra; nas províncias, pouco a pouco as juntas autônomas cediam diante dos novos presidentes provinciais que, nomeados pelo imperador, eram também inteiramente dependentes dele; por outro lado, porém, não se efetuava ainda a formação dos conselhos gerais constitucionais; o ministério, finalmente, não dispunha de força particular, nem de autonomia, era propriamente nada mais que servo da vontade imperial.

Podia d. Pedro ser, então, considerado inteiramente autocrata. Deve-se confessar que nessa posição não lhe faltava zelo, nem boa vontade; porém ele não havia sido preparado para uma tal tarefa; a sua atuação, em vez de criadora e ordeira, desperdiçava-se irregular em verdadeiras bagatelas.

E, ainda mais, demasiadamente suscetível às lisonjas e às boas graças femininas, concedeu ele em breve a certas personagens indevida influência na administração pública; assim, primeira de todas, a sua amante declarada, d. Domitila de Castro e Melo, marquesa de Santos177, natural de São Paulo, cujo filho (falecido poucom depois de nascido) foi elevado a duque de São Paulo e cuja filha foi agraciada com o título de duquesa de Goiás; e também o seu secretário particular, Francisco Gomes da Silva, português nato, que na boca do povo era designado pela alcunha de "Chalaça", um biltre.

Pode-se crer que tal modo de proceder da corte causava muito descontentamento; não menos o amor à magnificência, que de dia a dia d. Pedro mais evidenciava, e para o qual as finanças do Estado não estavam nada em condições, provocavam muito justa reprovação.

Em geral, continuava, porém, sempre, especialmente na capital, a popularidade que o imperador havia conquistado nos primeiros anos, e consolidado por sua adesão à causa nacional da independência.

Assim estavam as coisas no interior; quanto aos negócios exteriores do império, chamam a nossa atenção sobretudo as relações do Brasil com Portugal.

Vimos como, desde a primavera de 1824, o governo inglês (ministério Can -ning) havia intervindo como mediador entre a mãe-pátria e o Estado-filho rebelde, e não somente impedira o temeroso estalar de uma guerra, porém havia mesmo estabelecido tréguas, embora de fato apenas provisórias (cap. VIII). As duas potências beligerantes concordaram em mandar a Londres comissários, para tratarem das negociações de paz; e ali, no ministério de negócios estrangeiros, já a 12 de julho de 1824 se efetuava, sob a presidência de Canning, a primeira conferência entre os plenipotenciários do imperador do Brasil e os do rei de Portugal. Todavia, pouco sucesso prometiam as negociações; passaram-se cinco conferências, sem que se chegasse a um acordo sobre as bases de um ajuste; pois do lado dos portugueses exigia-se e apresentava-se sempre obstinadamente a proposta de restabelecer a união sob a soberania de dom João VI, ao passo que os brasileiros insistiam simplesmente no reconhecimento de sua independência.

Para promover o adiantamento da causa, volveu-se Canning diretamente à corte de Lisboa; ele fez ver ali como um maior prolongamento da situação duvidosa de então e mesmo o reencetar as hostilidades fariam perigar a posição de d. Pedro e a estabilidade da ordem monárquica no Brasil; facilmente, poderia o jovem império desmembrar-se num grande número de pequenas repúblicas, se Portugal hesitasse ainda em se conformar com o inevitável.

Mas também essa advertência ficou, a princípio, sem resultado; na verdade, pedia agora o rei d. João o parecer de seu Conselho de Estado, e este o deu aconselhando o reconhecimento nominal da independência do Brasil; acrescentava-se, contudo, a cláusula de que Brasil e Portugal doravante manteriam um exército e diplomacia em comum, e que ao lado de d. Pedro seria também reconhecido o rei dom João, como primeiro co-imperador. Isso não podia de todo ser considerado condescendência, nem podiam os plenipotenciários brasileiros em Londres consentir em tais cláusulas. Por outro lado, um agente secreto, que o gabinete de Lisboa mandou ao Rio de Janeiro para direta negociação, foi ali preso, desatendido e despachado de volta ao seu país.

Sobre isso passou o ano de 1824; o seguinte, 1825, inaugurou-o Canning, como se sabe, com a sua célebre nota de l9 de janeiro, na qual ele anunciava a todas as potências européias que a Grã-Bretanha, sem mais esperar a resolução da Espanha, reconhecia como convencionalmente independente a parte do antigo império colonial espanhol que se achava de fato na posse da independência, primeiramente as repúblicas de Colômbia, México e Buenos Aires, e, por motivo desse reconhecimento, ia entabular com as mesmas tratados de comércio.

Essa declaração não fazia direta referência à questão luso-brasileira; serviu, todavia, à corte de Lisboa de espelho avisador do que a esperava, se continuasse na obstinação. E Canning não perdeu tempo para mais instigá-la à decisão; depois de já haver o seu embaixador trabalhado nesse sentido, despachou ele, em março de 1825, mais um enviado extraordinário a Lisboa, sir Charles Stuart, que levava da parte do governo inglês novas advertências e propostas e, além disso, estava encarregado de promover logo, pessoalmente, no Rio de Janeiro, as possíveis preliminares de paz, que em Lisboa tivessem aceitação.

E os conselhos da Inglaterra eram agora também zelosamente apoiados por outra grande potência européia; se foi a intervenção diplomática de Canning em Viena, ou se foi simplesmente a relação de parentesco entre a casa imperial austríaca e a brasileira, o que fez o imperador Francisco José I, da Áustria, não dar atenção às origens revolucionárias do império sul-americano e admiti-lo como exceção aos princípios de ligitimidade então muito em moda, o certo é que ele intercedeu decisivamente em favor de seu genro, d. Pedro, e tanto o seu gabinete como o seu enviado em Lisboa apoiaram a mediação inglesa.

Não pequena era a pressão diplomática que, destarte, sofria a corte portuguesa; contudo, não se pode, por outro lado, deixar de reconhecer que os mediadores usaram de máxima consideração pela dignidade da coroa de Portugal e pelos interesses dinásticos da casa de Bragança.

As propostas de Canning, como as apresentava em Lisboa sir Charles Stuart. diziam que a independência do Brasil devia ser franca e simplesmente reconhecida; porém, quanto à forma desse reconhecimento, em vez da ratificação por um pacto de direito internacional entre ambas as partes, podia ser feito por simples outorga de uma delas: por meio de uma carta régia, na qual o rei d. João concedesse, sob certas condições, a independência ao Brasil, a coroa de imperador a d. Pedro. Era na verdade um expediente estranho, porém muito ao sabor daquela época, como havia justamente sido de fato empregado para a acomodação entre a França e o Haiti (na carta régia do rei Carlos X, de 17 de abril de 1825).

E, além disso, se pelo reconhecimento era preciso romper no momento a união pessoal entre os dois reinos da casa de Bragança, podia-se deixar, entretanto, aberta uma possibilidade de reatamento; para esse fim, poderia o rei d. João confirmar na mesma carta régia o imperador do Brasil nos seus direitos de nascimento e de sucessão e reconhecê-lo como príncipe herdeiro de Portugal.

Finalmente, quanto às condições, dizia o documento que o rei d. João podia reservar para si todos os seus títulos (também o do Brasil) e estipular uma indenização pelos seus domínios; fora isto, poderia estipular um tratado de comércio com Portugal, com os direitos de nação mais favorecida; e prometia o governo britânico, com rara magnanimidade, não ser contrário a esse tratado, embora pretendesse derivar dos tratados de paz de 1810 direitos contrários.

Certamente não eram inadmissíveis essas propostas de ajuste; todavia, em Lisboa, se sentia demasiado penosamente a perda do Brasil, para com isso se ficai contente. Em princípio, concedia-se agora o simples reconhecimento de completa independência; porém, quanto à forma e às condições, apresentou o ministério propostas mais amplas, a saber: o rei d. João VI, por sua própria autoridade, assumiria o título de imperador do Brasil, rei de Portugal, etc, e, então, por meio de uma carta régia, outorgaria o título imperial a seu filho d. Pedro e conceder -lhe-ia igualmente a imediata soberania sobre o Brasil, assim como o direito de futura sucessão em Portugal178. Por outro lado, devia o Brasil, além de um tratado de comércio favorável, restituir todas as propriedades portuguesas confiscadas ou embargadas e assumir uma parte proporcional da dívida de Estado portuguesa.

Se já ninguém se iludia que o projeto de tratado inglês muitos empecilhos encontraria no Brasil, quanto mais não devia ser o caso das proposições portuguesas, mormente nos pontos em que exigiam o título imperial para o rei d. João e um encargo nas dívidas portuguesas; por isso, esforçou-se de todo modo sir Charles Stuart por promover uma modificação das mesmas; porém foi mal sucedido, e, como em Lisboa não se pudesse chegar a acordo sobre as bases fundamentais, também se abandonou o recurso proposto, da carta régia de outorga. Em compensação, o rei d. João, instado cada vez mais fortemente, deixou-se por fim demover, dando uma espécie de plenos poderes ao enviado britânico, para ajustar a causa definitivamente, pelo que este embarcou para o Rio de Janeiro num navio de guerra britânico, que estava pronto, à sua espera, na foz do Tejo (24 de maio de 1825).

A 18 de julho, chegou sir Charles Stuart à capital brasileira, onde o imperador d. Pedro o acolheu com a maior distinção e, logo a seguir, fez entabular as negociações pelos seus ministros do exterior e da marinha, Luís José de Carvalho e Melo e Francisco Vilela Barbosa, aos quais ele associou, como terceiro, o conselheiro de Estado, barão de Santo Amaro. Sir Charles Stuart, para isso, tomou como ponto de partida, abertamente, as propostas da mediação britânica e as exigências apresentadas em último lugar por Portugal, as quais, como era de esperar, encontraram muita oposição da parte do Brasil; resistia-se especialmente em conceder o título de imperador ao rei d. João e as indenizações exigidas.

Contudo, como, sob a pressão da mediação britânica, a causa tinha que ser logo liquidada, achou-se um recurso, e já, a 29 de agosto de 1825, foi assinado na cidade do Rio de Janeiro o definitivo tratado de paz entre Portugal e Brasil, pelos negociadores de ambas as partes. Quase que o mais importante nesse tratado é a introdução, porque nela está explanada a tão longamente debatida forma do ajuste.

"S. M. F., tendo constantemente no seu Real Ânimo os mais vivos desejos de restabelecer a Paz, Amizade e boa harmonia entre os povos irmãos, que os vínculos mais sagrados devem conciliar, e unir em perpétua aliança; para conseguir tão importantes fins, promover a prosperidade geral, e assegurar a existência política, e os destinos futuros de Portugal, assim como os do Brasil; e, querendo de uma vez remover todos os obstáculos que possam impedir a dita Aliança, Concórdia e Felicidade de um e outro Estado, por seu Diploma de 15 de maio de 1825, reconheceu

178 Devia parecer estranho que, tanto do lado do governo inglês, como do governo português, tamanho zelo se desenvolvesse para assegurar ao imperador d. Pedro, como filho primogênito do rei dom João VI, a sucessão ao trono de Portugal, pelo direito público e internacional. E, todavia, era um tal alvitre muito arriscado; que o renovamento da união de ambas as coroas sobre uma cabeça seria decididamente impopular no Brasil, já era coisa bem conhecida, pelas experiências dos últimos anos, pelo que, na final conclusão do tratado, o próprio d. Pedro teve o bom senso de desviar qualquer determinação alusiva a isso; não deixava também o plano de pecar contra as leis de Portugal, pois, pelo antigo direito, nunca um estrangeiro poderia subir ao trono de Portugal, e patentemente, ao colocar na cabeça a coroa do Brasil, havia d. Pedro perdido o direito de cidadão português.

Por outro lado, como se sabe, existia segundo filho do rei dom João VI, cuja sucessão assegurada podia evitar em Portugal todos esses inconvenientes. Basta, porém, lembrar, a esse respeito, que esse segundo filho, d. Miguel, como cabeça da revolução ultra-absolutista de 30 de abril a 9 de maio de 1824, havia tentado derribar o seu pai do trono, e, por esse motivo, vivia provisoriamente ao exílio. (Nota do autor.)

o Brasil na categoria de Império Independente179′, e separado dos Reinos de Portugal e Algarves, e a seu sobre todos muito Amado e Prezado Filho d. Pedro por Imperador, cedendo e transferindo de Sua livre Vontade a Soberania do dito Império ao Mesmo Seu Filho, e Seus Legítimos Sucessores, e tomando somente, e reservando para a Sua Pessoa, o mesmo título." Assim dizia a introdução; por conseguinte, ao passo que mencionava o reconhecimento, conservava até certo ponto a feição de uma carta régia de concessão, embora sob a mais moderada forma.

Porém, segue-se uma formal justificação; pois, prosseguia explicando como ambos os soberanos, de Portugal e do Brasil, para acabar com dificuldades decorrentes da separação dos dois Estados, haviam aceitado a mediação do rei da Grã-Bretanha e Irlanda e nomeado plenipotenciários que se puseram de acordo. E seguiam-se, então, as estipulações do tratado de paz, em 11 artigos. No primeiro, afirmava-se de novo que o rei d. João reconhecia a independência do Brasil e a d. Pedro I como imperador, e declinava da soberania sobre o império, reservando, contudo, para a sua pessoa, o título imperial; e a esta última reserva do título dava o imperador d. Pedro, no segundo artigo, o seu assentimento; prometia, além disso, no terceiro, não aceitar quaisquer propostas de colônias portuguesas para se unirem ao império do Brasil.

O art. 49 prometia para o futuro paz, aliança e amizade entre o império do Brasil e os reinos de Portugal e Algarves, com total esquecimento das desavenças passadas entre os povos respectivos; o 59, que todos os súditos de ambas as nações, brasileira e portuguesa, seriam tratados, nos respectivos Estados, como os de nação mais favorecida e amiga; e esta disposição era completada no art. IO9, segundo o qual pagavam em ambas as nações, reciprocamente, todas as mercadorias 15% de direitos de consumo provisoriamente (com o que seria Portugal no Brasil equiparado à nação britânica, até então a mais favorecida). Os restantes artigos referiam-se a mútuas reivindicações, e, de fato, determinava o art. 69 que todos os bens de raiz ou móveis, seqüestrados ou confiscados, pertencentes aos súditos de ambos os soberanos, seriam logo restituídos reciprocamente, ou indenizados os proprietários; o mesmo dispunha o art. 79, referente a embarcações e cargas apresadas; ao passo que o art. 89 ordenava o estabelecimento de uma comissão, nomeada por ambos os governos, composta de brasileiros e portugueses em número igual, sob a presidência de um delegado britânico, para a breve decisão dessa questão. E, como até aqui, a respeito de propriedades particulares, o art. 99 exigia também a equiparação das reclamações financeiras de ambos os Estados, reciprocamente, a qual devia ser feita com a restituição dos objetos reclamados, ou com uma indenização cc seu justo valor; e, para o ajuste dessa equiparação, ambas as partes concordaram em fazer uma convenção especial.

Essa prevista convenção especial foi redigida e assinada ainda no mesmo dia em que o tratado de paz (29 de agosto de 1825); nela funcionaram os mesmos personagens, com a única exceção de que, em vez do barão de Santo Amaro, outro conselheiro de Estado, o barão de Santa Marta180, tomou parte como terceiro negociador brasileiro. Nesse documento, promete o Brasil, em vista das reclamações apresentadas por ambas as partes, pagar ao governo português dois milhões de libras esterlinas; e efetuar-se-ia o pagamento, assumindo o tesouro do Brasil a responsabilidade do empréstimo português (1.400.000 libras), feito em outubro de 1823, em Londres; o restante, porém, a pagar à vista, no prazo de um ano depois da ratificação181.

179 O que quer dizer esse diploma de 15 de maio de 1825, se se refere aos plenos poderes (instruções) de sir Charles Stuart, não o pude apurar; em pane alguma, nas coleções de documentos, foi possível encontrá-lo.\(Nota do autor.)\

 

 

 

Em compensação, ficavam extintas todas as mais reclamações recíprocas, como sem valor; somente as reclamações sobre despesas militares e de transportes eram excetuadas e passavam ao exame da comissão mista luso-brasileira, de conformidade com o teor do art. 89 do tratado de paz.

O art. 11 (de conclusão) determinava que a troca das ratificações se faria dentro do espaço de cinco meses, no máximo, em Lisboa, e o mesmo se dispunha a respeito da convenção; todavia, foi desempenhada em tempo muito mais curto essa formalidade.

O imperador d. Pedro ratificou imediatamente após a assinatura, e, como se conta, foi bastante dócil às exortações de sir Charles Stuart em alterar a sua fórmula constitucional, porque poderia irritar; em vez de "pela graça de Deus e unânime aclamação dos Povos, Imperador, etc", devia agora assinar: "pela Constituição do Império, etc". Foi o documento despachado, então, para bordo de um navio de guerra inglês, o Spartiat, com destino a Londres, a fim de ser dali em seguida remetido para Lisboa. Porém d. Pedro, a 7 de setembro de 1825, no terceiro aniversário da declaração da independência, anunciou, da sacada do palácio da cidade, ao povo aglomerado em massa, que a independência nacional havia doravante recebido a sanção do direito internacional, e, para celebrar o feliz acontecimento, mandava cantar um Te-Deum na sua capela da corte, sem contar mais outras solenidades.

A notícia do tratado de paz foi recebida, tanto na capital como nas províncias do Brasil, sem dúvida, com quase geral satisfação, tanto mais porque a princípio o governo guardou segredo sobre a convenção e a indenização em dinheiro; se no tratado algumas flores de retórica ofenderam as suscetibilidades dos patriotas exaltados 182, eles apenas se manifestaram em palavreado, e a questão principal, o reconhecimento da independência, estava alcançada. Por outro lado, em Portugal, o tratado encontrou menos favorável aceitação; a classe de comerciantes, mormente, não estava nada satisfeita com as cláusulas estipuladas, da equiparação com os povos mais favorecidos, visto esperarem obter para Portugal uma posição de preferência e exclusivamente favorecida, e, também, o governo, embora em sua consideração se usasse de toda a possível deferência, mostrava-se magoado sobre muitas formas e fórmulas; sem embargo, d. João VI, agora "Imperador e Rei", quase imediatamente depois de receber o tratado (sem dúvida sob circunstâncias inteiramente especiais, que citaremos depois), assinou a ratificação do mesmo (15 de novembro de 1825).

 

 

 

Com isso entrou o Brasil, como membro autônomo equiparado, no grande concerto de nações europeu-americanas; visto se haver amigavelmente ajustado com a mãe-pátria e obtido o seu reconhecimento, não havia mais razão para que qualquer Estado hesitasse, e, por conseguinte, dentro em breve se realizaram satisfatoriamente as formalidades do reconhecimento por todos os lados, e começaram as recíprocas relações diplomáticas. Não tardou que se estabelecessem mais estreitas relações internacionais, pela celebração de diversos tratados.

Primeiro com a Inglaterra: sir Charles Stuart, que, durante a sua permanência no Rio de Janeiro, sempre igualmente se apresentava no duplo cargo de plenipotenciário português e inglês, aproveitou-se da oportunidade para, logo a seguir à conclusão do tratado de paz, ajustar pela Inglaterra dois tratados com o governo brasileiro, um tratado de comércio e outro para a supressão do tráfico de escravos ambos a 18 de outubro de 1825, e, pouco tempo depois, publicados no Diário Oficial do Rio de Janeiro; todavia, da parte do governo inglês, foi negada a ratificação a ambos esses tratados, em parte porque sir Charles Stuart não estava empossado de plenos poderes para isso, em parte porque algumas das estipulações causaram desgosto; e, somente nos dois anos seguintes, é que foram assinados outros, em substituição: uma convenção para abolição do tráfico de escravos, no Rio de Ja neiro (23 de novembro de 1826), e um tratado de amizade e de comércio, no mesmo lugar, a 17 de agosto de 1827.

Nesse ínterim, e, depois, foram ainda firmados tratados de amizade, de nave gação e de comércio: com a França, no Rio de Janeiro, a 8 de janeiro de 1826, além de um artigo adicional, de 7 de junho de 1826; com a Áustria, em Viena, a 17 de junho de 1827; com a Prússia, no Rio, a 9 de julho de 1827, além de uma cláusula adicional de 18 de abril de 1828; igualmente no Rio, com as Cidades Hanseáticas. a 17 de novembro de 1827; com a Dinamarca, a 26 de abril de 1828; com os Estados Unidos da América do Norte, a 12 de dezembro de 1828; com os Países Baixos. a 20 de dezembro de 1828 (e Bélgica, a 22 de setembro de 1834); assim, todos esses países, com a concessão de reciprocidade, obtinham para si, no Brasil, os direitos de nação mais favorecida.

 

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