CAPITULO I
PRIMEIRO PERÍODO
ARTIGO I
FILOSOFIA ESCOLÁSTICA
59. RENASCENÇA LITERÁRIA — ESCOLAS CARLOVÍNGIAS — Um dos maiores títulos de Carlos Magno.ao reconhecimento da posterioridade é o impulso por êle dado ao estudo das letras e ao cultivo das artes. Depois da sua viagem à Itália, onde floresciam as boas letras, compreendeu o grande imperador a necessidade de avivar entre os seus belicosos francos o gosto da literatura e da ciência, e, pelas célebres capitulares de 787, recomendou a fundação de escolas por todo o império. A Irlanda, que, preservada, desde a sua conversão ao cristianismo, das invasões bárbaras, tinha mantido as antigas tradições científicas, subministrou à Europa continental os primeiros mestres. Alcuino, (735-804) monge de York, foi a alma deste movimento. Sob a sua inspiração, resuscitaram as antigas escolas e criaram-se novas. Entre seus discípulos salientaram-se Rha-bano Mauro e Fridegísio. As escolas então fundadas podem dividir–se em três classes:
- a) Escolas monacais, adidas aos mosteiros e divididas em scho-la interior para os religiosos e schola exterior para os leigos.
- b) Escolas catedrais, anexas às sedes episcopais e divididas também em duas seções, uma, para os clérigos, outra, para os seculares.
- c) Escolas palatinas, abertas nas cortes e dirigidas por eclesiásticos, mas franqueadas indiferentemente a clérigos e leigos.
O programa de ensino, limitado a princípio, depois notavelmente ampliado, compreendia: 1) as artes liberais divididas em dois grupos, o trivium (gramática, retórica, dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) ; 2) rudimentos de ciências naturais; 3) filosofia; 4) teologia. ,
O método seguido era geralmente a lectio ou comentário a um texto em forma de exegese ou de paráfrase. Naturalmente os talentos de maior envergadura não se limitavam a apostilar elucubra-ções alheias. Com o tempo apareceram também a quaestio ou discussão de um ponto e as monografias ou dissertações isoladas.
Os livros conhecidos em filosofia eram: o Organorí de Aristóteles, o Timeu de Platão, os comentários aristotélicos de Porfírio (Isagoge) e Boécio, alguns tratados de Cícero, Sêneca e Lucrécio, os escritos dos Padres: Orígenes, Clemente Alexandrino, Latâncio, S. Ambrósio, Pseudo-Dionísio e sobretudo S. Agostinho, que exer-
ceu grande influência em toda a Idade Média, para a qual foi o principal veículo das idéias da filosofia grega e particularmente platônica.
Entre as escolas mais célebres desta época, citamos: na Inglaterra a de York, na Germania a de Fulda, na França, além da escola palatina, as de Tours, Reims, Auxerre, Cluny e Chartres.
60. CARACTERES GERAIS DO PRIMEIRO PERÍODO — Neste período elaboram-se os elementos que constituirão o núcleo da grande síntese filosófica do séc. XIII. As questões dialéticas absorvem a princípio quase toda a atividade intelectual. Mais tarde, em torno destas se vão grupando os problemas de ordem psicológica e metafísica. Nesta elaboração lenta e penosa observam-se, em geral, falta de unidade sistemática e incoerências provenientes da assimilação imperfeita de elementos heterogêneos e de origem diversa. Enquanto Aristóteles domina, sem contraste na dialética, nas outras partes da filosofia circulam largamente, sem se fundirem num corpo orgânico de doutrina, idéias augustinianas, neoplatôni-cas e árabes. Destarte, não raro, sem ser percebida, penetra a contradição no seio dos sistemas.
A questão mais importante que aos poucos foi dando ensejo ao exame das teorias fundamentais da psicologia e da metafísica e sobre a qual se ascenderam mais vivos os debates foi a questão dos universais.
61. QUESTÃO DOS UNIVERSAIS
— Ei-la nos termos mais simples: além das imagens sensitivas, variáveis e particulares, possuímos os conceitos universais, representações intelectivas, necessárias, imutáveis e aplicáveis a um número indefinido de indivíduos.
Ora, sendo as realidades sujeitas à nossa experiência, mutáveis e contingentes, qual o valor objetivo destes conceitos? Com que fidelidade exprimem eles a realidade extrema? Como explicar a contradição aparente entre o caráter de universalidade das nossas idéias e o caráter de individualidade e de contingência das coisas em si? Destas perguntas nasceu a famosa questão dos universais, uma das mais escabrosas e importantes de toda a filosofia. A questão do valor objetivo das ciências está toda aí (56). Das quatro soluções possíveis originaram-se outros tantos sistemas diversos, conhecidos com os nomes de realismo exagerado, nominalismo, conceptualismo e realismo moderado.
O realismo exagerado, para salvar a perfeita correspondência entre o conhecimento e o.objeto, afirma, contra toda a evidência experimental, a existência de realidades objetivas formalmente universais. Platão, entre os gregos, Guilherme de Champeaux, na Idade Média, Ubaghs e La Forêt em nossos dias, são realistas exagerados.
(56) Por onde se vê a leviandade dos que averbaram tão momentoso problema de estéril logomàquia dos pensadores medievos. A questão dos universais é de todos os tempos e de todas as filosofias. Agitaram-na Platão ‘e Aristóteles, discutiram-na e resolveram-na profundamente os escolásticos, dela ainda modernamente se ocupam todos os pensadores e espíritos reflexivos. Cfr. V. ‘Cousin, Introduction aux œuvres inédites d’Abélard, p. 63.
O nominalismo, partindo do mesmo princípio que o sistema precedente, nega a existência dos conceitos universais, concedendo a universalidade somente aos vocábulos ou termos comuns, reduzidos ao simples mister de designar uma coleção de indivíduos ou uma série de acontecimentos. Pode-se duvidar se tal sistema teve adeptos na Idade Media. Entre os modernos, St. Mill, Taine, Ribot e, em geral, os positivistas professam o nominalismo, que então se confunde com o empirismo.
O conceptualismo admite só o valor ideal dos conceitos universais, negando uma realidade extramental que lhes corresponda. O fenomenismo de Kant e uma nova forma de conceptualismo.
O realismo moaerado, aristotelico ou tomista, única solução que põe a salvo a objetividade do conhecimento científico e se harmoniza com os dados da consciência, defende o valor real e objetivo das idéias, estabelecendo uma distinção entre o modo por que a coisa existe em si e o modo por que existe na inteligência. Em si, os objetos de uma mesma espécie são singulares e individuais mas participam duma natureza comum, pela qual se assemelham.
Na inteligência, esta natureza comum despida pela abstração dos caracteres individuais a que se acha unida na realidade, reveste os atributos de universalidade próprios do conceito. O universal, portanto, só existe, formalmente, na inteligência, mas a semelhança real dos seres duma mesma espécie presta-lne um fundamento objetivo e justifica a aplicabilidade do tipo abstrato a todos os seus representantes individuais e concretos.
62. No principio da Idade Media, quando se não conhecia ainda a solução aristotélica dos universais, deu azo à famosa questão um texto celebre da Isagoge em que Porfírio propõe os termos do problema, recusando-se resolvê-lo (57).
As primeiras soluções inspiraram-se num realismo exagerado. Sem chegarem ao extremo panteísta de Scoto Erigena, chefe dos anti-escolásticos no séc. IX, são realistas Rémy d’AuxERRE, que introduziu a dialética nas escolas de Paris e Gerbert (930-1003), depois Sumo Pontífice sob o nome de Silvestre II, cognominado o Papa filósofo, e um dos homens mais sábios e eruditos do seu tempo. Contra os realistas acima insurgiram Rhabano Mauro, Heiric d’Auxerre e sobretudo João Roscelino (m. 1124), cônego de Compiègne, tido ordinariamente como chefe dos nominalistas por ter afirmado que .os universais são simples flatus voeis. Parece, porém, dever interpretar-se esta frase, proferida no ardor da contenda, mais como expressão enfática de sua oposição ao realismo do que como profissão aberta de nominalismo (58). Pela aplicação de suas doutrinas errôneas ao mistério da SSma. Trindade (triteísmo) foi êle condenado no concilio de Soissons em 1092. Com Roscelino inaugura-se a fase mais viva da discussão dos universais e delimitam-se nitidamente os campos antagonistas. É contra o nominalismo defendido pelo cônego de Compiègne que se levantaram os realistas.
(57) “Mox de generibus et speciebus illud quidem sive subsistant sive In nudis lntellectibus posita sint, sive subsistentia corporalia sint an incorporalia, et utrum separata a sensibilibus an in sensibilibus posita et circa haec consistentia, dicere recusabo; altissimum enim negotium est hujusmodi et majoris egens inquisitionis”.
(58) Assim pensam, entre outros, Mercier, Pesch, De Wulf e Windelband.
BIBLIOGRAFIA
L. Maître. Les écoles épiscopales et monastiques de l’Occident depuis Charlemagne jusqu’à Philippe-Auguste (786-1180), Paris, 1866; — J. B. Mullinger The schools of Charles the Great and the restorations of education in the ninth century, London, 1877; — G. Brunhes, La foi chrétienne et la philosophie au temps de la renaissance carolingienne, Paris, 1903; — C. j. B. Gaskoin, Alcuin, his life and his work, London, 1904; — Saint-René Taillandier, Scot Erigène et la philosophie scolastique, Strasbourg, 1843; — Brilliantoff, Der Einfluss der orientalischen Theologie auf die occiden-talische in den Werken des Johannes Scotus Erigena, St. Petersburgo, 1898.
De Wulf, Le problème des universaux dans son évolution historique du IX au XIII siècle, em Arch. f. Geschichte der Phil. I, (1896) p. 427 segs.; Canella, Per lo studio del problema degli universali nella scolastica, em Scuola Cattolica, 1904-1907; — F. Picavet, Roscelin, philosophe et théologien, d’après l’histoire2, Paris, 1911.