Início do cristianismo na Filosofia dos primeiros padres

Noções de História da Filosofia (1918)

Manual do Padre Leonel Franca.

PARTE III

Terceira época – Filosofia patrística

(Séc. I — Séc. IX)

48. CRISTIANISMO Ε FILOSOFIA — O advento do Cristianismo divide a história do pensamento, como a história da civilizarão, em duas partes inteiramente distintas.

Jesus Cristo não se apresenta ao mundo como um fundador de escola, semelhante a Platão e Aristóteles, que investiga, raciocina, discute e propõe a um círculo, mais ou menos estreito de iniciados, o seu sistema de idéias, a sua explicação do Universo; revela-se como Jesus e Salvador que, possuindo a verdade em sua plenitude, a comunica aos homens por meio de seu magistério infalível. Não é, pois, o cristianismo um sistema filosófico, no sentido rigoroso do termo. Não obstante, íntima e universal foi a influência que exerceu sobre a orientação da filosofia. Era natural. Propostas como infalivelmente verdadeiras, as novas soluções sobre a existência e a natureza de Deus, as suas relações com o mundo, a origem e os destinos do homem, a obrigação e sanção da lei moral, não podiam deixar de ter uma repercussão profunda em toda a filosofia que versa sobre estas mesmas questões ainda que encaradas sob aspecto diverso (48).

O próprio fato da revelação, alargando por novos meios de conhecimento a esfera das verdades cognoscíveis e abrindo novo campo às esperanças humanas, era de impor-se à inteligência como uma questão completamente nova e de importância transcendental. Com efeito, da vinda de Cristo ern diante quase toda questão filosófica apresenta um aspecto duplo, racional e religioso, e todo filósofo deve definir e justificar sua atitude em face deste acontecimento único, com todas as conseqüências que êle envolve, atitude que será de reconhecimento e submissão na filosofia cristã, de revolta e menosprezo na filosofia racionalista. Como para Jesus, centro da vida da humanidade convergiram em todos os tempos os amores e os ódios de todos os corações, assim também para êle se dirigem todas as inteligências, rejeitando ou aceitando-lhe o Verbo da verdade que regenerou o mundo.

É nas obras dos Padres e escritores eclesiásticos que primeiro se manifesta a nova influência das idéias cristãs.

49. FILOSOFIA PATRÍSTICA — CARACTERES GERAIS — Com exceção de S. Agostinho, não tratam os Padres ex-professo de questões filosóficas. Expositores do dogma, recorrem à filosofia todas as vezes que esta lhes pode ministrar esclarecimento ou confirmação da doutrina cristã. Defensores da fé, buscam no arsenal da razão as mesmas armas de que se servia o paganismo para impugnar o depósito das verdades reveladas.

Daí o caráter incidente e fragmentário da filosofia patrística, cujas doutrinas não constituem um complexo sistemático e orgânico, uma síntese patrística, no rigor filosófico da palavra. Daí ainda o desenvolvimento desigual das diferentes partes da filosofia, pelas suas relações de maior ou menor afinidade com o dogma.

As questões morais são tratadas em toda a amplidão. O fim do homem, a felicidade e os meios de alcançá-la, as virtudes são objeto de largos estudos. Entre as questões de ordem especulativa, cabe a primazia às teológicas, — existência, natureza e atributos de Deus, sua relação com o mundo. Seguem-se as psicológicas — natureza da alma e das suas faculdades, origem do conhecimento. Os problemas de lógica e cosmologia são quase de todo descurados.

No modo de tratar estas questões, a filosofia patrística, desenvolvendo-se num ambiente saturado de cultura helênica, havia naturalmente de vazar os seus pensamentos nos moldes clássicos dos mais ilustres filósofos gregos. Platão, sobretudo, atrai as simpatias gerais e entra com tão larga contribuição nos trabalhos filosóficos dos primeiros escritores cristãos que se poderia chamar platônica a sua filosofia em contraposição à escolástica, francamente aristoté-lica. As razões desta preferência deixam-se facilmente perceber. Platão era, por este tempo, o mais estudado e seguido dos grandes pensadores gregos e nas suas doutrinas entrincheiravam-se pagãos e hereges para opugnar o dogma cristão. Era, pois, de boa tática combatê-los com as mesmas armas. Demais, no fundador da Academia encontram-se muitos ensinamentos morais e teológicos que, à primeira vista, mais facilmente se harmonizavam com os preceitos do Evangelho. Com Aristóteles já não era assim. As suas incertezas e hesitações sobre a vida futura e a imortalidade pessoal, a negação, sobretudo, da Providência e de todo influxo causal de Deus no mundo eram erros muito de molde para desviar da doutrina peripatética os primeiros pensadores cristãos.

Esta dependência, porém, em relação à filosofia grega nada tem de servilismo. Os Padres julgam-na com critério imparcial e superior, corrigem-na onde a encontram desviada e aperfeiçoam-lhe notavelmente mais de um ponto fundamental. Assim, o dualismo irredutível entre Deus e a matéria, que vicia todas as filosofias antigas é eliminado e substituído pela tese da criação, única solução racional e extreme de contradições do problema das relações entre o Ser necessário e os seres contingentes (49). A unidade e a personalidade transcendente de Deus, sua Providência no governo das criaturas, a espiritualidade e imortalidade pessoal da alma humana, o caráter obrigatório da lei moral, a finalidade do Universo, verdades entrevistas pelos antigos, mas não afirmadas sem mescla de erros ou hesitações de dúvida, são definitivamente assentadas e adquiridas para o pecúlio intelectual de toda sã filosofia.

(48) A teologia e a filosofia, posto sejam ciências inteiramente distintas por serem distintos os seus objetos formais, têm um objeto material parcialmente comum. Dal a reciprocidade de influência.

(49) O gênio grego mostrou-se impotente para resolver esta grande questão, que tanto o torturou. O dualismo em que esbarraram Platão e Aristóteles não explica a origem e independência da matéria, princípio passivo e potencial arbitrariamente posto ab aterno em face do ato puro. O panteísmo emanatista, sob a sua dúplice forma, estóica e neoplatônica, introduz a contradição no ato puro, condenado fatalmente, sem se saber por que motivo, a efundlr-se numa multidão exterior de seres contingentes.

50. DIVISÃO — Na filosofia patrística podemos distinguir três períodos:

  • I. PERÍODO DE FORMAÇÃO — Do princípio do século II ao Concilio de Nicéia. Séc. II-III.
  • II. PERÍODO DE APOGEU — Séc. IV-V.
  • III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO para a filosofia escolástica. Séc. VI-VIII.

BIBLIOGRAFIA

— Omitindo as antigas coleções das obras dos SS. Padres, mencionamos: — J. P. Migne, Patrologiae cursus completus, Parisiis, 1844-1866, Series latina, 221 vols, (até Inocencio III, m. 12Î6) series graeca, 162 vols.; (até o Concilio de Florença 1438-39) ; Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum, edição crítica publicada desde 1866, pela Academia de Viena;

 Die griechischen christlichen Schriftsteller der ersten drei Jahrhunderte, Leipzig, 1897 e segs., a cargo da Real Academia de Ciência, da Prússia; — Patrologia orientalis, publiée sous la direction de R. Graffin et F. Nau, Paris, 1903, e segs. — Entre as maiores empresas de traduções citamos: Bibliothek der Kirchenväter, herausgegeben von F. X. Reithmayr, fortgesetzt von V. Thalhofer, Kempten, 1860-88, 80 vols.; — Ph. Schaff and H. Wace, A select Library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, in connection with a number of patristic scholars of Europe and America, "Buffalo and New-York, 1886-1890, 14 vols.; 2.a serie, New-York, 1890 e segs.

Estudos gerais: Α. Möhler, Patrologie oder christliche Litterärgeschiehte, hsg. von F. X- Reithmayr, Regensburg, 1840; — J. Fessler-b. Jungmann, Institutiones patrologiae2, 2 vols., Innsbruck, 1890-96; — J. Alzog, Grundriss der Patrologie 4, Freib. i. B. 1888; — J. Nirschl, Lehrbuch der Patrologie und Patristik, 3 vols., Mainz, 1881-85; — O. Bardenhewer, Patrologie’, Freib. i. Β., 1910 (muito exato; trad, em fr., ingl., ital. e esp.) ; — Idem, Geschichte der altchristlichen Literatur, 3 vols., Freib. i. Β. 1902–1912; — Α. Harnack, Geschichte der altchristlichen Literatur bis Eusebius, 3 vols., Leipzig, 1893-1904; — P. Batiffol, La Littérature grecque*, Paris,

1897 ,— GEORGIOS DÉBROS χριστιαυική γραμματολογια 3 vols.., Athenas, 1903–1910; — H. Kihn, Patrologie, 2 vols., Paderborn, 1904-1908; — G. Rauschen, Grundriss der Patrologie3, Freib. i. B. 1910; — J. Huber, Die Philosophie der Kirchenväter, München, 1859; — A. Stöckl, Geschichte der christlichen Philosophie zur Zeit der Kirchenväter, Mainz, 1891; — P. de Labriolle, Hist, de la littérature latine chrétienne2, Paris, 1924; — U. Morica, Storia délia leiteratura latina cristiana2, Vol. I. Dalle origini fino al tempo di Constantino, Torino, 1925; — Ueberweg, Grundriss der Geschichte der Philosophie Ilio (Baumgartner), Berlin, 1915; — F. Cayré, Précis de Patrologie, 2 vols., Präs., 1927-30; — Romeyer, La Philosophie chrétienne jusqu’à Descartes, 2 vols., Paris, 1936.

Informações bibliográficas: W. Engelman ,- Ε. Preuss, Bibliotheca scriptorum classicorum8, 2 vols., Leipzig, 1880-82 (Bibliografia de 1700 a 1878) ; — A. Ehrhard, Die altchristl. Literatur und ihre Erforschung seit, 1880, Freib. i. B. 1894; — Idem, Die altchristliche Literatur und ihre Erforschung von 1884 bis 1900, I, Die vornieänische Literatur, Freib. i. B. 1900. Copiosas informações bibliográficas encontram-se também em O. Bardenhewer, U. Moricca e principalmente em Ueberweg-Baumgartner, Ilio, 1*_88*.

CAPÍTULO 1 PRIMEIRO PERÍODO — (Séc. II – 325)

51. CARACTERES Ε DIVISÃO. — É o período de lutas mais vivas. Fora da Igreja, o velho paganismo recolhe contra a nova religião todas as forças vivas de resistência que ainda lhe restavam no organismo decrépito. O embate das duas civilizações foi sanguino-lento, prolongado e universal. Em Roma, onde religião e estado se identificavam, o contraste foi político na Grécia foi, sobretudo, filosófico. 

No seio da Igreja, surgem ao mesmo tempo as primeiras heresias, que lhe tentam contaminar a pureza da fé, com teorias pagas e judaicas.

A todos estes adversários opõe o cristianismo, no campo da ação, a firmeza e o sangue de seus mártires, na esfera da inteligência, os trabalhos de seus primeiros pensadores.

Só destes se interessa a história da filosofia. Os Apologistas elevam a voz da razão e da consciência contra a arbitrariedade e injustiça das perseguições, defendem a nova fé contra a filosofia e a superstição paga, armadas do poder supremo do Estado. Lembremos os nomes dos principais:

A. Entre os gregos: Aristides, filósofo ateniense convertido, cuja Apologia data de c. 140; S. Justino (m. 166), mártir, autor de duas Apologias e do Diálogo com o judeu Trijão; Taciano (c. 170), sírio de origem que acabou gnóstico; Atenágoras (c. 180), de Atenas, que dirigiu a Marco Aurélio a sua Legatio pro christianis; S. Teófilo de Antióquia (m. 181) autor da Epístola ad Autolycum, filósofo pagão; S. Irineu (m. c. 203) bispo de Lião, nas Gálias, e autor de uma obra poderosa Adversus haereses; S. Hipólito, provavelmente o autor do Philosophumena. Em geral os apologistas gregos se mostram simpáticos à filosofia, atribuindo-lhe a função providencial de preparar as inteligências para o cristianismo. Entre as teses que desenvolvem de preferência, notamos a existência de um Deus, único, pessoal, imenso e imutável, a criação do Universo, a Providência no governo das criaturas, a imortalidade e liberdade da alma humana.

B. Entre os africanos: Minucio Félix (c. 200), autor do diálogo apologético Octavius; Tertuliano (c. 160-245), caráter veemente e fogoso, que parece assumir por vezes contra a filosofia uma atitude hostil, reprovada pela maioria dos Padres posteriores (50). Arrastado ao montanismo (c. 207), morreu ao que parece fora da verdadeira Igreja; Arnóbio (c. 300), retórico, escreveu ainda catecúme-no (daí erros doutrinais) uma apologia "Adversus gentes"; Latân-cio (m. 320) escreveu em latim clássico as Institutiones divinae.

Os apologistas latinos insistem nas mesmas verdades acima indicadas, mas se mostram um pouco mais reservados relativamente à filosofia grega.

C. Na escola cristã de Alexandria, a atividade polêmica é dirigida contra a íilosofia paga e sobretudo contra o gnosticismo, fonte de inúmeras heresias, mescla informe de neoplatonismo, orientalis-mo e cristianismo. Fundada por Panteno, contou entre os seus membros Clemente Alexandrino (150-216) e Orígenes (185-254), seu discípulo, que combateram com vigor as heresias nascentes, afirmando energicamente contra neoplatônicos e gnósticos a transcendência divina, a tese da criação, a espiritualidade e liberdade da alma.

 

(50) Atribui-se-lhe o dito: credo quia absurdum que, posto não se ache nestes termos em suas obras tem seu equivalente em formas análogas; "pvorsus crediblle est, quia ineptum est; certum est quia impossibile est". De carne Christi, c. 5. A expressão, porém, tomada à letra, diz mais do que pretende o seu autor. Acha-se ela, como outras menos veementes, em obras dirigidas não contra o pagãó que procura a fé, mas contra o herege -que a corrompe com as suas fantasias. A quem já crê na divindade de Cristo, Tertuliano lança em rosto, em fórmulas exageradas, os paradoxos misteriosos da fé, de que Já falara S. Paulo (I Cor. I, 25). Fora dali insiste muitas vezes no caráter eminentemente racional das obras divinas. "Res Del ratio, quia Deus omnium conditor nihil non ratione tractari intelligique voluit. De paenítentia. 1. "Sicut naturalia. ita rationália in Deo sunt omnia". Adv. Marcionen, lib. 1, c. 23 cfr. D’Alês, Tertulien», Paris, 1905; pp. 1-37, G. Esser, Die Seelenlehre Tertullians, Paderborn, 1893, p. 20 segs. Sem. os exageros de estilo do polemista africano os outros Padres e apologistas frisam melhor a racionalidade da fé cristã. S. Justino aos pagãos: "Se tudo isto afirmamos plenamente e melhor que vossos filósofos e só nós com demonstração, porque nos per-seguis?" S. Agostinho: "Nullus quippe credit nisi cogitaverit esse credendum". Veremos como mais tarde São Tomaz, resumindo e precisando a tradição cristã, definirá admiràvelmente as relações de harmonia entre a ciência e a fé.

BIBLIOGRAFIA

— Ch. Th. Cruttwell, A litterary history of early Christianity, 2 vols., London, 1893; — J. Donaldson, A critical history of Christian littérature and doctrine from the death of the apostles to the Nicene council. Vol. II-III, The apologists, London, 1866; — G. Schmitt, Die Apologie der drei ersten Jahrhunderte in historisch-systematischer Darstellung, Mainz, 1890; — J. Zahn, Die apologetischen Grundgedanken in der Litteratur der ersten drei Jahrhunderte systematisch dargestellt, Würzburg, 1890; — R. Mariano, Le apologie nei trè primi secoli delia Chiesa, Napoli, 1888; — L. Lagnier, La méthode apologétique des pères dans les trois premiers siècles, Paris, 1905; — Ch. Freppel, Cours d’éloquence sacrée fait à la Sorbone, Paris, 10 vols., (Estudos dos principais escritores dos 3 primeiros séculos).

CAPÍTULO II SEGUNDO PERÍODO — (325-430)

52. CARÁTER GERAL — Neste período a patrística desenvolve-se amplamente. Vencido por fim o paganismo e concedida a paz aos cristãos (Edito de Constantino, 313), a Igreja concentra a sua atividade na própria organização interna e na exposição mais minuciosa das verdades reveladas. As grandes heresias, que então surgem, de Ario, Pelágio, Nestório e Eutiques ofereceram aos defensores da fé o ensejo de aprofundarem as noções filosóficas de natureza e pessoa, e de estudar a questão do livre arbítrio nas suas relações com a graça. Nestas grandes lutas distinguiram-se entre os gregos: S. Atanásio, S. Gregório, de Nazianzo, S. Basílio e S. Gregório, de Nissa; entre os latinos: S. Hilário, de Poitiers, e S. Ambrósio e sobre todos,o grande vulto de S. Agostinho, que, mais do que nenhum outro, apresenta para a história da filosofia particular importância.

S. Agostinho

53. VIDA Ε OBRAS de S. Agostinho — Nasceu Agostinho em Tagaste na Nu-mídia, no ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão; Mônica, sua mãe, cristã. Jovem, extraviou-se e, enquanto o coração ardente buscava nos vícios a satisfação de desejos desregrados, a inteligência sequio-sa de luz batia à porta dos maniqueus e dos acadêmicos em busca da verdade. Durante este período ensinou com louvor a retórica em Cartago e Roma. Convertido aos 33 anos por S. Ambrósio, voltou pouco depois para a África. Em 395 foi nomeado bispo de Hipona, desenvolvendo ainda por 35 anos uma atividade prodigiosa contra todos os erros e heresias de seu tempo. Morreu em 430, enquanto os vândalos lhe assediavam a cidade episcopal.

Da vasta enciclopédia augustiniana (93 obras afora sermões e epístolas) à. filosofia interessam particularmente os trabalhos seguintes: Confessiones (autobiografia), Contra acadêmicos (refu-tação do probabilismo cético da Academia). De immortalitate ani-mae, De quantitate animae, De liber.o arbítrio, De civitate Dei, De Trinitate e Retractationes.

O bispo de Hipona foi o filósofo de maior envergadura da época patrística e uma das inteligências mais profundas de que se gloria o gênero humano. Seu gênio sintético harmonizou num corpo de doutrina os elementos assimiláveis da filosofia paga e os fragmentos dos Padres, seus antecessores, erigindo um vasto sistema de metafísica cristã, cuja influência perdura até aos nossos dias. Sua orientação é acentuadamente platônica (51).

54. DOUTRINAS FILOSÓFICAS — S. Agostinho é principalmente teólogo e psicólogo. Deus e a alma são o centro de todas as suas especulações. Deum et animam scire cupio. Nihilne plus? Nihil omnino. (Soliloq., I, c. 2).

TEODICÉIA — Seu argumento favorito para provar a existência de Deus é tirado da necessidade e da imutabilidade dos nossos conhecimentos. Os objetos destes conhecimentos não podem revestir semelhantes atributos senão enquanto imitações de uma essência eterna e imutável — Deus. As provas da contingência da matéria, da finalidade do mundo, do consentimento do gênero humano e do testemunho da consciência moral são também expostas com eloqüência e clareza.

Deus é infinito, eterno, inefável. A inteligência humana não o pode compreender como em si é; menos ainda, o pode exprimir a nossa linguagem: vertus cogitatur Deus quam dicitur et verius est quam cogitatur. Na .mente divina existem as razões eternas, as idéias imutáveis de todas as realidades contingentes; singula propriis crea-ta sunt rationibus. Estas "razões eternas" explicam a existência e inteligibilidade das coisas e são o último fundamento da certeza. Assim com o seu "exemplarismo divino", corrigiu Agostinho a teoria das idéias de Platão. A Providência, a existência do mal, o concurso de Deus nos atos livres são também questões profundamente estudadas na teologia augustiniana.

PSICOLOGIAÀ. Natureza do homem. A substancialidade, espiritualidade e imortalidade da alma são defendidas com vigor. A sua unidade é vindicada contra Platão e os maniqueus, o livre arbítrio contra os pelagianos.

Dominado por influência platônica, mostra-se, porém, um pouco hesitante ao tratar da união entre a alma e o corpo: modus quo cor-poribus adhaerent spiritus et animalia fiunt est omnino mirus et comprehend! ab homine non potest. Crescem suas hesitações acerca da origem da alma, oscilando entre a criação imediata para a qual mais se inclinava (criacionismo) e a transmissão por via do processo generativo (traducianismo).

A alma é dotada de múltiplas atividades ou íacuídades que dela não se distinguem realmente. Na nobreza hierárquica em que se podem classificar, a primazia é da vontade.

B. Teoria do conhecimento. Em oposição aos acadêmicos defende S. Agostinho a existência da certeza, confutando o ceticismo com o argumento que mais tarde Descartes porá em evidência: om-nis qui se dubitantem intelligit, verum intelligit et de hac re quam intelligit, certus est. Quod si jailor, sum.

 

Passando a explicar o progresso do conhecimento alude freqüentemente a uma iluminação divina particular, a uma ação imediata de Deus na produção das idéias, comparável ao auxílio da graça para o ato livre e sobrenatural da vontade. Esta teoria, a que modernamente se tem dado o nome de iluminismo augustiniano, deu azo a inúmeras interpretações. Os ontólogos pretenderam até ter o bispo de Hipona em seu favor, esquecidos de que êle, em vários lugares, rejeita abertamente uma intuição da essência divina, nesta vida (52). Quanto à origem das idéias, depois de se ater à reminiscência platônica, repudiou-a, asseverando, mais tarde, que pode a alma, refletindo sobre si mesma, descobrir as idéias. Sua ideogenia é certamente inatista.

COSMOLOGIA — A matéria foi, a princípio, criada por Deus que lhe depôs no seio os germes específicos de todos os seres. Estes germes ou rationes séminales, mais tarde, em condições favoráveis, acceptis opportunitatibus, desenvolveram-se na sua plenitude específica. A criação .foi, pois, instantânea, Deus creavit omnia simul. A narração mosaica dos seis dias não implica distinção ou sucessão de tempo, mas apenas exposição doutrinai das diferentes espécies de criaturas dispostas segundo seis graus de perfeição.

Independentemente de Aristóteles, cujos trabalhos a este respeito provavelmente não conhecia, chegou S. Agostinho à mesma conclusão de que os corpos são compostos de matéria e de forma.

Criação de S. Agostinho é a FILOSOFIA DA HISTÓRIA. Na sua obra imortal, De civitate Dei, mostra no progresso que preside à história da humanidade o desenvolvimento do plano divino, para cuja execução livremente concorrem bons e maus como instrumentos nas mãos da Providência. "O homem se agita e Deus o conduz", dirá mais tarde Bossuet, que nas Obras do bispo de Hipona se inspirou para a composição de seus "Discursos sobre a história universal".

(51) Falando de Aristóteles a quem cita apenas três vezes, diz: "vir excellentis ingenil et eloquii, Platoni quidem impar". De civitate Dei, VIII, 12.

(52) Cfr. Liberatone, Della conoscenza intellcttuale, vol. I, cap. II, Art. XIV, S III; Vallkt, Histoire de la Philosophie*, pp. 121-124.

BIBLIOGRAFIA

A. Théry, Le génie philosophique et littéraire de S. Augustin, Paris, 1861; — F. Nourrisson, La philosophie de S. Augustin2, 2 vols., Paris, 1869;

 A. Dupont, La Philosophie de S. Augustin, Louvain, 1881; — J. Storz, Die Philosophie des hl. Augustinus, Freib. i. B. 1882; — L. Grandgeorge, St. Augustin et le néo-platonisme, Paris, 1896; — Ch. Boyer, Christianisme et néo-platonisme dans la formation de S. Augustin, Paris, 1921; — Id. L’idée de vérité dans la phil. de S. Augustin, Paris, 1920; — J. Martin, Saint Augustin2, Paris, 1923; — P. Alferic, L’évolution intellectuelle de S. Augustin, Paris, 1918; — L. Bertrand, S. Augustin, Paris, 1913; — E: Portalié, Augustin, Angusiianisnie, arts, no Diet, de Théolog. Cath. Vacant-Mangenot;

 E. Gilson, Introduction à l’étude de S. Augustin, Paris, 1929; — J. Hessen, Augustins Metaphysik der Erkenntnis, Berlin, 1931; — H.J. Mar-riou, S. Augustin et la fin de la cultura antique, Paris, 1938.

Fonte: Livraria Agir, 20ª ed.

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