Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares
LIÇÃO XIII O SISTEMA DE DESCARTES
88.
DIFICULDADE DO IDEALISMO FACE A FACILIDADE NO REALISMO.—
89. O PENSAMENTO E O EU. — 90. Ò EU COMO «COISA EM SI». — 91. A REALIDADE COMO PROBLEMA. — 92. O PENSAMENTO CLABO E DISTINTO.— 93. A HIPÓTESE DO GÊNIO MALIGNO. — 94. A EXISTÊNCIA DE DEUS. — 93. A REALIDADE |RECUPERADA.
— 96. GEOMETRISMO DA REALIDADE.—
97. RACIONALISMO.
88.
Dificuldade do idealismo face à facilidade do realismo.
Assim
como quando saímos de brilhante luz do dia e penetramos num lugar obscuro,
necessitamos algum tempo para acomodar nossa vista às novas condições desta
escuridão, do mesmo modo o ingresso no idealismo filosófico nos apresenta uma
condição de meio, nos mergulha em uma atitude tão pouco habitual para o homem,
que é necessário acomodar lentamente a atitude anterior e seu ponto de vista a
essas novas condições apresentadas pela filosofia idealista.
Não
é possível neste momento e por assim dizer, dó chôfre, penetrar nas intricadas
dificuldades, adotar as complicadas atitudes que o idealismo requer de nós. É
possível, na leitura de um bom livro ou ao ouvir a exposição do idealismo,
compreender aquilo que se quer dizer. Porém uma coisa é compreendê-lo,
entendê-lo, e outra coisa é acomodar o órgão visual do nosso entendimento a
esse panorama tão incomum, tão pouco ordinário, que é o da filosofia idealista.
O
ponto de vista do idealismo nos apresenta certas exigências que vão em oposição
contra as atitudes normais, naturais, do homem. Já o dissemos repetidas vezes.
Convém insistir nisto, porque é lentamente — repito — que iremos fazendo nossa
acomodação ao novo mundo Idealista. Convém que relembremos mais uma vez as
radicais contraposições ou oposições que existem entre um e outro ponto de
vista.
A
atitude realista que vimos suceder-se aqui desde os alvôres do pensamento
filosófico até o século XVI, é uma atitude natural, é a que naturalmente toma o
homem. Quando o homem começa a dar-se conta de sua existência no universo,
naturalmente adota a atitude de supor que o que existe são estas coisas que vê
e toca, e que ele está provido de uma faculdade (a inteligência, o pensamento)
capaz de receber dessas coisas impressões variadas, elaborar essas impressões e
obter idéias daquilo que são as coisas que aí existem. Essa é a atitude
natural. Em troca, o idealismo constitui uma atitude artificial, uma atitude
adquirida, não já obtida, desde logo, por nós ao vir ao mundo. Necessitamos
tomar esta atitude. Não a temos, mas a tomamos, e a tomamos por uma necessidade
histórica. O idealismo, longe de ser natural, é uma retificação da atitude
natural; retificação que se leva a efeito como conseqüência de necessidades que
de repente se apresentam. Essas necessidades são as de reconstruir de novo
todo o edifício da metafísica que desde Aristóteles vinha vigorando e que
ficara trincado pelos fatos históricos, já mencionados.
Mas
não é somente a contraposição entre natural e artificial; ainda há mais. A atitude
do realista, além de natural, é espontâneo. Não necessita esforçar-se, não
necessita um ato deliberado para adotar a que ele tem. Tem-na sem querer. Todo
o mundo é realista sem querer. A mudança, a atitude idealista é voluntária: há
de se querer tomá-la. Se não se quer tomá-la, se não se faz esforço para
adotá-la, não se adota. É, pois, uma atitude que não sobrevém para nós, mas que
nós temos que fabricar inteiramente por um esforço de nossa vontade. Paira ser
idealista há de se querer sê-lo, e, naturalmente., para querer sê-lo houve
previamente que sentir a necessidade de sê-lo a necessidade de sacrificar
aquela atitude natural e espontânea que é o realismo.
Este
caráter voluntário que tem o pensamento idealista expressa—se muito bem na
teoria cartesiana do juízo. Para Descartes o juízo não é uma operação
exclusivamente intelectual que consista em afirmar ou negar um predicado de um
sujeito, mas é uma operação oriunda da vontade, originada na vontade. É a
vontade que afirma ou nega; o entendimento limita-se a apresentar idéias à
nossa mente. Afirmar as claras e distintas, negar as obscuras e confusas, tal é
o juízo. E esta função de afirmar ou negar compete à vontade. Nesta teoria fica
simbolizada essa característica de todo o idealismo: de ser uma atitude
contrária à atitude espontânea, de ser uma atitude voluntária.
Em
outro terceiro ponto opõem-se também as duas atitudes de realismo e do
idealismo. O realismo é uma atitude que poderíamos chamar extrovertida.
Consiste em abrir-se às coisas, em ir a elas, em derramar-se sobre elas, em
derramar sobre elas a capacidade perceptiva do espírito. Pelo contrário, o
idealismo é uma atitude introvertida; uma atitude que consiste em virar a
direção da atenção e de olhar, e em lugar de pousá-los sobre as coisas do mundo
que nos rodeia, fazer um giro de conversão e recair sobre o próprio eu. Esta
nova atitude exige esforços. É deliberadamente que pode levar-se a efeito. Se
deixamos ir por si só nossa propensão natural e espontânea, ela consistirá em
abrir-nos diante das coisas para que a realidade delas penetre em nós na forma
de imagem e de conceito. Para o idealismo há que se fazer um esforço contrário,
e voluntariamente, artificialmente, dirigir a atenção, não para onde a atenção
por si só iria, mas para o próprio foco donde a atenção parte. É uma atitude
reflexiva que gira sobre si mesma, como dizem que faz a arma denominada
boomerang, que usam os selvagens da Austrália, que volta ao ponto de partida, à
mão que o lança.
Por
último, podem num quarto ponto contrapor-se a atitude realista e a atitude
idealista, e é no ponto do conhecimento. No realismo o conhecimento vem, por
assim dizer, das coisas para mim, a tal ponto que houve filósofos antigos (os
epicuristas) que consideravam que das coisas saíam pequenas imagens — ídolos
como eles as chamavam — que vinham ferir o sujeito. Pelo contrário, o
idealismo considerará, preferentemente, o conhecimento como uma atividade que
vai do sujeito às coisas, como uma atividade elaboradora de conceitos, ao final
de cuja elaboração surge a realidade da coisa. Para o realismo a realidade da
coisa é o primeiro e o conhecimento vem depois. Para o idealismo, pelo
contrário, a realidade da coisa é o final, o último degrau de uma atividade do
sujeito pensante que remata na construção da própria realidade das coisas.
Os
dois pontos de vista (o realista e o idealista) são, pois, tão diametralmente
opostos que o trânsito de um para o outro é difícil e necessita, como dizíamos,
uma acomodação. Por isso nestas lições devemos ir lentamente acostumando-nos a
esta nova atmosfera, porque não se trata simplesmente de um repertório de
doutrinas, mas principalmente de que nós, todos juntos, uns e outros, vivamos
durante uns instantes essas realidades históricas que são as grandes doutrinas
metafísicas sobre o ser.
89.
O pensamento e o eu.
Pois
bem: fazendo o esforço necessário para adotar esta atitude idealista que é
artificial, que é voluntária, que é introvertida e que considera a realidade
não como algo dado, mas como algo que há de se conquistar à força do
pensamento; adotando esta atitude, verificamos que aparece diante de nossa
inspeção intelectual, ante nossa intuição intelectual, um novo tipo de ser. è um novo ser aquele que o idealismo
descobriu: o ser do pensamento puro. Este ser do pensamento puro em que
consiste? Que é? Já numa lição anterior Insinuávamos uma distinção essencial
para dar-nos conta da consistência deste novo ser, que aparece no horizonte
metafísico. Distinguíamos entre o pensamento e o seu objeto. Todo pensamento,
por força de ser fenômeno psíquico, mas muito especialmente todo ato
intelectual consiste na apreensão de um objeto. Todo pensamento é, pois, um
dirigir a atenção da mente para algo. Em todo pensamento existe o pensamento
como ato e o objeto como conteúdo deste ato; o pensamento que pensa e o pensado
no pensamento.
Esta
distinção que fizemos já numa lição anterior leva-nos à reflexão de que objeto
do pensamento, o pensado no pensamento entra em contacto comigo através do
pensamento. Ê, pois, a respeito de mim, mediato. Necessito o intermédio do ato
de pensar para pôr—me em contacto com ele. Pelo contrário, o pensamento do
pensado é para mim imediato; não necessito de intermédio algum para estar em
mim na mais imediata presença. Quando eu penso algo, o algo em que penso está,
por assim dizer, mais longe de mim. Meu pensamento deste algo, em troca, é o
que está mais perto de mim; tão perto de mim que sou eu próprio pensando. Por
isso o chamamos imediato. A imediatez faz com que o pensamento que eu penso seja
meu próprio eu no ato de pensar. Por isso a identidade entre o pensamento e o
eu é o primeiro resultado a que se chega quando, no afã de obter algo
indubitável, abandonamos os objetos que são duvidosos, já que são mediatos, e
entramos a firmar nossa atenção sobre os pensamentos que são indubitáveis,
precisamente porque são imediatos, porque são meu próprio eu pensando.
Esta
identidade do pensamento que é imediato e o próprio eu é aquilo que Descartes
descobre e o que constitui para ele a base, o fundamento mesmo de toda a
filosofia. Aplicando a dúvida a tudo quanto se apresenta, resume esta aplicação
metodológica da dúvida nos termos de afastar de si, como duvidosos, todos os
objetos, e, em troca, de não considerar como indubitáveis mais do que os pensamentos.
E por que considera indubitáveis os pensamentos? Porque os pensamentos estão
tão imediatamente próximos a mim, que se confundem com meu próprio eu. E é esta
imediatez que os torna indubitáveis e ao mesmo tempo os faz fundir-se todos
eles na unidade do eu. Existem os pensamentos, responde Descartes à pergunta
metafísica. Mas como os pensamentos não são outra coisa que eu pensando, como
ser pensante, je suis une chose qui pense: eu sou uma coisa que pensa.
90.
O eu como "coisa em si".
Eis
aqui a nova existência sobre a qual acha-se presa a atitude idealista. Essa
atitude insólita, artificial; essa atitude voluntária, deliberada, de esforço
para resolver-se dentro de si mesmo, faz com que o idealista descubra como
primeira realidade, como ente que existe primeiramente, o eu pensando. E aqui
devemos fazer uma observação que convém levar em conta para que muito mais
adiante, dentro de algumas lições, voltemos alguma vez sobre ela. Quando
Descartes diz que os pensamentos existem, que os pensamentos não são mais do
que eu pensando e que eu existo como pensante — je suis une chose qui pense — o
que faz é introduzir ingenuamente na nova realidade descoberta (na realidade
pensamento) o velho conceito de coisa. Considera Descartes que o pensamento é uma
coisa; que eu sou uma coisa que pensa. E não sente o menor reparo em usar
inclusive a palavra "substância": eu sou uma substância pensante. Nessas
palavras "coisa que pensa", "substância pensante", conserva
Descartes um resíduo do velho realismo, o qual considera todo ser sob a
espécie da coisa, sob a espécie da substância; como se não pudesse haver outro
ser que o ser da substância; como se todo ser tivesse que ser substância.
Não
vamos nós agora fazer uso mormente desta advertência, porém conste a advertência,
e é que no cogito cartesiano ficou esquecida, ou como que sub-repticiamente,
ou como que ingenuamente introduzida, uma noção: a noção de coisa, que provém
do velho realismo o que fica incrustada neste novo objeto que é o pensamento.
Mas,
à parte esta noção de coisa "em si", que fica mantida no próprio seio
do eu pensante, é absolutamente indubitável que as aquisições conseguidas pelo
idealismo representam uma concepção do ser totalmente distinta da concepção do
ser nos realistas. Para os realistas, o ser das coisas "é" antes e
independentemente de todo pensamento, de qualquer pensamento; porém é um ser
inteligível. Que significa isto? Significa que está aí; que existe em si mesmo,
independentemente de mim; mas que em todo momento pode chegar a ser conhecido
por mim; pode ingressar no meu pensamento; pode chegar a ser conteúdo de
pensamento, ou, dito de outro modo, que a coisa, existente em si e por si, pode
chegar a ser, é possivelmente conteúdo de pensamento; é um conteúdo possível de
pensamento.
91.
A realidade como problema.
Frente
a esta concepção do ser, a do idealismo é radicalmente distinta; porque, embora
conservando a noção de coisa, quando diz Descartes je suis une chose qui pense,
je suis une substance pensante, embora conservando a noção de coisa (mais
adiante veremos a importância e transcendência que isto tem), se consideramos o
que é esta coisa pensante, o eu pensante, encontramos primeiramente que não se
pode dizer que seja inteligível, como dizíamos das coisas no realismo, mas que
é inteligente. O eu pensante não é, pois, algo que entre a ser conteúdo de
consciência, mas é consciência continente. Se, pois, o ser dos realistas é um
ser inteligível, o ser dos idealistas, o pensamento puro, o eu pensante, é um
ser inteligente, é um ser pensante. Do mesmo modo que o acento, o sublinhado,
mudou de lugar, e em vez de recair sobre o objeto recai agora sobre o atoldo
pensante, por meio do qual captamos o objeto. E se agora o acento mudou de
lugar, e se agora se eleva à categoria de ser primário, de existência primária
esse ser inteligente, a própria inteligência, o próprio pensamento, então que
vai resultar daí? Pois vai resultar, sem dúvida alguma, que aquilo que para o
realismo não era problema, tem que tornar-se agora problema para o idealismo.
Para o realismo não era problema a existência e realidade das coisas no mundo,
já que as considerava como inteligíveis em si mesmas, ou seja, possíveis objetos
de conhecimento, possíveis conteúdos de conhecimentos. Porém agora que o único
que existe indubitavelmente é o eu pensante, ,e o eu pensante não pode
funcionar, não pode pensar se não pensa algo, este algo pensado pelo eu
pensante se transforma num problema. Porque este algo pensado no pensamento e
pelo pensamento, existe ou não existe? É simplesmente um termo interior do
pensamento ou indica uma existência em si mesma exterior e além do pensamento?
Eis aqui interrogações que o realismo não poderia levantar. Eis aqui um
problema que o realismo não pode de modo algum propor-se. A realidade do mundo
exterior, que não era problema para o realismo, se torna um problema, e dos
mais graves, para o idealismo. O idealismo agora, havendo lançado a âncora no
eu pensante, não pode sair do eu pensante para chegar à realidade das coisas
sem fazê-lo de um modo metódico, cauteloso, e em suma, sem um esforço especial
para construir essa mesma realidade. Dito de outra maneira: a realidade das
coisas no realismo é dada; pelo contrário, no idealismo será preciso
demonstrá-la, e deduzi-la ou construí-la. O idealista não terá mais remédio que
deduzir, demonstrar ou construir a realidade do mundo exterior.
92.
O pensamento claro e distinto.
Nós
temos, por exemplo, a idéia da extensão. Pois bem: nossa idéia da extensão é
indubitável; é minha consciência; é eu mesmo pensando. Porém a extensão pensada
nessa idéia, existe ou não existe? Eis aqui o problema fundamental que não se
apresenta para o realismo e que constitui o mais grave e mais difícil de todos
os problemas para o idealismo. Como resolve Descartes este problema? Como
extrai Descartes do eu puro o mundo das coisas reais, os objetos do pensamento?
O ponto de partida é uma existência; o eu, meu eu. Eu existo: disso estamos
absolutamente certos; porém é a única coisa de que estamos absolutamente certos.
Como agora eu com meus pensamentos posso passar de minha existência e dos meus
pensamentos a outras existências que não sejam a minha existência? Como posso
passar a elas? A primeira coisa que fez Descartes foi distinguir entre os
pensamentos. Os pensamentos são muitos, múltiplos, variados. Eu penso uma
porção de pensamentos; eu penso o sol, a lua, este quarto, o triângulo, o
ângulo, o poliedro, a raiz quadrada de três, Deus. Todos estes são pensamentos
meus. O que primeiro faz Descartes é distinguir entre eles, e os divide em dois
grupos: Uns, nos quais eu mesmo vejo. examinando-os como tais pensamentos, que
são pensamentos confusos, pensamentos nos quais o pensado dentro do próprio
pensamento está confuso, está obscuro; não estão definidas nitidamente as
partes internas deste pensamento; também não estão separados claramente o
pensado nele do pensado em outros pensamentos. Outros pensamentos, pelo
contrário, são claros e distintos. O pensado nele é perfeitamente discernível
do pensado em qualquer outro pensamento, e ademais o pensado neles está
perfeitamente dividido nos seus elementos, de sorte que eu posso colocar a
atenção sem confusão qualquer nos diferentes elementos ou partes de que se
compõe este pensamento.
Descartes
adverte que existe uma enormidade de razões para duvidar dos pensamentos
confusos e obscuros; porém que, se tratando de pensamentos claros e distintos,
de idéias claras e distintas, as razões que existem para duvidar são muito
menos fortes. Eu posso duvidar de que exista o sol porque é um pensamento
confuso e obscuro; compõe-se de muitas coisas misturadas: uma forma
geométrica, a distância, calor, luz; uma porção de coisas misturadas que
haveria que separar muito cuidadosamente. Eu posso estar sonhando que exista o
sol, e não existir o sol. O mundo sensível se compõe de Pensamentos obscuros e
confusos que dão vulto e margem à dúvida.
Mas
estes pensamentos obscuros e confusos que dão margem à dúvida, eu posso
analisá-los, eu posso decompô-los nos seus elementos. Posso por exemplo, tirar
do sol o calor, tirar a luz, tirar o peso, tirar o movimento e ficarei com uma
forma esférica. Então o pensamento geométrico da esfera é um pensamento claro e
distinto. Posso eu duvidar de que a esfera existe? Posso eu duvidar de que o
fato pensado no objeto geométrico da esfera é um objeto real? Aqui parece que
nestes pensamentos claros e distintos a dúvida é difícil; e. todavia, tem que
se levar a eles também a dúvida, porque, enfim, embora claros e distintos, são
pensamentos. Por conseguinte, o único indubitável que há neles é o ato de
pensar, porém não o pensado no ato de pensar. A única coisa certa e segura
quando eu penso a esfera, quando tenho o pensamento geométrico da esfera, é
meu pensar a esfera. Mas, e a esfera mesma pensada por mim, objeto conteúdo do
pensamento, existe ou não existe? No próprio pensamento não há a menor garantia
de sua realidade, de sua existência. Num pensamento claro e distinto existe
uma porção de propensões a acreditar na realidade do objeto; porém no
pensamento mesmo não existe nenhuma nota que equivalha à garantia, por pequena
que seja. de que o objeto exista, além de estai contido no pensamento.
93.
A hipótese do gênio maligno.
Descartes
expressa isto de uma maneira muito particular sua. Como Descartes é um filósofo
que gosta de expressar-se em termos acessíveis a todo mundo, que gosta de falar
como diziam os franceses de sua época, le langage des honnêtes gens, a
linguagem das pessoas bem educadas, evita no possível o que ele chama termos da
escola; e para dar a entender isto que acabo de expressar aqui, ou seja que em
nenhum pensamento, por claro e distinto que seja, há a menor garantia da
existência do seu objeto, para dizer isto faz um rodeio algo estranho que é a
hipótese de que algum gêniozinho maligno e todo-poderoso está empenhado em
enganar-me; põe na mente pensamentos de uma clareza e de uma simplicidade, de
uma evidência indubitável, e, todavia, estes pensamentos, apesar de sua
evidência, talvez sejam falsos porque este gêniozinho todo poderoso, maligno e
burlão tenha o prazer de botar na minha mente pensamentos evidentes e, sem
embargo, falsos. Claro que esta é uma maneira metafórica de falar. O que quer
dizer aqui Descartes é que um pensamento não contém nunca, na sua estrutura
como pensamento, nenhuma garantia de que o objeto pensado corresponda a uma
realidade fora do pensamento.
94.
A existência de Deus.
Se a
filosofia de Descartes não pudesse sair daqui, encalharia naquilo que se chama
"solipsismo", ou seja: existo eu e meus pensamentos, e mais nada.
Porém eis aqui que Descartes descobre dentre os pensamentos claros e distintos
um pensamento, um só, que talvez seja o único que tem em si mesmo a garantia de
que o objeto pensado existe fora do pensamento. De modo que há um pensamento
que se distingue de todos os demais pensamentos claros e distintos porque
contém no próprio pensamento esta garantia de existência do seu objeto. E este
pensamento único é o pensamento de Deus, a idéia de Deus. A idéia de Deus é tal
que se a examinamos como tal idéia, encontramos nela, não somente que pensamos
num ente (Deus) do qual não sabemos se existe ou não existe, mas que pensamos
num ente (Deus) e que este pensamento contém uma porção de caracteres segundo
os quais Deus, além de ser objeto do meu pensamento, existe realmente fora de
mim. E então desenvolve esses caracteres que a idéia de Deus tem, na forma de
três provas, de três demonstrações da existência de Deus.
A
primeira demonstração da existência de Deus, consiste em considerar o pensado
por nós quando pensamos em Deus; e em examinar a própria idéia de Deus.
Examinamos essa idéia e encontramos a idéia de um ser infinito, perfeito,
infinitamente bom, onisciente; todo-poderoso. Ora: essa idéia que temos, que
pensamos, esse objeto que ainda não sei se existe ou não, mas que está contido
dentro do meu pensamento. Como poderíamos nós tê-lo formado? Donde poderíamos
nós ter tirado essa idéia? Não de nós mesmos, porque o contido nessa idéia é
tão enormemente superior a tudo quanto nós somos, que não é possível que de nós
mesmos, de nosso próprio fundo, tenhamos extraído o referido nessa idéia. O
mencionado nessa idéia é tão enormente transcendente, tão por cima das
possibilidades de invenção e combinação que possa haver em nosso pensar em
geral, que sem dúvida alguma não é possível outra coisa senão que o conteúdo
nessa idéia, essa perfeição infinita, essa "infinidade", responda a
uma realidade fora dela.
A
segunda prova que dá Descartes da existência de Deus é uma aplicação da prova
que dá Aristóteles. A que dá Descartes é a seguinte: eu existo; tal é a
primeira verdade que descobri ao afastar minha vista dos objetos e concentrá-la
sobre os pensamentos. Descobri-me a mim mesmo, como eu pensante. Eu existo,
mas eu, que existo, tenho uma existência cujo fundamento não percebo, não vejo.
Eu existo com uma existência contingente. Não vale dizer que devo a existência
a meus pais; não vale dizer que no passado e no futuro minha existência
permanece; porque não há nenhum motivo pelo qual se dê na minha existência a prolongação
dela dentro de um momento ou de ter existido um momento antes. Por conseguinte,
minha existência é contingente; não é necessária. E se minha existência é contingente,
necessita um fundamento. Mesmo que eu vá longe tomar este fundamento, subindo a
outro e a outro e a outro, terei que acabar sempre, de longe e de perto,
admitindo um ser, uma existência (Deus), que seja o fundamento da minha.
A
terceira prova da existência de Deus que dá Descartes é o famoso argumento
ontológico. Descartes lhe concede uma importância especial; tanto que
lhe’consagra quase uma meditação inteira. Expõe-no num capítulo distinto do
capítulo em que expôs os dois argumentos anteriores. O argumento ontológico
consiste em assinalar a característica da idéia de Deus como uma idéia
singularíssima, única, na qual o pensamento de Deus contém também sua
existência. O pensamento desse objeto — Deus — é o pensamento de um objeto em
cujas notas características, em cujo objeto pensado está também a existência.
Vou formular o argumento ontológico de uma maneira não cartesiana; falsa, por
conseguinte, e que não responde ao espírito de Descartes, mas que nos ajudará
a entendê-lo. Eu tenho a idéia de um ser perfeito; este ser existe.
Demonstração: um ser perfeito tem todas as perfeições; a existência é uma
perfeição; logo o ser perfeito tem existência. Descartes não o formula nesta
forma silogística, mas nessa outra, ou seja: no pensamento da essência do ser
perfeito está contida necessariamente a existência; e está contida a existência
como uma das notas que ao mesmo tempo resulta ser nota do conteúdo do
pensamento e nota da realidade objetiva do pensamento. Descartes considera a
idéia de Deus como a única das idéias que leva em si mesma a marca, a garantia
de sua realidade exterior.
De
todos os argumentos de que se vale Descartes, o único no qual realmente
acredita profundamente é este último. O segundo, o da contingência da
existência, ultrapassa por completo o círculo, a maneira de pensar cartesiana.
Parte de existências: da existência do eu, o qual já é um mal para Descartes; é
um pis aller verdadeiro. Os únicos argumentos nos quais confia são o primeiro e
o terceiro; no terceiro sobretudo.
95.
A realidade recuperada.
Uma
vez demonstrada a existência de Deus, já temos duas existências: a minha e a
de Deus. Mas tendo a existência de Deus, cai já por sua base o escrúpulo — que ele
chama por brincadeira metafísico — do gênio maligno. Já não há possibilidade
de supor que um gêniozinho todo-poderoso, mas maligno e burlão, se entretenha
em enganar-me, pois agora já sei que Deus existe, que é infinitamente perfeito,
e, portanto, que não me engana. Permite que me engane, porque tenho idéias
confusas e obscuras e se eu não tomo cuidado de manter minha vontade firme para
não arriscar-me a afirmar idéias confusas e obscuras, enganar-me-ei. Permite
que eu me engane; mas coloca em minha mão, em minha vontade, o enganar-me ou
não. Se eu procuro não afirmar senão idéias claras e distintas, poderei saber
muito poucas coisas; mas isso não tem importância. A questão não é saber poucas
ou muitas coisas, mas saber de verdade; e então, mantendo-me na vontade firme
de não afirmar mais do que o claro e distinto, não me enganarei jamais. Que
quer dizer isto? Pois que a existência de Deus é uma garantia de que os objetos
pensados por idéias claras e distintas são reais, têm realidade. Quer dizer,
que o mundo tem realidade.
96.
Geometrismo da realidade.
Conseguiu
Descartes tirar do eu o mundo. Mas, que mundo! Um mundo que nada se parece ao
que chamamos mundo, porque este mundo de idéias claras e distintas, é um mundo
que foi elaborado tirando tudo aquilo que nós geralmente chamamos mundo;
tirando dele as irregularidades, as cores, as complicações. É um mundo de
pontos, de linhas de ângulos, de triângulos, de octaedros, de esferas que estão
em movimento. É um mundo de puras realidades geométricas, é 1’extension,
1’étendue; é a extensão de distâncias. Por isso o sistema de Descartes será
montado sobre estas três substâncias: o eu pensante ou pensamento, a extensão e
Deus, substância criadora, e as outras duas substâncias criadas. De modo que
esse mundo que tirou do eu é o mundo de pura substancialidade geométrica. Mas
vamos pouco a pouco.
Esse
mundo de uma pura substancialidade geométrica é o mundo da ciência moderna. A
ciência moderna parte também desse pensamento cartesiano. Dele parte a
físico-matemática. A idéia de Descartes, que consiste em reduzir o confuso e
obscuro a claro e distinto, é a idéia que consiste em eliminar do universo a
qualidade e não deixar mais do que a quantidade. E essa quantidade, submetida à
medida e à lei, tratada matematicamente pelos recursos que primeiro a
geometria analítica, logo o cálculo diferencial e integral, e mais tarde,
modernamente, o cálculo de vetores e toda a físico-matemática proporcionam,
submetida a essas elaborações, produz hoje em dia o mundo científico, que é tão
estranho ao mundo de nossa intuição sensível como este que nos propunha
Descartes. Descartes extrai do eu um mundo de pontos e figuras geométricas. Mas
consultemos um livro de física contemporânea e veremos que realidades nos
apresenta; apresenta-nos uma realidade composta de equações diferenciais,
integrais, de prótons, de elétrons, de "quantas" de energia; uma
realidade entre a qual e nossa realidade vital sensível e tangível existe um
abismo, não menor, antes muito maior ainda que aquele que abriu Descartes entre
esses dois mundos. É que, com efeito, o pensamento de Descartes guia, anima, de
um lado, todo pensamento científico, e, de outro, todo pensamento filosófico em
nossa cultura moderna.
Descartes,
com uma coesão sistemática plausível em sumo grau, porém excessiva; com uma
conseqüência que não deixa a menor falha na aplicação dos seus princípios,
continua adiante; topa com o problema da vida e o resolve mecanizando a vida.
Para Descartes, os animais, os seres viventes, são puros mecanismos e nada mais
que mecanismos. Mas então a alma humana, além da vida, que é? Pois o homem é
mecanismo em tudo aquilo que não é pensamento puro, como qualquer animal, como
qualquer aparelho. Mas tem ademais pensamento. Descartes reduz a pensamento
todas as vivências da psicologia. Assim como as idéias podem ser claras ou
confusas e tem que se reduzir as confusas às claras, do mesmo modo essas
vivendas da psicologia que chamamos sentimentos, paixões, emoções, toda a vida
sentimental, tudo o que existe em nossa alma que não seja puro pensar é para
Descartes também pensar, porém pensar confuso, pensar obscuro. Na sua teoria
das paixões propõe Descartes simplesmente ao homem que estude isto que chamamos
paixões, isto que chamamos emoções, e verá que se reduzem a idéias confusas e
obscuras; e uma vez que haja visto que se reduzem a
idéias confusas e obscuras desaparecerá a paixão e poderá o homem viver sem
paixões, que estorvam e incomodam a vida.
97. Racionalismo.
Assim se estabelece o predomínio absoluto do intelecto, do entendimento,
da razão. A filosofia de Descartes inaugura uma era de intelectualismo, uma era
de racionalismo. A vaga do intelectualismo, do racionalismo, lança-se sobre
todos os problemas do mundo, da ciência e da vida. Porém chegará o momento em
que aparecerá no horizonte da cultura moderna um problema para resolver contra
o qual o intelectualismo e o racionalismo nada poderão, e é o problema da
história. O idealismo filosófico fará esforços magníficos, nos princípios do
século XIX, com Hegel, com o positivismo, e em nossos dias com a teoria dos
valores e o neokantismo, para resolver o problema da história. Esses esforços
são baldados. O problema da história resiste por completo a ser resolvido pelo
intelectualismo, pelo idealismo filosófico. E por que resiste? Pois porque o
idealismo é um produto da história que começa num determinado momento da
história, com Descartes, e termina em nossos dias. Como o idealismo é um
produto da história, ele não pode explicá-lo. Como vai explicar um produto da
história aquilo do qual é produto?
Por isso a filosofia contemporânea, para explicar a história, terá
que superar o idealismo e encontrar outra realidade mais profunda que as coisas
e mais profunda ainda do que o eu, que contenha as coisas e o eu, e que
contenha, por suposto, a própria história. Essa realidade é a vida. Mas até que
cheguemos a isto temos que percorrer ainda muito caminho de filosofia moderna.
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