Cap. VIII – A Metafísica Realista – Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares

Lição VIII

A METAFÍSICA REALISTA

53.
ESTRUTURA DO SER: CATEGORIAS. — 54. ESTRUTURA DA SUBSTANCIA: FORMA E MATÉRIA,
REAL E POSSÍVEL, ATO E POTÊNCIA. — 55. AS QUATRO CAUSAS. — 56.
INTELIGIBILIDADE DO MUNDO. — 57. TEOBIA DO CONHECIMENTO: CONCEITO, JUÍZO, RACIOCÍNIO,
DEUS. — 58. INFLUÊNCIA DE  
ARISTÓTELES.

A
lição anterior foi totalmente consagrada à metafísica de Aristóteles, que
expus nos seus grandes traços. Mas ao terminar fazia entrever de passagem a
necessidade de precisar alguns pontos desta metafísica aristotélica, que
ficaram apenas rapidamente esboçados. E é conveniente insistir e sublinhar
alguns aspectos, talvez não tidos em conta por mim suficientemente na lição
anterior, visto que é indubitável que Aristóteles representa a forma mais pura e
clássica do realismo metafísico.

À
pergunta: quem existe? que é a pergunta na qual compendiamos nós os problemas
metafísicos, o realismo dá uma resposta que é idêntica à resposta que o homem
ingênuo, na sua propensão natural, aá a essa mesma pergunta. O realismo afirma
a existência do mundo, das coisas que constituem o mundo, e de nós, dentro
desse mundo como uma de tantas coisas. Porém as dificuldades de toda espécie
que se acumulam ante esta tese realista obrigam aos filósofos que a defendem a
multiplicar as advertências, a pôr condições, a fixar estruturas várias desse
ser do mundo e das coisas. E neste processo que, a partir de Parmênides,
através de Platão, chega a Aristóteles, a tese realista vai se complicando ao
longo da história do pensamento antigo. Pode se dizer que a filosofia de
Aristóteles constitui a expressão mais acabada e completa de todas as
dificuldades que a tese realista encontra e a maneira mais perfeita também de
solucionar estas dificuldades.

Vale
a pena, pois me parece necessário, que nossa excursão pelo campo da metafísica
iniciada neste caminho do realismo, se demore um pouco mais na filosofia de
Aristóteles para precisar e depurar alguns conceitos que talvez ficaram um
tanto vagos na lição anterior.

53.  
Estrutura do ser: categorias.

Os
conceitos que a todos nós convém precisar em Aristóteles referem-se ã
estrutura do ser. A estrutura do ser vamos dividi-la para sua exposição em três
problemas: primeiramente, a estrutura do ser em geral; em segundo lugar, a
estrutura da substância, e em terceiro lugar, a estrutura daquilo que
poderíamos chamar a realização. Vamos estudar, pois, sucessivamente no sistema
aristotélico essas três estruturas do ser em geral, da substância, e da
realização.

A
estrutura do ser em geral é um problema que obsedou a Aristóteles. Em
diferentes passagens de sua Metafísica aborda esse problema e o larga logo
depois. É um problema muito difícil. Aristóteles teve a sensação clara de sua
dificuldade. E num lugar, no começo da Lógica, no livro das Categorias, faz
esta arremetida, e talvez seja a arremetida mais forte que faz Aristóteles do
problema do ser, tanto que nesse momento propõe pela primeira vez na história
da filosofia uma questão que, desde então, não cessará, até nossos dias
inclusive, de ser estudada pelos filósofos: a questão compreendida sob este
nome dê "categorias" Aristóteles quer penetrar na estrutura mesma do
ser, e o faz em diferentes lugares e com diferentes intenções em sentidos
distintos. Neste livro das Categorias chega a precisar com bastante exatidão o
que ele entende por estrutura do ser. Ele quer encontrar aqueles pontos de
vista dos quais podemos considerar qualquer ser, o ser em geral, e pretende
fixá-los conceptualmente. Mas como Aristóteles está profundamente imbuído do
postulado parmenídico da identidade entre o ser e o pensar, estes nossos
pontos de vista, desde os quais podemos focalizar a contemplação do ser,
aparecem-lhe imediata e indistintamente como propriedades objetivas do próprio
ser. É assim que as categorias vão ser, para Aristóteles, tanto diretrizes do
pensamento lógico como aspectos reais, embora gerais, de todo o ser em geral.

Vamos
começar tomando as categorias no seu aspecto lógico. Se nos encontrarmos ante
uma realidade, um ser, e nos perguntarmos quais são os diferentes pontos de
vista nos quais podemos nos situar para dizer desse ser aquilo que é, então
acharemos um certo número de modos, maneiras de predicar o ser, maneiras de
atribuir ao sujeito um predicado. A primeira maneira de atribuir ao sujeito um predicado
chama-a Aristóteles "substância". Já conhecemos este termo. A
substância é a primeira categoria que ele enumera na sua lista: é o ponto de
vista no qual nos situamos para dizer que algo "é": este é o homem,
este é cavalo, este é peixe. Quando dizemos de algo que é isto ou aquilo,
aquilo que é, então consideramos este algo como uma substância e o que dele
dizemos isto é ele.

Mas
não nos colocamos somente neste ponto de vista. Vem um segundo ponto de vista.
De algo que é real podemos também predicar o muito e o pouco, podemos dizer de
um homem que é grande ou pequeno; podemos dizer de um cavalo que é grande ou
pequeno; de uma coleção de coisas que são muitas ou poucas. De sorte que temos
aqui outro ponto de vista do qual focalizamos o ser e que Aristóteles chama a
"quantidade".

Mas
qualquer ser pode ser ainda focalizado de um terceiro ponto de vista. Depois de
ter dito o que é e quanto é, ainda podemos dizer que é vermelho, verde, nobre,
ignóbil, feio, bonito, Este é o ponto de vista que Aristóteles chama a
"qualidade".

Logo
consideramos os seres uns em relação aos outros. De um ser podemos predicar
igualmente que é maior do que outro, menor do que outro, igual a outro. A este
tipo de predicação chama Aristóteles "relação".

Podemos,
ainda, ante um ser tentar determinar onde está, e dizer: está aqui ou lá, em Atenas. A este ponto de vista sobre qualquer ser chama Aristóteles "lugar".

Do
mesmo modo temos o ponto de vista do "tempo". De um ser podemos
predicar quando é, quando deixa de ser, quando foi. Podemos dizer que é agora
e continua a ser ou que deixou de ser.

Outro
ponto de vista é determinar em um ser aquilo que esse ser faz. Dizemos de um
machado que é cortante; dizemos de uma semente que germina. A este ponto de
vista chama Aristóteles "ação".

E,
por último, de qualquer ser podemos também predicar, não o que ele é, mas o que
ele padece, o que ele sofre; a árvore é cortada; o homem é morto. A esse ponto
de vista chama Aristóteles "paixão".

Teremos,
por conseguinte, esta lista de oito categorias que acabo de enumerar e que são:
substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, ação e paixão. Em
certas passagens acrescenta mais duas que desaparecem em outras passagens, e
que são a "posição", ou seja, dizer de um ser que está deitado,
sentado, erguido etc, e o "estado" que quer dizer um ser que, por
exemplo, está armado ou desarmado. Que está florescido ou sem florescer, seco ou
úmido. Estas duas últimas devem ter produzido na mente de Aristóteles dificuldades
de caráter metafísico e lógico, porque às vezes as suprime; e a tradicional
lista das categorias que se encontra em qualquer história da filosofia
restringe-se às oito que enumerei.           

O
problema proposto aqui por Aristóteles pela primeira vez ó extraordinariamente
interessante. É o problema da estrutura do ser. Já Aristóteles considera que
esta estrutura do ser é, ao mesmo tempo, estrutura do pensar; quer dizer, que
já Aristóteles dá às categorias um sentido ao mesmo tempo lógico e ontológico.
Do ponto de vista lógico, chama-as predicáveis ou predicamentos: são os
atributos mais gerais que se podem fazer na formação de juízos. Do ponto de
vista ontológico considera-as como as formas elementares de todo ser, como
aquelas formas que, impressas na matéria, constituem o mínimo de forma
necessária para que o ser seja.

Essas
duas concepções — a ontológica e lógica — fundem-se em Aristóteles; não adverte
claramente que possam separar-se. não considera real, possível, que se cindam,
e que as categorias sejam consideradas por uns como elementos primários da
realidade e por outros como elementos primários do pensamento.

A
lista oferece, sem dúvida, o flanco a um grande número de críticas. Lembrarei
simplesmente que Kant lhe fez uma objeção de certa importância, mas que está
inspirada, precisamente pelas idéias próprias que Kant tem das categorias. A objeção
de Kant foi que as categorias de Aristóteles não estão deduzidas de um
princípio geral do qual fossem extraídas metòdicamente, mas estão numeradas ao
acaso. Com efeito, estas categorias de Aristóteles não as deduz ele de nenhum
princípio; o que faz é enumerá-las. Ele próprio se coloca, por assim dizer, na
atitude intuitiva daquele que vai predicar algo acerca do ser e ele próprio vai
sucessivamente situando-se nos distintos pontos de vista. A prova de que não
são pontos de vista deduzidos é que tanto faz serem oito ou dez, faltando os
últimos dois que às vezes põe e as vezes tira. Mas esta é uma censura que se
deve poupar a Aristóteles, visto ser a primeira vez que se levanta no
mundo este problema das categorias.

Outra
censura, talvez não tão leviana como esta de Kant, é a que se poderia fazer a
Aristóteles (e com efeito, também lhe foi feita muitas vezes) de que inclui
entre as categorias a substância; não somente a inclui, como também lhe dá o
primeiro lugar. A substância, todavia, não é uma categoria; a substância não é
um ponto de vista de onde consideramos o ser, visto que a substância é o ser
mesmo; é aquilo que consideramos de diferentes pontos de vista. Não é, pois, um
ponto de vista sobre o ser, mas é o ser mesmo. Esta é, com efeito, uma falta em
Aristóteles; porém é uma falta muito instrutiva, porque se vê que Aristóteles é
guiado ao mesmo tempo pela idéia lógica e mitológica. E como aquilo que ele
tenta determinar são as estruturas elementares do ser e do pensar, acha que a
primeira coisa que de algo se pode dizer é aquilo que isso é: a substância. E
então coloca a substância entre as categorias.

Este
problema das categorias há de ser um dos que mais nos ocuparão nas lições próximas,
porque é justamente a encruzilhada em que as teses metafísicas do realismo e do
idealismo vão separar-se: d tese do realismo considerará sempre as categorias
como elementos ontológicos do próprio ser, enquanto que o idealista considerará
as categorias como unidades sintéticas do pensamento, quer dizer, do pensamento
que constitui fora de si a noção do ser.

54.  
Estrutura da substância: forma e matéria, real e possível, ato e potência.

Mais
interessante do que esta estrutura do ser em geral nas categorias
aristotélicas é o estudo a que agora vamos entregar-nos da estrutura da própria
substância. A substância é para Aristóteles aquilo 4ue existe, porém não
somente aquilo que existe, mas aquilo que existe em unidade indissolúvel com o que é, com sua essência, não somente com sua essência, mas com seus
acidentes. De modo que i substância responde primeiramente à pergunta: quem
existe? A resposta é: a substância. E responde também à pergunta: isso que
existe, que é? A resposta é: é um copo, ou seja um objeto que tem esta forma,
esta matéria, esta finalidade, estes caracteres etc, etc. De sorte que em toda
substância há esta estrutura dual de existir e de consistir, de ser no sentido
existencial e de ser no sentido essencial. E esse ser em  ambos  sentidos 
Aristóteles   o   decompõe   no  par  de   conceitos "forma" e
"matéria". Mas não se pense, de modo algum, que a matéria corresponde
à existência, e a forma corresponde à essência. Não. A matéria e a forma — é o
que nos convém ir precisando — constituem indivisível, porque se a dividirmos
deixa de "ser", em qualquer sentido da palavra. A forma sem matéria
"não é". É a idéia platônica, é a essência que Aristóteles quis
trazer do céu das idéias platônicas, transcendentes à terra real das coisas
existentes. A forma, pois, sem matéria não tem existencialidade. Mas a matéria
também não pode carecer de forma. Não podemos conceber uma matéria sem forma.

De
modo que estes dois conceitos de matéria e forma não podem dividir-se
metafisicamente, porque perdem todo sentido ontológico, logo que os separamos,
e a substância é justamente a unidade de matéria e forma na existência
individual. Por que digo existência individual? Porque para Aristóteles não há
outra. Precisamente o erro platônico, segundo Aristóteles, consistiu em dar à
forma, ou seja à essência, ou seja à idéia, existência. Todavia o geral não
existe; o domem não existe. O que existe é este homem, Fulano, Pedro, Sócrates.
O homem em geral, que é a essência do homem, é a forma que em cada homem
individual se dá; mas o que existe é a união sintética de forma e matéria em
"este" determinado homem, que é a substância.

O
par de conceitos forma e matéria não pode, pois, cindir-se, antes na sua
unidade representa exatamente a resposta mais pura à pergunta em que nós
compendiamos a metafísica. Sem dúvida, a forma sem matéria, a essência, pode
chegar a ser sujeito de um juízo. Podemos perguntar a nós mesmos: que é ser
homem? e podemos responder: ser homem é isto, aquilo, ou outro; quer dizer,
podemos tomar a humanidade, o humano, a essência do humano como sujeito de um
juízo e predicar dele um certo número de predicados essenciais. Nesse sentido
poderia considerar-se também a essência corrio substância, e Aristóteles
algumas vezes faz assim, e a chama "substância segunda", terminologia
que foi depois aproveitada por S. Tomás e da qual este fez um uso perfeitamente
legítimo e muito profundo. Mas esta substância segunda não tem a existência
metafísica plena. O que tem existência metafísica plena é a substância primeira,
que sempre é individual.

Ao
par de conceitos forma-matéria corresponde também em Aristóteles este outro par
de conceitos: real e possível. Mas de maneira alguma o par de conceitos
real-possível coincide exatamente com o par de conceitos forma-matéria, de modo
que real seja forma e possível seja matéria. Não. Sem dúvida a matéria tem
possibilidade e a forma imprime realidade. Mas a matéria não tem possibilidade
senão enquanto recebe forma, é um possível possível, por assim dizer; é um
possível que não é possível senão enquanto está de antemão apetecendo, olhando
para a forma. E do mesmo modo o real não é real senão enquanto procede do
possível. Em Aristóteles, o par de conceitos real e possível tem, pois, um
sentido lógico, predominantemente lógico. Do possível pode predicar-se, pois,
uma coisa pelo menos: a não contradição. É muito pouco, mas enfim pode
predicar-se isso do possível. Não é possível o contraditório.

No
fundo dessa definição lógica da possibilidade está para Aristóteles a crença
firme no postulado parmenídico, visto que esta ante-câmara do real, que é o
possível, está desde já, sujeita à lei lógica da identidade do ser e do pensar.

Por
último, há outro par de conceitos que também costuma corresponder aos dois
pares anteriores, e é o de ato e potência. Mas também não corresponde
exatamente. Sua coincidência também não é perfeita porque no par ato-potência
Aristóteles sublinha principalis-simamente o aspecto dinâmico. Aristóteles
chama "ato" ao resultado do advento ao ser; e chama "potência"
à matéria, mas enquanto vai ser. A potência, pois, está com o ato na mesma
relação que o possível com o real e a matéria com a forma. Mas a matéria com a
forme está em uma relação estática, como contemplada desde a eternidade,
metafísica. A possibilidade com a realidade está em uma relação lógica; a
ausência de contradição define a possibilidade, e a transformação em substância
define a realidade. Mas o par de conceitos ato-potência está em uma concepção
ou intuição dinâmica, na gênese das coisas. Quando o que vemos na coisa não é o
que a coisa é, e tampouco é o que da coisa pode predicar-se logicamente, mas
seu advir, seu chegar a ser, sua gênese interna, então esses pares se
qualificam mais propriamente de potência e de ato.

Desta
maneira, e deste último ponto de vista, a substância de Aristóteles se nos
apresenta sob três aspectos: primeiro, sob o aspecto ontológico, metafísico,
como unidade existencial de forma e matéria; segundo, sob o aspecto lógico,
como predicabilidade de um sujeito; e terceiro, sob um aspecto genético, como a
atuação da potência. Este aspecto genético nos projeta a realidade, não como
realidade, mas como "realização"; a substância, não como forma de uma
matéria, mas como "formação"; o ato, não como um ato de uma potência,
mas como "atuação". Este sentido dinâmico que a terminação em
"ão" dá aos termos de forma, realidade e ato, convertendo-os em
formação, realização e atuação, oferece — creio eu — uma intuição muito
profunda e muito exata daquilo que é o pensamento de Aristóteles, porque o
pensamento de Aristóteles, é que cada coisa natural é o mesmo que uma coisa
artificial. Assim como uma coisa artificial se explica inteiramente quando a
vemos feita pelo artífice (o cântaro de barro feito pelo oleiro) e advém a ser
em virtude da ação do artífice, e mais que uma coisa é uma
"coisação", assim, do mesmo modo, todas as coisas do universo devem
ser contempladas sob o aspecto da fabricação. Na realidade, a estrutura do ser
e a estrutura da substância culminam em Aristóteles numa teoria da realização
Vamos ver agora em duas palavras quais são as estruturas dessa realização
dinâmica.

55.  
As quatro causas.

A
estrutura da realização em Aristóteles é a teoria das causas. Aristóteles
distingue de cada coisa quatro causas: a causa material, a causa formal, a
causa eficiente e a causa final. Chama Aristóteles "causa

material"
aquilo de que é feita uma coisa. Chama "causa formal" aquilo que a
coisa vai ser. Chama "causa eficiente" aquilo com o que é feita a
coisa. E chama "causa final" aquilo para o qual é feita a coisa

Duas
destas causas são fáceis de discernir, se olharmos bem: a material e a
eficiente. A causa material é aquela de que é feita a coisa; a causa eficiente
é aquela com que é feita a coisa. Os exemplos que ocorrem imediatamente à mente
são sempre exemplos tomados das oficinas dos artífices: o barro, o mármore são
a matéria da estátua, são aquilo de que é feita a estátua; são a causa
material da estátua. Os palitos, os dedos do escultor, os movimentos que o
escultor imprime ao barro, os golpes que dá com o cinzel e o martelo sobre o
mármore, são a causa eficiente, aquilo com que, o instrumento com que é feita a
coisa.

Mas
não é tão fácil discernir as outras duas causas: a formal e a final. O próprio
Aristóteles às vezes não as discerne muito bem. A causa final, dir-se-á, é bem
clara: é o propósito que o artífice tem. Mas o propósito que o artífice tem,
qual é? Se o propósito que o artífice tem é criar um objeto, o qual por sua
vez sirva para algo, qual é o seu propósito? A criação do objeto ou aquilo para
o qual o objeto serve? Se for este último, poderemos recolocar a pergunta e
dizer: aquilo para o que o objeto serve, é por sua vez o último fim que teve o
artífice, ou não será senão um meio para outro fim ulterior? E teremos aqui uma
progressão infinita como a que vimos na sucessão do ser necessário e do ser
contingente. Mas podemos deter-nos e dizer: o propósito do artífice é a
criação do objeto. Assim acontece, por exemplo, nas obras de arte, que não têm
outra finalidade, senão a de ser o que são. E então, nesse caso, a causa final
se confundiria com a causa formal. Porque, o que é a causa formal? É a idéia da
coisa, a idéia da essência da coisa, a idéia daquilo que a coisa ê, daquilo que
antes que a coisa seja já está na mente do artífice, e o artífice, antes de que
a matéria receba essa essência e se torne substância, tem a essência
previamente pensada. Neste caso a causa final coincidiria com a causa formal; e
assim acontece em Deus. Quando Deus pensa a essência das coisas como o artífice
delas, esse pensamento é criador, e por isso as coisas são produtos do
pensamento de Deus e fins que o pensamento se propôs.  A causa final coincide
aqui com a causa formal.

Esta
estrutura da realização nos levou constantemente a exemplificar dentro da
órbita, dentro do âmbito do artífice, do artesão. É que toda a concepção
metafísica de Aristóteles está dominada por essa idéia de forma essencial e de
finalidade. E no funda a substância, cada substância individual, é para
Aristóteles o resultado, o produto de uma elaboração semelhante. Por isso a
teoria da causalidade de Aristóteles constitui o pólo oposto da teoria da
causalidade entre os modernos. Para os modernos, a causalidade é notação dos
sucessos que acontecem ao longo do tempo no mundo, segundo leis regulares; mas
para Aristóteles a causalidade não é notação da sucessão das coisas no tempo
regularmente encadeadas umas às outras. Aristóteles não tem da causalidade a
idéia que tem Hume. A causalidade, para ele, é a estrutura da realização no
eterno, na eternidade, fora do tempo. Deus cria o mundo da mesma forma que um
artífice faz sua obra; mas como Deus não está no tempo, cria sua obra somente
pensando-a. Sua atividade é só pensar (pensar pensamentos), é esse
"pensamento dos pensamentos". Assim Deus é a essência exemplar das
coisas realizadas neste mundo. Por isso a concepção aristotélica da causalidade
é uma concepção genética interna da própria coisa, mas não é evolutiva no
tempo, no sentido da sucessão, como o é para nós na física atual.

56.  
Intelígibilidade do mundo.

Em
suma: para Aristóteles o mundo, este mundo em que vivemos, o mundo sensível das
coisas tangíveis e visíveis, é ao mesmo tempo um mundo inteligível. As
substâncias "são", existem, e além de ser e existir, são
inteligíveis; nós podemos compreendê-las. E por que podemos compreendê-las?
Podemos compreendê-las porque foram feitas, inteligentemente. Se não tivessem
sido feitas racionalmente, inteligentemente, seriam para nós incompreensíveis.
Por que são para nós compreensíveis? Pois porque têm e estão impregnadas de inteligibilidade.
São inteligíveis porque seu ser se decompõe no ser puro e simples existencial e
na essência inteligível, a velha idéia de Platão, que desceu do céu à terra
para juntar-se com a existência e dar a substância.

Perdura
vivo em Aristóteles o postulado parmenídico de que o ser é inteligível,
de que o ser é idêntico ao pensar, de que entre o ser e o pensar não há
diferença radical. Para Aristóteles também a natureza, o mundo, as coisas são
inteligíveis. Podemos compreendê-las, quer dizer, conhecer suas essências.
Concebemo-las metafisicamente, como impregnadas de inteligibilidade e essa
impregnação se deve à sua origem inteligente; são obra de um Deus inteligente.
Por isso Aristóteles necessitava que sua metafísica culminasse em teologia. A
teologia de Aristóteles é a garantia da inteligibilidade do real. Sem Deus não
compreenderíamos por que acaso são inteligíveis as coisas. As coisas são
inteligíveis, nós as entendemos, as compreendemos, temos delas uma noção
satisfatória e isso demonstra a existência de Deus porque do contrário se nós
tivéssemos da coisa a inteligência e a compreensão e Deus não existisse, não
se compreenderia como as coisas são em si mesmas inteligíveis. São porque Deus
pôs nelas sua inteligência. Por isso Deus, de sua parte, é pura inteligência,
puro pensamento, pensamento de si mesmo que, ao pensar seus próprios
pensamentos, põe nas coisas a inteligibilidade.

57.  
Teoria do conhecimento: conceito, juízo, raciocínio, Deus.

Desta
maneira se nos apresenta o mundo de Aristóteles como um imenso, magnífico
conjunto sistemático. O mundo está perfeitamente sistematizado; o mundo não
deixa nenhum resquício a nada irracional, a nada incompreensível. Tudo nele é
explicável por essência e por pensamento; todo ele está jorrando razão. É um
magnífico conjunto sistemático de substâncias, cada uma das quais tem sua essência,
e nós podemos conhecer essas substâncias e essas essências. Podemos
"conhecer", quer dizer, que Aristóteles tem logo após a metafísica
uma teoria do conhecimento que se ajusta perfeitamente a esta metafísica
teleológica, finalista.

A
teoria do conhecimento é de uma simplicidade extraordinária. Reflete essa mesma
estrutura da substância. Para Aristóteles, conhecer significa duas coisas.
Conhecer significa primeiramente formar conceitos, quer dizer, chegar a
constituir em nossa mente um conjunto de notas características para cada uma
das essências que se realizam na substância individual. Os processos de abstração
e de generalização que sobre o material da percepção sensível realizamos
conduzem-nos à formação de um arsenal de conceitos. Saber é ter muitos
conceitos. Quem mais sabe é aquele que tem mais logoi na inteligência,
na mente. Quanto mais tiver, mais saberá. Porém, conhecer significa, em
segundo lugar, isto também: aplicar esses conceitos que formamos a cada coisa
individual; colocar cada coisa individual sob o conceito, chegar à natureza,
contemplar a substância, olhá-la e voltar logo para dentro de nós mesmos para
procurar no arsenal de conceitos aquele conceito que se ajusta bem a essa
singularíssima substância, e formular o juízo: este é cavalo. E acabou já o
saber, porque o saber não consiste, como hoje para nós, em descobrir a lei da
sucessão dos fenômenos no tempo. Não consiste em explicar por causas
antecedentes no tempo, não; mas antes consiste em colocar cada substancia sob
seu conceito correspondente: primeiro, formando o conceito, e logo,
aplicando-o. Em terceiro lugar, conhecer significa embaralhar entre si esses
diversos juízos em forma de raciocínios que nos permitam concluir, chegar à
conclusão acerca de substâncias que não temos presente.

Desta
maneira, e em sucessão ordenada, uma formação de conceitos, uma colocação dos
indivíduos sob os conceitos e [ raciocínios que nos permitam ver, determinar as
substâncias que não temos na nossa experiência imediata, tal é o conhecimento
em geral para Aristóteles. Como se vê, ajusta-se perfeitamente esta teoria do
conhecimento a esta metafísica classificadora. O universo, para Aristóteles, é
uma magnífica coleção sistemática de substâncias, ordenadamente classificadas
como na história natural. Por isso quando se expõe a lógica de Aristóteles,
inevitavelmente tem que se buscar os exemplos na história natural; é uma magna
história natural. E todas essas substâncias magnificamente classificadas estão,
ademais, hierarquizadas; umas são mais amplas do que outras; e todo esse
conjunto magnífico culmina na idéia suprema de Deus, que é ao mesmo tempo causa
primeira e fim último de toda a realidade do mundo e do universo. Porque Deus
é causa primeira, visto que Ele é o ser necessário, fundamento de qualquer
outro ser contingente, e porque Ele pensando pensamentos, é quem dá a cada ser
contingente sua essência, sua forma. E então cada ser é como uma realização de
idéias de Deus e todos os seres vão culminar nesse pensamento puro, nesse
pensamento que é Deus.

O
homem é um ser entre outros muitos que constituem o universo. Mas esse ser
humano tem o privilégio sobre os demais seres de possuir uma faísca de
pensamento, de partilhar da inteligência divina. Portanto, a finalidade do
homem no mundo é clara: é realizar sua natureza; e o que constitui sua
natureza, aquilo que distingue o homem de qualquer outro ser, é o pensamento.
Por conseguinte, o homem deve pensar. A atividade própria do homem é pensar; o
ato do homem, o ato humano por excelência é pensar. Não pensará o homem com a
plenitude e a pureza, a grandeza e a totalidade com que pensa Deus; porque o
homem não é Deus, e, por conseguinte, seu pensamento é imperfeito, comparado
com o de Deus.

Imaginemos
agora Santo Tomás esforçando-se com um afã ao mesmo tempo místico e filosófico
para ter uma concepção, uma idéia de em que possa consistir a bem-aventurança
dos bem-aventurados. Pois não fará outra coisa senão tomar do último capítulo
da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, a descrição da teoria, a descrição
da contemplação. A teoria, a contemplação das essências, o pensamento, o
conhecimento das essências e de Deus é a ocupação mais própria do homem. Está
nesta terra limitado, constrangido pelas necessidades naturais, por aquilo que
o homem tem de não homem, de animal, de pedra, de matéria. Mas Santo Tomás,
quando tenta imaginar ou ver ou intuir em que deva consistir a bem-aventurança
dos santos, não encontra outra atividade senão a mesma de Aristóteles: os
santos são bem-aventurados porque contemplam a verdade, porque contemplam a
Deus. Como Deus é pensamento puro, contemplam o pensamento puro e vivem
eternamente nas zonas do puro pensar.

 

58.   
Influência de Aristóteles.

A influência que a filosofia de
Aristóteles exerceu no mundo é algo extraordinário, algo formidável. Toda a
antigüidade depois dele apossa-se da magnífica enciclopédia científica que
constituem suas obras. Sua Metafísica, sua filosofia primeira, constitui também
desde então a base do pensamento filosófico para todo o mundo, seja para
aceitá-lo e desenvolvê-lo, seja às vezes para se opor a ele; porém sempre a
oposição supõe uma aceitação, ainda que seja para combater.

Os
árabes redescobriram Aristóteles e o transmitiram à filosofia escolástica.
Santo Tomás desenvolve a filosofia de Aristóteles na forma mais monumental e
perfeita que se conheceu no Ocidente. A partir de então não cessa de imperar
nas escolas a filosofia de Aristóteles.

Na
Renascença sofre um eclipse a influência da filosofia aristotélica. Novos
conceitos, novas instituições, novas aspirações do saber humano se fazem valer
nessa época. Porém e apesar de tudo. a influência de Aristóteles, embora
diminuída, não cessa por completo. Encontramo-la muito viva, muito profunda, em
Leibniz; encontramo-la profundíssima, vivíssima, em Hegel, que às vezes chega a
empregar a mesma terminologia que Aristóteles. Encontramo-la, por último, em
nossos dias às vezes declarada, às vezes também existente embora não declarada.
Assim, por exemplo, para não citar mais que dois elementos atuais da filosofia
contemporânea, a técnica filosófica daqueles que têm técnica filosófica (essa
mestria para analisar conceitos finamente, para estabelecer distinções, para
conduzir as distinções certeiramente à finalidade que se persegue), essa
técnica do trabalho filosófico pessoal não se adquire senão em contacto
profundo com a filosofia de Aristóteles. Não há nada mais educativo que se
aprofundar nos textos de Aristóteles, que são de uma dificuldade
extraordinária, não porque Aristóteles seja obscuro, mas (seja dito entre
parênteses) porque os textos estão mutilados, são notas dos alunos,
apontamentos muito mal tomados e foram mal transmitidos pela tradição
editorial. Pois não há nada mais educativo para a técnica filosófica do que a
leitura de Aristóteles.

Mas,
além da técnica filosófica, como já advertíamos nas lições anteriores
consagradas ao método da filosofia, surge a distinção que vai abrindo caminho
cada vez mais no pensamento atual, entre explicar por causa físico-mecânica e
compreender por finalidade essencial. Pois essa distinção (confesse-se ou não)
é aristotélica, ou. melhor dito, não é que a distinção seja aristotélica, mas é
que agora sente de novo a filosofia a necessidade de restabelecer o tipo da
inteligibilidade aristotélica, o tipo da inteligibilidade que consiste em que o
todo precede às partes, em que se consideram as coisas e as essências como os
fins, como os selos que dão caráter compreensível a uma coisa. E fenômenos como
o aparecimento em psicologia da teoria da figura ou o aparecimento em biologia
da teoria do neovitalismo, são fenômenos que no fundo, embora não se declare,
embora não o saibam talvez os mesmos que propagam essas teses, revelam a
influência de Aristóteles.

Não
quisera terminar esta lição sobre Aristóteles sem fazer, por assim dizer, em
poucas linhas, o balanço da metafísica realista. Dizia que a filosofia de
Aristóteles representa o esforço máximo e melhor sucedido para estruturar em
geral uma concepção do universo de tipo realista. Pois bem: vamos extrair dessa
metafísica realista (cujas etapas através do pensamento grego temos seguido,
desde Parmênides até Aristóteles), as teses fundamentais de todo realismo,
diferentes respostas dadas à pergunta: que existe? Primeira tese: existem as
coisas. Segunda tese: existem as coisas como inteligíveis, quer dizer, que,
além de ser, consistem; além de ser, são isto ou aquilo; têm uma essência e são
inteligíveis. Terceira: existe a inteligência o pensamento, Deus. Quarta: o
homem é uma das coisas que existem. Quinta: o homem é inteligente
relativamente, quer dizer, participa da inteligência que existe. Sexta: o homem
conhece que as coisas são e o que as coisas são. Sétima: a atividade suprema do
homem consiste no conhecimento.

De
uma ou outra forma, ocultas ou manifestas, implícitas ou explícitas, estas
teses estão na raiz, na estrutura de toda filosofia realista. Estas teses
constituem o realismo. Veremos numa próxima lição como chega a humanidade a
adotar um princípio radicalmente oposto n este e como o novo ponto de vista
produz uma série de esforços para estruturar-se e adotar forma sistemática, e
todos esses esforços constituem a série da filosofia moderna. O Parmênides da filosofia
moderna será Descartes.

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