O CAMINHO DA CIÊNCIA DA ARTE – HISTÓRIA DA ARTE DE E. GROSSE (1893)

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HISTÓRIA DA ARTE DE ERNEST GROSSE (1893)

CAPÍTULO II – O CAMINHO DA CIÊNCIA DA ARTE

A missão da ciência da arte consiste em descrever e explicar os fenômenos englobados sob a denominação de "fenômenos de ordem estética". Essa tarefa encerra, porém, duas formas: uma individual e outra social.

Na primeira, trata-se de compreender uma obra de arte isolada, ou a obra completa do artista, descobrir as relações que há entre um artista e sua obra individual e explicar a obra de arte como produto de uma individualidade artística, trabalhando sob determinadas condições. A maioria dos homens julga os fenômenos de ordem individual muito mais interessantes que os de ordem social, principalmente em matéria de arte, em que a individualidade vale tanto. Assim, a maioria dos investigadores até agora entregou-se ao estudo dos problemas artísticos, do ponto de vista individual. Entretanto, deveriam ter compreendido que poucas probabilidades havia de encontrar uma solução. Com efeito, a forma individual do nosso problema não é viável, senão em pequeno número de casos, pertencentes todos aos últimos séculos. Ademais, sempre o trabalho mais paciente e a mais aguda perspicácia malograram diante da ausência quase absoluta de materiais.

Rembrandt morreu em 1669, em Amsterdam — portanto há dois séculos — e, no entanto, pouca coisa sabemos da vida desse mestre que, durante longos anos, gozou de reputação européia. Até se chegou a pôr em dúvida se foi realmente o criador das obras que projetaram sua glória no mais remoto futuro. O maior poeta inglês compartilha, como se sabe, da sorte do maior pintor holandês. Mas, no fundo, que importa não ter sido Bacon e sim Shakespeare o autor de "Hamlet"? Quem foi Shakespeare? Um filho de burgueses duma pequena cidade inglesa, que teria sido punido um dia, por haver caçado furtivamente; que se casou aos 19 anos; que teria deixado pouco depois a família, para ir a Londres, onde teria vivido primeiramente como ator e depois como co-proprie-tário de um teatro; que teria regressado à sua cidade natal aos 50 anos, morrendo pouco tempo depois. Sabemos, além disso, que era amigo fiel e companheiro amável. Apesar de todas as pesquisas, ainda não sabemos sobre a vida do grande poeta tudo o que qualquer estranho, com o qual passamos uma hora à mesa, pode contarmos acerca da própria existência. Entretanto, estamos melhor informados sobre Shakespeare que sobre seus contemporâneos. As "biografias" dos dramaturgos da época de Elizabeth assemelham-se aos epitáfios que se podem ler nas pedras gastas de um velho cemitério. O que melhor sabemos são as datas de nascimentos e mortes. Em um velho registro de Saint Saviour’s Church encontramos, com a data de 20 de março de 1639, esta lacônica nota: "Enterrado Philip Mas-singer, estrangeiro". Esse estrangeiro, de cuja vida só se conhecem algumas datas, nascera em 1584. Filho de um criado, estudou de 1602 a 1606 em Saint-Albano Hall de Oxford, e solicitou, "in infortuna-te extremities", sob penhor, ao usurário Herstowe a importância de 5 libras. Esse estrangeiro era o poeta do "Duke of Milan" e de "Fatal Dowry". Uma frase no mesmo livro de Herstowe é tudo o que nos deixou, além de suas obras e de seu nome, John Webster, o criador da terrível "Duchess of Malfi". Todos desapareceram nessa noite profunda que tão amiúde evocaram em seus terríveis sonhos:

"Where nothing is but ali oblivion Dust and an endless darkness."

Cada passo que damos para penetrar mais longe no passado, a obscuridade faz-se mais impenetrável e mais profunda a calma em volta de nós. Quem era o mestre que criou o altar de Isenheim, a obra mais genial da pintura alemã? Quem era Matias Grünewald?

É de lamentar, escreve o velho Sandrart, que esse homem excepcional tenha caído, bem como suas obras, em esquecimento tão profundo que não conheço um ser vivo capaz de me dar um indício qualquer sobre sua vida.

Têm-se comparado as grandes epopéias da Idade-Média com as catedrais da mesma época. Infelizmente, possuem em comum também esse ponto: desconhecem-se os autores. Às vezes, descobre-se numa pedra um nome e algumas datas semi-apagadas.

Eis tudo. Quem era Erwin von Steinbach? Quem era Gottfried von Strassburg? Quem era Wolfram von Es-chenbach? Quem era o poeta do "Gudrun"? Quem era o poeta dos "Niebelungen"? As obras de arte da antiguidade foram ressuscitadas em parte, mas seus autores permanecem sepultados para sempre nas ruínas dos séculos. Tudo o que a história pôde descobrir sobre o caráter e a sorte dos grandes mestres gregos e romanos é incerto e sem pormenores. Seria mais fácil reconstruir uma estátua com alguns fragmentos partidos que reconstituir a vida fecunda de um artista com tão escassos dados. Mas, remontemos ainda mais longe no passado e os nomes desaparecem, por sua vez. É em vão que procuramos descobrir os artistas, autores das gigantescas construções dos povos americanos, dos cantos heróicos e mitológicos dos polinésios, das gravuras de cavernas dos bos-quimanos. Vemos somente a multidão. Nem sequer um indivíduo aí se destaca. Em todos esses casos, que formam a maioria, a tarefa da ciência da arte não pode realizar-se senão sob seu aspecto social. Se é impossível explicar o caráter individual duma obra de arte, pelo caráter individual do autor, só resta reduzir o caráter coletivo dos grupos artísticos ao caráter de um povo ou de toda uma época. O primeiro aspecto do nosso problema é, pois, psicológico, e o segundo, sociológico.

O aspecto sociológico do problema artístico há tempo é estudado. O primeiro autor que tentou explicá-lo foi o abade Dubos. Em suas "Réflexions critiques sur la poésie et la peinture", que datam de 1719, já perguntava donde provinham as diferenças nas produções artísticas dos diversos povos e das várias épocas. Para ele o ar é a causa de tais diferenças. Se a simplicidade dessa resposta nos faz rir, talvez nos esqueçamos de que a resposta dos modernos, que substituíram o termo ar do velho Dubos pela expressão clima, mais digna de nossa ciência, não é muito mais explícita. Uma palavra nova não é um conhecimento novo. Meio século mais tarde, Herder estudou o problema com verdadeiro entusiasmo. Se se pudesse resolver uma questão científica por meio de frases engenhosas, Herder tê-lo-ia conseguido. Seus escritos estão cheios de pensamentos gerais acerca da influência do caráter nacional e do clima sobre a poesia, mas suas idéias sucedem-se tão rapidamente que não deixam tempo para determiná-las nem fixá-las. O mérito de Herder não reside em suas pesquisas, mas no estímulo que proporcionou aos seus leitores. Sua palavra, de resto, não teve repercussão entre os contemporâneos, cujas aspirações eram de ordem inteiramente diversa. Ao invés de fundar uma ciência da arte sobre base etnográfica, como era seu sonho, surgiu na Alemanha uma filosofia da arte completamente superficial.

Só muito depois de Herder é que se tentou de novo a sociologia da arte. Desta feita, porém, na França. Taine foi algumas vezes consagrado como o fundador da ciência da arte, do ponto de vista sociológico. Nem sua concepção nem Bua solução do problema o autorizam a ostentar legitimamente esse título. Entretanto, só pelas qualidades puramente extrínsecas, ele se coloca acima de seus predecessores. Suas explicações parecem muito claras, mas não o são. A clareza da forma só serve amiúde para ocultar a obscuridade do fundo. As idéias de Taine resumem-se neste axioma famoso, a que ele atribui o valor de uma lei: "A obra de arte é de-terminada por um conjunto que exprime o estado geral do espírito e dos costumes que o rodeiam". Esse "estado geral" forma uma "temperatura moral", que tem para o desenvolvimento da arte a importância da "temperatura física", no desenvolvimento da flora. A arte deve a essa temperatura moral não sua origem, é verdade, mas o seu caráter. Cada época assiste ao nascimento, com pequena diferença, do mesmo número de indivíduos susceptíveis de chegarem a ser artistas. Mas, dentre esses indivíduos, muito poucos logram desenvolver-se, só o conseguindo aqueles cujo caráter e obras se adaptam à temperatura moral existente, que encontra sua expressão no gosto de sua época. Os demais anulam-se ou perecem. A evolução da arte também se processa sob a grande lei da seleção natural. Se se estudar de perto essa temperatura moral, vsr–se-á que é condicionada pela ação de três fatores: a raça, o clima e o momento, isto é, a soma dos produtos da civilização já existentes.

Hennequin pôde demonstrar facilmente, na sua "Critique scientifique", que todas essas noções, que Taine maneja com a mesma segurança que um prestidigitador, são efetivamente muito duvidosas. O caráter uniforme da arte de uma nação repousaria primeiramente no caráter uniforme de uma nação. Mas, é impossível descobrir em qualquer parte esse caráter uniforme, cuja existência é para Taine coisa sabida. Não só não existe nas grandes nações civilizadas, de que fala Taine, como também entre os selvagens. As idéias de Taine relativas ao clima e à sua influência sobre o caráter do artista não possuem maior valor. Na realidade, ele não nos dá nunca a sua definição de clima. Contudo, pretende que certa forma de determinado clima deve dar aos artistas e, em conseqüência, às suas obras, um certo caráter uniforme. Admira a ousadia desse axioma, à lembrança de que Chateaubriand e Flaubert, por exemplo, são originários da França setentrional, que Burns é tão escocês quanto Carlyle, que Shakespeare, Wycherley, Shelley, Browning, Swinburne, Dickens e Kipling nasceram sob o céu inglês, que Haller, Gessner, Meyer, Keller e Boe-cklin são filhos da Suíça alemã. — Taine pretende assim que o gosto uniforme do público tem sobre a evolução artística o mesmo efeito que a seleção natural sobre a evolução dos seres animais. Mas, essa unidade de gosto não existe, da mesma forma que a unidade de raça. "Em um meio, diz Hennequin, que parece ter uma fisionomia bem determinada — alegria fácil e mobilidade buliçosa — no Paris moderno, o romance vai de Feuillet a Goncourt, de Zola a Ohnet; o conto, de Halévy a Villiers de risle-Adam; a poesia, de Le-conte de l’Isle a Verlaine; a crítica, de Sercey a Taine e Renan; a comédia, de Labiche a Becque; a pintura, de Caba-nel a Puvis de Chavannes, de Moreau a Redon, de Raffaeli a Hébert; a música, de César Franck a Gounod e Offen-bach1". Mas, antes de tudo, esquece-se Taine de que, se a arte depende de certo modo do gosto do público, o cria também em certa medida. Certo, o público contribui um pouco para a educação do artista, mas este também realiza a educação de seu público. Efetivamente, as coisas se passam de maneira toda diversa da indicada na "Philosophie de l’art". A ordem foi invertida. Pode sustentar-se que as sinfonias de Beethoven corresponderam ao gosto dos bons vienenses? Porventura o "Fausto", de Goethe, foi concebido para ser tomado nos chás estéticos de sua época? Acaso a pintura de Boecklin possui o dom de agradar o atual público alemão? Quase todas as grandes obras de arte foram criadas não para, mas contra o gosto dominante. Quase todo grande artista é rejeitado pelo público, e não é por culpa deste que o artista não perece na luta pela vida. A arte que o gosto dominante escolhe e subvenciona não teria certamente levado Taine a escrever uma "Philosophie de l’art". É verdade que em todas as épocas tem existido uma arte que se prostitui ao público e que jamais se generalizou tanto nem obteve maior êxito que em nossa esclarecida democracia, criadora da opereta, da farsa e do romance sensacional. Do teatro dos Goethe e Molière ao café dançante, eis o caminho que a arte percorre para aperfeiçoar-se no sentido do gosto atual. Se Taine quisesse escrever uma sátira sobre certa modalidade de darwinismo, não conseguiria inventar nada mais cruel que aplicar a lei de seleção natural à evolução da arte. Mais adiante, é verdade, veremos que a arte de um povo depende de sua civilização e que certas formas de civilização tornam impraticáveis determinadas formas de arte, favorecendo outras. Mas, não se trata de influência do gosto dominante e nem é de natureza que nos permite explicar toda a evolução da arte pelo princípio de uma seleção natural. As noções fundamentais sobre que repousam as conclusões de Taine são todas inadmissíveis. Por onde se vê o valor de suas "leis". A "Philosophie de l’art", de Taine, é um produto típico das denominadas pesquisas exatas, que cada vez mais se apoderam de todos os ramos das ciências morais e que erigem seus ínfimos resultados em leis psicológicas, exprimin-do-as até onde for possível, em fórmulas matemáticas. A jovem ciência da arte possui meios para defender-se energicamente de semelhantes práticas2. A Hennequin deve agradecer nossa ciência pela sua crítica sincera de Taine. De resto, é preciso dizer que sua "crítica científica" é uma metodologia tão boa e tão má como pode sê-lo a metodologia de uma ciência do futuro, mas fora de uso.

(1) Hennequim, "La critique scientifique", pág. 147.

 

Se Hennequin criticou a ciência da arte de seus predecessores, Guyau3 tentou fazê-la avançar. A arte é uma função do organismo social, de enorme importância para a conservação e a evolução desse organismo. Tal é a firme convicção de nosso autor, que a expressa com extraordinária eloqüência Guyau lembra Herder, pela beleza de suas idéias e palavras. Também o recorda, pelas muitas coisas que admite, sem demonstrar. Em regra geral, suas explicações dão-nos a impressão de verdadeiras. Mas, em matéria de. ciência, não basta a aparência de verdade. O que é preciso é a certeza de um conhecimento claro dos fatos, que só se obtém através de pesquisas demoradas e frias. Ora, nada mais insignificante do que as pesquisas de Guyau, que nunca conseguiram franquear as províncias da arte, que se encontravam em sua proximidade, no espaço e no tempo. Não pretendemos absolutamente que suas idéias careçam, por essa razão, de valor geral, mas não podemos desprezar o fato de que lhes falta até agora uma base séria. Talvez o próprio Guyau teria preenchido essa lacuna, se a morte não lhe viesse interromper os trabalhos, numa idade em que outros homens principiam os seus. Guyau morreu tão jovem quanto Hennequin. E a ciência da arte perdeu com ele um de seus melhores adeptos.

(2) Taine, "Philosophie de l’art", 1865. "Histoire de la littérature anglaise". "Essais", 1858, "Prejace". Seja-nos permitido observar aqui que nossa crítica a Taine não se refere senão a seus escritos de teoria artística e não a seus trabalhos históricos ulteriores, cuja mestria admiramos sinceramente.

(3) Guyau, "Les Problèmes de l’esthétique contemporaine. L’art au point de vue sociologique". Paris, F. Alcan.

 

 

Passando-se em revista os resultados que os estudos sociológicos obtiveram em matéria de arte, ter-se-á que convir em que são muito pobres. O número de trabalhadores que se ocuparam do valor sociológico da arte é relativamente restrito. Esse setor de estudos está seguramente um tanto descuidado. E a negligência da arte por parte da ciência é consequência natural das tendências de nossa época, que devota, à arte medíocre estima, apesar de todos os museus, teatros, exposições e críticas. Aos olhos da atual classe dirigente, a arte não passa de um jogo, digno, no máximo, de encher uma hora de lazer, mas desprovida de qualquer valor para as tarefas sérias e essenciais da vida — a menos que não seja uma fonte de proveitos.

O estudo teórico da arte parece-nos, a nós, pessoas práticas e sérias, algo mais que um inútil exercício do espírito. Dedicar-se a semelhante estudo equivale a ocupar-se de um jogo, o que não é próprio de um homem verdadeiro. Se esse preconceito não fosse tão poderoso, a ciência da arte há muito teria revelado a sua fraqueza. Em verdade, não é fácil fazer essa prova, porque a arte está muito longe de ser um simples fenômeno da vida social. Entretanto, a sociologia tem realizado outras tarefas, tanto mais árduas ou difíceis, lutando contra preconceitos poderosíssimos. Se nos tem sido possível projetar um pouco de luz sobre a natureza e a evolução da religião, da moral e do direito, por que se nos apresentam sempre obscuras a vida e a natureza da arte?

Nossa resposta dirá que a ciência da arte se serve ainda e sempre de um método falso e não dispõe de materiais suficientes. Em todos os demais ramos da sociologia, tem-se aprendido a começar do princípio. Antes de tudo, estudam–se as formas simples dos fenômenos sociais, e só depois de se haver compreendido bem a natureza e as condições dessas formas simples é que se entra na explicação das formas mais complexas. A ciência das religiões não parte do estudo dos sistemas religiosos extremamente complexos e desenvolvidos dos povos civilizados, como o Budismo, Cristianismo e Islamismo, mas, ao contrário, da crença nos demônios e no animismo das tribos mais primitivas. É certo que houve uma época em que não se entendia desse modo e que, então, a ciência das religiões se achava tão confusa quanto hoje a ciência da arte. Depois, todas as disciplinas sociológicas buscaram, uma após outra, novos caminhos. Unicamente a ciência da arte percorre uma falsa rota. Todas as demais acabaram compreendendo o poderoso e indispensável auxílio que a etnografia pode prestar à ciência da civilização. Só a ciência da arte continua a menosprezar os toscos produtos dos povos primitivos, que a etnografia lhe oferece. Seu exclusivismo aristocrático, ao contrário de diminuir, tem aumentado no decurso do tempo. Dubos, em seus estudos comparados, tratou da arte dos mexicanos e peruanos. Herder colecionava os modestos produtos da poesia popular da Alemanha e do estrangeiro. Taine, ao contrário, que podia dispor de materiais infinitamente mais ricos que os seus predecessores, refere-se exclusivamente à arte dos povos civilizados da Europa, como se não existisse outra. Seu crítico, Hennequin, está inteiramente de acordo com ele nesse ponto. O título que Guyau deu a seu último livro, "L’art au point de vue sociologique", parece prometer uma mudança de método em nosso sentido (a sociologia ocupa-se no presente e acima de tudo das formas primitivas), mas a arte que Guyau estudou do ângulo sociológico é a arte francesa do século XIX. Sob esse aspecto, seu horizonte é ainda mais limitado que o de Taine. Podem ter algum valor geral as conclusões que se levantam sobre base tão arbitrariamente limitada? Que valor poderia ter uma teoria da reprodução que se cingisse ao estudo dessa função entre os mamíferos?

Talvez seja muito interessante para o grande público o domínio que até agora a ciência da arte cultivou. Mas, está longe de ser fértil para a ciência, pelo menos, no momento. Ninguém exigirá que a ciência da arte renuncie ao estudo de suas formas mais elevadas e ricas. Ao contrário, esse o seu objetivo mais alto. Entretanto, não sabemos voar. Somos obrigados a escalar as alturas passo a passo e a começar pela base. Uma ciência da arte que se ocupe dos cantos monótonos e dos adornos simples dos povos selvagens, não pode despertar à primeira vista o interesse geral que provocam os axiomas ousados e originais acerca da arte do presente e do futuro. Trata-se aqui de uma advertência que bem se pode dissimular não haver entendido, mas que se não deve esquecer inteiramente. Se Dubos e Herder, ao invés de empregarem, recomendaram o método etnológico, é excusável, porque sua

época não lhes podia fornecer os materiais imprescindíveis. Mas, já não é fácil desculpar–se ao sábio que em nosso tempo constrói teorias sobre a arte, ignorando que a arte européia não é a única existente, como arte em si mesma. Na maioria das grandes cidades existe um museu etnográfico. Uma literatura cada vez mais rica dá a conhecer a toda a gente os objetos dos povos distantes. E, apesar de tudo, a ciência da arte permanece a mesma. Se em nossos dias, pois, ela não toma conhecimento dos materiais etnográficos, é porque se obstina em querer esquecê-los.

A ciência da arte deve estender seus estudos a todos os povos e, antes de tudo, consagra r-se ao grupo que até agora tem mais descuidado. Todas as formas da arte têm em si mesmas igual direito à atenção da ciência. Nas condições atuais, porém, nem todas prometem o mesmo êxito. A ciência da arte não é no presente capaz de resolver o problema, cm seu mais difícil aspecto. Se quisermos compreender cien-ficamente um dia a arte dos povos civilizados, devemos penetrar antes de tudo na natureza e nas condições de arte dos nao civilizados. É preciso conhecer a tabuada de multiplicar, antes de resolver proble-mas de matemática superior. Por essas razoes, a primeira e mais urgente tarefa da ciência da arte consiste em estudar a arte dos povos primitivos.

Para poder realizar perfeitamente esse trabalho, a ciência precisa dirigir-se, não à história ou pré-história, mas à etnografia. A história não conhece povos primitivos. A concepção pueril, que coloca estes entre os gregos de Homero ou os germanos de Tácito, nem sequer é digna de refutação. Ao contrário, é muito natural julgar que a pré-história possa fornecer-nos os melhores informes sobre as formas primitivas da arte. No entanto, tudo o que ela pode dar-nos não passa de um conjunto de fragmentos mais ou menos importantes da arte pré-histórica. Na maioria, os adornos e outros produtos artísticos dessa época têm efetivamente um caráter que difere inteiramente do que se observa nos ornamentos dos tempos históricos. Mas, para dizer-se com certeza se realmente se trata aqui das formas primitivas que procuramos, seria preciso que conhecêssemos as respectivas civilizações. Formulamos perguntas, mas as respostas são incertas e em geral contraditórias, a tal ponto que depois de haver estudado uma dúzia das mais célebres obras sobre arte pré-histórica, encerramos a última com a triste convicção de que a pré–história é o romance da sociologia. Resta a etnografia, a que devemos dirigir-nos, desde que a historia e a pré-história não podem ministrar-nos os esclarecimentos desejados. E, com efeito, encontramos nos dados da etnografia tudo o que necessitamos. Mais adiante, veremos o que pode revelar-nos todo um grupo de povos primitivos atualmente existentes.

Contudo, confessaremos de início que o método etnológico está longe de ser perfeito. A primeira dificuldade que se apresenta a nossas pesquisas reside na reunião dos materiais. É verdade que se fizeram sérios esforços nesse sentido, durante os últimos anos. Mas ainda resta muito por fazer. Achamo-nos muito bem informados a propósito da poesia dos australianos, mas apenas conhecemos duas ou três canções dos indígenas das ilhas Andamã, e não há uma linha sequer, em toda a literatura etnográfica, sobre os cantos dos fueguinos. O conhecimento que possuímos da música primitiva ainda é mais precário. De nada nos servem as descrições gerais ou críticas. As notações de melodias primitivas que conhecemos são, em sua grande maioria, falsas, pois não têm os mesmos intervalos que a nossa, nem é possível substituir nosso sistema de notas pelo deles. Em compensação, é mais fácil efetuar pesquisas acerca das artes plásticas. Em nossos museus de etnografia encontram-se acumulados ricos ma-

teriais e, na falta de originais, há sempre reproduções. Todavia, nem sempre é fácil ver nas vitrinas dos museus os objetos que nos interessam. Nos armários que contêm coleções de objetos australianos, figuram quase sempre alguns bastões de madeira, cobertos de combinações de pontos e linhas. À primeira vista, é quase impossível distinguir esses desenhos dos que se vêem nas maças e nos escudos australianos e que de ordinário se chamam "ornamentos". Entretanto, há uma diferença essencial entre as duas espécies de desenhos. Há tempo, sabemos que os pretensos desenhos nos bastões não passam de uma espécie de escrita grosseira, marcas destinadas a recordar ao portador que leva o bastão os pontos essenciais de suas mensagens. Têm, pois, uma significação prática e não estética. Assim, nosso conhecimento evita que cometamos um erro. Mas. quantos não serão os casos em que se dá o contrário? Quem pode afirmar categoricamente que as figuras dos escudos australianos são realmente ornatos? Não seria também admissível acreditar que sejam marcas de propriedade ou brasões de tribos? Não seriam porventura símbolos religiosos? Tais questões se colocam quase todas as vezes que observamos um ornamento de um povo primitivo. Em bem poucos casos, podemos dar uma resposta. Tão incertos conhecimentos deveriam fornecer-nos uma base para toda a ciência da arte? Essa dificuldade poderia parecer de natureza a justificar todos quantos descuidaram inteiramente da arte primitiva. Sustentamos que é necessário estudar primeiramente a arte dos povos primitivos e somos obrigados a confessar, no início de nosso estudo, que não nos é mesmo possível conhecê-lo com certeza. Procedemos, pois, como certos psicólogos, que ensinam a seus discípulos que a vida da alma se compõe de sensações isoladas e que, em seguida, provam a impossibilidade da existência de tais sensações.

Entretanto, nossa causa ainda não se reduziu à condição de relacionar-se com a psicologia exata. Apesar dos numerosos casos duvidosos, há também muitos, cuja significação puramente estética não é admissível colocar-se em dúvida. Ademais, os casos duvi-(lusos longe estão de ser desprovidos de valor para a nossa ciência. As cabeças dos pássaros na proa dos barcos dos pa-puas talvez sejam antes de tudo símbolos religiosos, mas servem também de ornamento. Se a escolha de um ornamento é determinada pelo interesse religioso, a execução e a combinação com outros motivos diferentes ou análogos se ressen-tem, porém, de necessidades estéticas. Fácil é a demonstração de que as figuras traçadas nos escudos australianos são marcas de propriedade ou sinais de tribos, o que em nada as impede de serem ao mesmo tempo obras de arte. Ao contrário, seria inexplicável que não o fosse. Por que o homem primitivo que, tanto quanto o homem civilizado, possui necessidades estéticas, não haveria de tornar suas marcas e brasões tão agradáveis quanto possível à vista? Mas, talvez levasse em consideração motivos de outra ordem, que não a estética. Pode suceder, por exemplo, que o neozelandês dê às suas figuras de ornamento humanas as formas mal proporcionadas que conhecemos, não por falta de talento artístico suficientemente desenvolvido, mas porque imita um velho modelo em sua primitiva grosseria, acreditando talvez que a força mágica do objeto depende de sua forma convencional. Na arte religiosa de nossos próprios países encontramos numerosas analogias. É claro que nessas condições a execução das figuras não permite tirar uma conclusão exata do talento estético do neozelandês. Felizmente, porém, em nenhuma parte não cogitamos de um só grupo de motivos ornamentais. Podemos comparar as figuras humanas do maoris com as suas demais obras artísticas. Se essa comparação provar que, em "todas" as suas produções artísticas, o maori demonstra a mesma incapacidade para compreender e retratar as proporções naturais, podemos concluir com justiça acerca da natureza particular de seu talento artístico.

A ciência da arte encontra–se na mesma posição das demais ciências que se fundam na observação. Um fenômeno isolado não prova quase nada. Mas, a comparação de numerosos fatos diferentes entre si acaba por estabelecer a verdade. A maioria dos materiais etnológicos não possui somente caráter estético, mas é inconveniente que não seja exclusiva da ciência da arte. Toda ciência considera apenas um lado das coisas, e toda coisa possui vários lados.

Depois de haver resolvido, de modo geral, a questão de saber se um objeto possui caráter estético, o observador vê-se diante de uma segunda tarefa, que é a de estabelecer o caráter particular desse objeto. Entre os tesouros do Museu de Etnografia de Berlim encontram-se dois batentes de porta de madeira, que um negro haussa adornou com esculturas. Está fora de dúvida que esses curiosos relevos, que representam cenas da vida do Sudão, devem servir de ornamentos. Mas, que espécie particular de sentimento estético quis o escultor exprimir em sua obra? As grosseiras formas humanas e as caretas das figuras parecem admitir somente a resposta de que o artista quis produzir uma impressão cômica. Efetivamente, esse o juízo que a maioria dos europeus enunciaria, não somente sobre essa porta, mas também sobre todas as obras de escultura dos negros. Mas, esse juízo reproduz, com pequena diferença, a ingênua conclusão de uma criança que acredita estar um zangão encolerizado, somente porque zumbe. É incontestável que as obras desconjuntadas dos artistas negros nos dão uma impressão cômica. O que não prova que elas produzam ou devam produzir idêntica impressão nos compatriotas do artista. Achamos engraçada a figura grotesca que um menino de cinco anos desenha na sua lousa. Mas, nossa risada ofende profundamente o pequeno artista, porque a seus olhos não foi uma caricatura que ele desenhou, mas sim o retrato de um imponente soldado. Cremos que o escultor haussa experimentaria algo semelhante se pudesse ver a impressão que sua obra desperta em Berlim. Mas, não se faz mister realizar a experiência, pois não ignoramos que o europeu e o negro recebem impressões diferentes de uma mesma obra artística e que diferem tanto quanto o negro e o europeu entre si. O negro não só observa sua obra com outros olhos, mas também a completa — e importa não esquecê-lo — com outras noções. Qualquer obra de arte, considerada em si mesma, é um fragmento apenas. Para tornar-se completa necessita das idéias do observador. Só desse modo surge tudo o que o artista quis criar. Em todo o caso, a impressão de uma obra de arte é muito diferente para quem sabe completar e interpretar esse fragmento do que para quem deve limitar-se à impressão imediata do que tem diante de si. Seria, por exemplo, o caso de um japonês instruído, mas estranho à civilização européia, que tivesse diante de si o "Hun-dertguldenblatt", de Rem-brandt. No plano médio, de uma abóboda escura, ele veria um homem vestido com comprida túnica, a figura envolta em um clarão estranho que talvez lhe recordasse a auréola das estátuas do Buda. Diante do homem, uma mulher com uma criança de peito nos braços. À direita, grupos de pobres e enfermos que voltam seus olhos suplicantes e confiantes para o homem do centro. À esquerda, em plena luz, homens ricamente vestidos, cujos rostos exprimem a indiferença ou o desprezo. O conjunto é magistralmente desenhado e disposto com maravilhosa riqueza de luzes e sombras. Nosso japonês, compatriota dos Korin e dos Hokusai, sabe apreciar tais coisas. Experimenta um prazer estético ao contemplar o grupo e também o sentimento mais ou menos preciso de que a cena deve ter uma significação profunda. Mas, é tudo. Ele não pode ir além na interpretação do que vê. Seu sentimento não é, pois, tão vivo quanto o de um europeu que contemple o desenho de Rembrandt e que saiba que se trata de Jesus de Nazaré, curando um menino doente, o salvador dos oprimidos a quem se dirigem os pobres e infelizes e de quem se afastam os ricos e poderosos. Por que não pode o japonês apreciar nossa arte em seu justo valor? Pela mesma razão que impede o europeu de apreciar plenamente a arte japonesa. Um estrangeiro só vê numa obra de arte estrangeira o que lhe podem revelar os seus olhos. No máximo, sente a impressão imediata que experimenta o compatriota do autor. Mas, todas as impressões mediatas que possam sentir o autor ou um de seus compatriotas não existem para o estrangeiro. Essa a verdadeira razão do falso enunciado, segundo o qual a arte japonesa carece de fundo, apesar de toda a graça exterior da forma. Esse fundo existe, porém. Sc um crítico de arte europeu, que compreende a arte japonesa quase tão bem ou mal quanto a arte do Velho Mundo, não pode descobri-lo, a culpa é da arte japonesa?

Essas observações são válidas para o estudo da arte primitiva dos australianos, bosquimanos e esquimos. Pelo menos, não se pode alegar nenhuma razão pela qual seriam destituídas de valor. Quem é capaz de dizer–nos o que um australiano vê nas pinturas que Grey descobriu nas cavernas do Glenelg? Nelas só vemos figuras assaz grosseiras de homens e cangurus. Mas, que veriam os australianos na "Sixtina", de Rafael? Talvez as pinturas das cavernas tenham para os compatriotas do artista um sentido análogo ao que têm para nós os grandes olhos misteriosos do menino Jesus. Ignoramos esse sentido, como também não sabemos se essas pinturas encerram mesmo um sentido. Nessas condições, podemos pretender que conhecemos a arte dos australianos?

Até agora, limitamos nossos exemplos às artes plásticas. Mas, a poesia é tão fragmentária quanto a escultura e a pintura. E, em nenhuma parte o é mais do que entre os povos primitivos. "Em todas as suas canções", diz Man, referindo-se aos habitantes das ilhas An-damã, "boa parte da interpretação é trabalho da imaginação dos ouvintes". E cita como prova o exemplo seguinte:

"Aproxima-se o barco da margem;
quero ver teu belo filho varão,
o filho varão, que abate os adolescentes,
o belo filho varão.
Meu machado está enferrujado,
quero tingir meus lábios de sangue."

À primeira vista, essa canção é incompreensível ao europeu. E, por conseguinte, indiferente. Mas, produz forte impressão no mincopie, que conhece a sangrenta tradição a que a canção alude4. Os viajantes que recolheram as simples canções dos australianos são quase sempre obrigados a acrescentar ao texto um longo comentário, sem o qual seriam incompreensíveis ao leitor europeu. "Os esquimós narram suas legendas e contos, sob uma forma muito abreviada, porque os ouvintes são tidos como conhecedores das narrações"5.

Nessas condições, não é certamente fácil fazer uma idéia exata da importância que a arte tem para os povos primitivos. Mas, em princípio, não pode haver dúvida sobre o caminho que conduz ao fim. Custa pouco dizer que para compreender a arte de um povo é preciso conhecer-lhe toda a civilização. É sempre muito difícil, porém, seguir esse bom conselho e a dificuldade se tor-

(4) E. H. Man, "On the aboriginal inhabitants of the Andaman Islands". (" Jorun. Anthr. Inst.". XII, 168-169). — Também aí se encontra a referida tradição.

(5) Boas, "The Central Eskimo" ("Ann. Rep. of the Bur. of Ethnol.", 1884-85, 648). Cf. também Rink, "Tales and traditions of the Eskimo". 65

 

Fonte: Ed. Formar ltda.

RAFAEL SANZIO

 

RAFFAELLO (Raffaello Sanzio ou de Urbino) — Pintor, escultor e arquiteto italiano. Nasceu em Urbino, em 6 de abril de 1483 e faleceu em Roma, em 6 de abril de 1520. Filho de um hábil pintor, Giovani Santi ou Sanzio e Magia, filha de um negociante. Pouco se sabe de seus primeiros estudos e ensinamentos, mas só é certo que em 1495, seu tio materno Ciaria, a quem Rafael devia muita compreensão, pô-lo a estudar com o Perugino, dando-se a conhecer em 1504 com seu Desponsórios da Virgem, hoje admirado em Milão. Mais tarde mudou-se para Urbino e introduziu-se nas principais casas patrícias ampliando o horizonte de seu gênio; desta data são o Agnus Dei, a Virgem chamada Granduca, A Virgem de Jilguero, a Sagrada Família de Palmeira, a Sagrada Família e a Virgem de Pez que se conserva no museu de Madri. Podemos citar ainda: O Sepultamento, A Transfiguração, A Bela Jardineira, A Crucificação. Como arquiteto traçou muitos planos de palácios de Roma e de Florença, e é de se supor que também alguma vez manejasse o cinzel.

Criou assim uma escola imortal inspirada na Roma antiga e moderna, sem perder sua originalíssima personalidade. Suas pinturas murais decoram as salas do Vaticano e a comprida galeria coberta, que domina o pátio do S. Dâmaso.

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