Continued from: A ESTEPE (História de uma viagem) - Novela de Tchecov

II

Pelo
meio-dia a briska, deixando à direita a estrada larga, diminuiu a
marcha e acabou parando, Iegôruchka escutou um murmúrio doce, caricioso, e
sentiu sobre a face o contacto macio e fresco de um outro ar. De um montículo
natural, formado por grossas pedras disformes, um fino filete d’água descia por
um cano de grossa taquara ali colocado não se sabe por que benfeitor
desconhecido.

A água caía sobre a terra,
transparente e alegre, brilhava ao sol e borbulhava, como se julgando uma
torrente tumultuosa e possante; e fugia apressadamente não se sabe para onde.
Ao pé do montículo, o riacho alargava-se em pequenas poças. Os raios ardentes
e o solo escaldante, bebendo-o com avidez, roubavam-lhe um pouco da força, mas
um pouco mais longe ele se juntava provavelmente a algum outro ribeiro, tão
pequeno como ele mesmo, porque, percorridos cem passos do montículo, verdejava
um espesso e luxuriante tapete de espadanas, de onde, ao aproximar-se a briska,
levantaram voo com estrépito três narcejas.

Os
viajantes instalaram-se junto do córrego para descansar e dar de comer aos
animais. Kusmitchov, o padre Cristóforo e Iegôruchka assentaram-se à parca
sombra da carruagem e dos cavalos desatrelados, e, sobre um feltro estendido, puseram-se a almoçar.
O bom e jovial pensamento, imobilizado pelo calor no cérebro do padre
Cristóforo, depois que ele bebera sua água e comera um bom ovo cozido nas
cinzas, quis vir a lume. O padre encarou complacentemente Iegôruchka, moveu os
lábios, e começou: — Também eu, meu filho, meti-me nos estudos. Desde a mais
tenra idade, Deus me deu o uso da razão e do discernimento. Não havia ainda
completado quinze anos e já dizia meus versos. Compunha em latim com tanta
facilidade como em russo. Quando eu era cruciferário do bispo Cristóforo,
certa vez, depois da missa, lembro-me perfeitamente como se fosse agora, — era
a festa do piedoso tzar Alexandre Pavlovitch, o abençoado (2), e ele tirava as
vestes sacras no santuário, fitou-me com carinho e me perguntou: "Puer
boné, quam appellarisf
E respondi: "Christophorus sum/’ Me
então: "Ergo cogno-viinati sumus", ou em outras palavras, nós
temos o mesmo pronome. Depois ele perguntou, em latim: " De quem és filho
f" e eu lhe respondi, também em latim, que era filho do diácono
Siriiski, da aldeia de Lebedinnskoé. Vendo minha vivacidade e a clareza de
minhas respostas, Sua Eminência lançou-me a benção e disse: "Escreve a teu
pai que eu cuidarei de ti". Os asciprestes e os padres, que se achavam no
santuário, ouvindo essa conversa em latim, ficaram muito admirados e cada qual
me manifestou sua satisfação por um louvor. Não tinha ainda bigodes, meu
menino, e já lia latim, grego e francês.   Sabia filosofia, matemática,
história e todas as ciências. Deus me havia dado uma memória surpreendente.
Depois de ter lido uma coisa duas vezes, sabia-a de cor. Meus professores e
benfeitores se espantavam e prediziam que eu seria um homem muito sábio, um
luminar da Igreja. Tencionava ir para Kiev continuar meus estudos, mas meus
pais não abençoaram este meu plano: "Vais, disse meu pai, dedicar toda tua
vida ao estudo? Quando te veremos novamente entre nós?" Ao ouvir tais
palavras, abandonei os estudos e procurei uma paróquia. Naturalmente não me
tornei um sábio, mas não desobedeci aos meus pais; dei-lhes velhice tranqüila e
os enterrei com honra. A obediência tem melhor preço que o jejum e a oração.

(2)    Alexandre L

—    Aparentemente deves ter esquecido já todas as ciências,
reverendo? observou Kusmitchov.

—    Como não as esquecer ?… Já lá me foram, com a graça
de Deus, mais de oitenta anos… Recordo-me ainda alguma coisa de retórica e
de filosofia, mas esqueci-me por completo das línguas e das matemáticas… O
padre Cristóforo fechou os olhos, ref lectiu um pouco e balbuciou:

—    "Que é a substância?" — "A substância
é* tudo quanto existe por si próprio e se basta a si mesmo."

Sacudiu a cabeça e riu com humildade.

—    É o alimento espiritual!… disse ele. Na verdade, a
matéria alimenta o corpo e o sustento espiritual é que aviventa o espírito.

—    As ciências são as ciências, suspirou Kusmitchov; mas
se nós não agarrarmos Varlâmov, aí é que veremos o que é bom!

—  Um homem
não é uma agulha; nós o encontraremos. Ele deve andar por perto.

Por
sobre o tapete de espadanas voaram as três narcejas e, em seu grito, sentia-se
a inquietação e o aborrecimento de terem sido desalojadas. Os cavalos nitriam;
Denisska rodava em torno deles e, esforçando-se por fingir-se indiferente ao
que comiam os seus patrões, absorvia-se completamente na ex-terminação de
carrapatos e moscas, coladas aos ventres e aos dorsos dos baios. Friamente,
fazendo ouvir um brado especial de maldoso triunfo, batia em suas vítimas e,
quando não conseguia matá-las, gemia despeitado, acompanhando com a vista cada
feliz inseto que conseguira escapar à morte.

—  Denisska,
onde te meteste? vem comer! ordenou-lhe Kusmitchov, suspirando profundamente e
fazendo conhecer por isso que já estava satisfeito.

Denisska aproximou-se
sem atrevimento do feltro e escolheu cinco grandes pepinos amarelos; não ousava
apanhar os mais tenros e verdinhos. Apanhou também dois ovos cozidos, negros,
de casca quebrada, e então, timidamente, como se temesse que lhe batessem na
mão, tocou com o dedo num pequeno fígado.

—  Toma-o, toma-o! encorajou Kusmitchov.

Denisska
agarrou resolutamente o fígado e, tendo-se afastado, sentou-se no chão, com as
costas apoiadas na briska. Um segundo depois já o ouviam mastigar com
tal força que os próprios cavalos viraram-se e o olharam, inquietos.

Bem
alimentado, Kusmitchov retirou um saco do veículo e disse a Iegôruehka:

—  Vou dormir; presta atenção a que não me furtem
este saco debaixo da minha cabeça.

Padre
Cristóforo tirou a sotaina, o cinto e o cafetan, e Iegôruchka ficou
bastante surpreso quando o viu. Nunca teria imaginado que os padres usassem
calças, e o padre Cristóf oro tinha, uma legítima calça de grosso pano, metida
nas botas altas, e um curto jaleco de brim. Iegôruchka achou que nessa indumentária,
que não condizia com a sua dignidade, com seus longos cabelos e barba, ele
parecia Robinson Crusoé. Sem as roupas, o padre Cristóforo e Kusmitchov
deitaram-se à sombra, sob a briska, de rostos voltados um para o outro,
e fecharam os olhos; e Denisska, tendo acabado de mastigar, esticou-se no chão,
de barriga para o ar, e também cerrou os olhos.

—  Toma
conta para que não me levem embora os cavalos! disse a Iegôruchka.

E adormeceu igualmente.

Estabeleceu-se
o silêncio. Não se ouvia nada além dos cavalos que nitriam e mastigavam, e dos
dorminhocos que roncavam. Em algum recanto ali por perto lamentava-se um pavão
russo e, de vez em quando, escutava-se o grito das três narcejas, que vinham
ver se já tinham ido embora os incômodos visitantes. O riacho murmurava,
cantava, mas todos esses ruídos não interrompiam o repouso, não despertavam o
ar amodorrado, ao contrário, dispunham a natureza ao sono.

Iegôruchka,
abafado pelo calor que se fazia sentir mais forte principalmente agora depois
da refeição, correu até o tapete de espadanas e de lá examinou os arredores. Viu o que já havia visto até o meio-dia:
a planície, as colinas, o céu, a tonalidade vio-lácea da distância. Apenas as
colinas tinham vindo para mais perto e o moinho não existia mais: ficara
definitivamente para trás. Atrás da colina rochosa por onde deslizava o regato,
elevava-se uma outra mais chata e mais bojuda. Um pequeno povoado de umas cinco
ou seis isbas nascera ali. Junto das isbas não se via nem
pessoas, nem árvores, nem sombras, como se o vilarejo houvesse desprendido o
seu espírito no ar escaldante e se tivesse petrificado. Por desfastio, Iegôruchka
apanhou na erva um gafanhoto verde, chamado viola, colocou-o na palma da mão,
aproximou-o do ouvido e durante muito tempo pôs-se a escutá-lo. Quando a música
o aborreceu, perseguiu um enxame de borboletas amarelas, que vieram beber
água entre as espadanas.

Nem percebeu como voltara para tão perto da carruagem. O
tio e o padre Cristóforo dormiam profundamente. O sono deles devia durar sem
dúvida duas ou três horas, para dar tempo a que os cavalos descansassem. Como
matar todo este tempo e onde esconder-se do calor ?

Iegôruchka
abriu maquinalmente a boca sob o fi-lete que caía do tubo de taquara; a boca
tornou-se-lhe fresca e sentiu o gosto da taquara. A princípio bebeu com prazer,
depois bebeu por beber, até o momento em que um frio intenso lhe percorreu
o corpo, chegando-lhe a água a lhe molhar a camisa. Aproximou-se então da briska
e
se pôs a contemplar os companheiros adormecidos. A expressão do tio traduzia,
como dantes, a secura do homem de negócios. Profissionalmente fanático,
Kusmitchov, mesmo quando dormia, mesmo na igreja, quando se entoava o Igé
Khéruvimy,
pensava em suas transacçÕes, delas não se esquecendo um minuto
que fosse. No momento, sem dúvida, via em sonhos fardos de lã, carroças de
mercadorias, preços, Varlâmov… O padre Oristóforo, mansidão em pessoa,
inconseqüente e folgazão, não havia conhecido em toda a sua vida assunto tão
importante que lhe pudesse esmagar a alma, como um peso. Nos numerosos
empreendimentos que ele havia entabulado, não era o negócio em si mesmo que o
seduzia, e sim a movimentação e as relações com as pessoas que neles estavam
interessadas. E agora, exactamente, nesta viagem, a lã, os preços, Varlâmov
interessavam-lhe menos que a própria viagem, a parolagem pela estrada, o sono
em baixo da brisha, as refeições em horas incertas. A julgá-lo pela sua
fisionomia, revia ele provavelmente o bispo Oristóforo, seus sermões em latim,
sua mulher, seus sonhos com creme, e tudo o mais que Kusmitchov não podia
rever.

Enquanto
Iegôruchka contemplava os rostos dos que dormiam, suave canção ressoou de
súbito. Em algum lugar, um tanto afastado, cantava uma mulher. Onde ? De que
lado ? A canção melodiosa, trêmula e triste, como um soluço, e mal
perceptível ao ouvido, ecoava ora à esquerda, ora à direita, pelo espaço,
dentro da terra, como se sobre a estepe voe-jasse um espírito invisível, a
cantar, a cantar.

Iegôruchka
esquadrinhava tudo em seu derredor e não percebia donde pudesse vir tão
singular cantiga. De tanto ouvir, pareceu-lhe que era a erva que cantava. Aquela
erva semimorta, já aniquilada, em seu cântico sem palavras, parecia protestar
que ela não tinha culpa, e que o sol a havia crestado sem razão; afirmava que
queria viver cheia de paixão, que ela era jovem ainda e que teria sido muito
linda sem o calor e a sequidão. Ela não tinha culpa; entretanto, pedia
misericórdia e jurava que era desgraçadamente infeliz, mesquinha e digna de
lástima. ..

Iegôruchka
escutou um pouco e começou a lhe parecer que essa canção melancólica,
envolvente, tornava o ar mais abafadiço, mais quente, mais imóvel. .. Para
abafar o ruído da canção, saltando e batendo com os pés o mais que podia, ele
correu para as espadanas. Daí espiou em todas as direções e acabou por achar
aquela que cantava.

Perto da
última isba estava de pé uma mulher de saía curta, com pernas de garça,
compridas e magras, que peneirava qualquer coisa. De sua peneira caía
molemente sobre o cimo de um montículo uma farinha branca, A algumas toesas
achava-se um rapazinho em camisa, sem gorro. Como encantado pela canção, ele
nem se mexia e fitava alguma coisa cá em baixo, provavelmente a camisa vermelha
de Iegôruchka. A cantiga cessou. Iegôruchka voltou lentamente para o veículo e
para encher o tempo pôs-se a distrair-se com o filete d’água. A absorvente canção
recomeçou. Era a mesma mulher, de pernas compridas, que cantava por trás da
colina. De novo a tristeza dominou subitamente Iegôruchka. Abandonou o pequeno
tubo e ergueu os olhos para o alto.

O que viu era tão inesperado
que chegou a ter um pouco de medo. Por cima de sua cabeça, sobre uma das
grandes pedras disformes, estava de pé um rapazinho todo inchado, trajando
apenas uma camisa, com uma enorme barriga e pernas delgadas; era o mesmo que
pouco antes estava perto daquela mulher. Com estupor e medo, como se visse
diante de si uma alma do outro mundo, olhava sem pestanejar, de boca aberta, a
camisa vermelha de Iegôruchka e a briska. A cor berrante da camisa o
atraía, divertia-o, e a carruagem e aqueles que dormiam debaixo dela excitavam
sua curiosidade. Provavelmente não se dera conta de que maneira o vivo colorido
e a curiosidade o haviam arrastado da aldeola até ali e na certa agora se
espantava de sua afoiteza. Iegôruchka contemplou-o muito tempo e ele a Iegôruchka.
Ambos mantinham-se calados e experimentavam um certo constrangimento. Após
longo silêncio, Iegôruchka perguntou:

—  Como te chamas?

As faces
balofas do desconhecido mais balofas se tornaram; encostou-se à pedra,
arregalou os olhos, remexeu os lábios e gaguejou com a voz grossa:

—  Tito.

Os
meninos não disseram mais uma palavra. E assim calados, sem retirar os olhos de
Iegôruchka um só instante, Tito levantou uma perna, achou um ponto de apoio com
a planta do pé, e trepou sobre a pedra. De lá, aos recuos, encarando fixamente
Iegôruchka, como se temesse que o outro lhe desse um pontapé pela retaguarda,
subiu na pedra seguinte e assim continuou a trepar até que desapareceu por
completo atrás do cume da colina.

Depois
de o ter seguido com os olhos, Iegôruchka segurou os joelhos e baixou a
cabeça… Os raios ardentes queimavam-lhe a nuca, o pescoço e as costas. A
cantiga melancólica ou morria ou reavivava-se no ar parado e abafadiço. O tempo
arrastava-se interminavelmente, como se, também ele, tivesse sido
imobilizado… Tinha-se a impressão de que, desde a manhã, um século houvesse
decorrido. Não quereria Deus que Iegôruchka, o carro e os cavalos entrassem
em violento torpor e, petrificados como aquelas colinas, permanecessem por
séculos e séculos naquelas paragens?

Iegôruchka
levantou a cabeça e examinou o sítio diante dele com os olhos trêmulos. O
violáceo longínquo, imóvel até o presente, parecia afastar-se e, juntamente
com o céu, começou a fugir para alguma parte, mais distante ainda… Arrastava
consigo a erva pardacenta, o tapete de espadanas; e Iegôruchka também foi
levado com extraordinária rapidez na distância infinita. Uma força desconhecida
arrastava-o silenciosamente e, atrás dele, perseguindo-o, corriam o calor, a
obsedante canção. O menino inclinou a cabeça sobre os joelhos e semicerrou os
olhos.

Denisska
foi o primeiro a despertar. Alguma coisa, fora de dúvida, o havia picado,
porquanto se assentou rapidamente e pôs-se a cocar com força o ombro,
blasfemando:

— Maldito!
sem vergonha! por que não morres logo ?!

Depois dirigiu-se para o córrego, bebeu e
por muito tempo se banhou. Sua respiração ofegante e o marulho da água
arrancaram Iegôruchka de seu entorpecimento. Contemplou a silhueta molhada de
Denisska, coberta de gotículas e sardas, que o assemelhavam a mármore
salpintado, e lhe indagou:

—   
Partiremos logo?

—   
Logo, provavelmente.

Enxugou-se
na fralda da camisa e, assumindo um ar muito sério, pôs-se a saltar num só pé.

—  Vejamos,
disse ele, quem vai chegar primeiro
na moita de espadanas.

Iegôruchka
estava morrendo de calor e de vontade de dormir, mas mesmo assim meteu-se a
correr atrás dele.

Denisska
tinha quase vinte anos; trabalhava como cocheiro e pensava casar-se; mas nem
por isso deixava de ser uma criança. Gostava de soltar papagaios, perseguir
pombas, jogar amarelinha, e misturava-se sempre aos folguedos e disputas da
gente miúda… Mal os patrões saíam ou deitavam-se à sesta, ei-lo a saltar numa
perna só, a atirar pedras ou a fazer qualquer coisa no gênero. Ao ver o verdadeiro
entusiasmo com que se divertia com os garotos, toda pessoa grande sentia ganas
de lhe gritar: "ah, seu maroto!" — mas a meninada não via nada de
estranho em que esse grande cocheiro se imiscuísse em sua vida: que brinque
conosco, mas não nos venha bater!… Da mesma forma, jovens cãezitos não estranham
que um velho canzarrão ingênuo participe das suas brincadeiras. Denisska chegou
antes de Iegôruchka e isso o satisfez visivelmente. Piscou um olho e, para
mostrar que poderia transpor num só pé não importa que distância, propôs a Iegôruchka saltar
com ele, sem descansar, até à estrada e dali voltar ao carro. Iegôruchka,
resfolegante e mais morto do que vivo, declinou do convite.

De súbito
Denisska fez uma cara ainda mais séria, como não fazia nem mesmo quando
Kusmitchov lhe ralhava ou .o ameaçava com a bengala. Escutando atentamente,
deitou um joelho em terra e seu rosto revestiu-se da expressão de severidade e
medo de uma pessoa que ouve uma heresia. Marcou um ponto, moveu lentamente a
mão, curvada em concha, e deixou-se cair bruscamente ao comprido sobre a
terra, batendo na erva com a mão:

— Peguei! exclamou solenemente.

E,
reerguendo-se, aproximou dos olhos de Iegôruchka um grande gafanhoto verde.

Pensando
que era agradável ao inseto, Iegôruchka e Denisska acariciaram-lhe com os
dedos o amplo costado e tocaram de leve em suas antenas. Depois o cocheiro
pegou uma grande mosca com o ventre cheio de sangue e a ofereceu ao gafanhoto.
Este, com a mais perfeita indiferença, como se conhecesse Denisska há muito
tempo, movimentou suas enormes mandíbulas, semelhantes a viseiras de um casco,
e comeu o ventre da mosca. Soltaram-no. As dobras cor-de-rosa da parte inferior
de suas asas brilharam e, mergulhado na erva, recomeçou sua canção. Soltaram
também a mosca: ela abriu as asas e voou, sem ventre, para onde estavam os
cavalos.

Entretanto,
sob a briska, ressoou um profundo suspiro. Era Kusmitchov que acordava.
Ergueu vivamente a cabeça olhou ao longe com ares inquietos e, por esse olhar
que se deteve em Iegôruchka e Denisska, era evidente que, desde o despertar,
ele pen-sava em sua lã e em Varlâmov.

—  Padre
Cristóforo, levanta, já é tempo! disse, preocupado. Dormiu-se demais! Já
perdemos um negócio. Denisska, atrela!

O
padre Cristóforo despertou com o mesmo sorriso que tinha ao adormecer. O sono
amassara e vincara-lhe o rosto que parecia agora duas vezes mais pequeno.
Tendo-se lavado e vestido, retirou do bolso, sem pressa, um minúsculo breviário,
sebento, e, de Crente para o levante, começou a ler em meia-voz e a
persignar-se.

—    Padre Cristóforo, repreende Kusmitchov, é tempo de
partir. Os cavalos já estão prontos, e o referendo, meu Deus…

—    Daqui a pouco, daqui a pouco, murmurou o pa-dre Cristóforo.
Devo ler meus salmos. Ainda não ‘os li hoje.

—   
Poderás lê-los mais tarde.

—    Ivan Ivánovitch, há uma regra para cada dia; não posso
falhar.

—  Deus não te iria querer mal por
isso…
Durante um quarto de hora o padre Cristóforo

ficou imóvel, virado para o
levante, movendo os lábios. Kusmitchov olhava-o quase com raiva e batia
impacientemente os ombros. Aborrecia-se particularmente com a mania do padre
Cristóforo de, após cada Alleluia, retomando a respiração, persignar-se
às pressas e, em alta voz, obrigar os outros a persignar-se também e dizer:

—  Alleluia,
alleluia, alleluia!
Glória a Ti, meu Deus!

Sorriu por
fim, levantou os olhos para o céu e, enfiando o breviário no bolso, anunciou:

—  Finis!

Um minuto
depois a briska, seguia viagem. Como se recomeçasse o mesmo trajeto, os
viajantes viam as mesmíssimas coisas vistas antes do meio-dia. As colinas
esmaecendo no tom lilás da distância sem fim. As altas ervas, os grandes
calhaus aparecendo e desaparecendo. Os restolhos ceifados passando. E sempre as
mesmas gralhas, voando por cima da estepe, e um milhafre batendo majestosamente
as asas. O ar enchia-se cada vez mais de calor e calma. A dócil natureza
entorpecia-se no silêncio… Do vento, nem um sopro; nenhum ruído; nenhuma
nuvem.

Quando
afinal o sol começou a inclinar-se no ocidente, a estepe, as colinas e o ar
não puderam mais agüentar seu jugo, e, perdendo a paciência, cansados,
tentaram desembaraçar-se dele. Por detrás das colinas surgiu inopinadamente uma
nuvem cinzenta, toda encaracolada. Mediu a estepe, como se quisesse dizer:
"Eis-me aqui!" e recolheu-se de novo.

De
súbito, na atmosfera imóvel, algo se rompeu; o vento criou ânimo, e, com ruído,
assoviando, pôs-se a rodopiar na estepe. Imediatamente o capim e a alta
vegetação do ano anterior começaram a murmurar. O pó turbilhonou em espirais
sobre a estrada. Corria estepe a fora, carregando consigo palha, cigarras e
penas, elevando-se até o céu numa coluna negra que redemoinhava e velava o sol.
Em toda a extensão da estepe, esvoaçavam penachos de cardo.   Um deles,
surpreendido por um torvelinho, voou como um pássaro para o céu e,
transformado num ponto negro, desapareceu à vista. Depois dele, um segundo
fez-se ao vôo, em seguida um terceiro, e Iegôruchka viu dois se encontrarem no
ar azul e juntarem-se como num corpo a corpo.

Muito
próximo da estrada ergueu-se uma pequena abetarda. De asas e cauda brilhantes,
banhada de luz, parecia um peixe de estanho. Tremelicando no ar como um inseto,
ostentando seu colorido bizarro, a abetarda subiu em linha reta a uma grande
altura; depois, espantada sem dúvida com a nuvem de pó, projetou-se de lado e
por longo tempo ainda a viram resplandecer… Perturbado pelo furacão, e não
compreendendo o porquê de tanta agitação, um francolim saiu do mato. Voava contra
o vento, e não a favor como fazem todas as outras aves; as penas se lhe
eriçavam; parecia do tamanho de uma galinha e tinha uma expressão maligna e
arrogante. Apenas as gralhas, envelhecidas na estepe e acostumadas às suas
perturbações, voavam tranqüilamente sobre a vegetação ou, a nada prestando
atenção, indiferentes, esburacavam com seus grandes bicos a terra estorriçada.

Atrás
das colinas, um trovão reboou soturnamente… Soprou uma aragem fresca.
Denisska assoviou alegremente e fustigou os cavalos. O padre Cristó-foro e
Kusmitchov, segurando os chapéus, puseram-se a olhar para a colina… Que bom
se chovesse um pouco! Parecia-lhes que mais um pequeno arranco e a estepe
estaria vencida. Mas uma força invisível, esmagadora, apossou-se do vento e do
ar, abateu a poeira e, como se nada houvesse acontecido, voltou a reinar
tranqüilidade. A nuvem se escondeu; as colinas calcinadas assumiram suas formas
antigas; o ar se imobilizou com docilidade e apenas os pavões, assustados,
choravam em algum recanto e lastimavam a dura sorte… A noite desceu rápida.

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