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IV

Afinal
de contas quem é esse inadiável e misterioso Varlâmov, de quem se fala tanto,
que Salomão despreza e de quem a própria condessa precisa ?

Sentado
à boleia ao lado de Denisska, Iegôruchka, meio adormecido, pensava exactamente
nesse homem. Nunca o tinha, visto, mas ouvira falar nele com freqüência, e
via-o muitas vezes em imaginação. Sabia que Valiâmov possuía muitas dezenas de milhares de jeiras de terra, cerca de cem mil carneiros e muito dinheiro. De sua
vida e suas ocupações, Iegôruchka só sabia que ele "rodava sempre por aquelas
paragens" e que era sempre procurado.

Iegôruchka,
em sua casa, igualmente muito ouvia falar nessa condessa. Dranítski. Também ela
possuía muitas dezenas de milhares de dessiatines (8), inúmeros
carneiros, um háras e muito dinheiro, mas "não rodava" e vivia no seu
rico domínio, do qual os conhecidos de Ivan Ivánovitch — que tinham ido mais de
uma vez a negócio à casa da condessa — contavam muitas maravilhas. Dizia-se
que no seu salão havia retratos de todos os reis da Polônia e um monumental
relógio em forma de rochedo. Sobre o rochedo, empinava um cavalo de ouro com
os olhos de diamantes. O cavalo estava montado por um cavaleiro
também de ouro que, toda vez que o relógio dava horas, brandia seu sabre à
direita e à esquerda. Contava-se também que uma ou duas vezes no ano a condessa
dava um baile para o qual eram convidados todos os gentis-homens e funcionários
do Groverno. O próprio Varlâmov comparecia. Todos os convidados bebiam chá
feito em samovares de prata; comiam coisas extraordinárias; servia-se por
exemplo, no Natal, framboesas e morangos. E dançava-se ao som de uma orquestra
que tocava dia e noite…

(8)    Medula russa de superfície.

—  Como é
bela! pensava Iegôruchka, lembrando-se de seu rosto e de seu sorriso.

Provavelmente
Kusmitchov também pensava na condessa, porque, quando a brisha havia
andado duas ver st as, disse:

—    Esse Casimir Mikhailovitch a explora lindamente ! Há
três anos, quando lhe comprei lã — bem te lembras disso — ele ganhou só comigo
três mil rublos.

—    De um liaque (9) não se pode esperar outra
coisa, aparteou o padre Cristóforo.

—    E ela pouco se incomoda. Como se diz, ela é moça e
tola; uma cabecinha de vento.

Iegôruchka
só queria pensar em Varlâmov e na condessa, principalmente nesta última. Seu
cérebro sonolento recusava-se aos pensamentos ordinários, resistia-lhes e não
retinha senão visões feéricas, fantásticas. Este tipo de visões tem uma
vantagem toda peculiar: sem a menor dificuldade elas se formam no cérebro
e basta uma simples sacudidela da cabeça para que desapareçam absolutamente.

De
resto, tudo quanto o rodeava não predispunha às idéias triviais. À direita, as
colinas enchiam-se cada vez de mais densas sombras e escondiam, parecia, algo
desconhecido e terrível. À esquerda, todo o céu sobre o horizonte estava
coberto de um halo rubro, e difícil era perceber-se se lavrava um incêndio em
alguma parte ou se a lua se preparava para irromper. A distância mostrava-se
como em pleno dia, mas seu colorido lilás claro, obscurecido pelo lusco-fusco
da noite, já havia desaparecido, e toda a estepe se envolvia no sereno como os
filhos de Moissêi Moissêivitch debaixo da colcha suja.

(9)    Polaco.

Durante as
noites de julho, já ao cair da tarde, as codornizes e os francolins não gritam
mais. Os rouxinóis não cantam mais nas quebradas. Não se sente mais o perfume
das flores, mas assim mesmo a estepe é bela e cheia de vida. Mal se deita o
sol e o crepúsculo invade a terra, fica esquecida a agonia do dia; fica tudo
esquecido e a estepe respira alegremente a plenos pulmões. É como se a erva,
não vendo na obscuridade a sua velhice, deixasse escapar uma palpitação jovem e
alegre, impossível durante o dia. Guizos, estalos, assovios, silvos, rangidos,
os baixos, os tenores, os sopranos da estepe, tudo se mistura numa vibração
ininterrupta, monótona, sob cujo ruído é bom a gente se concentrar e
entregar-se à melancolia. Esse imenso e uniforme murmúrio adormenta como uma berceuse.
Roda-se e sente-se a vinda do sono; mas não se sabe donde vem esse grito brusco
e inquieto de um pássaro que não dorme, ou um som impreciso, estranho, no
gênero de um ah, ah! semelhante a uma voz. E a vontade de dormir fecha-nos
as pálpebras. Algumas vezes passa-se em frente de um barranco revestido de
sarças e ouve-se um pássaro que os habitantes das estepes chamam de
"dorminhoco" e que parece gritar ao caminhante: "eu durmo! eu
durmo! eu durmo!" (spliu! spliu! spliu!); um outro ri, ou chora
histèricamente: é a coruja. Por que gritam e quem os escuta, nessa planície?
Sabe-o Deus! Mas no seu grito há muito de melancolia e de queixa… Sente-se o
odor do feno, da erva ressequida, das flores tardias, e esse odor é pesado,
penetrante e de um dulçor insípido.

Através
do nevoeiro, vê-se tudo, mas é difícil discernir as cores e os contornos das
coisas; tudo parece diferente do que é na realidade. Caminha-se e de repente
vê-se diante, mesmo na estrada, uma silhueta semelhante a um monge. O monge
não se mexe, espera, tendo alguma coisa nas mãos… Será um ladrão? A figura
aproxima-se, cresce; agora está perto da carruagem. B então se vê que não é um
homem, mas um arbusto isolado ou uma pedra enorme. Sombras parecidas, imóveis,
esperando não se sabe que, erguem-se sobre as colinas, escondem-se atrás dos
túmulos, surgem entre a alta vegetação, e todas assemelham-se a seres humanos e
inspiram desconfiança.

Quando a
lua se levanta, torna-se pálida a noite e as sombras se acentuam. O ar é
transparente, fresco, agradável.  Enxerga-se bem o caminho, pode-se distinguir
perto da estrada as hastes das gramíneas. Vêem-se a perder de vista crânios e
pedras. As silhuetas suspeitas, parecendo monges, desenham-se sobre o fundo
claro da noite, mais negras e mais sombrias. Cada vez mais freqüente, no meio
do monótono cricrilar dos insetos, que perturba a atmosfera imóvel, faz-se
ouvir o ah, ah! maravilhado e ressoa o grito de um pássaro despertado ou
que sonha. Amplas sombras deslizam pela planície como as nuvens no céu e, em
sua inverossímil distância, se as contemplamos muito tempo, elevam-se quais
imagens vaporosas e fantasmagóricas a se encaixarem umas nas outras. . . 
Tem-se um pouco de medo.

Contemplando-se
o céu verde pálido, semeado de estrelas, onde não há uma só nuvem, sequer uma
mancha, compreende-se por que o ar tépido está imóvel, por que a natureza está
tão dolente e receosa de se mexer: tem medo e não quer perder um segundo de
vida. Não se pode julgar a profundeza infinita e a imensidade do céu senão no
mar ou na estepe, durante a noite, quando a lua brilha; é tremendo, 6 belo, é
acariciante; inspira languidez e atrai; e sua carícia transtorna-nos a cabeça.

Caminha-se
uma hora, duas horas… Encontra-se um velho túmulo misterioso ou uma mulher de
pedra, colocada lá não se sabe por quem, nem quando ; um pássaro noturno voa
silenciosamente ao rés da terra e pouco a pouco as lendas das estepes, as
histórias dos que se cruzam conosco, os contos de velhas criadas nascidas nas
estepes, e tudo o mais que recolhemos e guardamos na memória nos volta ao
espírito. E então o trissado dos insetos, os vultos suspeitos e os túmulos, o azul do céu, o luar, o vôo
dos pássaros noturnos, tudo o que se vê e se percebe começa a nos parecer o
triunfo da beleza, da juventude, o apogeu da força, e nos dá uma sede
insopitada de viver. A alma vibra em uníssono com o nosso país, selvagem e
belo, e quereríamos até planar sobre a estepe como faz a ave da noite. No
triunfo da sua beleza, na plenitude da felicidade, sente-se o esforço e a
ansiedade, como se a estepe compreendesse que ela está sozinha, que suas
riquezas e o que ela inspira se perdem no mundo, inúteis para todos, e por
ninguém celebrados. E, através do seu jubiloso transbordamento, escuta-se o seu
implorar sem esperança: um cantor! um cantor!

Sob
a influência da noite, Iegôruchka estava triste. Pensava que, em um tempo
assim, melhor lhe seria não ir para o liceu mas ficar em casa para jantar e ir
depois se meter na cama. Sonhava que voltava para casa, não naquela briska cambaia
mas na caleça da condessa. Na caleça reclina-se a gente com prazer e fica-se à
vontade e à larga. E nela há — isto é o principal — nela há o que é preciso
para a gente deitar a cabeça e se refestelar. Iegôruchka acha-se sentado ao
lado da condessa e dormita, as mãos e a cabeça em seus joelhos; como a gente se
sente bem, como é bom! Pouco a pouco ele adormece e a caleça de molas ronrona
suavemente sobre a estrada poeirenta, balançando e fugindo com uma rapidez
espantosa… Antes de adormecer, repentinamente, Iegôruchka ergue a cabeça e,
depois de haver contemplado a noite silenciosa e escutado a sua orquestração,
sorri e repousa de novo a cabeça nos joelhos da acariciante e linda dama. Que
viagem magnífica ! A posta de Moissêi Moissêivitch, o moinho; a colina e o
riacho já se foram há muito tempo. O olmo lá está sobre a colina. Apenas fica
ele distanciado e já se vêem as olarias com suas nuvens de fumaça negra, o
cemitério onde dorme a avozinha, as forjas, a cadeia e enfim… o lar.

Mamãe
acorre com a cozinheira Liudmila. Faz-lhe uma acolhida feliz e lhe pergunta
logo: "Quem é esta senhora?" Iegôruchka responde que é a condessa em
cujo salão há um relógio com um cavaleiro de ouro. Para lhe agradecer o tê-lo
levado à sua casa, lança-se ao pescoço da condessa e lhe beija os olhos, a
testa, as têmporas.

—    E foste ajuizado durante a viagem? indaga a mamãe.

—    Sim, responde a condessa por ele, dormiu o tempo todo.

Depois
de ligeira palestra, a condessa Dranítski despede-se, pois quer partir; mas
mamãe não a deixa voltar à caleça e pede-lhe que pernoite em nossa casa. A
condessa aquiesce e Liudmila corre a lhe preparar uma cama no canapé do salão.
Iegôruchka dirige-se para o seu quarto de criança e, sem se despir, joga-se no
leito para dormir, dormir, dormir. Sente, porém, que alguma coisa fria lhe
roça a coxa: está no bolso, é o pão que lhe dera a judia… Iegôruchka dorme a
bom dormir, sorrindo de felicidade. Mas, eis que vozes fortes e agudas soam em
seus ouvidos.

—   
Prrrr!...  Bom dia, Pantelei! Vai tudo bem?

—   
Graças a Deus, Ivan Ivánovitch.

—   
Viste Varlâmov?

—  Não, não vi.

Iegôruchka
desperta e abre os olhos. O carro parou e, à direita, pela estrada, estende-se
uma fila de carretas, num vaivém constante de pessoas. Todos os veículos,
carregados de grandes fardos de lã, parecem enormes e inchados, tornando os
cavalos pequeninos, de pernas minúsculas.

—    Agora, exclamou Kusmitchov, vamos para a casa do bebedor
de leite!
Adeus, irmãos! Deus os acompanhe!

—    Até à vista, Ivan Ivánovitch, responderam numerosas
vozes.

—    Escutem, rapazes, recomendou Kusmitchov; fiquem com o
menino. Por que diabo havemos de o levar eternamente conosco ? Pantelei,
coloca-o sobre um dos teus fardos e leva-o sem maior pressa. Nós logo o
apanharemos de novo.  Vai, Iegôr.   Vai!,..

Iegôruchka
desceu do carro. Vários braços o receberam, levantaram-no bem alto e ele se
achou em cima de alguma coisa mole, grande, úmida, avermelhada. Parecia-lhe,
então, que o céu lhe ficava mais próximo, e a terra mais longe.

—  Eh! bradou-lhe
Denisska de algum lugar lá em baixo, apanha teu capote !

O capote e um embrulho
caíram perto de Iegôruchka. Não querendo pensar em mais nada, botou o embrulho
embaixo da cabeça, cobriu-se com o capote e, estendendo o mais que pôde as
pernas, transido de frio, pôs-se a rir.

"Se pudesse dormir…" pensava
ele.

—  Eh, diabos! Sejam
delicados com ele! preveniu lá de baixo a voz de Denisska.

—  Adeus,
meus amigos, Deus os acompanhe! exclamou Kusmitchov. Ponho toda a minha
confiança em vocês!

—  Podes ficar tranqüilo, Ivan Ivánovitch!
Denisska tocou os cavalos. A carruagem gemeu e se pôs a rodar, não pela estrada
mas um pouco ao lado. Por dois minutos houve tranqüilidade absoluta, como se
todo o comboio estivesse adormecido; ouvia-se somente, lá atrás, o ranger do
balde, pendurado à traseira da briska.

Na frente do comboio alguém gritou:

—  Kiriúchka, toca!

A
primeira carroça chiou; depois a segunda; a terceira. .. Iegôruchka sentiu que
a carroça em cima da qual ia deitado, oscilava e chiava também ela. O comboio
partia. Com a mão segurou mais fortemente a corda que amarrava o fardo, riu-se
ainda satisfeito, arrumou o pão dentro do bolso e começou a cochilar, como se
estivesse na sua cama, em casa…

Quando
acordou, o sol raiava. Um túmulo o escondia no horizonte. Mas o sol esforçava-se
por espalhar a luz pelo mundo, lançando com denodo seus raios por todos os
lados e pulverizando de ouro o espaço. Pareceu a Iegôruchka que o sol não
estava em seu lugar, porque ontem se havia levantado atrás de suas costas e
hoje estava mais à esquerda.

E
toda a região não parecia a mesma de ontem; não existiam mais colinas e, por
onde se olhasse, esticava-se ao infinito uma planície amarelada, triste. Oá e
lá, surgiam pequenos túmulos e voejavam gra-lhas. A. distância, para a frente,
faziam pequenas manchas brancas os campanários, e as isbas de algum povoado.
Por ser domingo, os Pequenos Russos ficavam em casa. Cozinhavam, faziam pastéis. Percebia-se isto pela fumarada que escapava de todas as
chaminés e flutuava sobre a aldeia como uma cinza azul e transparente. No
espaço que mediava entre as isbas e a igreja corria um regato e, atrás
dele, a distância se velava. Nada porém tomava aspectos tão diferentes como a
estrada.

Alguma
coisa, extraordinariamente larga, gigantesca, afoita, se estendia pela estepe
à maneira de caminho. Era uma faixa cinzenta, bem aplainada, coberta de poeira
como todas as estradas, mas de uma largura de várias dezenas de toesas. O seu
tamanho excitou a perplexidade de Iegôruchka, chegando a levá-lo às idéias
fantásticas dos contos de fadas. Quem palmilhava essa estrada ? Quem
precisava de imensidade tal? Era incompreensível e esquisito. Podia-se
realmente pensar que homens enormes, caminhando a passos largos, do tipo de
Ilya de Murome e Solovei, o salteador (10), não tinham, nem esses mesmos,
desaparecido ainda da Rússia e que seus grandes cavalos, seus lendários
campeões não haviam morrido.

Iegôruchka,
depois de observar a estrada, imaginou seis grandes carros, muito altos,
avançando em linha, iguais aos que vira nas gravuras de sua História Sagrada.
Atrelados aos carros, seis cavalos selvagens e furiosos faziam subir das rodas
até o céu nuvens de pó…  Os condutores eram homens que só em sonho se podiam
ver. Como ficariam bem tais personagens aqui na estepe, nesta estrada, se realmente
existissem…

à direita do caminho, em todo
o seu comprimento, erguem-se postes telegráficos com dois fios; tornando-se
cada vez mais pequenos, sumiam por detrás das isbas e da vegetação;
depois apareciam de novo na distância violácea, como minúsculos bastões, semelhantes
a lápis fincados na terra. Sobre os fios estavam pousados abutres, busardos,
corvos, indiferentes à passagem do comboio.

(10)    Herói* das lendas russas.

Iegôruchka
ia deitado na última carreta e podia ver todo o grupo. Eram cerca de vinte e,
para três carretas, havia um carroceiro.

Perto
da última, em que ia Iegôruchka, caminhava um velho de barba grisalha, tão
magro e miúdo como o padre Cristóioro, mas de rosto severo e pensativo, tisnado
pelo sol. Talvez esse velho não fosse nem severo nem pensativo, mas seus olhos
vermelhos e o nariz longo e pontudo davam às suas feições essa expressão
austera e seearrona que se vê sempre nas pessoas acostumadas a pensar em coisas
sérias e a viver solitárias. Como o padre Cristóioro, usava chapéu de copa alta
e amplas abas, não como o dos cavalheiros elegantes, mas de feltro marrom, parecendo
antes um cone de tronco do que um chapéu de forma. Tinha os pés mis.
Provavelmente por hábito adquirido nos frígidos invernos, quando lhe sucedia
muitas vezes tiritar ao pé do comboio, dava palmadas nos quadris e batia os
pés.

Tendo
visto que Iegôruchka estava acordado, olhou-o e disse, sacudindo-se como se
caísse neve:

—    Então acordaste, meu rapaz?…
És filho de Ivan Ivánovitch ?

—   
Não, seu sobrinho…

—    Estás vendo, tirei as botas e pulo descalço; tenho os
pés machucados, gelados, e sem botas a gente fica mais à vontade… mais à
vontade, meu rapaz… Ah, és sobrinho dele? É um homem de bem… Que Deus lhe
dê boa saúde!.., Falo de Ivan Ivánovitch… Ele foi à casa do bebedor de
leite…
Oh, Senhor, tem piedade de nós !

O
velho falava como se fizesse muito frio, com pausas, quase sem abrir a boca.
Pronunciava mal as labiais, hesitante, como se os lábios se lhe gelassem.
Dirigindo-se a Iegôruchka, não sorriu uma única vez e parecia rude.

Duas
carroças mais distante, caminhava um homem de chicote na mão, vestindo um
comprido sobretudo cor de ferrugem e botas de canos curtos e coberto com uma
boina. Parecia ter quarenta anos. Quando se virou, Iegôruchka viu um rosto
comprido, vermelho, de barba de bode, grisalha, com uma ver-ruga esponjosa
sobre o olho direito. Além desta ver-ruga, muito feia, havia um outro sinal
particular que saltava imediatamente à vista: segurava o chicote com a mão
esquerda e balançava a direita como se dirigisse um coro invisível. Metia por
vezes o chicote debaixo do braço e então dirigia o coro com ambas as mãos.

O
condutor que se lhe seguia apresentava uma comprida silhueta rígida, com os ombros
muito caídos e costas chatas como uma tábua. Mantinha-se erecto, como se
fizesse ginástica ou tivesse engulido uma vara. Seus braços não se balançavam e
sim pendiam rijos como dois cajados, e ele caminhava como se fosse de madeira,
à maneira de soldadinhos infantis, mal curvando os joelhos e esforçando-se por
dar grandes passadas. Enquanto o velho ou o homem da verruga davam dois passos,
este não tinha tempo senão de dar um; por causa disto parecia andar mais
lentamente que os outros e ficar para trás… Tinha o rosto enrolado numa tira
de pano e usava um chapéu parecido com um capuz de monge. Vestia jaleco da
Pequena Rússia, todo remendado, e amplo calção azulão, buf ante, não metido nas
botas. Calçava sandálias de casca de tília.

Iegôruchka
não examinou os que iam mais adiante. Deitou-se sobre o ventre, fez um buraquinho
no fardo e pôs-se a enrolar os fios de lã e a desenrolá-los em seguida. O velho que marchava em baixo, ao seu lado, mostrava-se menos rebarbativo e sério do
que era de esperar-se pela sua fisionomia; uma vez entabulada a conversa, não a
abandonava mais.

—   
Onde vaiai quis saber, batendo
sempre os pés.

—   
Aprender, respondeu Iegôruchka.

—    Aprender ! Ah ! que a Rainha dos céus te ajude! Um
espírito é bom, mas dois são muito melhor … Deus dá a alguns um só espírito,
a outros dois, e ainda a outros até três… Sim, até três, é verdade… O
espírito que nos deu nossa mãe, um segundo pela instrução, e um terceiro por
uma vida feliz… E tu vês, irmãozinho, é bom quando um homem tem três espíritos.
Esse não somente vive bem, mas lhe é mais fácil morrer. Morrer!… Todos nós
morremos, sem escapatória!

O
velho esfregou as mãos nas fontes, espiou Iegôruchka com os olhos vermelhos e
prosseguiu:

—    Máximo Nicoláivitch, o barine (11) de Slavianoserbsk,
o ano passado também levou o filho para aprender. Não sei o que ele sabe de
ciências, mas era um bom rapaz… Que Deus lhe dê saúde! Bons professores! Sim,
sim; levou-o também para aprender! Em Slavianoserbsk não há nenhum estabelecimento
onde se possa aprender; não há. Mas é uma bonita cidade… Há uma escola
primária para gente de condição humilde, mas uma escola para grandes estudos
não há… Não há, não, é verdade… Como te chamas ?

—   
Iegôruchka.

—     
Queres dizer Iégory… O santo mártir Iégory, o glorioso, é
festejado a 23 de abril (12). O nome do meu santo é Pantelei… Pantelei
Zakharóvitch Khólodov, aí está meu nome. Somos Khólodov… Sou natural de Time,
província de Kursk; não ouvis-te falar nela ? Meus irmãos aprenderam
ofícios e trabalham todos. Eu sou mujique (13). Fiz-me mujique. Faz
sete anos, fui à aldeia e à cidade… Estive em Time, digo-lhe eu. Então, Deus
louvado! vi toda a família com vida e bem disposta; hoje já não sei… Talvez
que algum esteja morto… Já devem estar em época de morrer, porque todos são
velhos; há mais velhos do que eu. A morte não é nada; é um benefício; só que
não se deve morrer sem arrependimento. Não há mal maior do que uma morte repentina.
A morte repentina é a alegria do diabo. E se queres morrer arrependido, para
entrares no palácio de Deus sem contrariedade, reza a Santa Bárbara, a Grande
Mártir. Ela intercede por ti… sim senhor, é verdade… Porque Deus lhe
reservou no céu essa função. Desta forma, todos têm o direito de se dirigir a
ela, pedindo-lhe o arrependimento para a hora final.

(11)      
Proprietário de terras, homem
abastado.

(12)      
São Jorge.

(13)      
Camponês.

Pantelei
resmungava e, na certa, pouco se preocupava com que Iegôruchka o escutasse ou
não. Falava indolentemente, sempre na mesma nota, nem alteando nem abaixando a
voz; mas, em pouco tempo, falava numa multidão de coisas. Sua lengalenga
compunha-se de retalhos mal ligados entre si e absolutamente desinteressantes
para Iegôruchka. Pantelei falava apenas para verificar em voz alta os
pensamentos que acumulara durante uma noite de silêncio: estavam todos em ordem
?

Tendo
acabado de falar sobre o arrependimento, pôs-se a falar de Máximo Nicoláivitch,
de Slavianoserbsk.

— Sim, voltando ao que dizia, ele levou o
pirralho.

Um dos
carreiros, que caminhava muito à frente, deixou vivamente seu posto, correu
para a margem da estrada e começou a dar com o chicote no chão. Era um homem
grande, de ombros largos, por volta dos trinta anos, louro, cabelos crespos, de
porte forte e formoso. Pelo movimento dos ombros e do chicote, pelo ardor que
denotava sua atitude, batia em algum ser vivo. Um outro carreiro acorreu,
pequeno e troncudo, com espessa barba negra, trajando um coleto e camisa de
fraldas soltas, sem cinto. Soltou uma risada, de baixo, tossiu e exclamou:

—  Irmãos, Dimov matou uma serpente!
Palavra!
Há criaturas que podemos julgar por sua voz e por seu riso. O homenzinho de
barba negra era justamente um desses homens; sentia-se em sua voz e na sua
risada uma estupidez sem limites. Tendo acabado de distribuir chicotadas, Dimov
levantou do solo com a ponta do chicote alguma coisa semelhante a uma corda e
jogou-a diante de si.

—  Não é
uma serpente, mas uma cobra, gritou alguém (14).

(14)    Faz-se em
algumas  regiões da Rússia diferença entre serpentes (venenosas)  e cobras  
(sem veneno).

O homem que
parecia de madeira, de cara amarrada, encaminhou-se rapidamente para o réptil,
olhou-o e bateu as mãos calejadas.

—    Criminoso! bradou em voz surda e queixosa. Por que
mataste uma cobra? Maldito, que te fez ela? Ele matou uma cobra! E se te
fizessem o mesmo ?

—    É verdade, não se deve matar uma cobra… murmurou
tranqüilamente Pantelei. Não é uma víbora. Tem o aspecto de uma serpente, mas
é um animal manso, inofensivo. Gostam do homem… as cobras !

Dimov
e o homem de barba negra sentiram-se envergonhados, pois, tendo-se posto a rir
muito alto, sem responder aos protestos, foram reunir-se aos que seguiam com as
carretas.  Quando o último veículo alcançou o lugar onde estava a cobra, o
homem de cara amarrada, que permanecera ao pé dela, voltou-se para Pantelei e
perguntou em voz irritada:

—      Avôzinho, por que foi que ele
matou esta cobrai
Seus olhos, observou então Iegôruchka, eram pequenos e ternos; o rosto,
cinzento e doentio, parecia igualmente terno.   O queixo estava vermelho e parecia
seriamente inchado.

—    Avô, por que foi que ele matou a cobra? repetiu,
caminhando ao lado de Pantelei.

—    É um homem estúpido, respondeu o velho; não sabe o que
fazer com as mãos; eis por que a matou. Não se deve matar cobras… É
verdade!… Dimov é um monstro, todos sabem: mata tudo que lhe cair nas mãos. E
Kiriúchka não protegeu a cobra; devia defendê-la, mas não fez senão rir. Não te
aborreças, Vássia… Para que aborrecer-te ? Eles a mataram, que Deus os
perdoe!… Dimov é um monstro e Kiriúchka é um ignorante. São pessoas
estúpidas que não compreendem nada; Deus os perdoe!… Emeliano, esse, não
matará nunca sem necessidade… nunca, é verdade!… É que ele é um homem
instruído ; os outros são umas bestas.

O
carroceiro de queixo vermelho e verruga esponjosa, que dirigia o coro
invisível, escutou seu nome, parou e, tendo esperado que Pantelei e Vássia chegassem
perto dele, pôs-se a caminhar ao seu lado.

—  De
quem estão a falar ? indagou com voz rouca,
estrangulada.


Vássia está danado, disse Pantelei; diz-lhe coisas para o acalmar,
compreendes…   Ah! Meus pobres pés doentes, gelados! A me doerem precisamente
no domingo, dia da festa de Deus!

—   
É porque andas, observou Vássia.

—    Não, meu rapaz, não… Não é por isto. Quando ando,
até que melhoro; quando me deito e me aqueço, é uma agonia. O caminhar dá-me
alívio.

Emeliano
colocou-se entre Pantelei e Vássia e agitou a mão, como se fosse preparar-se
para cantar. Pouco depois abaixou a mão e suspirou desesperadamente.

—  Não
tenho mais voz! queixou-se. É uma verdadeira desgraça! Toda a noite e esta
manhã sonhei com o "Senhor, tem piedade de nós!" (Gospodi
pomiluy),
em três tempos, que cantamos no casamento de Marinóvski; tenho-o
na cabeça e na garganta; parece-me que vou cantá-lo; mas não consigo… Falta voz.

Calou-se um
minuto, pensando em alguma coisa, e prosseguiu:

—    Durante quinze anos fui cantor de igreja. Em toda a
usina de Lugansk, ninguém tinha voz igual à minha. Mas, por artes do diabo, fui
tomar um banho no Donetz, há três anos, e desde esse tempo nunca mais pude dar
uma nota sequer. Apanhei um resfriado de garganta. E para mim, ficar sem voz é
como, para um operário, perder os braços…

—   
Pura verdade, concordou Pantelei.

—  Considero-me um homem perdido, eis
tudo.
Neste momento, Vássia inesperadamente deu com Iegôruchka. Seus olhos umedeceram
e tornaram-se ainda mais pequenos.

—  O patrãozinho vem conosco!
disse — e cobriu a boca com a manga como se estivesse envergonhado. Que belo
cocheiro não dás! Fica conosco; acompanhar ás o comboio na condução da lã.

 A
coincidência do patrãozinho e do cocheiro pareceu-lhe sem dúvida uma idéia bem
curiosa e espirituosa, pois riu a bom rir e continuou a desenvolvê-la. Também
Emeliano ergueu os olhos para Iegôruchka, mas rápida e friamente. Estava ocupado
com os seus pensamentos e, sem Yássia, não teria notado Iegôruchka. Não haviam
passado cinco minutos e ele de novo levantava a mão e descrevia aos
companheiros as belezas do "Senhor, tem piedade!", cantado durante
as núpcias e que lhe voltava à memória.

A
uma ver st a da aldeia, parou o comboio perto de um poço com roldana.
Descendo seu balde ao fundo, Kiriúchka, o homem da barba negra, esticou-se
sobre o ventre ,à borda do poço e introduziu na abertura sua cabeça
desgrenhada, os ombros e uma parte do peito, de forma que Iegôruchka apenas
podia ver-lhe as pernas curtas, que mal tocavam a terra. Tendo percebido no
fundo dó poço seu próprio rosto, ficou jubiloso e deixou escapar uma risada
parva e espessa. O eco do poço deu-lhe a resposta. Quando se levantou, a
cabeça e o pescoço estavam rubros como uma papoula.

Dimov
foi o primeiro que correu para beber. Bebia rindo, abaixando às vezes o balde e
contando alguma história engraçada a Kiriúchka. Depois virou-se e lançou em
alta voz na estepe cinco palavrões inconvenientes. Iegôruchka não lhes sabia o
sentido, mas sua fama lhe era bem conhecida. Sabia a silenciosa reprovação que
lhes votavam seus pais e conhecidos; ele mesmo, sem saber por que, partilhava este sentimento e se
habituara a pensar que só os bêbedos e os furiosos gozavam do privilégio de os
pronunciar em voz alta. Lembrou-se da morte da cobra, ouviu o riso de Dimov e
sentiu por este homem algo próximo da raiva. E, como de propósito, nesse
momento Dimov percebeu Iegôruchka, que tinha descido da carroça e vinha para o
poço; riu ruidosamente e gritou:

— Irmãos, o velho esta noite deu à luz um
rapaz!

Kiriúchka
riu tanto que começou a tossir. Alguém mais meteu-se também a rir; Iegôruchka
enrubesceu e decidiu que Dimov era um homem bastante mau.

Louro, de cabelos
crespos, sem gorro e a camisa desabotoada no peito, Dimov parecia belo e
extraordinariamente forte. Em cada movimento manifestava-se o atleta,
consciente de sua força. Movia os ombros, as pernas, falava e ria com mais
vigor do que todos e tinha o ar de estar sempre se preparando para levantar
alguma coisa muito pesada e maravilhar o mundo. Seu olhar, desvairado e
zombeteiro, passeava sobre a estrada, o comboio e o céu, não se detendo em nada. Parecia que procurava ainda, por falta do que fazer, algum ser vivo para matar ou para
se divertir. Não tinha visivelmente medo de ninguém, não sentia o mínimo
constrangimento, e pouco se lhe dava a opinião de Iegôruchka. Iegôruchka já
detestava de todo o coração sua cabeça ruiva, seu rosto fresco e sua força;
escutava-o rir com temor e desgosto, e meditava na injúria que lhe poderia
dizer para dele se vingar.

Pantelei
aproximou-se também do balde. Tirou do bolso uma pequena lamparina de altar,
verde, limpou-a com um trapo, apanhou água no balde e bebeu; depois tornou a
enchê-la e bebeu mais uma vez; então embrulhou a lamparina no trapo e
recolocou-a no bolso.

—    Avô, por que bebes numa lamparina? perguntou
Iegôruchka, espantado.

—    Uns bebem no balde, outros na lamparina, respondeu
evasivamente o velho; cada qual com a sua maneira… Se bebes no balde, que te
faça bom proveito! (15)

—    Oh, que lindo, que pequeno amor! exclamou de súbito
Vássia numa voz cheia de ternura; ela se espoja na terra como um cãozinho.

Os
olhos dele fitavam alguma coisa distante. Estavam húmidos, sorriam, e sua
fisionomia adquiriu a expressão que tivera quando observava Iegôruchka.

— A quem te referes ? perguntou
Kiriúchka.

—    A uma irmãzinha raposa. Ela deitou-se de costas e
brinca como um cachorrinho.

—   
Onde a vês ?


Lá longe. Percebe-se sua cauda pelúcia a balançar todo o tempo.

(15)    Por este hábito e
outras atitudes,   Pantelei  revela-se um  "velho crente".

Puseram-se
todos a perscrutar a distância, procurando com a vista a raposa; mas não viam
nada… Apenas Vássia, com os seus pequenos olhos ternos e cinzentos, via
alguma coisa e extasiava-se. Possuía, como Iegôruchka pôde convencer-se mais
tarde, a vista extraordinariamente aguda. A tal ponto que a estepe tristonha e
solitária era sempre para ele cheia de interesse e de vida; tinha só que passear o
olhar ao redor de si para ver ou uma raposa, ou uma lebre, ou qualquer outro
animal que se mantinha longe dos homens. Ver uma lebre que foge, ou uma
abetarda que voa, não é proibido; e qualquer um que passar pela estepe poderá ver.
Mas nem a todos é dado surpreender os bichos em sua vida privada, quando eles
não correm, nem se escondem, nem lançam olhares inquietos para todos os lados.
Vássia já tinha visto raposas brincando, lebres lavando-se com as patinhas, as
abetardas fazendo o seu ruído peculiar. Graças a essa acuidade de visão,
Vássia, além do que toda a gente via, via uni outro mundo: um mundo dele,
inacessível a todos e provavelmente muito lindo, pois, ao contemplá-lo em
êxtase, era difícil haver alguém que não invejasse este homem.

Quando o comboio se pôs em movimento, o
sino da igreja chamava para a missa.

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